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2 de dezembro de 2025

Surrealismo na fotografia

 





Todos agem “como se fossem anjos”, todos possuem

tanto “como se fossem ricos” e todos vivem “como se

fossem livres”. Não há nenhum vestígio real, contudo,

de anjos, de riqueza e de liberdade. Apenas imagens.

                                                           –– Walter Benjamin, “O Surrealismo” (1929).  




Movimento estético e artístico que provocou impacto na busca pela liberação das expressões do inconsciente, dos sonhos, da irracionalidade e das distorções da realidade, o Surrealismo também teve importância como ação política e ideológica antiautoritária e antifascista, além de representar uma linha de força fundamental nos grupos de vanguarda da Arte Moderna contra o conservadorismo. Com seu centro irradiador situado inicialmente na França, especialmente em Paris, o movimento rapidamente se espalhou pelo mundo em suas mais diversas formas de expressão, levando os domínios da arte, da literatura e do cinema “até os limites extremos do possível” – como aponta o alemão Walter Benjamin no ensaio “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”.

Na língua francesa, o prefixo “sur” sempre existiu com acepções em “acima”, “sobre” ou “além”, mas o termo “sur-realismo” só foi publicado pela primeira vez em 1917 pelo escritor e crítico de arte Guillaume Apollinaire. Em um artigo, e em sua peça teatral “As tetas de Tirésias”, considerada uma obra precursora do surrealismo, Apollinaire escreveu: “Quando o homem quis imitar o caminhar, criou a roda, que não se assemelha a uma perna. Assim, criou o surrealismo sem se dar conta”. Em outubro de 1924, sete anos depois do primeiro registro na referência pioneira de Apollinaire, o escritor e poeta André Breton publicou o “Manifesto Surrealista”, marco fundador do movimento – e definiu o Surrealismo como "automatismo psíquico puro pelo qual se destina a expressar o verdadeiro funcionamento do pensamento e dos sonhos, livre de qualquer controle ou preocupação com a razão ou a moral".










Surrealismo na fotografia: no alto da página,
Uns sobem e outros descem (Unos suben y outros
bajan, 1940), fotografia de Lola Álvarez Bravo.
Acima, mais duas fotos de Lola Álvarez Bravo,
Homem-rã (Hombre rana, 1949) e Olho (Ojo, 1950).

Abaixo, Jean Cocteau em fotografia de Julien Clergue
durante as filmagens de O testamento de Orfeu
(Le testament d’Orphee), filme de 1959 com direção,
roteiro e atuação de Cocteau no papel central.
Todas as imagens fazem parte do catálogo da
exposição Surrealism na Throckmorton Fine Art,
exceto quando indicado nas legendas









Um século depois do marco inaugural do manifesto de André Breton, um olhar em retrospectiva consegue estabelecer as características difusas e marcantes desta visão artística que explora as dimensões mais eletrizantes da imaginação humana. Nas celebrações do centenário e da herança do movimento, um dos destaques vem da Throckmorton Fine Art, de Nova York, com uma exposição sobre o impacto do movimento na fotografia, reunindo fotógrafos que atuaram na Europa, nos EUA e no México nos anos 1920 e nas décadas seguintes. No acervo selecionado estão obras que moldaram as formas e a estética do Surrealismo na fotografia e que levantam questões sobre a natureza da realidade e da identidade individual de cada fotógrafo selecionado – retomando abordagens sobre o estilo e as características do movimento surrealista que provocam polêmica desde o tempo em que a fotografia como técnica e como meio de expressão era questionada em seu estatuto de arte e muitas vezes considerada uma arte menor.


