Mostrando postagens com marcador rússia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador rússia. Mostrar todas as postagens

27 de fevereiro de 2023

Arte moderna na Ucrânia

 




Não sei como será a Terceira Guerra Mundial.

Mas a Quarta, com toda certeza, será com paus e pedras.

–– Albert Einstein em 1945. 



A questão da arte moderna na Ucrânia é uma questão política – assim como é política qualquer questão sobre arte em qualquer circunstância. Na Ucrânia, a evolução da arte foi especialmente marcante na década de 1920, época da entrada do país na União Soviética, com artistas que influenciaram de maneira definitiva a arte moderna no Ocidente, em várias frentes, mas assim como toda a população ucraniana, muitas obras estão ameaçadas de destruição com a guerra iniciada em fevereiro de 2022 – um conflito de grandes proporções que já matou milhares de civis e militares e já é considerado como o maior confronto militar ocorrido na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Como estratégia emergencial, uma seleção dos acervos da arte moderna da Ucrânia foi reunida, com apoio de museus e de colecionadores, e transportada até o Museu Thyssen-Bornemisza, da Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia). Outras ações de resgate e preservação de obras de arte em áreas de bombardeios foram organizadas por historiadores e técnicos de museus da Ucrânia e de outros países em um fórum on-line coordenado pelo historiador Kilian Heck, da Universidade de Greifswald, da Alemanha, com apoio da Aliança Internacional para Proteção de Patrimônio em Áreas de Conflito (Aliph), sediada em Genebra, Suíça. Uma das ações resgatou 16 peças de arte sacra bizantina, com cerca de 1.500 anos, que estavam no Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram levadas para o Museu do Louvre, em Paris.

A guerra, que oficialmente teve início com a invasão da Ucrânia pelas tropas militares da Rússia, no final de fevereiro de 2022, na verdade começou bem antes, com a ascensão ao poder político de grupos de orientação fascista e armamentista na Ucrânia a partir do período entre 2013 e 2014, com a escalada de grandes e violentos protestos urbanos que na época foram chamados de Euromaidan ou Primavera Ucraniana. Segundo maior país da Europa em área territorial (atrás apenas da Rússia, seu país vizinho, com o qual compartilha extensas fronteiras ao leste e ao nordeste), a Ucrânia em 2016 completou 25 anos de independência em relação à União Soviética, mas seu destaque entre as maiores economias do planeta vem se degradando de forma acelerada desde a separação.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Carrossel,
pintura em óleo sobre tela de 1921, obra do
artista Davyd Burliuk. Acima, trabalhadores
e equipe técnica do Museu Nacional de Arte
da Ucrânia preparam obras do acervo para
serem transportadas para a Espanha. Abaixo,
um retrato pintado no final da década de 1920
por Kostiantyn Yeleva; e Uma camponesa,
pintura de 1910 de Volodymyr Burliuk.
Todas as obras reproduzidas abaixo fazem
parte do acervo reunido na exposição do
Museu Nacional Thyssen-Bornemysza, da
Espanha, nomeada como En el ojo del huracán:
vanguardia en Ucrânia, 1900-1930

 










De 11ª economia do mundo, no final do século 20, a Ucrânia começou a decair em potencial no novo século, assistindo a sucessivas pioras de seu parque industrial, que era complexo e desenvolvido quando o país fazia parte da União Soviética. Desde a separação, aconteceram perdas radicais em sua pauta de exportação, baseada em máquinas e produção de bens de alto valor agregado, além da grande produção agrícola, e houve uma progressiva ampliação da dependência de importações. Também em 2016, o PIB (Produto Interno Bruto) da Ucrânia já estava muito abaixo do nível que tinha antes do país separar-se da União Soviética, de acordo com Moniz Bandeira (no livro “A desordem mundial”, editora Civilização Brasileira), e a concentração de riqueza em setores restritos da elite ucraniana atingia níveis impressionantes.

