Mafalda, muito esperta e questionadora, conquista a maioria à primeira
vista: tem paixão pela primavera e pelos Beatles e horror a sopa, a
moscas e a guerras. Com seu humor pitoresco e observações tão
breves quanto surpreendentes sobre o mundo, as pessoas, as coisas do dia a dia, as notícias delirantes da imprensa e da TV, que permanecem atualíssimas, Mafalda surgiu para o grande público em 1964, mas permanece muito popular e fazendo as perguntas que os adultos não se atrevem a fazer em voz alta. O sucesso de Mafalda começou em sua terra natal, a Argentina, mas rapidamente ultrapassou as fronteiras e conquistou fãs e leitores de vários países.
Em mais de meio século de vida,
Mafalda foi traduzida em várias línguas e publicada oficialmente em mais de 30 países
– com um detalhe bastante revelador no fato de ainda permanecer inédita nos Estados Unidos.
No Brasil, faz sucesso desde os anos 1970 e tem tanto prestígio que disputa, há mais de uma década, com ninguém
menos que Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, o título de
recordista em citações nas questões apresentadas pelo ENEM, o Exame Nacional do
Ensino Médio.
Na
trajetória de Mafalda há, também, as lendas, as
crises, as idas e vindas, os altos e baixos. Para começar, teve duas
datas de nascimento: a princípio, ela foi criada em 1962, para
compor um anúncio publicitário de eletrodomésticos, e seu nome tem a ver com
as iniciais da marca do produto, com as tirinhas sendo publicadas a partir de 1964, mas até sobre a data verdadeira de seu aniversário
pairam certas controvérsias que permanecem sem solução.
O criador da Mafalda, o argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido
como Quino, desenhou, em 15 de março de 1962, as primeiras
charges e algumas tiras de histórias em quadrinhos sobre Mafalda
para uma agência publicitária. A personagem deveria ser publicada
em anúncios da empresa de eletrodomésticos Mansfield no jornal Clarín. Mas, por ironia do destino, a
empresa acabou recusando os desenhos, o Clarín rompeu o
contrato e Quino, contrariado, decidiu arquivar suas tiras.
Mafalda
pelo mundo inteiro
Em 1964, a ideia das tiras e charges da "enfant terrible" é retomada por Quino, que consegue finalmente publicar sua criação em uma revista semanal da Argentina, a Primera Plana. A primeira vez da Mafalda impressa aconteceu em 29 de setembro daquele ano. A popularidade da personagem, no entanto, só passaria a crescer no ano seguinte, quando os desenhos chegaram às páginas do jornal diário El Mundo, na época um dos mais lidos do país. De novo, vem a ironia do destino nos caminhos de Mafalda: apesar do sucesso das tirinhas da personagem criada por Quino, o jornal foi à falência em dezembro de 1967.
Mafalda
retornaria firme e forte seis meses depois, em outro jornal, o Siete
Días Illustrados. Com o crescente sucesso de público da pequena
Mafalda em seu país de origem, as tirinhas não demoraram a ser
reunidas em livros. O primeiro deles, editado por Quino, teve uma marca impressionante: toda a tiragem de 5 mil exemplares foi vendida em Buenos Aires em apenas dois dias. Com o sucesso, a tirinha e os livros com coleções de tirinhas logo cruzaram as fronteiras da Argentina e
passaram a ser conhecidos em outros países da América Latina e
também na Europa, onde Mafalda teve popularidade imediata na Itália, França, Espanha, Grécia, Portugal e outros países com culturas distintas, como China e Coreia.
Na
Europa, Mafalda desde o início foi publicada com a tarja indicando
que se tratava de “história em quadrinhos para adultos” – e
não demorou a conquistar a simpatia dos intelectuais ligados aos
movimentos sociais e aos partidos de Esquerda. Um dos primeiros a
saudar a personagem como heroína rebelde foi o italiano Umberto Eco, mestre da Semiótica,
que dedicou à criação de Quino um célebre ensaio, publicado pela
primeira vez em 1969, em que destacava: “Mafalda leu,
provavelmente, o Che Guevara...”
Mafalda
em terras brasileiras
No
Brasil, Mafalda apareceu primeiro sem periodicidade, como presença ocasional em charges reproduzidas no final da
década de 1960 nas páginas do lendário Pasquim. Em 1972,
também no Pasquim, foi saudada por Ziraldo: “Mafalda é uma
personagem criada na América Latina que logrou obter uma fama
universal; acho incrível que uma menina da classe média da
Argentina tenha podido ter sucesso na Finlândia”.