Imagens de sonho


O uso de técnicas que na época eram consideradas inovadoras e radicais, como o automatismo psíquico, as associações livres e a colagem para explorar o mundos dos sonhos e dos desejos, surgiram anunciadas como estratégias no primeiro manifesto de André Breton. Nos anos seguintes, viriam outros manifestos também escritos por Breton, “Surrealismo e Pintura”, de 1928, e “Segundo Manifesto do Surrealismo”, de 1930. Um terceiro documento, “Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente”, foi coescrito por Breton, Diego Rivera e Leon Trotsky no México, em 1938, e publicado com grande repercussão na França, na revista Partisan Review. Trotsky, liderança importante da Revolução Russa de 1917, havia sido expulso do Partido Comunista da União Soviética e estava exilado no México desde 1936, acolhido pelo casal Diego Rivera e Frida Kahlo.

Desde então, o movimento surrealista se espalhou pelo mundo como tendência e influência para artistas das áreas mais variadas. O impacto do Surrealismo também foi sentido no Brasil, onde os ideais do movimento prosperaram na primeira geração dos modernistas da Semana de 1922, com destaque na literatura de Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Limaou na arte de Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Flávio de Carvalho e Cícero Dias, entre outros, além da presença incontornável de Maria Martins, parceira de Marcel Duchamp e primeira mulher a despontar como expoente nos círculos surrealistas de Paris.






Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
Ruínas com forma masculina
(Ruins and Male Form,
década de 1920), fotografia
s e colagem de Lionel Wendt.

Abaixo,
Torre do Rockfeller Center nº 14
(Rockefeller Center Tower nº 14), fotografia
de 1932 de
Rosa Covarrubias. Também abaixo,
Cartografia interior nº 23 e nº 21, fotografias com
intervenções e colagens de 1995 e 1996, no estilo
surrealista, por Tatiana Parcero







Nomeada como “Surrealismo: Mais de um século unindo os reinos dos sonhos e da realidade” (Surrealism: Over a Century Merging the Realms of Dreams and Reality), a mostra na galeria Throckmorton Fine Art, com curadoria da historiadora María Míllan, reúne 50 fotografias ampliadas, a maioria delas em preto e branco, de 25 artistas que abraçaram os ideais surrealistas para produzir imagens que expressam elementos do acaso e um forte simbolismo na composição. Em comum a todos eles, um método de trabalho para criar representações inesperadas por meio da fotografia. É um acervo valioso, mas trata-se tão somente de uma amostragem: quem tem algum repertório sobre o movimento irá perceber, pela lista de fotografias selecionadas, que nem todos os nomes do primeiro time do Surrealismo na fotografia estão representados na mostra.

Entre os nomes de destaque histórico do movimento que atuaram na fotografia, Man Ray (1890-1976), Claude Cahun (1894-1954) e Hans Bellmer (1902-1975) talvez sejam as ausências mais marcantes da mostra, ainda que isso não diminua seu alcance e sua importância como retrospectiva, porque a curadoria consegue contemplar um conjunto coerente de obras e
autores. Como o Surrealismo sempre foi inerentemente político, desde seus primórdios como movimento de protesto e de combate ao fascismo, ao autoritarismo e ao conservadorismo, o acervo selecionado não exclui o potencial da estética surrealista como arma política para romper barreiras – entre temáticas, entre gêneros e entre linguagens. É o que a fotografia surrealista representa: ao contrário da atuação centrada exclusivamente na produção fotográfica, o que fotógrafos com ideais surrealistas estabelecem são possibilidades criativas de intercâmbio da fotografia com formas de expressão das artes plásticas, das artes cênicas, da literatura, do cinema – aproximando flagrantes do real, por meio do aparato fotográfico, ao inesperado, ao impossível e às formas do inconsciente.









