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23 de agosto de 2025

Bienal das imagens de guerra

 




As guerras não machucam ninguém além das pessoas que morrem. 

–– Salvador Dalí em depoimento a Alain Bosquet em 1969.  

......





Sobre nosso olhar diante das guerras e das imagens de guerra, nosso silêncio, nossa indiferença ou nosso protesto, Susan Sontag disse quase tudo em “Diante da dor dos outros”, ensaio comovente, de fôlego e de impacto, publicado em 2003 – último livro que ela publicou, menos de um ano antes de sua morte aos 71, em 2004. Retorno ao ensaio de Sontag sobre as imagens da dor e da guerra reproduzidas diariamente por todas as mídias porque recebi, por e-mail, o belo programa da Bienal Internacional de Arte de Pontevedra, que está de volta 15 anos depois de sua última edição na província de Galiza, na Espanha, com o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás”.

A programação é extensa e tenta abraçar os mais diversos caminhos da arte contemporânea nos suportes tradicionais e formatos multimídia, presenciais e on-line. O tema da bienal tem sua inevitável inspiração no ativismo antiguerra de Susan Sontag – em sua opção por uma arte que fosse abertamente comprometida com uma real intervenção diante das guerras e da violência do presente. Pelo que se anuncia, é a temática da guerra que conduz a curadoria, com imagens de confrontos armados e massacres ganhando destaque na condição de obra de arte, incluindo retrospectivas históricas e experiências inéditas e imprevisíveis da arte viva contemporânea, como as instalações de Zehra Dogän, artista e jornalista curda nascida na Turquia, que lançam o visitante em barricadas e simulações de confrontos diante de tanques e tropas invasoras.









                   



Bienal das imagens de guerra: no alto e acima,

Etelastik”, instalação multimídia de Zehra Dogän

que lança o visitante no confronto diante dos tanques.

Também acima, os curadores da Bienal de Pontevedra

na cerimônia de abertura da edição 2025 do evento.


Abaixo, "Resiliência", escultura da artista do

Paquistão, 
Wardha Shabbir, com um imenso coração

de onde brotam folhas e flores, tudo revestido por resina

com tonalidade vermelho sangue. Também abaixo,

fotografia de cena de 
“Fora de Si”, performance de

dança e artes cênicas de Nuria Sotelo e Luz Arcas;

e “Labola”espetáculo de O Ribot, premiado em 2021

com o Leão de Ouro na Bienal de
Dança de Veneza.

Todas as imagens
reproduzidas abaixo fazem

parte do catálogo on-line da Bienal de Pontevedra,

exceto quando indicado nas respectivas legendas






                        
 






O imprevisível presencial


Entre as diversas instalações com suportes audiovisuais e multimídia, o imprevisível também é marcante nas obras de Rosalind Nashashibi, artista da diáspora da Palestina, que resgata cenas da Faixa de Gaza que desapareceram com o massacre genocida praticado diariamente pelas forças invasoras e terroristas de Israel contra tudo e contra todos: crianças que brincam, pessoas e cavalos que se banham nas águas do mar, jardins e bosques de oliveiras que o bombardeio incessante dos iraelenses transformam em ruínas e corpos destroçados. São imagens que gritam, em sua aparente simplicidade e sua beleza tão vulnerável. Visitantes também têm a experiência presencial de olhar as fotografias que Robert Capa registrou na Guerra Civil da Espanha – e por coincidência algumas das ampliações estão realmente próximas dos pontos geográficos em que foram fotografadas pelo mais célebre dos fotógrafos de guerras e por outros fotojornalistas que fizeram história.

