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30 de novembro de 2023

Aquarela do Ary


 




Brasil, meu Brasil brasileiro,
meu mulato inzoneiro,
vou cantar-te nos meus versos.

– Ary Barroso, "Aquarela do Brasil" (1939). 






Um lançamento de peso: uma caixa de CDs com a obra completa do compositor Ary Barroso (1903-1964) surge como um sério indicador do fim da época das chamadas mídias físicas no Brasil, incluindo CDs, DVDs e álbuns de música em vinil. O indicador do fim pode ser confirmado não só no decréscimo dos lançamentos, cada vez mais raros e esparsos, mas também na retração acelerada do mercado da oferta e da procura, porque mesmo nas capitais e nas maiores cidades são raríssimas as lojas que vendem discos em vinil e CDs – e as poucas opções que restam estão nas grandes lojas de departamentos, com espaço cada vez mais restrito ou inexistente para discos, CDs e DVDs. As plataformas on-line de comércio são as últimas opções, mas também nelas a presença de vinis, CDs e DVDs parece estar mesmo em fase de extinção.

A caixa de CDs em questão é “Brasil Brasileiro”, com uma primorosa seleção de gravações de grandes intérpretes para todas as canções de Ary Barroso, um dos mais célebres compositores brasileiros. A caixa traz 20 CDs com 316 canções reunidas em ordem cronológica, em gravações originais da Casa Edison, Odeon, RCA Victor, Copacabana e outras gravadoras, na interpretação do próprio compositor e nas vozes de maiorais da Velha Guarda, entre eles Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Orlando Silva, Mário Reis, Sílvio Caldas, Jorge Veiga, Jamelão, Marlene, Ângela Maria e Elizeth Cardoso. As composições de Ary Barroso tornaram-se clássicos, mas não ficaram esquecidas no passado: ainda hoje estão no repertório do cancioneiro popular e também são destaque entre as canções brasileiras mais conhecidas e mais gravadas no exterior – incluindo “Aquarela do Brasil”, “Na Baixa do Sapateiro”, “No Tabuleiro da Baiana”, “Os Quindins de Yayá”, “Risque”, "Camisa Amarela", “No Rancho Fundo”, “Na Batucada da Vida” e “Pra Machucar Meu Coração”.





         




Aquarela do Ary: no alto da página e acima,
Ary Barroso ao microfone na Rádio Cruzeiro do Sul
do Rio de Janeiro, prefixo PRD-2, em 1932.

Também acima, a caixa de CDs "Brasil Brasileiro",
que reúne todas as composições de Ary nas
gravações originais. Abaixo, Ary conduzindo
jornalistas e fãs que acompanham o cantor
das multidões, Orlando Silva; e Ary
ao piano, em apresentação em 1957
na boite Fred's, no Rio de Janeiro












Garimpo em arquivos


O grande desafio, contudo, é encontrar uma loja ou um site em que a caixa de CDs esteja à venda. Não está disponível nem mesmo no site da famigerada Amazon. A produção dos 20 CDs com a obra completa de Ary Barroso foi o resultado de duas décadas de trabalho do pesquisador Omar Jubran, que também fez todo o processo de remasterizações. A caixa foi lançada pela gravadora NovoDisc, criada e gerenciada pela jornalista e musicóloga Maria Luiza Kfouri, em parceria com o Museu da Imagem e do Som (MIS), de São Paulo. O MIS distribuiu uma parte da tiragem das caixas de CDs para bibliotecas e instituições parceiras da Secretaria de Estado da Cultura, mas para pesquisadores e fãs de Ary Barroso o processo para conseguir uma das caixas pode ser um autêntico garimpo. Quem tiver a sorte de encontrar a caixa também terá como encarte um livreto que traz todas as letras, a identificação dos intérpretes e as fichas técnicas relacionadas a cada composição.

De todas as composições de Ary Barroso, apenas cinco ficaram fora da caixa, porque os fonogramas não foram localizados por Omar Jubran. No encarte, ele esclarece que as cinco canções aparecem nomeadas nos arquivos das gravadoras, mas não há registro sobre as gravações. “Uma explicação razoável para tal, é que pode ter existido a gravação da matriz sem que houvesse a prensagem do disco”, relata o pesquisador. Ele também justifica a existência de alguns ruídos e chiados discretos em algumas das gravações: “Em nome da preservação do som original e das características técnicas de gravação dos anos 1930 e 1940, alguns fonogramas ainda apresentam uma pitada de ruído, o que lhes atribuiu um charme especial”.