O caos na Ucrânia tem acontecimentos que antecedem em alguns anos a guerra iniciada em fevereiro de 2022. A partir de 2013, o governo decidiu suspender um acordo com a União Europeia e retomar sua aproximação com a Rússia. Desde então, grupos fascistas identificados com a sigla Pravy Sector conseguiram incendiar o país com grandes protestos urbanos que levaram à deposição do governo, dando início a um estado de terror. A calamidade gerou conflitos de guerra civil em várias regiões do país, com políticos fascistas tomando o poder e com a liberação sem restrições para o comércio de armas de fogo. A crise teria um novo capítulo em 2019, com a surpreendente eleição de um comediante, Volodymyr Zelensky, para presidente do país.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Adão e Eva,
pintura em óleo sobre tela de 1912, obra do
artista Wladimir Baranoff-Rossiné, e um esboço
em aquarela sobre papel para um movimento
coreográfico de Masks, da Escola de Dança
Bronislava Nijinska, de Kiev, obra de 1919
de Vadym Meller. Abaixo, 1º de maio, pintura
em óleo sobre tela de 1929 de Viktor Palmov;
e Composição, pintura de 1919 de El Lissitzky





   




A guerra premeditada


Muito popular na Ucrânia por sua carreira de ator e comediante antes de entrar na política para concorrer ao cargo de presidente, Zelensky teve uma trajetória com atuações em várias frentes, incluindo espetáculos cômicos em teatro em que simulava tocar piano com o pênis, e também programas de TV, em especial a série “Servo do povo”, exibida em rede nacional de 2015 a 2018 como campeã de audiência. Na série de ficção, Zelensky fazia o papel principal de presidente da Ucrânia. Com o sucesso na TV, o grupo de Zelensky registrou um partido político com o mesmo nome da série. Nas eleições seguintes, em 2019, Zelensky despontou nas pesquisas como favorito e foi eleito presidente.

O capítulo de Zelensky na Presidência da República da Ucrânia não foi tão imprevisível como pode parecer. Com interesses muito próximos a autoridades do Ocidente e a grandes conglomerados multinacionais, o novo presidente e seu partido Servo do Povo deram início a mudanças na legislação e aceleraram um completo rompimento com o governo russo, ao mesmo tempo que buscaram maior aproximação do país com a União Europeia e com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), promovendo exercícios militares conjuntos com os norte-americanos no Mar Negro e nas fronteiras com a Rússia, o que na prática sinalizava uma declaração de guerra.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, A leiteira,
pintura em têmpera sobre tela de 1922, obra do
artista Mykhailo Boichuk; e Os inválidos, pintura
em óleo sobre tela de 1924 de Anatol Petrytskyi.
Abaixo, Afiando as serras, pintura de 1927 de
Oleksandr Bohomazov; e o cineasta e teórico
do cinema Dziga Vertov em ação, nas filmagens
de O homem com a câmera, de 1929, com
imagens captadas nas cidades ucranianas
de Kiev, Odessa e Kharkiv. Também abaixo,
um trailer do filme em cópia restaurada de 2014

















O passo seguinte de Zelensky no poder foi dar início à guerra premeditada: como resposta aos sucessivos exercícios militares conjuntos de Ucrânia e norte-americanos nas fronteiras, e diante da deliberação de Zelensky para que o país passasse a ser um território da OTAN, as tropas russas começaram a ocupação da Ucrânia. A ocupação dava continuidade a um processo que teve início em 2014, quando os russos ocuparam a Crimeia, logo após o golpe que levou à deposição do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich, que tinha posição favorável à Rússia. A Crimeia havia sido anexada à Ucrânia em 1952. Quatro décadas depois, em 1991, quando a Ucrânia se separou da União Soviética, a Crimeia conquistou a posição de República Autônoma. Desde o final de fevereiro de 2022 a guerra na Ucrânia veio se agravando e gerou uma enorme onda migratória de ucranianos para a Rússia, enquanto Estados Unidos e OTAN seguem fornecendo um grande arsenal de armamentos pesados para que tropas da Ucrânia, sob o comando do inexperiente Zelensky, elevado ao posto de comandante, enfrentem as tropas russas.

Segundo analistas internacionais, o conflito armado está longe de um desfecho (enquanto escrevo a versão final deste artigo, a revista Time destaca que o presidente Lula, do Brasil, surge como um mediador para o fim da guerra na Ucrânia. A reportagem da Time relata que tanto o presidente Zelensky da Ucrânia, como o presidente Vladimir Putin, da Rússia, já estariam avaliando a proposta de Lula para encerrar a guerra, mas nenhuma ação indica uma vontade política para estabelecer a paz. Além da Time, analistas de outros importantes veículos da imprensa internacional também informam que a proposta de Lula pode criar caminhos para a paz na Ucrânia).