Ainda que entre as obras e artistas da bienal esteja indicado um consenso inequívoco sobre o genocídio praticado por Israel contra o povo palestino, o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás” também cria um paradoxo com uma emblemática citação do alemão Theodor Adorno, que sempre retorna quando o debate aborda a guerra em interface com a arte e a literatura. Adorno argumentou, em 1949, que “escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro” – no ensaio “Crítica da Cultura e Sociedade” (publicado no Brasil em 2002 no livro “Indústria cultural e sociedade”, pela editora Paz e Terra). A afirmação retornaria em outros textos em que o filósofo contextualiza sua máxima com a advertência de que ele não pretendia que se deixasse de escrever poesia, mas sim que a arte após o Holocausto não podia mais ser ingênua ou indiferente à barbárie ocorrida, sendo necessário que a própria arte refletisse sobre a catástrofe. A ironia do destino é que agora, décadas depois do Holocausto, são os judeus no comando do Estado de Israel que usam do imenso poderio militar para cometer o horror dos massacres e do genocídio contra os palestinos, um povo que não tem exércitos.



          


Bienal das imagens de guerra: acima,
um selo postal da Alemanha em homenagem
ao centenário de Theodor Adorno em 2003,
onde se lê o rascunho com a célebre e melancólica
citação “escrever um poema depois de Auschwitz
é um ato bárbaro”
.

Abaixo, extratos de Gaza Elétrica, fotografias
e instalação multimídia de Rosalind Nashashib
que mostram cenas do território de Gaza, belas e
vulneráveis,
registradas em 2014 e 2015, antes da
completa destruição e do massacre nos últimos anos
praticado pelos ataques e bombardeios de Israel
















História de transformações


A Bienal de Pontevedra tem uma história de transformações. No início, desde sua criação em 1969, foi uma exposição competitiva destinada essencialmente à promoção de artistas locais, como se pode ler na retrospectiva do site oficial (veja o link no final desta página). A partir de 1974, a bienal ganhou abertura para artistas internacionais e, em 1982, abandonou o seu caráter competitivo. Por questões internas de gestão e dificuldades financeiras, o evento foi interrompido em 2010, retornando agora com a força inquestionável que a extensa programação vem demonstrar. Sob a curadoria de Antón Castro, historiador da arte e professor da Universidade de Vigo, com a curadoria adjunta de Agar Ledo e Iñaki Martínez Antelo, a bienal abriu formalmente no final de junho e se estenderá até 30 de setembro, ocupando diversos espaços da Galiza, com algumas exposições e instalações seguindo depois para outros espaços da Espanha e outros países da Europa.

Na apresentação da bienal, os curadores ressaltam que as duas guerras mundiais, em sua época, não foram temas marcantes das artes tradicionais da pintura e da escultura, mesmo tendo influenciado radicalmente os movimentos de vanguarda e os rumos da Arte Moderna. As experiências de representar a morte e a violência provocadas pelas máquinas de guerra tiveram mais força na fotografia e no cinema, aparecendo implícitas, ou quase não ditas, de forma metafórica ou alegórica, na literatura e nas formas da arte em geral. Houve, contudo, uma forte alteração de perspectiva, porque a guerra não mais aparecia de forma gloriosa e heroica, como tinha sido representada por muitos artistas nos séculos anteriores.








Bienal das imagens de guerra: arquivo
histórico de registros da Guerra Civil Espanhola,
a partir d
o alto, uma tropa da resistência em
Cerro Muriano, uma vila da Andaluzia, Espanha,
em 5 de setembro de 1936, em fotografia de
Robert Capa. Acima, um morto é transportado
na frente da resistência em Segóvia, em
fotografia de junho de 1937 de
Gerda Taro.

Abaixo, os soldados em uma pausa para uma
fotografia na rua, em Granada, 1937, uma cena
fotografada por 
Martín Santos Yubero;
o fotojornalista uruguaio Pau Lluis Torrents,
com a câmera apoiada nos joelhos, conversa com
militantes da resistência na frente de Aragão, em
agosto de 1937, em fotografia de
Agostí Centelles;
um grupo de republicanos de esquerda assassinados
pelos
nacionalistas conservadores, liderados pelo
general Francisco Franco,
em Carabanchel Bajo (Madri),
em fotografia de dezembro de 1936 de Erich Andres;

e as covas vazias, à espera dos mortos, no cemitério
de Huesca, na província de Aragão, em fotografia
de abril de 1938 de
Albert-Louis Deschamps

