Limites extremos


Pelas fotografias selecionadas, é possível perceber que a linguagem e o espírito do movimento surrealista se estendem para muito além dos nomes que os manuais de história da arte enumera como artistas canônicos, alcançando também fotógrafos que adotaram abordagens lúdicas e experimentais inspiradas nos ideais estéticos do Surrealismo. Na fotografia, tais ideais formam um arsenal que funciona como ferramentas de composição, potencializado com base no próprio aparato dos equipamentos, que a linguagem fotográfica nas primeira décadas do século 20 ainda navegava na transição entre as possibilidades do meio como documentação e como autoexpressão. Na aproximação com o Surrealismo, novas diretrizes surgiam na busca pelos limites extremos da técnica em variações de dupla exposição, negativos sobrepostos, fotomontagens, solarização e polarização, uso de lentes especiais, de iluminação incomum, de perspectivas distorcidas em enquadramentos surpreendentes ou até mesmo recorrendo a adereços absurdos com o objetivo de proporcionar resultados de efeitos dramáticos.

Outra característica marcante no acervo selecionado pela Throckmorton Fine Art está no número expressivo de mulheres no espectro da fotografia surrealista. Dos 25 artistas presentes na exposição, mais da metade são mulheres, com destaque para Dora Maar, Kati Horna, Stella Snead, Tina Modotti, Berenice Abbott, Germaine Krull, Lola Álvarez Bravo, Mariana Yampolsky, Imogen Cunningham, Graciela Iturbide, María García e Francesca Woodman. Também marcam presença na exposição composições inesperadas na forma e no enquadramento de objetos inanimados por Edward Weston; nas distorções do corpo por André Kertész; nos flagrantes irônicos de Henri Cartier-Bresson; e nas encenações mirabolantes de Philippe Halsman.







Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
fotografia de Berenice Abbott da década de 1920,
As mãos de Jean Cocteau, da série Rostos de 1920
(
Jean Cocteau's Handsfrom, Faces of the 20's Portfolio).

Abaixo, fotografia sem título de 1962 de Kati Horna,
da série Oda a la necrofilia, Cuidad de México.

Também abaixo, duas fotografias de Henri Cartier-Bresson:
um retrato de 1930 
do escritor André Peyre próximo a um
cartaz publicitário; e um flagrante em fotografia de
1933 em uma rua de Valência, Espanha













Poder da imaginação


Para o senso comum, que faz com frequência uma associação direta do Surrealismo com as provocações de mestres como Salvador Dalí e René Magritte nas artes plásticas, Luis Buñuel no cinema ou Antonin Artaud no teatro, talvez possam parecer pouco expressivas as pequenas variações sobre imagens cotidianas em algumas fotografias selecionadas. Tais variações, no entanto, não podem ser separadas da estética surrealista se questionam a ditadura da razão e valores burgueses como pátria, família, religião, trabalho, ou se fazem um elogio subversivo ao poder da imaginação – porque, no primeiro manifesto, Breton declarava sua crença na possibilidade de reduzir dois estados tão contraditórios, sonho e realidade, a uma espécie de síntese de uma realidade absoluta, uma sobre-realidade (ou surrealidade).














Uma importante alteração no Surrealismo surge no final da década de 1930, com a Segunda Guerra Mundial explodindo em países da Europa. Neste cenário, os Estados Unidos e outros países do continente americano atraem uma onda de artistas e intelectuais europeus que fugiam das zonas de guerra. Há, também, um evento catalisador realizado na Cidade do México em 1940: a Exposição Internacional do Surrealismo, organizada por André Breton, que marca um momento crucial para o envolvimento e a contribuição da América Latina para o estilo e para os ideais surrealistas. Embora o movimento surrealista seja amplamente considerado europeu, obras de artistas e fotógrafos do México e de outros países latino-americanos também passam a destacar a relação do Surrealismo com a produção cultural dos povos do continente que abrigou, desde sempre, tanto tradições como imaginação criativa inclinadas para o maravilhoso e o fantástico – como confirma a ascensão do realismo mágico na literatura e nas artes plásticas.