Arte moderna na Ucrânia: no alto, O fotógrafo,
pintura em têmpera sobre papel de 1927, obra de
Ivan Padalka; acima, Gopak (dança ucraniana),
pintura de 1926-30 de Ilya Repin. Abaixo, obra de
Sonia Delaunay de 1925, Vestidos simultâneos
(três mulheres, formas, cores)
; e uma colagem
com pintura em óleo sobre tela em técnica mista,
Natureza morta, obra de 1926 de Aleksandra Ekster











Genocídio e independência


O percurso histórico da Ucrânia não foi menos violento no decorrer do último século. Além das batalhas no território ucraniano durante a Primeira Guerra Mundial, no período de 1914-1917, e na época da Revolução Russa de 1917, houve diversos conflitos armados pela independência do país no período de 1917 a 1921, até a entrada definitiva da Ucrânia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1922. Com os expurgos de Josef Stalin na União Soviética, na década de 1930, muitos líderes ucranianos foram presos ou mortos, o que gerou nova onda de protestos violentos. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o país teve posições contraditórias, com seus movimentos nacionalistas lutando simultaneamente contra os nazistas e contra os soviéticos.

Como saldo, os conflitos em decorrência da Segunda Guerra levaram à morte de cinco a oito milhões de ucranianos, na maior parte civis. Nas décadas seguintes não houve paz: as fronteiras da Ucrânia foram diversas vezes alteradas, quase sempre deflagrando mais violência e novos conflitos armados, até o fim da União Soviética, em 1991, com um referendo popular para a população ucraniana que aprovou a independência do país. No último século, a Ucrânia ainda foi palco do acidente na usina nuclear de Chernobil, em abril de 1986, que deixou milhares de mortos e consequências permanentes de contaminação e envenenamento.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Funeral,
pintura em óleo sobre papel de 1920, obra de
Oleksandr Bohomazov
. Abaixo, Retrato
de Mykhailo Semenko
, técnica mista de
aquarela, grafite e nanquim sobre papel,
obra de 1929 de Anatol Petrytskyi;
e Nova arte, desenho em técnica sobre papel,
obra em 1927 de Vasyl Yermilov para a capa
da edição nº 23 da revista Nove Mystetstvo
(Nova Arte), identificada como um marco inicial
do movimento construtivista









Um raro período de paz e prosperidade aconteceu na década de 1920, com a entrada da Ucrânia na União Soviética. Na cultura, a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema prosperavam de forma surpreendente. Sobre a literatura, o Brasil tem um vínculo importante com a Ucrânia: Clarice Lispector, uma das grandes referências da literatura brasileira, nasceu na cidade ucraniana de Tchetchelnik, enquanto seus pais percorriam as aldeias para fugir da perseguição aos judeus, durante a guerra civil na Rússia de 1920-1922. Contudo, como a própria Clarice declarou, a Ucrânia foi uma terra em que nunca pisou, pois veio para o Brasil com um ano e dois meses de idade, quando sua família de imigrantes chegou ao Recife, capital de Pernambuco. Clarice não é a única referência da Ucrânia na cultura brasileira. Outro nome importante é Gregori Warchavchik, arquiteto e artista plástico que nasceu na cidade ucraniana de Odessa e chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista, tornando-se um dos destaques da arquitetura moderna brasileira.

Depois de muitas idas e vindas, muitas perseguições e destruições, vários expoentes da arte moderna da Ucrânia permanecem na posição privilegiada de cânones da arte mundial, pelo que representaram de inovação e ruptura em seu tempo e pela influência que exercem até a atualidade como mestres do cubismo, do suprematismo, do futurismo, do expressionismo e da arte abstrata. Um grupo destes mestres tem em comum uma trajetória de formação acadêmica no início do século 20, na Ucrânia, e posterior destaque entre os modernos para além das fronteiras do país, especialmente em Moscou, na União Soviética, e em Paris, na França, onde vários deles viveram na célebre colônia de arte La Ruche (A Colmeia): neste grupo estão, entre outros, Sonia Delaunay, Olexandr Archipenko, Olexandr Bohomazov, Nathan Alman e Wladimir Baranoff-Rossiné.