A
estreia oficial, sob contrato, aconteceria por aqui somente em 1972,
nas páginas de uma revista infantil chamada Patota, publicada
pela Editora Artenova em 27 edições mensais, entre 1972 e 1975, em coletâneas que incluíam outros personagens de autores na maioria norte-americanos, entre eles o guerreiro viking trapalhão Hagar, o Horrível (criado por Dik Browne), a dupla Frank e Ernest (de Bob Thaves), Snoopy e a turma do Charlie Brown (de Charles Schulz), além da presença ocasional de personagens brasileiros como o psiquiatra Doutor Fraud, criado por Renato Canini. Nos anos seguintes, Mafalda apareceria
ocasionalmente em outros jornais e revistas brasileiros, por conta da
comercialização de séries limitadas de charges e tirinhas, também
por intermédio da Editora Artenova.
Em
1982, a presença de Mafalda no Brasil ganharia um capítulo
importante: com os direitos de publicação transferidos da Artenova
para a Global Editora, os cartuns originais de Quino passaram a
contar com uma parceria especialíssima na tradução e adaptação por um dos grandes nomes do humor
e do cartum brasileiro, Henrique de Souza Filho, o Henfil
(1944-1988), célebre por seu trabalho de resistência à ditadura
militar e de apoio aos movimentos sociais com a Graúna, os
Fradinhos, a Mãe e outras criações geniais que marcaram época.
A aventura de Mafalda em tradução de Mouzar Benedito e edição final de Henfil foi publicada em cinco livretos pela Global Editora, em preto e branco, exceto na capa, com formato de brochura horizontal em dimensões de em 14cm por 21cm. Os livretos, que alcançaram uma surpreendente vendagem de 30 mil exemplares na primeira edição, tiveram cinco números consecutivos, de fevereiro a julho de 1982, com 76 páginas e duas tirinhas por página. Em 1988, a trajetória de Mafalda em terras brasileiras passaria por
outra transferência de editora e de tradução, desta vez com
versões para o português por Monica Stahel para a Martins Fontes. A
nova editora reeditou, em formato de livretos, todos os cartuns, até 1991, quando toda a
saga da personagem lendária de Quino foi finalmente reunida no livro
de capa dura “Toda Mafalda”.
As
versões de Quino
Mafalda também foi uma pioneira na abordagem de temas que não estavam em histórias em quadrinhos, tais como a repressão policial, as revoltas estudantis e as ditaduras que se multiplicavam na América Latina a partir da década de 1960. Também foi pioneira na temática do pacifismo, das questões de gênero, do feminismo e da novidade da ecologia. As grandes questões que a pequena Mafalda apresenta permanecem como perguntas sem resposta nos dias de hoje, assim como deixavam sem resposta sua mãe, Raquel, e seu pai, cujo nome nunca foi dito em nenhuma tirinha.
E há também a turma da Mafalda, com seus amigos que aparecem na sala de aula ou em sua vizinhança, estabelecendo um contraponto de diversidade que ressalta a singularidade e os questionamentos da protagonista. Na turma, os mais presentes são Suzanita, que sonha em ser mãe e esposa e nada mais, desdenhando qualquer avanço social ou os sonhos de liberdade desenhados pelas ousadias de Mafalda; Felipe, o sonhador que não consegue entender a realidade que Mafalda apresenta; Manolito, que tem a índole descontrolada de tubarão capitalista que quer devorar tudo; e Miguelito, que representa a ingenuidade mais infantil. Os caçulas são Liberdade, que sempre desafia os limites das autoridades, e Guille, o irmão mais novo de Mafalda, que surge como um bebê e depois vai crescendo no desenvolvimento das tirinhas, imitando alguns questionamentos da irmã e confessando sua paixão por Brigitte Bardot.
Mesmo com todo sucesso na Argentina e em outros países, Quino, o criador, decidiu acabar com a publicação das histórias da Mafalda em 1973, depois de publicar mais de 2 mil tirinhas e cartuns de apenas um quadro. Desde então, Quino ainda voltaria a desenhar Mafalda algumas poucas vezes, principalmente para promover campanhas sobre os Direitos Humanos – como aconteceu em 1976, quando Quino aceitou o convite para fazer um pôster para a UNICEF ilustrando a Declaração Universal dos Direitos da Criança.