Aquarela do Ary: acima, o compositor
e seu piano, em foto de 1953. Abaixo,
o primeiro piano de Ary, conservado
na cidade mineira de Ubá pela família
do compositor e chamado pelos herdeiros
de "o piano da tia Ritinha", porque pertenceu
a uma tia de Ary que era professora de piano










Calouros do Ary


Nascido há 120 anos, completados em 7 de novembro, na cidade mineira de Ubá, Ary Barroso morreu no Rio de Janeiro, em um sábado de Carnaval, em 9 de fevereiro de 1964, aos 60 anos, em decorrência de cirrose hepática, resultado de anos de alcoolismo. O Rio foi a cidade em que passou a maior parte da vida e também o cenário da maioria de suas canções, com a curiosidade de que em algumas, das mais conhecidas, a Bahia e as baianas é que são o tema central. Além de compositor e cantor, Ary também foi muito popular em sua época como apresentador de programas de rádio e comentarista esportivo, sem nunca esconder sua condição apaixonada de torcedor do futebol do Flamengo. Seu primeiro programa de rádio foi “Calouros em Desfile”, que teve sucesso desde a estreia com nomes desconhecidos que passaram depois à condição de astros e estrelas de primeira grandeza da música brasileira.

O programa “Calouros em Desfile”, que estreou em 1932, na Rádio Philips, também trouxe a fama de ranzinza para Ary Barroso, o que pode ser confirmado ao se ler a lista dos nomes que ele reprovou e que depois seriam consagrados como medalhões entre os grandes intérpretes da música brasileira, incluindo aqueles que gravaram versões de sucesso para as composições dele próprio. Nas décadas seguintes, o apresentador e o programa “Calouros em Desfile” seguiriam para outras estações – em 1934, para a Rádio Mayrink Veiga; no ano seguinte, para a Rádio Cosmos, em São Paulo. Na Rádio Cruzeiro do Sul, a partir de 1943, ele apresentou “A hora do calouro”; na Radio Nacional, a partir dos anos 1950, o mesmo programa foi renomeado para “Calouros do Ary”. Ele também criou uma tirada de humor que foi sua marca registrada: o gongo, que soava quando o calouro era eliminado.




 
    





Aquarela do Ary: no alto, o compositor com
os amigos Carmen Miranda e Sílvio Caldas,
em reportagem da "Revista do Rádio" em 1955.
Carmen foi a recordista em gravações das canções
de Ary, com mais de 30 grandes sucessos.

Acima, Ary com o célebre gongo que o
acompanhava em todos os programas de
calouros que apresentou em várias estações
de rádio. O homem do gongo era o comediante
Tião Macalé. Abaixo, Ary com Walt Disney
no Hotel Copacabana Palace, em 1942, na época
em que Disney produziu o filme "Olá, Amigos",
que apresentou o personagem Zé Carioca
e trazia canções de Ary na trilha sonora;
e um encontro de bambas: Linda Baptista,
Grande Otelo, Herivelto Martins e
Ary Barroso
ao piano, no Cassino da Urca,
em 1940, fotografados por Carlos Moskovics










 

A lista dos nomes de calouros premiados que despontaram para a fama nos programas de rádio sob o comando de Ary Barroso é imensa – mas na lista dos que foram reprovados há, também, nomes notáveis, entre eles nomes que depois deram a volta por cima e conquistaram a consagração no primeiro time da música brasileiras, caso de Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Vinicius de Moraes e também Elza Soares, que protagonizou um acontecimento marcante por vários motivos. Com Elza Soares aconteceu aquele diálogo que a cantora repetiu depois, muitas vezes, ao lembrar que foi humilhada na estreia porque era negra e tinha aparência de pobre. Ao microfone, com sua conhecida ironia, Ary perguntou: “De que planeta você vem, minha filha?”. Elza respondeu: “Eu vim do planeta fome”.








Aquarela do Ary: no alto, o compositor no começo
da carreira, em 1936, com a estrela Carmen Miranda
e o amigo e parceiro de composições Luiz Barbosa.