Os artistas que deixaram a Ucrânia desde o começo do século 20, e que por longos períodos viveram ou em Moscou, ou na Alemanha, ou na colônia parisiense La Ruche, são conhecidos na história da arte como expoentes do Renascimento Ucraniano – entre eles nomes como Arkhip Kuindzhi, mestre da cor e dos efeitos de luz na pintura, que exerceu forte influência em seus contemporâneos e no surgimento da Arte Moderna, apontado como referência por nomes do primeiro time das vanguardas como Wassily Kandinsky e Marc Chagall, e também Dziga Vertov, de importância fundamental na história do cinema. Vertov, na verdade, nasceu na Polônia, mas teve sua formação acadêmica e técnica na Ucrânia, país onde realizou seus filmes mais importantes, mesmo depois de fixar residência em Moscou. Nascido Denis Arkadievitch Kaufman, ele mudou seu nome para Dziga Vertov – a palavra “dziga” em ucraniano significa moto-contínuo ou máquina de movimento perpétuo, e “vertov”, em russo (“vertet”), significa mover, rodar, girar.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Depois da Chuva,
pintura de 1881 de Arkhip Kuindzhi, nascido em Mariupol,
Ucrânia, na época uma província do Império da Rússia.

A
cima, a capa do catálogo da exposição realizada
no museu da Espanha. Abaixo, Composição,
pintura em óleo sobre tela 
de 1920 de Vadym Meller;
e Composição em suprematismo, colagem em técnica
mista sobre cartão, obra de 1921 de Boris Kosarev













Vanguardas ucranianas


Outro expoente do Renascimento Ucraniano é Kazimir Malevich, nascido em Kiev, mentor do movimento pioneiro da arte abstrata conhecido como suprematismo, e muitas vezes identificado erroneamente como russo, talvez por seu papel como artista central das vanguardas na União Soviética. Há outras situações semelhantes de erro de atribuição de nacionalidade de artistas ucranianos: uma delas é a trajetória de Aleksandra Ekster, uma das mulheres mais influentes das vanguardas da Europa e muitas vezes identificada como artista da Rússia, apesar de ter nascido na Polônia, ter vivido e trabalhado a vida toda na Ucrânia e ter residido apenas quatro anos em Moscou, antes de passar um longo período de exílio em Paris.

Há, também, casos de grandes artistas da Ucrânia que vêm de antes da arte moderna e que são erroneamente identificados como russos: um deles é Ilya Repin, nascido na província ucraniana de Chuguev e um dos nomes mais celebrados na Rússia na segunda metade do século 19. Depois de décadas atuando como professor na Academia Russa de Artes em São Petesburgo, Repin deixou o cargo em 1905 e foi morar na Finlândia. Quando a Finlândia se separou da Rússia, em 1917, Repin se tornaria um dos entusiastas da revolução, mas nunca mais foi autorizado a retornar a São Petesburgo ou a Moscou, nem quando houve exposições com retrospectivas de suas obras.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Três figuras de mulheres,
pintura em óleo sobre tela de 1909 de Oleksandra Ekster.
Abaixo, Anunciação, pintura em óleo sobre tela de
1908 de Oleksandr Murashko. No final da página,
Cidade, pintura de 1917 de 
Issakhar Ber Ryback;
e uma das curadoras da mostra, a ucraniana
Katia Denysova, durante uma entrevista coletiva
na abertura da exposição em Madri

  








Um século depois de seu surgimento, uma amostragem realmente importante do Renascimento Ucraniano e dos artistas de vanguarda da Ucrânia foi finalmente reunida – contraditoriamente como consequência da guerra. Tudo começou com uma viagem que parece enredo de um filme de ficção: quando teve início o bombardeamento em Kiev, em 2022, obras de arte muito valiosas que estavam no Museu Nacional da Ucrânia e em outros acervos e coleções particulares foram transportadas, secretamente, em dois caminhões que partiram da Ucrânia em direção à Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia), aberta ao público no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza. 

