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8 de janeiro de 2016

O passado intransitivo







Defender o nosso patrimônio histórico
e artístico é alfabetização.

––  Mário de Andrade (1893-1945).  
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O Brasil e a maioria de suas cidades cresceram em torno de igrejas católicas – tanto que, durante séculos, ser brasileiro era quase um sinônimo de ser católico. Neste terceiro Milênio, o Brasil continua sendo o maior país católico do mundo, mesmo que as estatísticas demonstrem uma crescente redução no número de fiéis ao longo das últimas décadas: no primeiro censo aqui realizado, em 1872, a religião católica era seguida por 99,7% da população; no último censo do IBGE, divulgado em 2012, há 123 milhões de católicos no Brasil, o que representa 64,6% da população.

Muito além das questões de fé ou do significado religioso, as antigas igrejas católicas são importantes marcos da construção do patrimônio histórico e cultural do Brasil, mas a maior parte delas não sobreviveu até nossos dias. Da maioria, não restaram sequer ruínas, mas em alguns casos as igrejas que já não existem tiveram sua imagem preservada em belos registros feitos pelos pioneiros da fotografia no século 19 e no começo do século 20. Estas imagens, relíquias produzidas em técnicas diversas, antes restritas apenas para um pequeno grupo de pesquisadores, estão agora disponíveis para acesso público pela Internet através do portal Brasiliana Fotográfica.

Resultado de uma parceria entre a Fundação Biblioteca Nacional e o Instituto Moreira Salles (IMS), o Brasiliana Fotográfica abriu para acesso livre e gratuito uma galeria de imagens das antigas igrejas registradas nos primeiros tempos da fotografia. Centenas de imagens fotográficas, em sua maioria pouco conhecidas e pouco divulgadas anteriormente, já foram publicadas pelo portal em alta resolução – todas elas provenientes dos acervos das valiosas e raríssimas coleções fotográficas que estão atualmente preservadas e sob a guarda da Biblioteca Nacional e do IMS.




 




Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
no alto da página, a Igreja Matriz do Santíssimo
Sacramento, em Jequitibá, Minas Gerais,
fotografada em 1868 por Augusto Riedel.
Acima, a Igreja Catholica da Rua da
Telheira, em Joinville, Santa Catarina, em
fotografia de 1866 de Louis Niemeyer.

Também acima e abaixo, fotografias datadas
de 1865 de Georges Leuzinger na região do
Centro do Rio de Janeiro, a Igreja de Santa Luzia
(antes da formação dos aterros que afastaram o
mar) e a Rua Direita com a Capela Imperial










Alguns dos primeiros e mais importantes nomes da fotografia no Brasil estão na galeria de imagens raras e preciosas apresentada pela série da Brasiliana Fotográfica, com destaque para Marc Ferrez (1843-1923), Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), Augusto Malta (1864-1957) e Guilherme Antônio dos Santos (1871-1966), entre vários outros. Mas não são apenas os primeiros fotógrafos brasileiros que tiveram obras selecionadas. Na galeria do portal também estão pioneiros de outros países que instalaram seus ateliês de ofício de fotografia e serviços gráficos no Brasil ou que viajaram pelas regiões do litoral e do interior do país registrando em imagens fotográficas os cenários, os povos e os monumentos que encontraram.



Ilustres e desconhecidos



Entre os estrangeiros que registraram em fotografias as antigas igrejas do Brasil, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica, estão os alemães Revert Henrique Klumb (1830-1886), Augusto Riedel (1836-1877) e George Huebner (1862-1935); os franceses Jean-Victor Frond (1821-1881) e Theophile Auguste Stahl (1824-1877); os suíços George Leuzinger (1813-1892) e Guilherme Gaensly (1843-1928); o inglês Benjamin Robert Mulock (1829-1863), o português Felipe Augusto Fidanza (1847-1903) e outros pioneiros célebres. Há também, no acervo publicado pelo portal, diversas fotografias muito bem preservadas mas que têm autoria anônima, porque a identificação do fotógrafo se perdeu com o tempo.