Acima, com a esposa Yvonne e amigos. Abaixo, com
o maestro Heitor Villa-Lobos; com Dolores Duran;
com Elizeth Cardoso; e comemorando a vitória do
Flamengo, seu time do coração, com Ângela Maria
















Um brasileiro internacional


Também é inegável que o salto de Ary Barroso para o primeiro time como compositor popular no Brasil tem participação de Carmen Miranda. A estrela mais popular no Brasil desde a década de 1930, no rádio, no teatro de revista e no cinema, foi a recordista em gravações de canções de Ary Barroso, com mais de 30 grandes sucessos, incluindo a mais célebre, “Aquarela do Brasil’, gravada por Francisco Alves em 1939 e três anos depois incluída na trilha sonora de “Alô, Amigos” (“Saludos Amigos”), o filme de animação que Walt Disney fez no Rio de Janeiro, como encomenda para a Política da Boa Vizinhança lançada pelo governo do norte-americano Franklin Roosevelt, no final da década de 1930, para ganhar a simpatia dos governos e dos povos da América Latina na época da Segunda Guerra Mundial.

O filme “Alô, Amigos”, lançado nos cinema dos Estados Unidos e do Brasil em 1942, marca a estreia das canções de Ary Barroso em uma produção de Hollywood e também foi a estreia do personagem Zé Carioca (veja também Semióticas – Estratégias do Zé Carioca). Na gravação de Carmen Miranda, “Aquarela do Brasil” foi um grande sucesso nas rádios norte-americanas e em outros países, conquistando um lugar no imaginário do público. A canção foi o grande sucesso da carreira de Ary Barroso e teve inúmeras regravações que ganharam o mundo nas vozes de artistas de várias gerações e vários estilos, de Frank Sinatra a Ella Fitzgerald, Ray Conniff, Harry Belafonte, Dionne Warwick e até com as bandas Arcade Fire e Beirut, entre muitos outros.














Aquarela do Ary: no alto, o compositor em ação
como narrador e comentarista de futebol. Acima,
em um encontro com os novatos da Bossa Nova,
João Gilberto, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli e
Carlos Lyra
, fotografados por Indalécio Wanderley

Abaixo, Ary com Carmen Miranda em Hollywood,
em 1944, na época em que rejeitou o contrato
de trabalho para ser compositor exclusivo dos
Estúdios Disney e voltou para o Brasil, alegando
que não conseguiria ficar longe dos jogos do
Flamengo; Ary em 1957, em uma prosa
animada com o presidente da República,
Juscelino Kubitschek; e na final do
Grande Torneio Nacional, última etapa do
"Calouros do Ary", programa da Rádio Nacional,
com a vencedora da competição de 1960,
a jovem Tânia Maria, que fixou residência nos
Estados Unidos e, atuando como cantora e
pianista, tornou-se referência do Jazz e da
música contemporânea com ritmos
afro-brasileiros.

Também abaixo, Ary diante da multidão
em um show em Buenos Aires, Argentina,
em 1955; Ary com Dorival Caymmi, na foto
para a capa do álbum que gravaram juntos
em 1958; e na última foto, poucos dias antes
de sua morte, em 9 de fevereiro de 1964











A trajetória de Ary Barroso coincide também com momentos marcantes da história do Brasil. Seu primeiro grande sucesso popular acontece em 1930, ano da chegada de Getúlio Vargas ao poder, com a Revolução de 1930, e sua morte antecede em apenas dois meses o golpe de 1964 que instalou a ditadura militar. Naquele ano de 1930, Ary Barroso foi notícia pela primeira vez porque venceu o Grande Concurso da Música Popular, para escolha de canções do Carnaval, promoção da gravadora mais popular da época, a Casa Edison, e do jornal Correio da Manhã, com a marchinha “Dá Nela”. Meses antes, Mário Reis, seu colega na Faculdade Nacional de Direito e já consagrado cantor, havia gravado duas canções de Ary, “Vou a Penha” e “Vamos deixar de intimidade”.

Com isso, a partir de 1930 estrearam as canções de Ary Barroso nas paradas de sucesso e muitas outras viriam, nos anos e nas décadas seguintes. Desde então, muitos conhecem de cor suas canções, que já foram nomeadas como marchinhas e como samba, samba-canção, samba-exaltação, mesmo que não associem seu nome às canções ou não saibam quem é o compositor. Ele é Ary Barroso: criador de algumas das canções brasileiras mais conhecidas no mundo inteiro, cantor, pianista, vereador (o mais votado em 1946 na Guanabara, pela UDN, União Democrática Nacional), radialista, cronista, roteirista de radionovela e do teatro de revista, comentarista de futebol, flamenguista, humorista, figura consagrada no folclore nacional. Seja no Brasil ou mesmo no exterior, ainda hoje é muito difícil separar os acordes de “Aquarela do Brasil” e de tantas canções de Ary Barroso das lembranças e dos sentimentos mais autênticos da nacionalidade brasileira.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Aquarelas do Ary. In: Blog Semióticas, 30 de novembro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/11/aquarela-do-ary.html (acessado em .../.../…).








