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27 de março de 2024

Retratos clandestinos de Helen Levitt

 




A natureza humana é quase inacreditavelmente maleável.
   
– Margaret Mead (1901-1978).  
 

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Durante grande parte dos quase dois séculos da história da fotografia, as mulheres tiveram pouco espaço no trabalho por trás das câmeras, mas com o passar do tempo foram expandindo seus papéis e experimentando cada vez mais os diversos aspectos do aparato fotográfico. Atualmente, qualquer seleção ou recorte sobre a história da fotografia tem, necessariamente, destaque para mulheres que atuaram ou atuam nas variadas frentes dos registros fotográficos no passado ou no presente. Desde os primeiros tempos da imagem fotográfica, a presença feminina no domínio da técnica esteve presente, porém mais como exceção do que como regra, como se comprova nos registros sobre nomes como Constance Fox Talbot (1811-1880), primeira mulher a fazer uma fotografia, em 1843, ou Ann Cooke (1796-1870), primeira mulher a abrir um estúdio de retratos fotográficos, em 1845.

Entre as mulheres que atuaram de forma marcante no campo da fotografia no século 19, ou que nasceram no Oitocentos, alcançaram destaque os nomes de Anna Atkins (1799-1871), Julia Margaret Cameron (1815-1879), Shima Ryü (1823-1900), Gertrude Käsebier (1854-1934), Frances Johnston (1864-1952), Alice Austen (1866-1952), Lady Ottoline Morrell (1873-1938), Harriet Chalmers Adams (1875-1937), Imogen Cunningham (1883-1976), Florence Henri (1893-1952), Claude Cahun (1894-1954), Lucia Moholy (1894-1989), Dorothea Lange (1895-1965), Tina Modotti (1896-1942), Germaine Krull (1897-1985), Berenice Abbott (1898-1991) e Ilse Bing (1899-1998), entre outras, sem esquecer aquelas que realizaram trabalhos importantes de forma pioneira na fotografia, mas que permaneceram no anonimato, por preconceito ou porque, por motivos diversos, não tiveram seus nomes registrados pela história oficial.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto, crianças

dançando nas ruas de Nova York, fotografia de 1940.

Acima, mãe e filha (1939) e a família na janela (1940).

Abaixo, Helen Levitt em autorretrato (circa de 1950)

e duas meninas brincando com giz na calçada (1940).

Todas as fotografias reproduzidas nesta página estão

no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”,

apresentada na Photoghapher’s Gallery de Londres








No Brasil, de acordo com o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro – Fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), de Boris Kossoy, publicado pelo Instituto Moreira Salles em 2002, entre centenas de fotógrafos que atuaram naquele período também há algumas mulheres que tiveram um papel pioneiro da maior importância, entre elas Fanny Volk, que atuou no Paraná; Hermina de Carvalho Menna da Costa, em Pernambuco; Leocadia Amoretti e Madame Lavenue, no Rio de Janeiro; Madame Reeckel, no Rio Grande do Sul; Maria Brasilina de Magalhães Faria, no Espírito Santo; Maria Izabel da Rocha, em Sergipe; e Roza Augusta, na Paraíba. Em São Paulo, Gioconda Rizzo (1897-2004), descendente de italianos, foi uma das primeiras mulheres a atuar como fotógrafa e a primeira a abrir um estúdio fotográfico, a Photo Femina, em 1914; e Elvira Pastore (1876-1972), casada com Vicenzo Pastore (1865-1918), ambos italianos, dividia com o marido todo o trabalho no estúdio fotográfico que abriram em São Paulo em 1900.

A presença e a importância de mulheres na fotografia têm aumento qualitativo e quantitativo no decorrer do século 20, incluindo a presença inédita de mulheres fazendo a cobertura fotográfica em cenários de guerra, como Gerda Taro (1910-1937) e Kati Horna (1912-2000) na Guerra Civil Espanhola, ou Margaret Bourke-White (1904-1971) e Lee Miller (1907-1977) na Segunda Guerra Mundial. Mulheres também exerceram o papel de fotógrafas nos movimentos de vanguarda da arte moderna, registrando paisagens e temas abstratos, nudez, cenas urbanas, retratos de famosos e de anônimos, muitas delas com premiações importantes e destaque na imprensa, espaços que antes eram restritos quase exclusivamente para os homens.