Os desastres da guerra


Uma importante exceção na representação da guerra surge de forma marcante na obra de Pablo Picasso – em 1937 ele pintou “Guernica”, sob o impacto de um dos massacres na Guerra Civil, que foi a destruição por bombardeios na pequena cidade de Guernica, criando uma obra monumental que tornou-se uma referência como o manifesto de maior impacto contra a violência do século 20. “Guernica”, a obra original, não foi cedida à Bienal de Pontevedra. Em 1981, ela foi transferida do Museu de Arte Moderna de Nova York para Espanha e permanece no Museu Rainha Sofia, em Madri, mas está presente na bienal na forma de homenagem, com uma recriação feita por uma artista do México, Fritzia Irizar, que produziu uma réplica da pintura original, feita em escala 1:1, sobre a qual foi apresentada uma performance de arte viva.

Na abertura da bienal, 
Fritzia Irizar disparou em direção à réplica de "Guernica" milhares de recortes com retratos das vítimas de massacres recentes em cidades da Palestina, da Síria, da Ucrânia, e os retratos terminaram afixados à tela que havia sido recoberta com cola de secagem rápida, gerando um efeito que oscila entre o festivo e o trágico. A homenagem a "Guernica" destaca a urgência para não esquecermos as lições do passado, provocando reflexões tanto sobre o sofrimento e o desespero de populações inteiras como sobre a banalização cotidiana da violência na cultura visual contemporânea.   

Outra exceção importante na representação dos cenários e das consequências da guerra, mas no século 19, vem de outro artista espanhol, Francisco de Goya, cujas obras estão presentes na bienal. Entre 1810 e 1815, Goya criou “Los Desastres de la Guerra”, uma série de 82 desenhos e gravuras que são referenciais pelo que retratam brutalmente tanto em evidências realistas como em metáforas e símbolos sobre a violência da guerra, tendo como tema e cenário a resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão. A série de Goya, não por acaso, fornece argumentos para Susan Sontag em “Diante da dor dos outros” e também surge como um fio condutor dos múltiplos recortes que guiaram a curadoria da bienal na seleção dos 60 artistas e das 400 obras em exposição.


















         



Bienal das imagens de guerra: no alto, "Guernica",
a obra monumental de Pablo Picasso, fotografada
por 
Francisco Seco em 2017 no Museu Rainha Sofia,
em Madri; e 
a recriação da obra pela artista do México,
Fritzia Irizar, na tela inteira e no detalhe, com as
fotografias recortadas e afixadas de milhares de
vítimas de massacres contemporâneos. Acima,
uma das gravuras originais da série
Os desastres da guerra, do mestre espanhol
Francisco de Goya (1746-1828).


Abaixo, “Naves Espaciais” (Astronauta), pintura
em técnica mista de 2024 de artista da Rússia,
Taisia Korotkova, peça da série Reconstrução;
uma imagem da série de projeções em técnica
mista "Ecologia invisível", do artista indígena
brasileiro Denilson Baniwa, uma alegoria sobre
o equilíbrio natural que tem sido violado pela
guerra cotidiana de humanos contra animais e
plantas; e “Medo”, instalação multimídia criada
a partir de uma histórias em quadrinhos de 1948,
obra do artista espanhol Antoni Muntadas
que denuncia a normalização das guerras
na imprensa e na cultura popular.

No final da página, "Casa" e "Tanque russo",
intervenções em slides de “ativismo poético”
do artista de Cuba, Dagoberto Rodriguez, um
dos fundadores de Los Carpinteros, coletivo de
artistas cubanos que usa humor e ironia para
abordar questões políticas sobre as guerras,
as migrações humanas e as mudanças climáticas












É quase inevitável associar os cenários violentos da série de Goya ao olhar de fotógrafos presentes na bienal com registros de guerras desde o começo do século 20, seja na Segunda República, na Primeira Guerra Mundial, na Guerra Civil ou na Ditadura Franquista, na Segunda Guerra ou nos conflitos intermináveis da segunda metade do século 20 até o presente em diversas nacionalidades. Há alguns nomes célebres, especialmente na cobertura dos combates durante a Guerra Civil na Espanha, na década de 1930, com destaque para o húngaro Endre Ernő Friedmann (1913-1954), que se tornou uma figura lendária sob o pseudônimo de Robert Capa; os alemães Erich Andres (1905-1992), Walter Reuter (1906-2005) e Gerda Taro (1910-1937); a húngara Kati Horna (1912-2000); o uruguaio Pau Lluis Torrents (1891-1966); os espanhóis Martín Santos Yubero (1903-1994) e Agustí Centelles (1909-1985); o francês Albert-Louis Deschamps (1889-1972) e o polonês Emil Vedin (1912-2001), entre outros.