Fronteiras da realidade


As imagens violentas e chocantes dos campos de batalha na Segunda Guerra podem receber a nomeação de surrealistas, pelo impacto que provocaram, já que o termo passou a ser incorporado como adjetivo na linguagem cotidiana para se referir ao que é estranho ou surpreendente, fora do comum, mas o movimento de forma geral teve o seu desfecho no pós-guerra. O fim do surrealismo como uma força vital está ligado a uma exposição, “Le Surrealisme en 1947”, concebida e realizada por André Breton e Marcel Duchamp com o objetivo anunciado de marcar o retorno do movimento surrealista a Paris após a guerra. O objetivo, no entanto, não se concretizou. A exposição, na verdade, demonstrou que a geração mais jovem, incluindo artistas como Francis Bacon, Alan Davie, Eduardo Paolozzi e Richard Hamilton, estava se movendo em direções diferentes com outros ideais.







Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
Adelaido, El Conquistador
, fotografia de 1951
de
Héctor García. Abaixo, Dançarina satírica
(Satiric Dancer), uma fotografia de 1926
de
André Kertész.

No final da página, o encontro lendário de
Leon Trotsky, Diego Rivera e André Breton
no México, 
fotografado por Fritz Bach em junho
de 1938, na época em que os três escreveram, em
parceria, o Manifesto por uma Arte Revolucionária
Independente
, publicado pela revista Partisan Review.

Também no final da página, mais duas fotografias do
catálogo da exposição
na Throckmorton Fine Art:
Três marionetes em um cenário de navio
(Three Puppets in a Ship Setting), fotografia
de 1929 de
Tina Modotti; e Nu em abstração
(Nude Abstraction), fotografia de 1953 de
Weegee









Um século após seu surgimento, o Surrealismo continua a existir, como estilo e como referência, não somente na fotografia, mas em todos os domínios da criação artística, no mundo inteiro, em grande parte como citação às obras dos pioneiros do movimento nas décadas de 1920 e 1930. Seu legado e influência se mantêm inegáveis sempre que estão em cena imagens com sugestões oníricas e inesperadas, fantásticas, bizarras ou grotescas, que nos levam a reavaliar nosso olhar sobre a realidade e a vida cotidiana. O acervo selecionado na exposição atual, com uma gama significativa de imagens de fotógrafos pioneiros, tem grande valor como retrospectiva não só porque promove uma revisão das conquistas do Surrealismo na fotografia, mas porque reafirma a importância, urgente e contínua, de examinarmos as fronteiras entre a realidade e as representações da realidade.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Surrealismo na fotografia. In: Blog Semióticas, 2 de dezembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/12/surrealismo-na-fotografia.html (acesso em .../.../…).



Para visitar a exposição na  Throckmorton Fine Art,  clique aqui.













8 de novembro de 2025

O fotolivro de Victor Hugo

 



Desde sua invenção, a fotografia patrocinou a expansão dos

limites do visível sobre o invisível, do revelado sobre o oculto.

–– Mauricio Lissovsky em “A máquina de esperar” (2009).   




Autor de grandes clássicos da literatura universal como “Os Miseráveis” e “O Corcunda de Notre-Dame”, romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, ativista pelos direitos humanos e senador de importante atuação na França, Victor Hugo (1802-1885) poderia também ter sido o primeiro autor de um fotolivro. Contudo, o seu projeto para “As Contemplações”, reunindo uma fotografia para cada poema, terminou rejeitado pela casa editorial Hetzel. Depois de anos de adiamentos, “As Contemplações” seria finalmente publicado em 1856, com 92 poemas que fizeram história, mas sem as fotografias selecionadas pelo autor. Sem a publicação do projeto original de Victor Hugo, as honrarias pelo primeiro livro com fotografias ficaram com o escritor e cientista inglês Henry Fox Talbot.