Entre as mulheres que alcançaram importância como fotógrafas nos movimentos de vanguarda estão, entre outras, Florence Arquin (1900-1974), Lisette Model (1901-1983), Lola Alvarez Bravo (1903-1993), Grete Stern (1904-1999), Nina Leen (1906-1995), Dora Maar (1907-1997), Gisèle Freund (1908-2000), Ruth Gruber (1911-2016), Eve Arnold (1912-2012), Nina Leen (1914-1995), Maya Deren (1917-1961), Ruth Orkin (1921-1985), Inge Morath (1923-2002), Diane Arbus (1923-1971) e Sabine Weiss (1924-2021), além das que têm atuação de destaque no pós-guerra e na cena contemporânea como Rineke Dijkstra, Roni Horn, Mary Ellen Mark, Markéta Luskacová,
Nan Goldin, Jo Spence, Annie Griffiths, Vivien Maier, Graciela Iturbide,  Candida Höfer, Cindy Sherman, Annie Leibovitz, Kiki Smith, Carrie Mae Weems, Carol Guzy, Catherine Leroy, Francesca Woodman, Donna Ferrato, Gauri Gill ou Sally Mann. Há também grandes fotógrafas que atuam ou atuaram no Brasil, como Hildegard Rosenthal (nascida na Suíça), Gertrudes Altschul (nascida na Alemanha), Alice Brill (nascida na Alemanha), Claudia Andujar (nascida na Suíça), Maureen Bisilliat (nascida na Inglaterra), Madalena Schwartz (nascida na Hungria), Alice Kanji, Hermínia Borges, Dulce Carneiro, Jacqueline Joner, Avani Stein, Marisa Alvarez Lima, Nair Benedicto, Vania Toledo, Rosa Gauditano, Anna Mariani, Elvira Alegre, Rosângela Rennó e uma lista extensa de veteranas e nomes das novas gerações.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

duas crianças na janela, fotografia de 1939.

Acima, crianças brincando na calçada (1940).

Abaixo, a família (1945) e casal improvável (1941)









Uma poesia visual


Na legião de mulheres atuando como fotógrafas, um dos destaques inevitáveis é a norte-americana Helen Levitt (1913-2009), com seu trabalho com a câmera nas ruas que atravessou todo o século 20, atuando em todas as frentes e temáticas da fotografia de arte e do fotojornalismo. Descendente de imigrantes judeus-russos, Helen Levitt nasceu em Nova York – cidade que, com seus personagens, foi cenário da maioria de suas fotografias de 1930 até sua aposentadoria, no final da década de 1990, o que levou Susan Sontag, sua admiradora de longa data, a definir as imagens de Helen Levitt como “uma poesia visual sobre Nova York”.

Neste século 21, depois que Helen Levitt morreu, aos 95 anos, em 2009, grandes retrospectivas temáticas sobre sua obra foram organizadas no Festival PhotoEspaña em Madri e também na Fundação Cartier-Bresson em Paris, no Sprengel Museum em Hannover, no Albertina Museum em Viena, no Fotografiemuseum de Amsterdã e no Festival de Fotografia de Arles (no sul da França), entre outras exposições importantes que tiveram as imagens de Levitt como tema. A retrospectiva mais abrangente, que cobre toda a pauta temática de sua trajetória de 70 anos dedicados à fotografia, foi aberta em 2022 na Photographer’s Gallery de Londres, nomeada como “Helen Levitt: in the street”.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

as amigas, fotografia de 1941. Acima, os irmãos (1944).