   





19 de outubro de 2022

Alice surrealista






E de que serve um livro", pensou Alice, "sem figuras nem diálogos?"

–– Lewis Carroll, “Alice no país das maravilhas”....





Desde suas primeiras edições em 1865, a obra-prima de Lewis Carroll “Alice no país das maravilhas” (“Alice in Wonderland”), e sua continuação publicada em 1871 “Alice através do espelho” (“Through the looking-glass and What Alice found there”), conseguiram conquistar leitores entusiasmados de todas as idades e capturar corações e mentes. Os dois livros, com Alice caindo na toca do coelho ou do outro lado do espelho, viajando por lugares estranhos, carregados de ironias e provocações, onde uma bebida pode fazer você encolher, um cogumelo pode fazer você crescer, onde flores, animais e cartas do baralho falam, e onde poucos têm coragem de resistir ao poder autoritário e insano, são constantemente tomados como referência e influência para adaptações, releituras e traduções intersemióticas, com conteúdos mais ou menos imprevisíveis, que vão das formas literárias tradicionais a versões para outras artes e mídias (veja também “Semióticas – Alice vai ao futuro”  e  “Semióticas – Alice volta ao futuro”).

A galeria dos que têm as aventuras de Alice como fonte de inspiração é quase infinita e permanece em alta, incluindo de Walt Disney e Salvador Dalí a muitos e muitos escritores e artistas de estilos e gêneros diversos, além de cineastas, estilistas de moda, designers, fotógrafos, grafiteiros e performers em geral. As aventuras da Alice de Lewis Carroll (o nome do autor é, na verdade, um anagrama do nome real da personagem, Alice Liddell, um pseudônimo que foi criado pelo matemático e pastor anglicano Charles Lutwidge Dodgson para assinar suas obras de literatura) tornaram-se, desde a origem, quase um sinônimo para “nonsense”, a expressão do estilo na literatura e nas artes que denota algo sem sentido, sem nexo, sem lógica ou sem coerência, como a verbalização de um “absurdo”, ainda que a lógica muito sofisticada de “Alice no país das maravilhas” e de “Alice através do espelho” contenha uma variedade de enigmas cognitivos e jogos de linguagem que estão bem longe dqualquer ausência de sentido.





Alice surrealista: no alto da página, Alice
na mesa do chá com o Chapeleiro Louco e
a Lebre Maluca, uma ilustração original de
John Tenniel de 1865 para o livro de Lewis Carroll.
Tenniel, um conhecido ilustrador e caricaturista da
época, foi contratado por Carroll para refazer seus
desenhos criados junto com o manuscrito.
Acima, a pequena Alice Pleasance Liddell
aos seis anos, em 1858, fotografada por
Lewis Carroll. Alice era uma das filhas de
Henry Liddell, reitor da Christ Church,
em Oxford, e Carroll ficou encantado quando
a conheceu, tanto que assinou o livro não com
seu nome original, Charles Lutwidge Dodgson,
mas com o pseudônimo que passou a adotar,
Lewis Carroll, um anagrama para Alice Liddell.

Abaixo, duas pinturas surrealistas de Max Ernst
inspiradas em "Alice no país das maravilhas" e em
"Alice através do espelho": "Alice" e "The stolen mirror"
(O espelho roubado), ambas de 1941. Max Ernst criou
diversas obras baseadas na literatura de Lewis Carroll
que fazem alusão direta a Alice no período entre
as décadas de 1930 e 1970 






  

Limites da lógica


Tal expressão nos limites da lógica, tão transgressora e tão próxima das fronteiras do fantástico e do onírico, representada com maestria pela literatura de Lewis Carrol, foi apropriada também com muita atenção pela geração de escritores e artistas do surrealismo. Seja atravessando o espelho ou quebrando as regras de Wonderland, Alice, e as galerias de personagens extraordinários que ela encontra, conseguiram atrair, de forma definitiva, o olhar fascinado dos surrealistas mais radicais. Todos, ou a maioria deles, perseguiram com curiosidade seus passos, revivendo as perplexidades e os questionamentos inconformados da menina diante do outro mundo sobrenatural que atrai e encanta.

O que Alice encontrou, depois que sua atenção é despertada pela visão incomum e muito estranha de um coelho branco com um relógio de bolso, foi um mundo subterrâneo mágico, uma realidade de fábula com criaturas aristocratas e enlouquecidas, frustradas com tudo e todos, a questionar a lógica e os hábitos mais tradicionais. Ao final do turbilhão de aventuras da primeira viagem, Alice desperta do que pode ter sido um sonho, mas embarca novamente para o mundo mágico ao atravessar o espelho e entrar em outro jogo absurdo apresentado em um imenso tabuleiro.