Também creditado como um dos inventores da fotografia, Talbot passou à condição de pioneiro como autor de “The Pensil of Nature” (O Lápis da Natureza), publicado em seis volumes, entre 1844 e 1846, pela casa editorial Longman, Brown, Green & Longmans de Londres, e celebrado por ser o primeiro livro a incluir reproduções fotográficas coladas em suas páginasO livro de Talbot não era uma obra de literatura e sim uma publicação científica que apresentava questões práticas do processo fotográfico e abordava seu potencial artístico, incluindo 24 fotografias, e não desenhos e gravuras, que eram as únicas possibilidades de ilustração para uma obra impressa até então. Cada uma das fotografias, incluindo retratos, reproduções de obras de arte e imagens da natureza, era acompanhada por textos explicativos com detalhes sobre a técnica e sobre as diversas aplicações possíveis para o aparato fotográfico.

Na mesma época da publicação do livro de Talbot, uma fotógrafa, Anna Atkins, também em Londres, conseguiu realizar um trabalho editorial que também foi uma proeza na pesquisa científica, nas artes gráficas e na história da fotografia. Com espécimes que ela mesma coletou ou recebeu de outros pesquisadores, Atkins produziu placas de fotografias colocando algas úmidas sobre papel fotossensibilizado, no processo conhecido como cianótipo, inventado em 1842 por John Herschel. O livro de Atkins, “Photographs of British Algae” (Fotografias de Algas Britânicas), teve edição artesanal em composições de manuscritos feitos por ela sobre cada uma das 307 imagens de algas em cianótipos.










O fotolivro de Victor Hugo: no alto e acima,
retrato do escritor feito em 1853 por seu filho,
Charles Hugo; e a nova edição de “Les Contemplations”,
agora ilustrada, com os poemas acompanhados de um
álbum de fotografias, conforme o projeto original que
não foi concretizado na primeira edição, em 1856.

Abaixo, as capas de “The Photobook: A History”,
publicados por Gerry Badger e Martin Parr em
três volumes, que fizeram uma retrospectiva
histórica e firmaram o conceito de “fotolivro”









Os livros com fotografias tiveram uma extensa trajetória de evolução técnica e aperfeiçoamentos desde os experimentos iniciais de Fox Talbot e Anna Atkins. Em 2005, tal trajetória, que remonta aos primórdios da fotografia, teve uma importante retrospectiva apresentada pelo trabalho de uma dupla de fotógrafos e pesquisadores, Gerry Badger e Martin Parr, autores de “The Photobook: A History” (Phaidon Press), em três volumes ilustrados, lançados respectivamente em 2005, 2006 e 2014. Além de popularizar o termo fotolivro (photobook), para o que antes era chamado de “livro de fotografia”, “livro de fotógrafo” ou “livro de artista”, o inventário de Badger e Parr define o conceito como “um tipo específico de livro de fotografia, no qual imagens prevalecem sobre o texto, e o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico ajudam a construir uma narrativa visual”.


Origens do fotolivro



Gerry Badger e Martin Parr
não citam o projeto original de Victor Hugo que não se concretizou, mas destacam o papel pioneiro de Anna Atkins e William Fox Talbot, enumerando e descrevendo a trajetória de centenas de fotolivros que marcaram época e tiveram uma importância fundamental desde o surgimento dos processos fotográficos, nas primeiras décadas do século 19. Do inventário de Badger e Parr constam obras marcantes da história da fotografia e das artes gráficas, seja com fotografias coladas nas páginas e encadernadas como livro, seja com fotografias incorporadas ao processo de impressão do livro. Nos três volumes amplamente ilustrados de “The Photobook: A History” estão listadas, descritas e contextualizadas obras surpreendentes, tanto as que alcançaram notoriedade como aquelas que somente são conhecidas por especialistas.






O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Vista da Janela em Le Gras” (em francês,
Point de vue du Gras), incluída na nova edição de
Les Contemplations” e considerada a fotografia
permanente mais antiga do mundo,
criada pelo
inventor francês Joseph Nicéphore Niépce, entre
1826 e 1827, no processo que Niépce batizou de
heliografia” e que abriu caminho para o
desenvolvimento da fotografia moderna.