Abaixo, um gato (1945) e retrato de Walker Evans (1940)










De todos os aspectos que sobressaem quando se observa um conjunto de fotografias de Helen Levitt, o lúdico talvez seja o mais marcante – ainda que o grande fotógrafo das questões sociais nos Estados Unidos, Walker Evans (1903-1975), seja reconhecido por ela como sua maior influência. O lúdico e o poético nas imagens de Helen Levitt, contudo, talvez tenha uma relação mais direta com as fotografias humanistas de outros mestres, como os franceses Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e Robert Doisneau (1912-1994). O fato de Levitt creditar Walker Evans como sua maior influência vem, por certo, de coincidências biográficas: quando circulavam as primeiras fotografias de Evans mostrando cenas dramáticas e extremamente realistas de agricultores pobres do sul dos Estados Unidos, no período da Grande Depressão, Levitt começava a trabalhar com fotografia, como assistente em um estúdio comercial instalado no Bronx, em Nova York. Evans, naquele período, havia sido contratado pela Farm Security Administration, agência federal criada pelo governo do presidente Franklin Roosevelt, e suas fotografias publicadas por vários jornais e revistas causavam uma grande comoção.

Na mesma época, no começo dos anos 1930, a jovem Helen Levitt participava de vários grupos de ativistas e sindicalistas e um dos principais líderes, Sid Grossman, também fotógrafo e fundador da cooperativa Photo League, pedia a jornalistas e fotógrafos mais atenção aos trabalhadores e aos movimentos sociais como consciência de classe – conforme ela declarou em uma de suas raras entrevistas, à National Public Radio, reproduzida no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”. “Eu decidi que deveria tirar fotos de pessoas da classe trabalhadora e assim dar minha contribuição verdadeira para apoiar os movimentos sociais que estavam se organizando”, afirmou Levitt. Ela era descrita por seus parceiros de trabalho como uma pessoa extremamente gentil e simpática, mas muito tímida, com poucos amigos, que nunca se casou e morou a vida inteira em Nova York, no mesmo apartamento em Greenwich Village, com curtos intervalos de uma temporada que passou no México, em 1941, e outra em viagem pela Europa, no final da década de 1950, depois que conseguiu uma bolsa de financiamento da Fundação Guggenheim.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: acima,

crianças no Halloween (1940) e fumantes (1940).

Abaixo, o bebê rindo muito no carrinho (1940)

e à procura de um táxi urgentemente (1982)








A temática das ruas


Na retrospectiva que ocupou todos os salões e corredores dos dois andares da Photographer’s Gallery de Londres, centenas de fotografias que Helen Levitt produziu, durante mais de 70 anos, com sua câmera Leica de 35 mm, foram selecionadas em torno de três núcleos temáticos: as ruas, as cenas do metrô e as experiências com os filmes coloridos, nas quais ela foi uma das pioneiras entre fotojornalistas. Na temática das ruas, pela qual ela é mais amplamente conhecida, estão registrados personagens e cenários de sua vizinhança em Nova York, incluindo o Lower East Side de Manhattan, o Bronx e o perímetro espanhol do Harlem. Na maioria das imagens, as crianças são o centro da atenção de Helen Levitt, em flagrantes poéticos de jogos e brincadeiras e também distraídas, observando algo que está fora do enquadramento da fotografia, como se a fotógrafa estivesse em atitude clandestina e sua presença não fosse notada pelos personagens em cena.









Retratos clandestinos de Helen Levitt

no alto, Helen Levitt no metrô em 1938, em

fotografia de Walker Evans. Acima e abaixo,

retratos no metrô feitos por Helen Levitt

nos anos de 1978, 1973, 1975 e 1978.


No final da página, Amigas saindo de férias (1973),

A loja de doces (1971), A cabine telefônica (1988),

Fumante na cabine telefônica (1980),

Na esquina de calção azul (1981) e

A menina procura algo (1980)









A citada influência marcante de Walker Evans torna-se mais evidente com as fotografias feitas por Helen Levitt no metrô de Nova York. São personagens anônimos, que remetem às célebres fotografias que Evans capturou no mesmo cenário, quando viajava quase diariamente no metrô, vestindo um sobretudo sob o qual ocultava sua câmera Contax de 35 mm, entre fevereiro de 1936 e janeiro de 1941. As fotografias de Evans no metrô (Veja mais em: Semióticas – Homens ilustres), que foram apresentadas em uma exposição que marcou época, no pós-guerra, e depois publicadas no fotolivro Many are called (Muitos são chamados), reeditado em 2004 pela Yale University Press, também influenciaram o jovem Stanley Kubrick, que trabalhou durante anos como fotojornalista em Nova York antes de se tornar cineasta (Veja mais em: Semióticas – Kubrick no Metrô).