 




Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
a partir do alto, Igreja Catedral em Belém
do Pará, em fotografia de 1875 de
Felipe Augusto Fidanza; Igreja da
Piedade em Salvador, Bahia, em 1865,
fotografada por Camillo Vedani; e Igreja
de Madalena no Recife, Pernambuco, em
fotografia de 1880 de Moritz Lamberg.

Abaixo, relíquias do Aleijadinho registradas
em 1880 por Marc Ferrez nas antigas
cidades do Barroco em Minas Gerais:
a Igreja de São Francisco de Assis em
Ouro Preto e o Santuário do Senhor Bom
Jesus de Matosinhos com as capelas dos
Passos da Paixão de Cristo em Congonhas.
Também abaixo, duas fotografias feitas por
Reginald Gorham
mostram as antigas igrejas
de Nossa Senhora da Conceição, em Pedras de
Maria da Cruz
, Minas Gerais, e a Matriz de
Santo Antônio em Paratinga, no interior da Bahia










 

Além das fotografias de autoria anônima, há também aquelas atribuídas a fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos – como Schleier J., que atuou em Salvador, Bahia, na década de 1870; Bernardo Scheidemantel, que atuou na região de Blumenau, Santa Catarina, na década de 1860; Louis Niemeyer, que atuou na região de Joinville, também em Santa Catarina na década de 1860; Camillo Vedani, que atuou no Rio de Janeiro e em Salvador, nas décadas de 1850 e 1860; e Reginald Gorham, identificado como autor de raridades como as vista panorâmicas datadas por volta de 1927 que mostram as antigas igrejas de Nossa Senhora da Conceição em Pedras de Maria da Cruz, Minas Gerais, e a Matriz de Santo Antônio em Paratinga, no interior da Bahia.










Entre os fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica sobre antigas igrejas, um caso singular é Augusto Flávio de Barros, conhecido tão somente porque realizou a primeira e única documentação em fotografia sobre a fase final da Guerra de Canudos, em 1897. O fotógrafo, que no início da década de 1890 possuía um estúdio de retratos na cidade Salvador, esteve presente na quarta e última investida militar violenta contra o beato Antônio Conselheiro e seus mais de 10 mil seguidores, mas não se sabe ao certo se ele acompanhou as tropas como voluntário ou se foi convocado para o trabalho após a morte do espanhol Juan Gutierrez, que era o fotógrafo oficial do Exército Brasileiro em Canudos.

Os registros historiográficos indicam que três máquinas fotográficas estiveram presentes na fase final da Guerra de Canudos, sendo duas profissionais, que operavam com negativos de vidro, usadas pelos fotógrafos Juan Gutierrez e Flávio de Barros, e uma câmera portátil de negativos em rolo fabricados pela Eastman Kodak, que pertencia a Euclides da Cunha, na época correspondente enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Das imagens produzidas por estas três câmeras, apenas as de Flávio de Barros foram divulgadas e permanecem como registros da guerra até a atualidade. Os negativos ou fotografias que foram feitos por Juan Gutierrez ou Euclides da Cunha nunca foram localizados.












Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
relíquias registradas por Flávio de Barros
em ruínas, ao final da Guerra de Canudos,
no arraial de Antônio Conselheiro, sertão da
Bahia, em outubro de 1897 – a partir do alto,
a Igreja de Santo Antônio; o Flanco Esquerdo
da Igreja do Bom Jesus; e uma imagem frontal
dos escombros da Igreja do Bom Jesus.
Abaixo, Igreja da Boa Morte em Barbacena,
Minas Gerais, fotografada em 1924 por
Mário de Andrade durante a visita que
o grupo modernista fez a Minas





.




Augusto Flávio de Barros foi o único fotógrafo a acompanhar a guerra, que terminou com a destruição completa e com o número oficial de mais de 5 mil mortos no arraial de Canudos, no sertão da Bahia, entre o fim de setembro e o início de outubro de 1897. Na série divulgada pela Brasiliana Fotográfica estão cinco imagens de ruínas das igrejas de Canudos registradas, ao final da última batalha das tropas militares o contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro, pela impressionante reportagem fotográfica de Augusto Flávio Barros, que no total é formada por 164 fotografias – sendo que 72 delas pertencem ao Museu da Republica, no Rio de Janeiro; 24 permanecem no acervo da Casa de Cultura Euclides da Cunha de São José do Rio Pardo, em São Paulo; e, infelizmente, 68 das fotografias de Barros desapareceram do acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.