Há também os fotógrafos nos cenários contemporâneos de guerras ocasionais ou permanentes que atravessam o Leste Europeu, os países da África, o Oriente Médio, a Ásia ou as Américas, neste nosso tempo presente em que os espectadores estão diante da dor dos outros observando-a como um espetáculo, muitas vezes em tempo real e simultâneo, acompanhando o horror pela TV ou pelas redes sociais nas telas do computador ou em celulares – com massacres de populações inteiras, incluindo muitas crianças, em atrocidades que dispensam mediação de jornalistas ou historiadores e acontecem ao vivo, diante dos olhos de milhões de espectadores. Seja por meio de fotografias, do cinema documental, dos fragmentos de transmissões on-line, seja em instalações presenciais, em pinturas, em ilustrações, em esculturas, em performances ou em técnicas mistas e imprevisíveis, as imagens de guerra reunidas pela Bienal de Pontevedra são amostras de registros incômodos e extremamente atuais da arte produzida em situações extremas – cada trabalho e todos, em conjunto, soando como alertas inquietantes e brutais.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bienal das imagens de guerra. In: Blog Semióticas, 23 de agosto de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/08/bienal-das-imagens-de-guerra.html (acesso em .../.../…).



Para visitar a  Bienal Internacional de Arte de Pontevedra,  clique aqui.






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24 de janeiro de 2024

Picasso na fotografia





A arte não tem passado nem futuro.

Tudo o que eu já fiz foi para o presente.

Pablo Picasso (1881-1973).  

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Pablo Picasso é homenageado em um dos mais importantes eventos mundiais de fotografia, o PhotoEspanha, festival anual com sede em Madri. A exposição de abertura do festival, instalada nas galerias do Fernán Gómez Centro Cultural de La Villa, reuniu um grande acervo de retratos de Picasso – talvez o nome mais importante e mais prestigiado da arte no último século, o artista que atravessou todos os estilos e todos os movimentos da Arte Moderna e se mantém como referência e influência marcante da Arte Contemporânea.

A homenagem, nomeada “Picasso na foto”, marca os 50 anos da morte do artista e traz uma seleção de imagens de suas últimas décadas de vida. Os retratos em exposição, que vêm dos arquivos do Museu Picasso de Barcelona e de coleções particulares, abordam os processos criativos e o tempo de lazer do artista – com os dois aspectos constantemente sobrepostos. São imagens que, em sua maioria, foram registradas por nomes que têm um peso incomparável na história da fotografia e do fotojornalismo, compartilhando as galerias da exposição com retratos do artista feitos por amigos e em família.

Entre os fotojornalistas que fizeram retratos de Picasso estão os maiorais do primeiro time como David Douglas Duncan, Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, Robert Doisneau, Brassai, Man Ray, David Seymour, Lucien Clergue, Willy Rizzo Lee Miller e Cecil Beaton, entre muitos outros. A exposição, que também inclui uma seleção de fotografias que Brigitte Baer reuniu no Catálogo Raisonné de gravuras e litografias de Picasso, depois da temporada no PhotoEspanha segue uma agenda itinerante por outros museus e galerias de diversos países, com curadoria de Emmanuel Guigon, que desde 2016 assumiu o cargo de diretor do Museu Picasso de Barcelona.






      



Exposição Picasso na Fotografia: no alto, Picasso

em foto de sua esposa Jacqueline. Acima, intervenção

de Picasso em foto do álbum de família em que ele

está à mesa com Édouard Pignon, Anna Maria Torra

e Madeleine Lacourière em outubro de 1958.


Também acima, Emmanuel Guigon, diretor do Museu

Picasso de Barcelona e curador da exposição aberta

no Festival PhotoEspanha, diante de um dos célebres

retratos de Picasso, feito por Robert Doisneau em 1952.