Helen Levitt teve a oportunidade de acompanhar, em 1938, algumas viagens de trabalho de seu mentor Walker Evans fotografando anônimos no metrô de Nova York e, nos anos e nas décadas seguintes, repetiu por diversas vezes a experiência de fotografar os passageiros, também em anonimato, com seu próprio estilo e seu equipamento mais modesto. Uma seleção destas fotografias foi apresentada pela primeira vez em 1991, em uma exposição no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, e em 2017 foi reunida no fotolivro Manhattan Transit: The Subway Photographs of Helen Levitt (‎Walther König Editions).

No terceiro grupo temático da exposição “In the street”, onde estão amostragens das experiências de Helen Levitt com as fotografias coloridas, produzidas a partir da década de 1950, também estão selecionadas as imagens que provocam com mais intensidade o senso de humor e algum estranhamento do observador. Algumas cenas têm mesmo um certo apelo surrealista, ainda que sejam registros poéticos sobre a vida que a fotógrafa, depois de décadas de trabalho diário, continuava a encontrar nas ruas de Nova York. Há crianças brincando, casais de namorados, maridos e esposas, mães com seus bebês, mulheres indo e vindo, velhos solitários, pessoas comuns.

Em uma das fotografias coloridas, uma mulher de vestido azul florido está de costas, usando um telefone público, e ocupa todo o espaço da cabine, em uma esquina de Nova York, enquanto duas crianças, possivelmente seus filhos, estão espremidas contra as paredes de vidro, uma de cada lado. Parece que cada fotografia de Helen Levitt conta toda uma história repleta de detalhes. A maioria de suas imagens coloridas, para as quais ela dedicou muito trabalho e atenção em seus últimos anos de atuação, nunca foi publicada em livro, mas esteve presente nas retrospectivas que celebraram, nos últimos anos, seu olhar personalíssimo que conquistou legiões de seguidores na arte da fotografia.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos clandestinos de Helen Levitt. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/03/retratos-clandestinos-de-helen-levitt.html (acessado em .../.../…).



 
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24 de janeiro de 2024

Picasso na fotografia





A arte não tem passado nem futuro.

Tudo o que eu já fiz foi para o presente.

Pablo Picasso (1881-1973).  

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Pablo Picasso é homenageado em um dos mais importantes eventos mundiais de fotografia, o PhotoEspanha, festival anual com sede em Madri. A exposição de abertura do festival, instalada nas galerias do Fernán Gómez Centro Cultural de La Villa, reuniu um grande acervo de retratos de Picasso – talvez o nome mais importante e mais prestigiado da arte no último século, o artista que atravessou todos os estilos e todos os movimentos da Arte Moderna e se mantém como referência e influência marcante da Arte Contemporânea.

A homenagem, nomeada “Picasso na foto”, marca os 50 anos da morte do artista e traz uma seleção de imagens de suas últimas décadas de vida. Os retratos em exposição, que vêm dos arquivos do Museu Picasso de Barcelona e de coleções particulares, abordam os processos criativos e o tempo de lazer do artista – com os dois aspectos constantemente sobrepostos. São imagens que, em sua maioria, foram registradas por nomes que têm um peso incomparável na história da fotografia e do fotojornalismo, compartilhando as galerias da exposição com retratos do artista feitos por amigos e em família.

Entre os fotojornalistas que fizeram retratos de Picasso estão os maiorais do primeiro time como David Douglas Duncan, Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, Robert Doisneau, Brassai, Man Ray, David Seymour, Lucien Clergue, Willy Rizzo e Cecil Beaton, entre muitos outros. A exposição, que também inclui uma seleção de fotografias que Brigitte Baer reuniu no Catálogo Raisonné de gravuras e litografias de Picasso, depois da temporada no PhotoEspanha segue uma agenda itinerante por outros museus e galerias de diversos países, com curadoria de Emmanuel Guigon, que desde 2016 assumiu o cargo de diretor do Museu Picasso de Barcelona.