Abaixo, as capas originais de dois fotolivros que
redefiniram o formato e são considerados referências:
American Photographs” (1938), de Walker Evans,
publicado com ensaio escrito por Lincoln Kirsten;
e “The Americans” (1958), de Robert Frank,
publicado com ensaio escrito por Jack Kerouac







No acervo reunido por Badger e Parr estão, em destaque, fotolivros que exerceram grande influência na fotografia, na literatura e nas artes em geral. "Talvez seja importante esclarecer que a criação do fotolivro é uma arte literária e narrativa que está situada entre o filme e o romance" – ressalta Gerry Badger. Alguns dos fotolivros em relevo na lista são Street Life in London” (1878), parceria do jornalista Adolphe Smith com o fotógrafo John Thomson; “Animal Locomotion” (1887), de Eadweard Muybridge; The Royal Mummies” (1912), de Grafton Elliot Smith; “Men at Work” (1932), de Lewis Hine;Paris de Nuit” (1933), com fotografias de Brassaï, pseudônimo de Gyula Halász, e texto de Paul Morand; “Facies Dolorosa” (1934), de Hans Killian; American Photographs” (1938), com fotografias de Walker Evans e ensaio de Lincoln Kirsten, e “Let Us Now Praise Famous Men” (1941), parceria entre Walker Evans e o escritor James Agee. Um terceiro fotolivro de Walker Evans na lista é “Many Are Called”, publicado em 1966, também com texto de James Agee, reunindo fotografias feitas nas décadas de 1930 e 1940 no Metrô de Nova York, com uma câmera escondida, sem que os passageiros soubessem que estavam sendo fotografados.

Também são destacados na lista de Gerry Badger e Martin Parr os fotolivros Soviet Photography” (1939), de Aleksandr Rodchenko e outros fotógrafos e artistas; Caribean Crossroads” (1941), com texto de Lewis Richardson e fotografias de Charles Rotkin; “The Sweet Flypaper of Life” (1955), poemas de Langston Hughes com fotografias de Roy DeCarava; “The Family of Man” (1955), com curadoria de Edward Steichen; “New York” (1956), de William Klein; “Hiroshima” (1958), de Ken Domon; e The Americans” (1958), com fotografias de Robert Frank e texto de apresentação de Jack Kerouac. A partir da década de 1960, avanços das artes gráficas e técnicas de impressão vão popularizar as edições, com Gerry Badger destacando que carreiras importantes foram impulsionadas por fotolivros de sucesso – caso, entre muitos outros, dos norte-americanos Alec Soth e Ryan McGinley, ou da espanhola Cristina de Middel.






O fotolivro de Victor Hugo: poesia em
diálogo com os primeiros fotógrafos. Acima,
Paisagem com nuvens”, fotografia de 1856 de
Roger Fenton. Abaixo, “A Lavadeira”, fotografia
de 1840 de Louis Adolphe Humbert de Molard;
e Tempo dos ventos”, fotografia de
1902 de Heinrich Kühn














Gerry Badger, na apresentação a “The Photobook: A History”, também inclui diversas referências à América latina. Do Brasil, são citados Mario Cravo Neto, Miguel Rio Branco e Sebastião Salgado, entre outros, com especial atenção a “Amazônia” (1978), de Claudia Andujar e George Love, que ele define como “mescla singular de política e pessoalidade”. Outros destaques são “Paranoia” (1963), com a poesia de Roberto Piva e as paisagens urbanas nas fotografias de Wesley Duke Lee; e “Bares Cariocas” (1980), de Luiz Alphonsus, com registros de um olhar afetuoso sobre os bares de bairros do Rio de Janeiro. Badger elogia a forma pela qual os fotolivros são capazes de transportar pelo olhar para uma viagem. “Nunca estive na Amazônia, nem no Rio nem na Bahia”, confessa. “Mas esses fotógrafos do Brasil me levam até esses locais (…) de um modo particular – complexo, intrigante e criativo”.