Hoje o que se percebe é que, na verdade, o enredo, as criaturas e a protagonista da história fizeram de Lewis Carroll um importante precursor do que viria a ser o surrealismo, atravessando as fronteiras do dadaísmo e dos demais movimentos de vanguarda dos primeiros tempos da arte moderna. O surrealismo, a seu modo, adotou Alice, apresentando ou promovendo sua atualidade para um público mais sofisticado e mais avançado no repertório do mundo das artes e da literatura. Com a aproximação, a curiosidade de Alice tornou-se um sinônimo para as investigações estéticas e existenciais em torno de surrealistas e dadaístas, assim como para os que vieram depois deles.











Alice surrealista: acima, uma página do manuscrito
original de Lewis Carroll com um de seus desenhos no
rascunho, depois refeitos por John Tenniel ("a lagarta")
para a primeira edição do livro em 1865.

Abaixo, 
duas pinturas surrealistas de Dorothea Tanning
inspiradas na 
Alice de Lewis Carroll: "Eine Kleine
N
achtmusik" (Um pouco de música noturna),
de 1943, em alusão aos diálogos de Alice
com as flores (o título da obra é uma referência
à célebre serenata de Mozart); e "Birthday"
(Aniversário), de 1942, com uma Alice adulta
vagando pelo corredor de portas no que supõe
ser um "desaniversário" 










O melhor da infância


A aproximação entre a Alice de Carroll e os surrealistas não é apenas uma possibilidade anacrônica, que se percebe somente na atualidade, ou evidenciada por analogias entre o País das Maravilhas e as criações históricas daqueles artistas: tal aproximação está presente desde o marco fundador do movimento, com as citações feitas por André Breton no primeiro “Manifesto do Surrealismo”, de 1924, no qual a principal liderança dos surrealistas valoriza, de forma nostálgica, um sentimento de admiração pelo lúdico do universo infantil que remete ao real maravilhoso que a criança Alice vai descobrindo em sua aventura no novo mundo.

Nas palavras do manifesto de Breton: “A maior parte dos exemplos que a literatura poderia me fornecer estão contaminados com coisas fúteis e vazias pela simples razão de serem dirigidas às crianças, que desde muito cedo são cortadas do maravilhoso (…). Por isso o espírito livre que ousa mergulhar no surrealismo revive, com exaltação, a melhor parte de sua infância”. Breton também destaca que das recordações da infância, repletas de encantos, vêm os sentimentos mais fecundos para a arte e para a literatura, e que talvez seja a infância o que mais se aproxima de uma vida verdadeira.






Alice surrealista: acima, Alice Liddell fotografada
em 1860 por Lewis Carroll. Abaixo, três versões
para a mesma passagem das aventuras de
Alice, quando ela enfrenta uma chuva de
cartas do baralho: a versão de John Tenniel,
publicada em 1971 em "Alice através do espelho";
uma colagem de 1930 de Max Ernst; e uma
pintura de 1955 de Piero Fornasetti







      




Experiências lúdicas e oníricas


André Breton retornaria outras vezes à literatura de Lewis Carrol e ao mundo de Alice, uma delas encontrando no País das Maravilhas (Wonderland) o argumento para caracterizar a qualidade das imagens pictóricas em geral, conforme ele reconhece em “Surrealismo e Pintura”, de 1928. No ensaio, ao se referir à obra cubista de Pablo Picasso, Breton ressalta que as imagens do mestre espanhol abordam um continente que nos levam diretamente a um “país das maravilhas”. São estas referências fundadoras, na origem do movimento, que incentivaram e levaram outros surrealistas a também buscarem experiências lúdicas e oníricas, não conformistas e libertárias, repletas de citações e referências à Alice criada por Lewis Carroll.

Alguns deles não ficaram apenas nas citações e partiram para paráfrases ou mesmo para recriações explícitas, tanto nos domínios da pintura e do desenho como na escultura, no teatro, no cinema, na fotografia, na prosa e na poesia. Entre os expoentes do surrealismo que têm criações na década de 1930 baseadas de forma explícita na Alice de Carroll estão Picasso, Salvador Dalí, Luis Buñuel, Louis Aragon, Antonin Artaud, Max Ernst, Marcel Duchamp, Maria Martins, Dorothea Tanning, Man Ray, Georges Bataille e outros. No período da Segunda Guerra, e mais ainda no pós-guerra, novas recriações e citações sobre Alice iriam se multiplicar para além dos círculos do surrealismo e do dadaísmo (veja também “Semióticas  –  Arte entre guerras”  e  “Semióticas  –  Arte segundo Duchamp”).