O fotógrafo Mário de Andrade



Na trajetória cronológica, as mais recentes fotografias de igrejas antigas na série publicada pela Brasiliana Fotográfica datam do final da década de 1920 – época em que Mário de Andrade, um dos principais expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922, liderou o engajamento pela preservação do patrimônio histórico e artístico. É quase inevitável relacionar a preservação do patrimônio e da memória nacional com Mário de Andrade – o intelectual, escritor, poeta, crítico literário, jornalista, musicólogo, ensaísta, folclorista, fotógrafo e, sobretudo, produtor de ideias, sempre a procura de um germe novo que se abriga na tradição e que traz à tona um Brasil muitas vezes esquecido e submetido a processos de conquista e dominação.







Imagens do acervo do fotógrafo
Mário de Andrade: acima, as ruínas
da única igreja que Mário encontrou
em Porto Velho, Rondônia, na viagem
que fez em 1927. Abaixo, a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário na
localidade de Goiana, Pernambuco,
em 1929; e uma vista panorâmica do
antigo convento da cidade de Catolé
do Rocha, Paraíba, também em 1929






 







A relação de Mário de Andrade com as questões do resgate das tradições artísticas e da memória da cultura nacional vem de antes da Semana de Arte Moderna de 1922 e culmina com o anteprojeto que ele redigiu para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a pedido de Gustavo Capanema, ministro da Educação de 1934 a 1945, durante o governo de Getúlio Vargas. Mário foi o primeiro secretário de cultura do Brasil, na época em que exerceu o cargo de diretor e fundador do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, e sempre esteve ligado às questões da preservação da memória e do patrimônio da cultura nacional, mas tudo indica que esta dedicação passou a ter para ele maior importância depois de sua primeira viagem a Minas Gerais, em 1919.

Desta primeira viagem de Mário a Minas resultou a publicação de seu estudo sobre os monumentos e igrejas das cidades mineiras do Ciclo do Ouro, intitulado “Arte Religiosa em Minas Gerais”. Sua segunda e lendária viagem a Minas aconteceria em 1924, em companhia de um grupo de amigos modernistas que incluía Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e o poeta e escritor francês Blaise Cendrars. Naquela viagem o grupo redescobriria o encanto da Arte Barroca, sua arquitetura, sua pintura, sua religiosidade popular, como uma manifestação legítima das mais preciosas e autênticas raízes e matrizes da cultura brasileira, que teve em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu mais importante intérprete.










Fotografias de Mário de Andrade:
no alto, a Igreja de São Bento em Olinda,
Pernambuco, fotografada por Mário na
viagem de 1929; acima, Igreja Matriz de
São Paulo e São Pedro, construída pelos
Jesuítas por volta de 1930 em Mamanguape,
Paraíba, também fotografada em 1929.

Abaixo, Mário e Luís da Câmara Cascudo
fotografados durante a viagem pelo Rio Grande
do Norte, em 1929; Mário proseando com
Cândido Portinari na rua, em São Paulo,
em março de 1940; e o casal Oswald de
Andrade e Tarsila do Amaral fotografado
por Mário em São João Del Rei, em 1924,
durante a viagem do grupo modernista
pelas antigas cidades de Minas Gerais.

Também abaixo, Mário de Andrade com
Tarsila do Amaral e amigos na praia do
Chapéu Virado, também conhecida por
praia do Mosqueiro, em Belém, no Pará, em
1927, durante a expedição comandada por
Mário pela Amazônia para documentar o
folclore nacional, depois transcrita
no livro "O Turista Aprendiz";
e os jangadeiros na Praia de Iracema,
em Fortaleza, Ceará, em fotografia de
agosto de 1927 de Mário de Andrade






















O Turista Aprendiz



Depois viriam outras viagens, outros livros e outros projetos da maior importância. Algumas destas viagens de Mário pelo Brasil foram registradas por ele no relato para o livro ilustrado com suas fotos “O Turista Aprendiz”, concluído em 1943, mas publicado pela primeira vez somente em 1976. O livro agora está sendo relançado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelo IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo), em edição organizada pelas professoras Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo.