      



Exposição Picasso na Fotografia: no alto, Picasso

em foto de sua esposa Jacqueline. Acima, intervenção

de Picasso em foto do álbum de família em que ele

está à mesa com Édouard Pignon, Anna Maria Torra

e Madeleine Lacourière em outubro de 1958.


Também acima, Emmanuel Guigon, diretor do Museu

Picasso de Barcelona e curador da exposição aberta

no Festival PhotoEspanha, diante de um dos célebres

retratos de Picasso, feito por Robert Doisneau em 1952.

Abaixo, com o amigo Gustau Gili Esteve no ateliê de

Notre-Dame-de-Vie, em abril de 1969; e no encontro

com outro mestre,
Joan Miró, fotografados por

Jacqueline Picasso no ateliê em Mougins, em 1967





              




Um diário fotográfico


O acervo de retratos de Picasso no PhotoEspanha destaca especialmente os períodos de convívio do artista com três grandes fotógrafos que fizeram inúmeras visitas à intimidade de Picasso com a família e trabalhando no ateliê em Mougins, na Côte d’Azur, Sul da França, às margens do Mar Mediterrâneo. São eles o francês Lucien Clergue (1934-2014), que fez um diário fotográfico dos dias compartilhados com Picasso ao longo dos anos; o norte-americano David Douglas Duncan (1916-2018), que travou amizade com Picasso desde que se conheceram em 1956, no convívio muito próximo que se estendeu até 1962, quando Duncan publicou um célebre fotolivro sobre a intimidade do artista e seus processos criativos; e Robert Capa (1913-1954), que representa um capítulo à parte na trajetória de Picasso.

Não há como negar que os grandes fotógrafos têm papel importante na criação do mito de Picasso, mas o papel de Robert Capa foi decisivo. Os primeiros contatos entre o artista mais lendário da Arte Moderna e o mais importante fotógrafo de guerras aconteceram na década de 1930, quando Capa e sua companheira, a alemã Gerda Taro, registravam os combates da Guerra Civil Espanhola e os movimentos de resistência contra a repressão imposta pelo general Francisco Franco. Capa, que fundaria a célebre Agência Magnum em 1947, junto com Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger, fez os contatos para a promoção de uma das obras mais importantes de Picasso, “Guernica”: foi por interferência de Capa que David Seymour fotografou Picasso em 1937 diante de sua obra monumental, assim que ela foi pintada, logo após o bombardeio genocida das tropas e aviões franquistas contra a vila espanhola.








Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

entre amigos, em foto de 1959 de Lucien Clergue,

ensaiando músicas com Paco Muñoz e o antiquário

Affrentranger em sua loja em Arles, na França;

e proseando com um motorista de táxi no

aeroporto de Nice, em foto de Lucien Clergue.


Abaixo, um visitante da exposição observa

um retrato de Picasso feito na casa do

artista em Vallouris, França, em 1952, por

Robert Doisneau; e Picasso e Jacqueline

dançando no ateliê da casa em que

viviam em Cannes, no verão de 1957,

em fotografia de David Douglas Duncan













Contador de histórias


Robert Capa e Cartier-Bresson também fotografaram por diversas vezes Picasso em seu quarto, no apartamento em que morava em Paris, na Rue des Grands-Augustins, e a todo vapor no ambiente de trabalho, durante a Segunda Guerra, e todos os biógrafos são unânimes em reconhecer que Capa, Cartier-Bresson e outros grandes fotógrafos ajudaram a disseminar imagens que popularizaram Pablo Picasso como um artista contador de histórias épicas, politizado e irreverente, viril, sedutor e bem-humorado, brincalhão, fumante de charuto, de bem com a vida e dândi, rudemente bonito, que se casou diversas vezes, teve quatro filhos com três mulheres e conquistou incontáveis e belas amantes – tudo contribuindo para a construção da narrativa histórica que levaria Picasso à prosperidade que outros artistas da época nunca alcançaram.