Alice surrealista: acima, Alice Liddell fotografada
aos 19 anos, em 1872, por Julia Margaret Cameron;
"Alicia, retrato de una niña", pintura de 1919 de
Joan Miró; e "Alice au pays des marveilles",
pintura de 1945 de Rene Magritte.

Abaixo, o cartaz original do lançamento em 1951
do filme de Walt Disney, que teve uma importante
participação não creditada de Salvador Dalí;
e "Lluvia de lágrimas", uma das 12 ilustrações
que Salvador Dalí fez em 1969 baseado em
"Alice no país das maravilhas", sendo uma
ilustração para cada capítulo. Alice é mostrada
no detalhe da menina pulando corda, um motivo
que aparece com muita frequência na obra
de Dalí desde a década de 1930, como em
Paisagem com garota ignorando corda,
pintura em óleo sobre tela de 1936 







              


A sedução de Alice sobre a primeira geração dos surrealistas também passou pelas telas do cinema. Desde os primeiros tempos do cinema mudo, foram várias versões para o livro de Lewis Carroll. Os filmes, seus personagens e as situações oníricas que eles experimentam ficaram marcados no imaginário coletivo e tiveram impacto sobre artistas e escritores. A primeira versão para o cinema, em 1903, teve direção de Cecil M. Hepwoeth, com 12 minutos de duração e figurinos fieis às ilustrações que John Tenniel fez para a primeira edição do livro. A segunda versão, que estreou em 1910, foi uma produção dos estúdios de Thomas Edison. Com roteiro e direção de Edwin S. Porter, teve 15 minutos de duração e truques de magia no estilo do francês Georges Méliès.

A terceira versão, de 1915, com roteiro e direção de W. W. Young, tem uma hora de duração, em uma época em que os filmes raramente ultrapassavam 15 minutos., também com truques cênicos ao estilo de Méliès e com todo o elenco de atores usando máscaras, à exceção de Alice (Viola Savoy). Uma nova versão de Alice, a quarta desde o filme de 1903, foi realizada por Walt Disney e marca sua primeira investida no mundo do cinema, depois do sucesso com as tirinhas de jornais e as revistas em quadrinhos. "Alice", série de três curtas-metragens, foi lançada em 1923, com a pequena Alice (Virginia Davis) visitando os estúdios Disney em Hollywood (e não no País das Maravilhas) e contracenando com cenários e personagens de desenhos animados.


Truques e uso de máscaras


A quinta versão, lançada em 1928, foi um média-metragem, "Alice através do espelho", com direção de Walter Lang e 40 minutos de duração, sem legendas e sem os tradicionais quadros de textos do cinema mudo. Depois vieram as primeiras versões do cinema sonoro: a primeira, de 1931, com 55 minutos, teve direção de Bud Pollard, com Ruth Gilbert no papel de Alice; a segunda, de 1933, foi mais ambiciosa e macabra, em superprodução da Paramount Pictures, com roteiro de Joseph L. Mankiewicz, direção de Norman Z. McLeod e grande elenco de astros e estrelas, entre eles Gary Cooper, Cary Grant, Edna May Oliver, Charlotte Henry (no papel de Alice) e Edward Everett Horton. McLeod reproduz os melhores truques das versões anteriores e inclui sequências de stop-motion e de desenhos animados produzidas pelos estúdios de Max Fleischer, que na época estava transpondo de forma pioneira para o cinema personagens muito populares das histórias em quadrinhos como Betty Boop e Popeye.

O sucesso do filme de McLeod levou Walt Disney a adiar por duas décadas sua versão em longa-metragem, que somente seria lançada em 1951, no formato de animação em Technicolor, com uma luxuosa colaboração não creditada de Salvador Dalí. O longa produzido por Disney ainda enfrentaria problemas com a censura e um forte concorrente para exibição no mercado europeu: "Alice au pays des merveilles", superprodução em cores de França e Reino Unido, lançada em 1949 com direção de Dallas Bower e surpreendentes efeitos visuais, com Alice (Carol Marsh) e os atores contracenando com bonecos em animação stop-motion e com desenhos animados, em versão muito fiel ao "nonsense", ao humor e às sátiras sobre personalidades históricas da época em que o livro foi publicado.