A nova edição ilustrada, com 462 páginas, inclui um CD-Rom com os diários de Mário de Andrade fotógrafo, formado por imagens e legendas feitas por ele com muito bom humor e em tom de informalidade, narrando sua trajetória de viagens e suas descobertas pelo interior do Brasil. A edição também traz encartado um DVD com o documentário de autoria de Luiz Bargmann, “A Casa do Mário”, que através de imagens de arquivo, fotografias, peças de sua coleção de arte, livros e discos, reconstitui o cotidiano familiar e social do ilustre paulistano na casa em que morou entre 1921 e 1945, situada em um endereço que se tornou lendário para seus amigos e leitores, na Rua Lopes Chaves, n° 546, Barra Funda, em São Paulo.






Em “O Turista Aprendiz”, Mário de Andrade registra detalhes saborosos sobre as viagens de pesquisa que fez à região Norte, até as fronteiras com Peru e Bolívia, em 1927, e depois, em 1928, ao Nordeste, incluindo Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte. Vale lembrar que, além das imagens publicadas no livro, Mário também deixou cerca de 1600 fotografias em positivo e centenas em negativo que comprovam suas habilidades como exímio fotógrafo.

Todas as fotografias das viagens foram feitas com sua câmera Kodak tipo “caixão” (máquina Codaque, como ele mesmo escrevia), durante suas viagens e nas expedições folclóricas que coordenou. A maior parte do acervo de Mário, que inclui suas fotografias, seus rascunhos, cartas, gravações de áudio, objetos recolhidos durante o trajeto das viagens, manuscritos e anotações diversas, somando cerca de 30 mil peças, mais sua biblioteca (com 17.624 volumes) e sua coleção de artes plásticas e mobiliário (1.234 peças) está, atualmente, no arquivo do escritor sob a guarda do IEB-USP.






Fotografias de Mário de Andrade: acima,

o barqueiro fotografado por Mário em 1927

durante o trajeto da viagem pelo rio, no Pará,

tendo ao fundo a cidade de Santarém. Abaixo,

Mário na Ilha do Mosqueiro, no Pará; no barco,

durante a travessia; e na floresta amazônica,

em fotografias feitas durante a viagem de 1927















Visão abrangente e contemporânea



Na viagem de 1927, Mário teve como acompanhantes sua amiga, aristocrata do café e mecenas dos modernistas, Olívia Guedes Penteado, sua sobrinha Margarida Guedes Penteado e a filha de Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto. Outros amigos planejavam participar, entre eles o casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, mas terminaram adiando por conta de outros compromissos. Durante três meses, a partir de maio daquele ano, a comitiva de Mário seguiu do Rio de Janeiro a Iquitos, no Peru, navegando pelos rios Amazonas, Solimões e Madeira, incluindo uma temporada em Manaus.

Na segunda viagem, iniciada em novembro em 1928, Mário de Andrade partiu sozinho para o Nordeste, onde permaneceu até fevereiro do ano seguinte e foi recebido por outros célebres pesquisadores do folclore e da cultura popular, entre eles Ascenso Ferreira, Jorge de Lima, Cícero Dias e Luís da Câmara Cascudo. O contato com a floresta e com o sertão, as cidades, vilarejos, seus habitantes e suas manifestações culturais, a religiosidade, os folguedos, as danças, as músicas, quase sempre impregnadas de muito sincretismo e superstição, causam em Mário um grande impacto, consolidando uma visão de nacionalidade muito mais abrangente, em oposição às concepções dominantes da época, copiadas principalmente dos ambientes das cidades da Europa. Entre a primeira e segunda viagem, Mário escreveu e publicou uma de suas obras-primas, o romance “Macunaíma”.