Abaixo, Picasso no Hôtel Vast Horizon, em Mougins,

fotografo por Lee Miller em 1937; com o amigo

Gustau Gili Esteve no ateliê de Notre-Dame-de-Vie,

em abril de 1969; e no encontro com outro mestre,

Joan Miró
, fotografados por
Jacqueline Picasso

no ateliê em Mougins, em 1967










              




Um diário fotográfico


O acervo de retratos de Picasso no PhotoEspanha destaca especialmente os períodos de convívio do artista com três grandes fotógrafos que fizeram inúmeras visitas à intimidade de Picasso com a família e trabalhando no ateliê em Mougins, na Côte d’Azur, Sul da França, às margens do Mar Mediterrâneo. São eles o francês Lucien Clergue (1934-2014), que fez um diário fotográfico dos dias compartilhados com Picasso ao longo dos anos; o norte-americano David Douglas Duncan (1916-2018), que travou amizade com Picasso desde que se conheceram em 1956, no convívio muito próximo que se estendeu até 1962, quando Duncan publicou um célebre fotolivro sobre a intimidade do artista e seus processos criativos; e Robert Capa (1913-1954), que representa um capítulo à parte na trajetória de Picasso.

Não há como negar que os grandes fotógrafos têm papel importante na criação do mito de Picasso, mas o papel de Robert Capa foi decisivo. Os primeiros contatos entre o artista mais lendário da Arte Moderna e o mais importante fotógrafo de guerras aconteceram na década de 1930, quando Capa e sua companheira, a alemã Gerda Taro, registravam os combates da Guerra Civil Espanhola e os movimentos de resistência contra a repressão imposta pelo general Francisco Franco. Capa, que fundaria a célebre Agência Magnum em 1947, junto com Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger, fez os contatos para a promoção de uma das obras mais importantes de Picasso, “Guernica”: foi por interferência de Capa que David Seymour fotografou Picasso em 1937 diante de sua obra monumental, assim que ela foi pintada, logo após o bombardeio genocida das tropas e aviões franquistas contra a vila espanhola.








Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

entre amigos, em foto de 1959 de Lucien Clergue,

ensaiando músicas com Paco Muñoz e o antiquário

Affrentranger em sua loja em Arles, na França;

e proseando com um motorista de táxi no

aeroporto de Nice, em foto de Lucien Clergue.


Abaixo, um visitante da exposição observa

um retrato de Picasso feito na casa do

artista em Vallouris, França, em 1952, por

Robert Doisneau; e Picasso e Jacqueline

dançando no ateliê da casa em que

viviam em Cannes, no verão de 1957,

em fotografia de David Douglas Duncan













Contador de histórias


Robert Capa e Cartier-Bresson também fotografaram por diversas vezes Picasso em seu quarto, no apartamento em que morava em Paris, na Rue des Grands-Augustins, e a todo vapor no ambiente de trabalho, durante a Segunda Guerra, e todos os biógrafos são unânimes em reconhecer que Capa, Cartier-Bresson e outros grandes fotógrafos ajudaram a disseminar imagens que popularizaram Pablo Picasso como um artista contador de histórias épicas, politizado e irreverente, viril, sedutor e bem-humorado, brincalhão, fumante de charuto, de bem com a vida e dândi, rudemente bonito, que se casou diversas vezes, teve quatro filhos com três mulheres e conquistou incontáveis e belas amantes – tudo contribuindo para a construção da narrativa histórica que levaria Picasso à prosperidade que outros artistas da época nunca alcançaram.

Durante e depois da Segunda Guerra, Capa compartilhava a intimidade de Picasso, e em 1948 passou uma temporada de férias no Mediterrâneo com Picasso e sua esposa da época, Françoise Gilot. Na temporada na praia com Picasso em família, Capa fazia testes com fotografias em filmes coloridos, uma novidade que ainda não estava disponível no mercado, e registrou retratos que estão entre os mais memoráveis na trajetória de Picasso, como o passeio de sombrinha na praia, com o artista descalço acompanhando sua musa (veja mais em Semióticas –Robert Capa em cores).









Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

no ateliê da casa em Cannes, em julho de 1957,

em fotografia de David Douglas Duncan;

e o criador diante da criatura, Guernica,

em fotografia de 1937 de David Seymour.

Abaixo, Picasso na intimidade de seu

apartamento na Rue des Grands-Augustins,

em Paris, em fotografia de 1944 de

Henri Cartier-Bresson;
e Picasso no

Hotel Vaste Horizon
em Mougins,
Côte d’Azur,

em fotografia de 1937 de sua musa Dora Maar











As musas do artista


As relações de Picasso com as mulheres sempre transparecem em sua obra: todas as musas, sejam amantes, namoradas ou esposas, foram registradas em pinturas, desenhos, esculturas (veja também Semióticas – Picasso em preto e branco). É como se cada uma delas houvesse inspirado uma certa obra-prima, algumas celebrizadas em obras radicais, outras com diversas variantes para o mesmo perfil. Entre todas, talvez nenhuma tenha a importância de sua mais famosa amante, Henriette Theodora Markovitch (1907–1997), mais conhecida pelo pseudônimo de Dora Maar. Intelectual, fotógrafa, poeta e pintora, Dora Maar era francesa descendente de croatas e viveu a infância e a juventude na Argentina. Sua influência foi tão importante para Picasso que foi ela quem ajudou o artista a planejar e pintar “Guernica”, entre outras obras-primas.

Dora e Picasso ficaram juntos por 10 anos, no período em que ele oficialmente esteve casado com Olga Khoklova e depois com Marie-Thérèse Walter, que tinha 17 anos quando se conheceram. Depois do término com Picasso, Dora Maar continuou a pintar, fotografar, escrever, afastada dos amigos e trabalhando em uma rotina de reclusão, mas permaneceu sem reconhecimento até sua morte, em 1997, aos 89 anos. Em 1999, finalmente foi organizada a primeira grande retrospectiva de seu trabalho, em Paris, e sua obra, inédita e surpreendente, aos poucos começou a ser valorizada.

Do primeiro casamento de Picasso, em 1918, com Olga Khoklova, bailarina nascida na Ucrânia, nasceu, em 1921, Paulo Picasso, seu primeiro filho. Em 1927, Picasso conhece Marie-Thérèse Walter, com quem teve em 1935 outra filha, Maya Picasso. A lista de musas, namoradas e amantes continuou a ganhar acréscimos, mas teve uma pausa em 1943, quando começa seu relacionamento com Françoise Gilot, que seria mãe de seus filhos Claude, nascido em 1947, e Paloma, nascida em 1949. O último casamento viria em 1961, com Jacqueline Roque, com quem Picasso viveu durante duas décadas, no período em que experimentou novas técnicas, novos materiais e novos suportes para sua arte, de 1953 até sua morte, em 8 de abril de 1973, aos 91 anos.







  


Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

com sua primeira esposa, Olga Khoklova, no ano

em que se casaram, 1918. Abaixo, um desenho de

Picasso para registrar um encontro na intimidade

entre amigos em Paris, 1919: a partir da esquerda,

Jean Cocteau, Olga, Eric Satie e Clive Bell.


Abaixo, Picasso com mulheres importantes

em sua trajetória: com Marie-Thérèse Walter;

com os retratos de Dora Maar (em fotografia

de Brassaï em 1939); com Dora Maar e amigos

no ateliê em Mougins (a partir da esquerda,

Ady, Marie e Paul Cuttoli, Man Ray, Picasso

e Dora Maar), fotografados por Man Ray;

Dora Maar e Picasso
na Côte d’Azur, em 1937,

fotografados por Eileen Agar; Picasso com

Jacqueline, fotografados em 1950 por Man Ray;

e Picasso com Françoise Gilot e Javier Vilato,

seu sobrinho, em foto de 1948 de Robert Capa

















    