E há também a turma da Mafalda, com seus amigos que aparecem na sala de aula ou em sua vizinhança, estabelecendo um contraponto de diversidade que ressalta a singularidade e os questionamentos da protagonista. Na turma, os mais presentes são Suzanita, que sonha em ser mãe e esposa e nada mais, desdenhando qualquer avanço social ou os sonhos de liberdade desenhados pelas ousadias de Mafalda; Felipe, o sonhador que não consegue entender a realidade que Mafalda apresenta; Manolito, que tem a índole descontrolada de tubarão capitalista que quer devorar tudo; e Miguelito, que representa a ingenuidade mais infantil. Os caçulas são Liberdade, que sempre desafia os limites das autoridades, e Guille, o irmão mais novo de Mafalda, que surge como um bebê e depois vai crescendo no desenvolvimento das tirinhas, imitando alguns questionamentos da irmã e confessando sua paixão por Brigitte Bardot.
Mesmo com todo sucesso na Argentina e em outros países, Quino, o criador, decidiu acabar com a publicação das histórias da Mafalda em 1973, depois de publicar mais de 2 mil tirinhas e cartuns de apenas um quadro. Desde então, Quino ainda voltaria a desenhar Mafalda algumas poucas vezes, principalmente para promover campanhas sobre os Direitos Humanos – como aconteceu em 1976, quando Quino aceitou o convite para fazer um pôster para a UNICEF ilustrando a Declaração Universal dos Direitos da Criança.
Filho de
imigrantes espanhóis, Quino nasceu em Mendoza, Argentina, em 1932, e
mantém uma rotina discreta em Madri, Espanha, onde mora há duas
décadas. Sempre avesso à curiosidade dos fãs de Mafalda e aos
convites para participar de programas de TV, Quino abriu uma exceção
no começo deste ano, quando foi anunciado vencedor do prestigiado
Prêmio Príncipe das Astúrias, na Espanha, e concedeu uma longa
entrevista à agência de notícias EFE.
Na
entrevista, Quino afirmou que permanece marxista e pessimista em
relação à política, lembrou as situações que levaram à criação
e ao sucesso de Mafalda, reconheceu que, para ele, a célebre e
insolente garotinha é um "mais um desenho" e se
autodefiniu como um carpinteiro que projetou um "móvel lindo".
"Eu
sou como um carpinteiro que fabrica um móvel, e Mafalda é um móvel
que fez sucesso, lindo, mas para mim continua sendo um móvel, e faço
isto por amor à madeira em que trabalho", minimizou Quino,
explicando que há décadas sofre de um problema de visão que o faz
viver em um "mundo um pouco desfocado". Para surpresa do
entrevistador, Quino também declarou que Mafalda não foi sua
"melhor aliada" para dizer "o que queria e quando
queria".
O futuro
de Mafalda
"Meu
melhor aliado fui eu mesmo, porque deixei de dizer muitas coisas que
gostaria e não se podia dizer. Desde que cheguei a Buenos Aires com
minha pastinha (em 1954), me disseram que não podia fazer desenhos
sobre militares, sobre a igreja, o divórcio, a moral. Então me
acostumei a desenhar as coisas que me permitiam", lembrou. Quino
também reconheceu que a primeira encomenda para criar Mafalda pedia
algo no estilo de Charlie Brown e a turma de Peanuts, a mais famosa
criação de Charles Schulz (1922–2000).
"Copiei
as cenas de minha rotina e de minha casa, e as pessoas gostaram,
porque poucos desenhistas faziam isso. Charlie Brown me agrada muito,
mas me parece um horror que não haja adultos. Em meu trabalho,
apelava para as notícias do dia a dia, e escrevia sobre o que saía nos
jornais. O mundo era assim. Eu não decidi e disse 'vou a fazer uma menina
contestadora'. Não. Simplesmente saiu assim".
Quino
também declarou na entrevista à agência EFE que está consciente sobre o sucesso
de Mafalda, que continua sendo uma personagem muito popular e muito querida no mundo todo,
por leitores de todas as idades. Contudo, na conclusão da entrevista ele faz questão de dizer que não tem nenhuma ilusão sobre o que poderá
acontecer com Mafalda no futuro.
"Não
acredito que Mafalda ultrapasse as fronteiras da História e se
transforme em algo parecido com a música de Mozart”, destacou
Quino. “Haverá no futuro outras temáticas muito mais importantes do que as coisas que Mafalda disse há tanto tempo. Além disso,
aparecerão muitos outros suportes de mídia que ainda não se
conhece, outras muitas personagens, talvez mais interessantes. Hoje,
olhando para o passado, penso que ou o mundo não evoluiu ou então a
Mafalda é que sempre foi muito evoluída".
por José
Antônio Orlando.
Como citar:
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Segredos de Mafalda. In: Blog Semióticas, 14 de novembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/11/segredos-de-mafalda_14.html (acessado em .../.../…).
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