Mário no estúdio de trabalho na casa em
que morou entre 1921 e 1945, e em caricatura
feita em Iquitos, Peru, por Victor Morel, durante
a viagem do escritor ao norte do Brasil em 1927.
Abaixo, Mário com o casal Oneyda Alvarenga
e Sylvio Alvarenga (Oneyda foi responsável pela
organização do acervo de Mário e pela publicação
dos inéditos, após a morte do escritor) e Mário em
passeio pelas ruas de São Paulo em 1936, quando
dirigia o Departamento Municipal de Cultura
de São Paulo, em fotografia do álbum de família.

Também abaixo, uma fotografia do mesmo estúdio
de trabalho do escritor no ano da morte de Mário,
1945, onde se vê a escrivaninha e as pinturas
A família do Fuzileiro Naval, de Guignard
(junto à escrivaninha), e Colona, de Portinari,
à direita; e a fachada da casa, na Barra Funda,
em São Paulo, endereço que se tornou
referência lendária para seus amigos e leitores:
Rua Lopes Chaves, n° 546









  

Mais tarde, em 1936, Mário de Andrade aceita o convite do ministro Gustavo Capanema para redigir o anteprojeto para o futuro SPHAN (atualmente Iphan), que foi criado em 1937 e teve como primeiro diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade. Ainda hoje a proposta elaborada e redigida por Mário impressiona por conta de sua visão abrangente e contemporânea. Organizado em três capítulos, o anteprojeto estabelece as competências do Serviço do Patrimônio, as categorias dos bens culturais e os critérios de seleção para tombamento em quatro livros do tombo. A fundamental presença de Mário na criação e no apoio à gestão do SPHAN iria se estender de 1936 até a sua morte precoce, aos 52 anos, em 25 de fevereiro de 1945.

Desde então a obra literária de Mário de Andrade, sua atuação como mentor nas questões da cultura nacional e também sua correspondência com uma legião de discípulos (como Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Gustavo Capanema e muitos e muitos outros) assumem importância crescente e estabelecem a crônica e o cenário de uma época em que, após séculos de colonialismo, o Brasil forma sua imagem e identidade. Neste cenário, a preservação e a valorização do patrimônio nacional, em suas múltiplas interfaces, têm muito da presença ideológica de Mário de Andrade e a criação do SPHAN significa, por certo, sua certidão de nascimento.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O passado intransitivo. In: Blog Semióticas, 8 de janeiro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/01/o-passado-intransitivo.html (acessado em .../.../...).






Para visitar o acervo da Brasiliana Fotográfica,  clique aqui.


Para visitar o acervo de Mário de Andrade no IEB-USP,  clique aqui.

 
Para assistir o documentário A Casa do Mário, de Luiz Bargmann,  clique aqui.



https://vimeo.com/73811716








30 de setembro de 2011

As janelas indiscretas







Durante o período da Política da Boa Vizinhança, programa instaurado pelo governo norte-americano para forçar uma aproximação política e econômica com a América Latina, uma artista é escolhida como símbolo do continente: Carmen Miranda – destaca Eneida Maria de Souza em “Janelas Indiscretas – Ensaios de Crítica Biográfica”, coletânea de ensaios publicada pela Editora UFMG. “Entre 1939 e 1945, Carmen participou de vários filmes de sucesso de Hollywood. Como a construção estilizada de sua imagem guardava um pouco de cada lugar da América, é até difícil vê-la hoje como representante de uma autêntica cultura brasileira”, argumenta a autora, nesta entrevista que fiz com ela na véspera do lançamento do livro em Belo Horizonte, referindo-se aos ensaios dedicados à atriz e cantora coroada como primeira Rainha do Rádio na década de 1930 e que, em 1939, quando a Segunda Guerra estava no começo, partiu para os EUA para se tornar a “Brazilian Bombshell” (bomba brasileira), uma grande estrela da Broadway e presença marcante em filmes musicais de Hollywood de grande sucesso no mundo inteiro.

Na entrevista, Eneida também explica que o espectro investigativo e teórico reunido na nova seleção de ensaios inclui, além da revisão dos estereótipos construídos sobre a estrela Carmen Miranda, outras questões abrangentes que relacionam política, arte e literatura, como os diários de guerra de Guimarães Rosa ou os retratos de mestres como Mário de Andrade e Cyro dos Anjos pintados pelos grandes do Modernismo. O mosaico apresentado em “Janelas Indiscretas” também focaliza e questiona o papel do intelectual e a construção da identidade em torno das complexidades da cultura brasileira, das primeiras às últimas décadas do século 20, até chegar à atualidade.