Depois da viagem arriscada de mais de 3 mil quilômetros atravessando a Europa, de Kiev a Madri, passando pela Polônia, as obras-primas da arte moderna da Ucrânia, talvez o patrimônio cultural móvel mais valioso do país, estarão em exposição de gala na Espanha até o final de abril. Depois da temporada na Espanha, o acervo segue para mostras em outros grandes museus, em itinerário que começa no Museum Ludwig, na Alemanha. As 70 obras reunidas para a exposição destacam, em primeiro lugar, o absurdo da guerra, de todas as guerras, mas também traduzem a importância de artistas célebres que nasceram ou trabalharam durante muitos anos na Ucrânia. São obras e artistas que deixaram marcas definitivas tanto na cultura ucraniana como no estabelecimento das revoluções radicais de sentido, de forma e de conteúdo, que convencionamos nomear no mundo inteiro como Arte Moderna.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte moderna na Ucrânia. In: Blog Semióticas, 27 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/02/arte-moderna-na-ucrania.html (acessado em .../.../…).

































9 de agosto de 2018

Retratos da União Soviética













Alguns dos principais teóricos da imagem têm em comum a máxima de que toda grande fotografia representa um momento libertado do tempo –– uma definição que tem menos de surrealismo e muito mais de realismo, como se poderia supor à primeira vista. Se pudéssemos ver em detalhes o que aconteceu antes e depois daquela cena registrada, a realidade da imagem já seria outra, por certo, dissolvida por sua vez em outros acontecimentos passageiros e perdidos para sempre em ondas sucessivas ou simultâneas de movimentos, de imagens, de ruídos. Em vez disso, o fotógrafo conseguiu preservar aquele único instante, aquele enquadramento que nunca mais vai se repetir no tempo e no espaço –– o que pode elevar a imagem fotografada do mais simples ao mais precioso e sublime, ou mesmo conferir a ela um poder quase de devoção religiosa diante do que nunca mais irá se repetir existencialmente.

Não é só que o tempo congelou, mas toda aquela complexidade que, ao interromper seu fluxo, a câmera revela e preserva: um brilho estático, quase sobrenatural, um momento parado na quietude, um silêncio, uma reverência na qual derramamos nossas crenças e nossas interpretações motivadas por questões pessoais, sentimentais ou estéticas, documentais, ideológicas. Quando estamos frente a frente com o trabalho realizado por um grande fotógrafo, esta percepção de um momento libertado do tempo é quase sempre permanente, muitas vezes inevitável, como demonstram as imagens reunidas em duas exposições itinerantes que estão na agenda de Belo Horizonte e outras capitais brasileiras, ambas apresentando imagens do século passado na antiga União Soviética, ou URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas –– CCCP, na sigla em russo), que teve sua vigência de 1922, no período posterior à Revolução Russa de 1917, até a dissolução oficial em 1991, quando 12 das repúblicas até então associadas tornaram-se independentes da Rússia.






.




Retratos da União Soviética: no alto e
acima, fotografias da Rússia na exposição
O último império, de Serguei Maksimishin.
Na primeira, trabalhadores no Monastério
Aleksandro-Svirski, na região de São Petersburgo,
carregam uma moldura com pintura sobre a cena
bíblica da crucificação de Cristo para a montagem
de uma exposição em 2002; na segunda
fotografia, uma vista da praça central na cidade
de Krasnokamensk, região de Zabaikalski,
em 2006; na terceira, uma ovelha é arrastada
para o sacrifício na celebração muçulmana
do Eid Al-Adha em São Petersburgo, 2004.

Abaixo, duas fotografias de Viktor Akhlomov,
apresentadas na exposição A União Soviética
através da câmera: na primeira, jovens sobre
uma estátua de Stalin derrubada em um
parque de Moscou, em 1991; na segunda,
uma vista sobre a Kalinin Avenue, em
Moscou, em fotografia de 1977















As fotografias mostram cenas mais poéticas que prosaicas e por vezes enigmáticas nas exposições “A União Soviética através da câmera”, que selecionou um total de 120 imagens em preto e branco de seis veteranos da fotografia, cinco da Rússia e um da Lituânia, e “O último império”, com 65 instantâneos mais contemporâneos e em cores de Serguei Maksimishin, registrados a partir da década de 1990. Os seis fotógrafos da primeira exposição, que retratam o período conhecido como “degelo soviético”, de 1956 a 1991, sob curadoria de Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova, têm em comum uma visão humanista e otimista sobre a vida cotidiana: são eles Vladimir Lagrange, Leonid Lazarev, Vladimir Bogdanov, Yuri Krivonossov, Victor Akhlomov e Antanas Sutkus. Em contraste com os seis mestres veteranos da primeira exposição, Maksimishin tem registros mais jornalísticos, mas a composição elaborada de cores e enquadramentos imprevistos retiram suas imagens do lugar comum mais usual que, com frequência, encontramos em publicações de jornais e revistas. 