Durante e depois da Segunda Guerra, Capa compartilhava a intimidade de Picasso, e em 1948 passou uma temporada de férias no Mediterrâneo com Picasso e sua esposa da época, Françoise Gilot. Na temporada na praia com Picasso em família, Capa fazia testes com fotografias em filmes coloridos, uma novidade que ainda não estava disponível no mercado, e registrou retratos que estão entre os mais memoráveis na trajetória de Picasso, como o passeio de sombrinha na praia, com o artista descalço acompanhando sua musa (veja mais em Semióticas –Robert Capa em cores).









Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

no ateliê da casa em Cannes, em julho de 1957,

em fotografia de David Douglas Duncan;

e o criador diante da criatura, Guernica,

em fotografia de 1937 de David Seymour.

Abaixo, Picasso na intimidade de seu

apartamento na Rue des Grands-Augustins,

em Paris, em fotografia de 1944 de

Henri Cartier-Bresson;
e Picasso no

Hotel Vaste Horizon
em Mougins,
Côte d’Azur,

em fotografia de 1937 de sua musa Dora Maar











As musas do artista


As relações de Picasso com as mulheres sempre transparecem em sua obra: todas as musas, sejam amantes, namoradas ou esposas, foram registradas em pinturas, desenhos, esculturas (veja também Semióticas – Picasso em preto e branco). É como se cada uma delas houvesse inspirado uma certa obra-prima, algumas celebrizadas em obras radicais, outras com diversas variantes para o mesmo perfil. Entre todas, talvez nenhuma tenha a importância de sua mais famosa amante, Henriette Theodora Markovitch (1907–1997), mais conhecida pelo pseudônimo de Dora Maar. Intelectual, fotógrafa, poeta e pintora, Dora Maar era francesa descendente de croatas e viveu a infância e a juventude na Argentina. Sua influência foi tão importante para Picasso que foi ela quem ajudou o artista a planejar e pintar “Guernica”, entre outras obras-primas.

Dora e Picasso ficaram juntos por 10 anos, no período em que ele oficialmente esteve casado com Olga Khoklova e depois com Marie-Thérèse Walter, que tinha 17 anos quando se conheceram. Depois do término com Picasso, Dora Maar continuou a pintar, fotografar, escrever, afastada dos amigos e trabalhando em uma rotina de reclusão, mas permaneceu sem reconhecimento até sua morte, em 1997, aos 89 anos. Em 1999, finalmente foi organizada a primeira grande retrospectiva de seu trabalho, em Paris, e sua obra, inédita e surpreendente, aos poucos começou a ser valorizada.

Do primeiro casamento de Picasso, em 1918, com Olga Khoklova, bailarina nascida na Ucrânia, nasceu, em 1921, Paulo Picasso, seu primeiro filho. Em 1927, Picasso conhece Marie-Thérèse Walter, com quem teve em 1935 outra filha, Maya Picasso. A lista de musas, namoradas e amantes continuou a ganhar acréscimos, mas teve uma pausa em 1943, quando começa seu relacionamento com Françoise Gilot, que seria mãe de seus filhos Claude, nascido em 1947, e Paloma, nascida em 1949. O último casamento viria em 1961, com Jacqueline Roque, com quem Picasso viveu durante duas décadas, no período em que experimentou novas técnicas, novos materiais e novos suportes para sua arte, de 1953 até sua morte, em 8 de abril de 1973, aos 91 anos.







  


Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

com sua primeira esposa, Olga Khoklova, no ano

em que se casaram, 1918. Abaixo, um desenho de

Picasso para registrar um encontro na intimidade

entre amigos em Paris, 1919: a partir da esquerda,

Jean Cocteau, Olga, Eric Satie e Clive Bell.


Abaixo, Picasso com mulheres importantes

em sua trajetória: com Marie-Thérèse Walter;

com os retratos de Dora Maar (em fotografia

de Brassaï em 1939); com Dora Maar e amigos

no ateliê em Mougins (a partir da esquerda,

Ady, Marie e Paul Cuttoli, Man Ray, Picasso

e Dora Maar), fotografados por Man Ray;

Dora Maar e Picasso
na Côte d’Azur, em 1937,

fotografados por Eileen Agar; e Picasso

com Françoise Gilot e Javier Vilato, seu

sobrinho, em foto de 1948 de Robert Capa













  