Professora emérita e titular da UFMG, pesquisadora do CNPq, autora de estudos de peso publicados em livros de referência como “A Pedra Mágica do Discurso” (1999), “Crítica Cult” (2002), “Pedro Nava: O Risco da Memória” (2004), “Tempo de Pós-Crítica” (2007) e “Modernidades Alternativas na América Latina” (2009), entre outros, Eneida também está entre os finalistas do Prêmio Jabuti 2011, com o belo “Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa” (Editora Peirópolis). Janelas Indiscretas, o novo livro, retoma algumas preocupações equacionadas em estudos anteriores para desvendar as intrincadas relações entre biografia e ideologia, aprofundando análises críticas e demarcando novos limiares para questões historiográficas, conceituais e teóricas.





Janelas Indiscretas: Carmen Miranda,
a primeira Rainha do Rádio, embarcou
para os EUA em 1939 para se tornar a grande
estrela da Broadway e presença marcante em
filmes musicais de Hollywood de sucesso no
mundo inteiro, conquistando milhões de fãs
espalhados pelos cinco continentes







As novidades do viés interpretativo apresentado por Eneida Maria de Souza alcançam questões polêmicas e quase sempre rompem com o lugar-comum tantas vezes estabelecido como fronteira – não apenas na correlação entre vida e obra nos arquivos de medalhões do Modernismo, mas também nas diferenças que configuram nomes contemporâneos como Silviano Santiago e João Moreira Salles ou Caetano Veloso e Chico Buarque, entre outros. Para além da sofisticação da escrita e do repertório analítico, o resultado são reflexões atualíssimas em que projetos políticos vêm abarcar projeto autobiográfico e aventuras existenciais.



Enigmas da vida e da obra



Para começar, a professora faz um alerta, avisando que é ingênua aquela pesquisa que busca desvendar segredos e enigmas do texto na vida dos escritores. “A escolha do método biográfico impõe determinada disciplina e se afasta de aproximações ingênuas e apenas causalistas operadas por adeptos da pesquisa biográfica como caça aos segredos e enigmas que o texto revela”, destaca, na apresentação a “Janelas Indiscretas”. 
 






Janelas Indiscretas: no alto, uma reunião de

modernistas brasileiros, acima, da esquerda

para a direita, Pagu, Elsie Lessa, Benjamin

Peret, Tarsila do Amaral, Oswald de

Andrade, Anita Malfatti, Álvaro Moreyra,

Eugênia Moreira e Maximilien Gauthier

em 1929, no Rio de Janeiro, retornando de

uma viagem a Paris. Meses depois, haveria

um grande escândalo: Oswald deixaria

Tarsila para se casar com a jovem

Pagu, que estava grávida (foto acima).


Abaixo, encontro de Mário de Andrade,

Tarsila e Oswald, o mitológico trio do

Modernismo no Brasil, recriado na ficção,

no teatro e na minissérie Um Só Coração,

obra com roteiro escrito por Maria Adelaide

Amaral, produzida e exibida pela TV Globo

em 2004. Na ficção, os papéis de Tarsila,

Oswald e Mário foram interpretados por

Eliane Giardini, José Rubens Chachá e

Pascoal da Conceição. Também abaixo, o

chamado Grupo dos Cinco do Modernismo

no Brasil na década de 1920: Mário de

Andrade, Tarsila, Oswald de Andrade,

Anita Malfatti e Menotti Del Picchia














Abordagens críticas sobre o texto, o livro, o filme e as canções surgem em cada ensaio de "Janelas Indiscretas" não pela via da explicação causal, que vê a obra como espelho da existência, mas pela elucidação de propostas poéticas, entre questões teóricas e contextuais. “O mundo midiático fez nascer um novo fenômeno que deve ser considerado pela crítica: o autor se converteu em personagem de si mesmo. Assim, os acervos literários se tornaram uma janela para compreensão dessas relações em que o escritor mistura a ficção e a realidade”, explica Eneida.