Imagens do “país fantasma”



A curadoria da exposição “A União Soviética através da câmera”, no informe distribuído à imprensa, usa uma expressão incomum para se referir ao antigo Estado Soviético: “país fantasma”. Incomum mas não inadequado, já que a dissolução da União Soviética em 1991 criou, de fato, uma fantasmagoria: o estado com a maior abrangência territorial e geopolítica do século 20, não mais existente, ficou no passado e deixou margens para que as fronteiros entre o real e o abstrato permaneçam apenas como registros da memória que as fotografias, e a História, presentificam. “Através do olhar de fotógrafos diferentes, a exposição propõe uma reflexão sobre a vida cotidiana deste ‘pais fantasma’, do Degelo de Khrushchov à Perestroika de Gorbatchov, assim como sobre o papel singular exercido pela fotografia na sociedade soviética pós-stalinista”, destacam os curadores. 






Retratos da União Soviética: acima e abaixo,
três fotografias de Vladimir Lagrange na
exposição A União Soviética através da câmera.

Acima, Mãe, fotografia de 1966; abaixo,
Jovens bailarinas, de 1963, e os estudantes
reunidos em 1962 em Comemoração na
Praça Vermelha, em Moscou












Diante da diversidade de autores e de obras que as duas exposições reúnem, é importante destacar a herança construtivista que todos eles possuem, com ressonância em nomes que marcaram época e permanecem como referência incontornável como Serguei Eisenstein (1898-1948), Dziga Vertov (1896-1954), Alexandr Rodchenko (1891-1956) e outros grandes mestres das artes em geral e do cinema e da fotografia em particular –– expoentes das vanguardas no período posterior à Revolução de 1917 e que exerceram influência central, muito além de suas fronteiras geográficas ou políticas, nos principais movimentos que estão na origem do que chamamos de Arte Moderna e nas expressões vigentes da abrangência de áreas como a arquitetura e o design industrial no último século.

Ao contrário do culto às autoridades e aos desfiles cívicos para reverência à pátria dos tempos de Josef Stalin, no período de 1937-1953, o que os retratos selecionados da antiga União Soviética colocam em cena é a vida social no cotidiano de pessoas comuns por trás do que, durante décadas, o mundo do Ocidente conhecia como “Cortina de Ferro”: trabalhadores, homens e mulheres em cenários indistintos, crianças em salas de aula, pais brincando com os filhos, adolescentes em momentos de lazer, o movimento urbano de ruas e praças. O intervalo de tempo que a exposição acompanha, de 1956 a 1991, tem quase a mesma extensão da chamada “Guerra Fria”, deflagrada no pós-guerra, no final da década de 1940, quando Estados Unidos estabelecem a “Doutrina Truman” como tentativa de travar a expansão soviética e intensificam o conflito mundial pela influência ideológica –– mas o tema da “Guerra Fria” parece ter sido sistematicamente excluído das imagens selecionadas.









Retratos da União Soviética: quatro fotografias
de Antanas Sutkus na exposição "A União
Soviética através da câmera". Acima e abaixo,
crianças na Lituânia: Alunas de ginástica,
de 1963, Mão materna, de 1965;
O pequeno Ignalina, de 1964;
e a destituição do posto da estátua de Lênin
de uma praça em Moscou, fotografia de
1991 nomeada pelo autor como
Adeus aos camaradas do partido











Ausências e esquecimentos



Como muitas vezes acontece, contudo, nem sempre o retrato é fiel e completo em relação ao que é retratado. Também estão ausentes da exposição "A União Soviética através da câmera”, entre outras questões e acontecimentos que fizeram a História, imagens ou referências às multidões em mobilizações políticas ou mesmo às grandiosas campanhas militares da expansão da URSS, que formou o país de dimensões continentais, assim como foram sintomaticamente esquecidas nos acervos pesquisados pela curadoria todas as cenas de comoções populares diante das surpreendentes investidas da União Soviética durante a corrida pela conquista do Espaço Sideral.