Álbum de Contemplações


O projeto de Victor Hugo de reunir no mesmo livro uma seleção de poemas em diálogo com uma coleção de fotografias finalmente está concretizado – por iniciativa de duas pesquisadoras, Florence Naugrette e Hélène Orain Pascali. Em uma nova edição de “As Contemplações”, elas acrescentam 120 imagens fotográficas, todas produzidas nos primórdios da fotografia por contemporâneos do escritor. O ponto de partida foi um exemplar da primeira edição do livro, no arquivo privado que pertenceu ao autor, que mantinha entre suas páginas uma seleção de 34 fotografias, com anotações e correspondências entre poemas e cada uma das imagens, estabelecidas, ao que se sabe, pelo próprio Victor Hugo, talvez como uma lembrança nostálgica sobre o projeto que não pôde ser concretizado na época, mas enriquecendo, na presença das imagens, o espectro das interpretações literárias.





O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Fotografia de imagem da retina de um vaga-lume”
imagem de 1890 de Sigmund Exner. Abaixo,
Genebra, céu nublado acima do lago
e da cidade”
, fotografia de 1890 de
Gabriel Loppé
; e um eclipse solar visto
no dia 10 de janeiro de 1889 no alto do
Monte Santa Lucia, ao norte da Califórnia,
em fotografia de
Carleton Watkins







Dois ensaios das organizadoras contextualizam a nova edição do livro de Victor Hugo. Em “Contemplações”, Hélène Pascali, historiadora da arte, vai pontuar como o nascimento da fotografia provoca o surgimento de um novo olhar sobre o mundo e sobre as imagens do real. Em Como um Álbum”, Florence Naugrette, professora de Literatura na Sourbonne, confirma que o projeto original de Victor Hugo teria um impacto de grandes proporções em sua época porque seria o primeiro álbum de fotografias, uma experiência sem precedentes em uma época em que a fotografia era uma grande novidade. Especialista na literatura de Victor Hugo, ela também revela que sempre considerou os poemas deste livro como imagens estáticas apresentadas e descritas em preto e branco.

No diálogo que se estabelece entre os poemas e as fotografias, as questões de tempo e memória remetem ao trajeto biográfico do autor e também à história social: paisagens, cenas e personagens citados nos versos evocam, de maneira quase inevitável, imagens fotográficas em suas referências a tons da neve, das nuvens, do céu noturno, dos pássaros voando ao longe, do mármore e de detalhes da construção das casas, da areia da praia, das árvores imóveis ou agitadas pelos ventos e dos dias nublados de inverno. A própria estrutura do livro lembra um álbum de fotografias, traçado no itinerário de cada poema, que vêm legendados com data e lugar, como se fossem um diário de viagem. Folheando o álbum, cada poema e cada imagem torna-se um convite para seguir os passos do autor entre caminhadas, pensamentos, sentimentos, lembranças, busca metafísica e alguma esperança – como se lê em um poema sem título de 1855:


Je ne vois que l’abîme, et la mer, et les cieux,
Et les nuages noirs qui vont silencieux;
Mon toit, la nuit, frissonne, et l’ouragan le mêle
Aux souffles effrénés de l’onde et de la grêle.

(“Écrit en 1855”, Jersey, janvier 1855.)

Vejo somente o abismo, e o mar, e os céus,
E nuvens negras que
passam em silêncio;
M
eu telhado, à noite, estremece, e o furacão o mistura
Com os sopros frenéticos das ondas e do granizo.

(“Escrito em 1855”, Jersey, janeiro de 1855).






O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Sol e nevoeiro”, fotografia de 1898 de
Léonard Misonne. Abaixo, Roman Campagna”,
um estudo de nuvens na área rural de Roma, Itália,
em fotografia de 1855 de Carlo Baldassarre.