Nesta entrevista, concedida às vésperas do lançamento do livro em Belo Horizonte, a autora de "Janelas Indiscretas" destacou certos aspectos em que a biografia se traduz em arte e literatura a partir das questões de identidade nacional como projeto autobiográfico, introduzidas pelos modernistas no Brasil da década de 1920. São questões que permanecem atuais, segundo Eneida.

A questão de identidade nacional representava um projeto mais coletivo, por defender a necessidade de construção da nacionalidade cultural brasileira”, aponta. “Somente mais tarde é que os modernistas, como Drummond, Pedro Nava, Oswald de Andrade e Murilo Mendes escreveram suas memórias. Mário de Andrade escreveu milhares de cartas, logo, contribuiu para a sua autobiografia.”








Questionada sobre a natureza da obra de arte, que sempre coloca em suspenso a verdade biográfica, Eneida explica que a biografia nunca precede a obra. “Esta posição diz respeito à antiga crítica biográfica. Hoje, a obra é que restaura a biografia, pelos elos metafóricos entre os dois registros. Não importa, também, se o que está sendo articulado como autobiografia tenha realmente acontecido, ou se pertence a uma verdade biográfica. O critico joga com os dois polos, a obra e a vida, por isso não se deve dar mais valor a cada um dos dois registros”, completa. 



A 'morte do autor'
 


Sobre a “morte do autor” defendida nos anos de 1970 pelo pensador francês Roland Barthes (1915-1980), como uma das condições para que a crítica pudesse alcançar a complexidade da obra de arte, Eneida alerta que, nos ensaios do novo livro, as reflexões sobre autoria não abandonam as célebres teorias lançadas por Barthes. Tais pressupostos são, na verdade, retomados em novos contextos sob as coordenadas de questões de política, de arte e de literatura que em nossa atualidade estão em evidência.

“Considero principalmente as reflexões que seguem o que, na década de 1970, Roland Barthes entendeu como a volta do autor, explica Eneida. Esta volta do autor, ou seja, o autor tomado como personagem, retoma e amplia o lugar teatral e distanciado do autor em relação ao seu texto original. Só que acrescentada com sua presença enunciativa, com a escrita do corpo e o apelo ao leitor”.

 




Janelas Indiscretas: o pensador francês
Roland Barthes fotografado em ação,
na sala de aula, no Collège de France,
em Paris, no ano de sua morte, 1980.
Abaixo, Macunaíma de Andrade, uma
versão do personagem da literatura de
Mário de Andrade recriado pelo
traço do artista Arlindo Daibert














O título do livro, "Janelas Indiscretas", remete inevitavelmente a uma das obras-primas de Alfred Hitchcock, um dos principais ilusionistas da história do cinema e autor de uma filmografia sempre pontuada por referências autobiográficas. O título foi escolhido para uma relação intencional, segundo a autora. “O titulo remete sim ao filme de Hitchcock”, reconhece Eneida, esclarecendo uma sutileza que vai além da mera semelhança. “Só que o título do livro está no plural e tende a ser tanto as janelas abertas do mundo virtual da Web como a posição da análise crítica em esmiuçar, pela janela do texto, a obra e a vida dos escritores. Mas sem a preocupação jornalística de desvendar segredos ou de apontar verdades escondidas dos mesmos. Essas janelas têm, inclusive, a possibilidade de fornecerem lentes de aumento como o zoom das câmeras da fotografia e do cinema”, completa.

Entre tantos enfoques e gêneros que os ensaios reunidos em “Janelas Indiscretas” alcançam, há autores e obras que definem a atualidade da “crítica biográfica”. “Há, entre outros, Silviano Santiago, que sempre pautou sua obra pela relação com a ficção de sua vida. Daí a autoficção construída com os restos e o jogo malicioso entre dados pessoais e recriação ficcional”, explica a professora. Muitos dos livros de Silviano Santiago brincam com essa relação deslizante entre os polos da arte e da vida. Sem esquecer, é claro, a presença e a importância de Jorge Luis Borges, o escritor que mais burilou e inventou associações falsas e verdadeiras entre os dois registros da arte e da vida”.