Há somente uma única menção direta às imagens heroicas e lendárias do período em que os soviéticos tomaram a dianteira frente aos norte-americanos e enviaram para além da atmosfera terrestre as primeiras espaçonaves que no imaginário popular pareciam saídas da imaginação mirabolante de artistas da ficção científica. São ignoradas imagens lendárias do primeiro satélite artificial, o Sputnik 1 (de 1957), do primeiro animal a orbitar o Planeta Terra, a cadela Laika (em 1957), e da primeira nave que fez um pouso na Lua, a sonda Luna E-6M (em 1966). A única referência à corrida espacial está em uma imagem do primeiro homem a viajar pelo espaço – o astronauta Yuri Gagarin, fotografado por Leonid Lazarev em 1961, na Praça Vermelha, em Moscou, com o secretário geral do Partido Comunista, Nikita Khrushchov. As cenas que marcaram época com as reações das multidões, perplexas ou incrédulas, que segundo relatos célebres de muitos historiadores assistiram aos acontecimentos, em projeções em teatros, em televisores instalados em pontos comerciais e em desfiles organizados com toda pompa e circunstância, foram solenemente ignoradas pela curadoria.







Retratos da União Soviética:duas fotografias de
Leonid Lazarev na exposição "A União Soviética
através da câmera". Acima, o astronauta Yuri Gagarin
fotografado 
em 1961, na Praça Vermelha, em Moscou,

com o secretário do Partido Comunista, Nikita Khrushchov.
Abaixo, Lembranças da infância, fotografia de 1957









Vladimir Lagrange, talvez o mais conhecido dos seis fotógrafos reunidos na exposição, por conta da comercialização desde 1963 de seu trabalho como fotojornalista por publicações alemãs como a revista “Freie Welt”, tem um pequeno mas revelador depoimento sobre a vida cotidiana na “Cortina de Ferro” da URSS exibido ao lado de uma de suas fotografias. “Havia uma vida pessoal: pais, casa, trabalho, amor, filhos, amigos”, relata Lagrange. “E a vida do país: slogans, reuniões, obrigações, condecorações, planos do partido e do povo. Não ficávamos surpresos, pois éramos habituados a viver assim. Não conhecíamos outra vida. Pensavam por nós, nos privavam de qualquer autonomia, tudo era familiar, cada um fazia o seu trabalho. E sempre recordo de algumas palavras que faziam parte de nossa vida cotidiana: Stalin, queda de preços (o que todos esperávamos), querosene, abrigo antiaéreo, jornal Pravda, lenha, filas e assim por diante”. 



Pessoas comuns e mudanças de hábitos



Os seis fotógrafos reunidos na mostra “A União Soviética através da câmera” pertencem à mesma geração, nascidos após a Revolução de 1917, nas décadas de 1920 e 1930, e todos conquistaram prêmios importantes dentro e fora das fronteiras da Rússia. O mais velho, Yuri Krivonossov, que nasceu em Moscou, em 1926, ganhou notoriedade exatamente em 1953, ano próximo do período inicial da mostra, quando publicou na revista soviética “Ogonek” uma fotografia histórica que retrata o funeral de Stalin. Leonid Lazarev e Vladimir Bogdanov nasceram em 1937, Victor Akhlomov e Vladimir Lagrange em 1939. O único dos seis fotógrafos que não nasceu na Rússia foi também o mais censurado: Antanas Sutkus nasceu em 1939 na Lituânia e, assim como todos os outros, permanece na ativa, à exceção de Akhlomov, morto em 2017.
 






Duas imagens de Vladimir Bogdanov selecionadas
para a exposição A União Soviética através da
câmera
: acima, Primeiros passos em Moscou,
fotografia de 1976. Abaixo, Meninos em Moscou,
fotografia do ano de 1989








Considerado o fotógrafo mais importante de seu país, Sutkus mantém, desde 1976, entre outros projetos, uma série contínua e monumental de referência em estudos de antropologia, ainda sem similares em outros países. Intitulada “Pessoas da Lituânia”, o projeto de Sutkus registra cidadãos comuns em uma proposta de estudo comparado para documentar as pessoas e as mudanças de hábitos cotidianos. Ao que se sabe, Antanas Sutkus teve durante décadas seu trabalho sistematicamente arquivado e não autorizado para publicação na URSS, exatamente porque registrava sempre pessoas comuns em cenas prosaicas, ao invés dos trabalhadores e dos cidadãos tidos como modelos idealizados pelo regime soviético. Nos últimos anos as fotografias de Sutkus ganharam retrospectivas no Victoria & Albert Museum da Inglaterra e em outros grandes museus da França, Dinamarca e Estados Unidos. 