As formas apaixonadas


A lista extensa de musas e amantes de Picasso também inclui, entre as mais conhecidas, Fernande Olivier (com quem ele viveu de 1904 a 1912), Marcele Humbert (de 1912 a 1917), Lee Miller (de 1943 a 1945), Geneviéve Laporte (de 1944 a 1953) e Sylvette David (de 1954 a 1955), entre outras. O artista despertava a paixão de suas musas, e cada rompimento foi doloroso, porque ao que se sabe nenhuma delas nunca aceitou o fim do relacionamento. Os amores de Picasso e sua relação intensa com tantas musas e amantes não provocou grandes escândalos na época, mas têm gerado alguma polêmica nos últimos anos. A mais recente aconteceu em 2021, no embalo da publicidade internacional do movimento “Me Too”, contra o assédio sexual, quando professoras de história da arte e seus alunos fizeram um protesto no Museu Pablo Picasso de Barcelona, com a intenção de denunciar os relacionamentos abusivos do artista, mas sem grande repercussão.

Outras denúncias sobre comportamento abusivo na trajetória do artista e sua dominação “animalesca” sobre as mulheres com quem se relacionava são descritos por sua neta, Marina Picasso (filha de Paulo e neta de Olga Khoklova), no livro “Meu Avô, Pablo Picasso”, que desde o lançamento em 2001 foi um best-seller internacional. Marina, uma das privilegiadas herdeiras de Picasso, nasceu em 1950, em Cannes, e teve um irmão, Pablo, que cometeu suicídio aos 24 anos – segundo ela, por culpa e negligência do avô, que nunca quis dividir sua herança bilionária em vida e nunca se preocupou em dedicar sua atenção para os filhos e os netos.











Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

com os filhos Claude e Paloma, no verão de 1951,

em foto de Edward Quinn; Picasso com sua filha

Maya, fotografados em 1944 por Marie-Thérèse Walter;

e Picasso com Claude em 1954, assistindo a uma

tourada em Vallouris, França, em fotografia de Jean Meunier.

Maya morreu em 2022, aos 87 anos; e Claude Picasso

morreu em 2023, aos 76 anos.


Abaixo, Picasso na praia, em Cannes, 1965,

em fotografia de Lucien Clergue; e no ateliê,

em 1955, fotografado por Edward Quinn. No final

da página, a capa do livro de Marina Picasso,

que foi lançado em 2001, e dois retratos de

Picasso por Robert Capa: na praia, em 1948,

e fumando, na casa de Vallauris, em 1949




                 



      



Contradições bilionárias


No livro, Marina Picasso relata: “Minha avó Olga, humilhada, manchada, degradada por tantas traições, acabou sua vida paralisada, sem que meu avô fosse uma única vez vê-la no seu leito de angústia e de desolação. No entanto, ela tinha abandonado tudo por ele: o seu país, a carreira, os sonhos, o seu orgulho”. Olga nunca aceitou o divórcio de Picasso e, oficialmente, permaneceu casada com ele até morrer, em 1955. Criador de uma obra extensa e das mais valiosas entre todos os acervos do mundo da arte, Picasso morreu sem deixar testamento. Seus bens e obras foram divididos entre os quatro filhos em 1974, por um acordo judicial.

Em todos os sentidos, a nova exposição confirma que Picasso é um caso único. Ele trabalhou intensamente na arte, da infância à velhice, e deixou uma quantidade impressionante de obras surpreendentes, mas a amostragem das fotos que registra sua trajetória revela algo mais do que o artista em ação, em seu ateliê ou nas pausas em momentos de lazer: são imagens que traduzem a vida e as contradições de Picasso em pequenos fragmentos. Sua importância para a arte e a cultura do século 20 é inquestionável, assim como sua interminável paixão pela criação. Apesar disso, Picasso é um artista que divide opiniões e sua reputação muitas vezes precede a sua arte. Talvez por estes detalhes a exposição de sua presença marcante em décadas da história da fotografia traz mais perguntas do que respostas, mas não há como negar que sua relação com a câmera foi, antes de tudo, um veículo – uma estratégia para perpetuar sua própria autoimagem cuidadosamente construída, tão grandiosa quanto mítica.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Picasso na fotografia. In: Blog Semióticas, 24 de janeiro de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/01/picasso-na-fotografia.html (acessado em .../.../…).


 
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