Janelas Indiscretas: dois registros
latino-americanos na abordagem
dos ensaios reunidos por Eneida no
livro, com um certo Jorge Francisco
Isidoro Luis Borges Acevedo (acima)
e, abaixo, a estrela Carmen Miranda
em cenas de Down Argentine Way,
filme de 1940 que marca sua estreia em
Hollywood e que no Brasil foi
lançado
nos cinemas como
Serenata Tropical.
Também abaixo, a professora
Eneida Maria de Souza
em 2010,
fotografada por Maria Tereza Correia


















Biscoitos finos



Há também em “Janelas Indiscretas” ensaios dedicados a Mário de Andrade e a seu Macunaima” (entre eles Macunaima: quem é você?”, sobre as qualidades da personagem apresentada no livro de 1928, e Macunaima de Daibert”, sobre os desenhos do artista Arlindo Daibert inspirados no livro e sobre outras ilustrações baseadas na personagem elaboradas por Carybé, Rita Loureiro, Pedro Nava) e referências saborosas à citação do modernista Oswald de Andrade e seu trocadilho sempre repetido – “a massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico”, sem esquecer o destaque para a figura emblemática de Carmen Miranda, personalidade que aparece em foco nos ensaios “Do kitsch ao cult” e “O tic-tac do meu coração”. As análises de Eneida destacam na imagem pública de Carmen Miranda várias metamorfoses. Há a fase brasileira da cantora, que também participou de filmes e compreende os 10 anos entre a sua primeira gravação (1929) e a partida para os Estados Unidos (1939). Nesta primeira fase destaca-se especialmente a ênfase na brasilidade e a importância de Carmen na popularização do samba e do carnaval.

E há a fase americanizada de Carmen, que por força das críticas pesadas e frequentes na imprensa do Brasil terminou estigmatizada na memória do público, mas nem por isso menos popular. Hoje em dia, mais de meio século anos depois de sua morte, sobrevivem na mídia sobretudo a imagem festiva e carnavalesca da estrela Carmen Miranda, carregada de clichês visuais como as bananas e abacaxis na cabeça, os turbantes exóticos e os vestidos de baiana estilizados, de cores fortes, que apresentava nos filmes de Hollywood. Carmen viveu por 16 anos nos Estados Unidos e foi – durante muito tempo, a artista mais bem remunerada do país e a maior pagadora de imposto de renda da América.

O argumento que conclui a análise sobre Carmen Miranda destaca, na presença emblemática do sucesso duradouro da estrela tanto na cultura brasileira como na cultura pop de diversos países, os modos e gradações através dos quais ela profetiza uma convivência conflitiva, e ao mesmo tempo salutar, entre questões da arte e questões do mercado. Segundo Eneida, se hoje a academia em geral aceita, com certa naturalidade, as lições que a música popular pode oferecer às nossas mentes ilustradas, tal fato se deve à contaminação dessas manifestações artísticas, até pouco tempo atrás consideradas de menor importância, espúrias ou mesmo inadequadas, no universo nem tão puro da arte e da literatura.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. As janelas indiscretas. In: Blog Semióticas, 30 de setembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/09/janelas-indiscretas.html (acessado em .../.../…).









Janelas Indiscretas: uma tradução do
Brasil na imagem de 1928, ano em que
Tarsila do Amaral pintou o Abaporu,
quadro a óleo batizado pelo poeta
Raul Bopp e por Oswald de Andrade
 (namorado de Tarsila na época) e que iria
inspirar o Movimento Antropofágico.
Vinculada ao Movimento Modernista,
a Antropofagia queria deglutir, engolir
a cultura europeia, que era a cultura
até então dominante no Brasil,
para então transformá-la
em algo bem brasileiro.

O Abaporu, que segundo Tarsila
era uma representação dos monstros
das histórias que as amas negras
contavam para ela em sua infância,
é a mais valorizada pintura brasileira:
em 1995, em um leilão da Christie's,
em Nova York, foi comprada por
U$ 1,5 milhão pelo colecionador
argentino Eduardo Constantini,
criador do Malba, o Museu de Arte
Latino-Americana de Buenos Aires



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