O diferencial da cor e o “choque cultural”



Assim como os seis veteranos reunidos na primeira mostra, Serguei Maksimishin retrata cenas da vida cotidiana na exposição “O último império”, também sob curadoria de Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova. Nascido na Rússia, em 1964, e considerado um dos principais fotógrafos das novas gerações de seu país, Maksimishin estreou na fotografia com publicações em jornais e revistas da Rússia e de outros países no começo da década de 1990, assim que concluiu seus estudos na Universidade de São Petersburgo, simultaneamente aos novos tempos da Perestroika instituída por Mikhail Gorbatchov. Com o diferencial da cor, as 65 fotografias selecionadas também revelam cenas com pessoas comuns em situações aparentemente corriqueiras –– mas destacam a performance de virtuose do fotógrafo em composições, luminosidades e enquadramentos que impressionam à primeira vista.










Retratos da União Soviética: acima, duas
imagens de Yuri Krivonossov, "Meninos
mergulham em frente ao Kremlin",
fotografia de 1960; e "Crianças durante
a celebração dos 40 anos do movimento
Pioneiros", fotografia de 1962.

Abaixo, duas fotografias de Maksimishin:
na primeira, Estudantes em sala de aula
na Faculdade de Teologia do Daguestão,
em 2004; na segunda, soldados crianças
em frente ao monumento da Fonte Amizade
dos Povosem Moscou, em 2005










As diferenças culturais do país continental em relação aos hábitos mais comuns dos países do Ocidente também sobressaem no trabalho de Maksimishin. O fotógrafo esteve no Brasil para a abertura de sua primeira exposição na América Latina, em maio, na Caixa Cultural de São Paulo, e surpreendeu quando declarou, em várias entrevistas, que em sua formação como fotógrafo e no “choque cultural” representado pelas imagens selecionadas de seu país, ele reconhece apenas um professor principal de fotografia: o escritor Nikolai Gogol (1809-1854), autor de grandes clássicos da literatura universal, publicados pela primeira vez exatamente na mesma época em que, por coincidência histórica, também surgiam os primeiros experimentos de registros fotográficos. Entre estes grandes clássicos que Gogol escreveu e publicou estão romances, contos e peças de teatro, tais como “Almas Mortas” (1842), “O Inspetor Geral” (1836), Taras Bulba” (1934), “O Diário de um Louco” (1835), “O Capote” (1942), “O Retrato” (1842) e outras obras-primas.

Se considerarmos que a literatura de Gogol inaugurou o realismo no Império da Rússia do século 19, influenciando todos os escritores que vieram depois dele, inclusive de outras línguas e de outras nacionalidades, como o brasileiro Machado de Assis, com rasgos de absurdo, de humor amargo e de uma percepção onírica da vida em sociedade que seriam retomados como uma das principais influências do surrealismo, a referência de Maksimishin parece bastante adequada –– com os detalhes imprevisíveis de temas e de composições que suas fotografias revelam. Em uma delas, para ser mais preciso na descrição, o que vemos em primeiro plano é uma pessoa vestida como um personagem do programa infantil de TV Teletubbies, produzido pela BBC de Londres no final da década de 1990, em frente a uma pequena igreja isolada em um povoado do interior da Rússia. O Teletubbie, vestido de vermelho, está em destaque no centro da fotografia; à direita, saindo do enquadramento, uma longa fila de mulheres e crianças caminha para a entrada da igreja em ruínas.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos da União Soviética. In: Blog Semióticas, 9 de agosto de 2018. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2018/08/retratos-da-uniao-sovietica.html (acessado em .../.../...). 


Para comprar o livro "Breve história da União Soviética",  clique aqui. 











O último império: acima, Igreja no vilarejo,
fotografia de 2003 de Serguei Maksimishin.

Abaixo, o fotógrafo na abertura da exposição
em São Paulo, em maio de 2018, em
fotografia de Valéria Gonçalvez, e uma de
suas fotografias que registra outra cena incomum
no cotidiano da Rússia: dois executivos no
teleférico de acesso para as montanhas
Vorobyovy em Moscou, 2004
 










Outras páginas de Semióticas