  











Alice surrealista: no alto, a versão para o cinema
lançada em 1903, com Alice perseguida pelo
exército de cartas do baralho. Acima, duas cenas
do filme de 1915, com a atriz Viola Savoy.

Abaixo, Alice na versão de 1933, que foi a segunda
do cinema sonoro; e o cartaz original da Alice de 1949







      

As aproximações entre a Alice de Carroll e os surrealistas vão muito além das fronteiras do movimento originário da França, como comprova um marco historiográfico: no primeiro estudo publicado sobre o surrealismo na Inglaterra, em 1935, o historiador da arte David Gascoyne destacou que a arte surrealista nasceu de uma matriz inglesa pela literatura de Lewis Carroll. Dois anos depois, em 1937, uma exposição de vanguarda no Museu de Arte Moderna de Nova York celebrava obras-primas da arte no universo do fantástico, do dada e do surreal, incluindo dois desenhos originais de Lewis Carroll, o Gryphon e a Mock Turtle (a tartaruga falsa). Trata-se de uma homenagem ao criador de "Alice" e também é uma grande ironia descobrir que, na primeira exposição sobre os precursores do surrealismo, a arte de Lewis Carroll, que se considerava um desenhista apenas amador e limitado, tenha surgido ao lado de mestres aclamados pela tradição como Pieter Bruegel, Johann Fuseli e William Blake.


Palavras com imagens


A literatura e Lewis Carroll e sua arte como ilustrador e fotógrafo também aparecem reverenciadas em publicações que são consideradas como bíblias pela primeira geração surrealista, como destaca Georges Didi-Huberman em “A semelhança informe” (Editora Contraponto, 2015), tais como a revista “Documents” (que teve 15 números, com edição de Georges Bataille, entre 1929 e 1930) e a revista “L’Usage de la Parole” – que na edição de dezembro de 1939 apresentou em destaque três poemas de Carroll, publicados lado a lado com outros fragmentos de prosa e poesia escritos por expoentes das vanguardas como Gaston Bachelard, Paul Éluard e Marcel Duchamp, entre outros, como se o autor de “Alice no país das maravilhas” fosse, de fato, um dos militantes do surrealismo, e como se sua obra fosse uma sátira produzida em meados do século 20 sobre uma sociedade controlada por convenções inúteis e impostas pelas classes dominantes.










Alice surrealista: acima, The old maids, pintura de
1947 de Leonora Carrington, com Alice representada
na figura alta vestindo azul, à esquerda; e retratos de
Alice em duas serigrafias de 1970 de Peter Blake.

Abaixo, Lewis Carroll em autorretrato de 1857
e o Coelho Branco na versão desenhada por
Ralph Steadman para uma série de serigrafias
sobre Alice criada em 1967. Desde a década de 1960,
a expressão "perseguindo o Coelho Branco" passou
a ser uma espécie de código usado para descrever o
uso de drogas alucinógenas, fazendo de Alice
uma garota propaganda involuntária para os
hábitos da geração hippie e da cultura psicodélica






Lewis Carroll também surge em destaque ao lado de mestres como Sigmund Freud, Marquês de Sade, Lautreamont, Rimbaud e Mallarmé em uma edição especial de “VVV”, a revista que foi uma obra de referência do surrealismo e teve circulação em Nova York com quatro números publicados entre 1942 e 1944. O entusiasmo com as recriações e referências à Alice de Carroll na arte e na literatura surrealista permaneceram nas décadas seguintes, com novos tributos e releituras pelas obras de Max Ernst, Dorothea Tanning, Leonora Carrington, Joan Miró, Marc Chagall, René Magritte, Duchamp e Dalí, entre muitos outros, prosseguindo com uma diversidade de artistas de outros estilos e áreas diversas até a atualidade, passando da estética, das artes plásticas e da forma literária tradicional para as questões comportamentais e semióticas, multimídia, antropológicas, sociológicas, diversionais e políticas.


Tradição e ruptura


Em 1951, há um importante destaque para o tema "Alice" com o lançamento da animação de Walt Disney em cinemas do mundo inteiro, o que trouxe novo impulso para a popularização da literatura de Lewis Carroll e para as aventuras da personagem. Resultado de uma polêmica parceria não-creditada entre Disney e Salvador Dalí (veja mais em “Semióticas  –  Alice volta ao futuro”), o filme de Disney recebeu elogios e críticas, ganhando novos sentidos a partir da década seguinte, quando entram em cena os movimentos da contracultura e o uso diversional de alucinógenos, acrescentando novas camadas de sentido às experiências que Carroll apresentava nas descobertas de Alice em seu mundo imaginário. Alice ganhou cores psicodélicas, passou a ser sinônimo de viagens alucinantes e embalou sucessos de estrelas do rock e da música pop, incluindo “White Rabbit”, do Jefferson Airplane, e “I’am the Walrus”, dos Beatles, entre muitos outros. Um observador atento até poderia supor que Alice se tornou uma avó para a geração hippie.

