Também abaixo, Victor Hugo em 1853, durante
seu exílio na Ilha de Jersey, contemplando
o oceano, no alto da rocha conhecida como
“Le Rocher des Proscrits” (A Rocha dos Proscritos),
em Jersey, fotografado por seu filho Charles Hugo
e seu amigo Auguste Vacquerie











Evolução da técnica


Victor Hugo foi eleito para a Academia Francesa aos 37 anos, em 1839, ano do anúncio oficial da invenção da fotografia com os equipamentos e técnicas de Louis Daguerre, batizados de Daguerreótipos. O escritor, porém, era entusiasta da fotografia desde que tomou conhecimento das experiências de Nicéphore Niépce, que fez os primeiros registros de imagens a partir de 1826. Victor Hugo também se dedicou ao desenho e à pintura, mas sempre se confessou um apaixonado pela fotografia, que ele chamava de "imagens pintadas pelo sol e pela luz". Mesmo depois da edição incompleta de "Les Meditations", ele continuou acompanhando com muito interesse a evolução da técnica e dos processo fotográficos pelos anos e décadas seguintes.

Florence Naugrette e Hélène Pascali seguiram as pistas com registros deste interesse especial de Victor Hugo pela fotografia e, nos mais de três anos de pesquisas para a seleção das imagens que agora acompanham os poemas, investigaram as correspondências temáticas no acervo do escritor e em coleções privadas e públicas, em museus da França e de outros países. No dossiê de imprensa distribuído para o lançamento do livro, Florence Naugrette ressalta que a relação de Victor Hugo com a fotografia se dava intensamente na vida cotidiana, tanto que ele sempre esteve muito próximo de fotógrafos em sua época e cultivou uma forte amizade com Nadar, para muitos o maior fotógrafo do século 19.

“É possível localizar diversas referências ao retrato e à fotografia na obra de Victor Hugo”, ela destaca, “mas na coleção de poemas reunidos nestas ‘Contemplações’ a questão imagética e fotográfica está mais evidente, tanto na busca de palavras e de figuras para redescobrir a experiência como nas confissões sobre a importância de ouvir a natureza, maravilhar-se, buscar o significado, cultivar e traduzir. Palavra e imagem aqui estão em diálogo para expressar um mesmo sentido, o que é surpreendente, principalmente se considerarmos que todos os poemas, e todo o projeto original de Victor Hugo para o livro, foram criados à luz da invenção da fotografia e ainda nos primórdios dos processos fotográficos”.





Na versão final do livro “As Contemplações de Victor Hugo ilustradas pelos primórdios da fotografia” (Les Contemplations de Victor Hugo illustrées par les débuts de la photographie), lançamento da Editions Diane de Selliers, em capa dura e 400 páginas, os 92 poemas são contemplados com 120 fotografias, produzidas em datas que vão de 1826 a 1910 e selecionadas por Florence Naugrette e Hélène Pascali do acervo de 85 fotógrafos, todos apresentados com perfil biográfico. O resultado é um inventário inédito sobre nomes de importância no início da história da fotografia e uma retrospectiva surpreendente que alcança das experiências dos pioneiros ao aperfeiçoamento dos equipamentos e ao domínio da técnica, seja na aplicação de princípios estéticos, com evoluções de enquadramento, de foco, de iluminação e de contraste, seja nas intervenções nos processos de impressão, levando a imagem fotográfica a um campo de autonomia e de independência, em relação às outras artes, para o registro instantâneo de fragmentos da realidade.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O fotolivro de Victor Hugo. In: Blog Semióticasde novembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/11/o-fotolivro-de-victor-hugo.html (acesso em .../.../…).



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Les Contemplations de Victor Hugo,  clique aqui.







O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Avenida no inverno”, fotografia de 1893
de
Alfred Stieglitz. Abaixo, “O alto da montanha”,
fotografia de 1860 dos irmãos
Louis-Auguste Bisson
e Auguste-Rosalie Bisson





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