As formas apaixonadas


A lista extensa de musas e amantes de Picasso também inclui, entre as mais conhecidas, Fernande Olivier (com quem ele viveu de 1904 a 1912), Marcele Humbert (de 1912 a 1917), Lee Miller (de 1943 a 1945), Geneviéve Laporte (de 1944 a 1953) e Sylvette David (de 1954 a 1955), entre outras. O artista despertava a paixão de suas musas, e cada rompimento foi doloroso, porque ao que se sabe nenhuma delas nunca aceitou o fim do relacionamento. Os amores de Picasso e sua relação intensa com tantas musas e amantes não provocou grandes escândalos na época, mas têm gerado alguma polêmica nos últimos anos. A mais recente aconteceu em 2021, no embalo da publicidade internacional do movimento “Me Too”, contra o assédio sexual, quando professoras de história da arte e seus alunos fizeram um protesto no Museu Pablo Picasso de Barcelona, com a intenção de denunciar os relacionamentos abusivos do artista, mas sem grande repercussão.

Outras denúncias sobre comportamento abusivo na trajetória do artista e sua dominação “animalesca” sobre as mulheres com quem se relacionava são descritos por sua neta, Marina Picasso (filha de Paulo e neta de Olga Khoklova), no livro “Meu Avô, Pablo Picasso”, que desde o lançamento em 2001 foi um best-seller internacional. Marina, uma das privilegiadas herdeiras de Picasso, nasceu em 1950, em Cannes, e teve um irmão, Pablo, que cometeu suicídio aos 24 anos – segundo ela, por culpa e negligência do avô, que nunca quis dividir sua herança bilionária em vida e nunca se preocupou em dedicar sua atenção para os filhos e os netos.








Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

com os filhos Claude e Paloma, no verão de 1951,

em foto de Edward Quinn.; e Picasso com Claude

em 1954, assistindo a uma tourada em Vallouris,

França, em fotografia de Jean Meunier.

Claude Picasso morreu em 2023, aos 76 anos.


Abaixo, Picasso na praia, em Cannes, 1965,

em fotografia de Lucien Clergue; e no ateliê,

em 1955, fotografado por Edward Quinn. No final

da página, a capa do livro de Marina Picasso,

que foi lançado em 2001, e dois retratos de

Picasso por Robert Capa: na praia, em 1948,

e fumando, na casa de Vallauris, em 1949




                 



      



Contradições bilionárias


No livro, Marina Picasso relata: “Minha avó Olga, humilhada, manchada, degradada por tantas traições, acabou sua vida paralisada, sem que meu avô fosse uma única vez vê-la no seu leito de angústia e de desolação. No entanto, ela tinha abandonado tudo por ele: o seu país, a carreira, os sonhos, o seu orgulho”. Olga nunca aceitou o divórcio de Picasso e, oficialmente, permaneceu casada com ele até morrer, em 1955. Criador de uma obra extensa e das mais valiosas entre todos os acervos do mundo da arte, Picasso morreu sem deixar testamento. Seus bens e obras foram divididos entre os quatro filhos em 1974, por um acordo judicial.

Em todos os sentidos, a nova exposição confirma que Picasso é um caso único. Ele trabalhou intensamente na arte, da infância à velhice, e deixou uma quantidade impressionante de obras surpreendentes, mas a amostragem das fotos que registra sua trajetória revela algo mais do que o artista em ação, em seu ateliê ou nas pausas em momentos de lazer: são imagens que traduzem a vida e as contradições de Picasso em pequenos fragmentos. Sua importância para a arte e a cultura do século 20 é inquestionável, assim como sua interminável paixão pela criação. Apesar disso, Picasso é um artista que divide opiniões e sua reputação muitas vezes precede a sua arte. Talvez por estes detalhes a exposição de sua presença marcante em décadas da história da fotografia traz mais perguntas do que respostas, mas não há como negar que sua relação com a câmera foi, antes de tudo, um veículo – uma estratégia para perpetuar sua própria autoimagem cuidadosamente construída, tão grandiosa quanto mítica.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Picasso na fotografia. In: Blog Semióticas, 24 de janeiro de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/01/picasso-na-fotografia.html (acessado em .../.../…).


 
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