Alice surrealista: acima, reprodução do manuscrito
original de Lewis Carroll e Cheshire Cat, pôster de
1967 de Joseph McHugh; o selo da gravadora
britânica Charisma, que estampava nos discos
de vinil o Chapeleiro Louco e outros personagens
de Alice e que lançou, entre 1969 e 1983, grandes
sucessos do rock e do pop, entre eles Genesis,
Malcom MacLaren, The Alan Parsons Project
e outros; e uma imagem da série "Alícia",
versão de 2010 de Xavier Collette.

Abaixo: 1) uma das versões de Alice criadas em
2019 por Alex Prancher em fotografias e filmagens
nas ruas de Los Angeles; 2) "Alice" na versão
de Yayoi Kusama, a artista plástica mais célebre
do Japão, que ilustrou uma edição recente do livro
pela Penguin Classics; 3) "Alice" na versão fotografada
debaixo d'água em 2014 pela russa Elena Kalis e lançada
como fotolivro, com sua filha Alexandra como modelo;
4) a versão "hype" criada por Tim Walker para o
Calendário Pìrelli 2018; 5) a soprano Zenaida Yanowsky
como Rainha de Copas na montagem de 2011
para Aventuras de Alice no país das maravilhas
pelo The Royal Ballet de Londres com direção
de Johan Persson e figurinos de Bob Crowley;
e 6) modelo de abertura da coleção primavera verão
de 2015 criada por Vivienne Westwood
em homenagem às aventuras de Alice















As citações e referências aos paradoxos, aos trocadilhos e aos jogos de linguagem de Alice também conquistaram um campo fértil em uma diversidade de estudos teóricos em áreas variadas, com destaque para referências importantes em obras como “As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas” (1966), de Michel Foucault; “A lógica do sentido” (1969), de Gilles Deleuze; e “Nonsense: aspectos da intertextualidade no folclore e na literatura” (1979), de Susan Stewart. Tudo isso e mais uma infinidade de teses acadêmicas e de abordagens científicas que tentam interpretar a obra literária de Lewis Carroll em suas confluências com a infância, com a pedagogia, com a psicologia, com as questões sociológicas e ideológicas mais plurais e polissêmicas.

Os investimentos em recriações e citações sobre as aventuras de Alice, que tiveram um capítulo central com a primeira geração dos surrealistas, prosseguem a pleno vapor na atualidade, com novos filmes, novas versões em diversas mídias, novas edições e novas adaptações da obra original que vão da versão estilizada criada por Yayoi Kusama, a artista plástica mais célebre do Japão, à inspiração declarada e várias citações na saga de cinema "Matrix", da dupla Lana e Lilly Wachowski, a coleções de alta costura das grifes mais célebre dos mundo da moda e até uma versão brasileira, "Alice dos Anjos", com Alice enfrentando um coronel tirano no sertão nordestino. Tudo indica que Alice e a literatura de Carroll seguirão sua viagem de descobertas em direção ao futuro próximo e distante – um percurso por certo imaginado pelo autor, que não por acaso registrou em imagens fotográficas, ainda nos primórdios da fotografia, os capítulos de uma incrível viagem existencial: a evolução biográfica, da primeira infância ao começo da idade adulta, dos quatro aos 18 anos, de Alice Pleasance Liddell, sua principal musa inspiradora.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Alice surrealista. In: Blog Semióticas, 19 de outubro de 2022. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2022/10/alice-surrealista.html (acessado em .../.../…).


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Alice surrealista: acima, "Down the rabbit hole"
(Caindo no buraco do coelho), gravura em técnica
mista de Kristjana Williams. Abaixo, cenas de
"Alice", filme de 1988 de Jan Švankmajer; uma
versão de Alice que se passa no sertão do Nordeste
brasileiro, "Alice dos Anjos", com roteiro e direção de
Daniel Leite Almeida, com Alice enfrentando um
coronel tirano; e a montagem de "Wonder.land",
espetáculo musical para público adulto do
Royal National Theater de Londres, em 2015,
escrito por Moira Buffini, com direção de Rufus Norris,
música de Daman Albarn e cenografia de Rae Smith












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