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21 de maio de 2021

Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado



 




Em Gaia, não existe poluição nem desequilíbrio. As regras

do jogo determinam: qualquer espécie que produza algo

nocivo ou que afete o meio ambiente está condenada.

––  James Lovelock em “Gaia: Um novo olhar

sobre a vida na Terra” (1979).  


Faz escuro mas eu canto  

porque a manhã vai chegar.  

––  Thiago de Mello em “Madrugada camponesa” (1965).  


   



O fotógrafo brasileiro aclamado como mestre do preto e branco, em seu metódico e sublime trabalho sobre as incomensuráveis belezas da natureza e as terríveis violências que os homens infligem a ela, anuncia sua aposentadoria do trabalho de campo, mas vai continuar com dedicação intensiva ao processo de edição de seu arquivo fotográfico que contém mais de 500 mil imagens. Sebastião Salgado é, sempre, sinônimo de imagens de impacto: pode ser o formigueiro humano em Serra Pelada, na floresta amazônica do Brasil, ou os campos de petróleo no Kuwait que parecem saídos da ficção científica, os trabalhadores sem terra do Brasil em assembleias nos acampamentos do MST, as culturas mais tradicionais nos grotões da América Latina, as manadas de elefantes selvagens lutando contra a extinção nas savanas da África, milhares de pinguins amontoados nas paisagens de gelo da Antártida ou famílias nômades que sobrevivem isoladas em confins remotos da Ásia. Em todos os cenários, os enquadramentos poéticos e melancólicos de Sebastião Salgado impressionam.

Seu projeto mais monumental foi “Gênesis”, uma expedição que viajou durante anos pelos últimos recantos da natureza mais remotos e ainda preservados no planeta. O projeto gerou em 2013 um fotolivro que bateu recordes de vendas, mesmo sendo uma edição de luxo em capa dura, e uma exposição de fotografias que levou multidões aos grandes museus e aos principais espaços de cultura no Brasil e em vários países. Mas agora veio “Amazônia”, a nova investida de Sebastião Salgado, que parece tão colossal como foi “Gênesis”. O novo projeto surgiu como resultado de sete anos de expedições fotográficas pelo interior da maior floresta tropical do mundo, com Salgado e sua equipe indo ao encontro dos povos indígenas e do território que abriga aquele ecossistema extraordinário da imensidão verde com exuberante vegetação nativa.













Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: no alto,
o fotógrafo registrado na abertura da exposição
na Philharmonie de Paris por Patricia Moribe;
acima, também na abertura da exposição
em fotografias de Joel Saget. Abaixo, um
flagrante feito pelo próprio Sebastião Salgado
durante a montagem da exposição; o fotógrafo
em ação na floresta amazônica, em fotografia
de seu filho, Juliano Salgado; e a fotografia
escolhida para o cartaz da mostra, com uma vista
das margens do rio Jaú, no Estado do Amazonas.
Todas as imagens desta página, exceto os três
retratos acima identificados, fazem parte do catálogo
da mostra "Amazônia" de Sebastião Salgado
















.Em “Amazônia”, as mais de 200 fotografias selecionadas mostram retratos da diversidade grandiosa das paisagens com rios e montanhas, incluindo imagens áreas tiradas de aviões e helicópteros durante missões do Exército que o fotógrafo acompanhou, e cenas da vida cotidiana dos diferentes povos da floresta. O que Salgado registra tem uma beleza comovente, ainda mais quando se sabe que a grandiosidade da floresta está cada vez mais sob ataques implacáveis e criminosos, com recordes de desmatamento que vêm sendo sucessivamente batidos desde 2018, quando chegou a poder no Brasil a máfia liderada por Jair Bolsonaro, o presidente da República de posições ultradireitistas, assumidamente fascistas, de ódio e destruição, inimigo do meio ambiente, da justiça e da democracia, um político retrógrado que a maioria da imprensa estrangeira nomeia com os adjetivos “pária” e “genocida”.


Luz e sombras


Trabalhadas em variações de luz e sombras, as fotografias de “Amazônia”, assim como aconteceu com o projeto “Gênesis”, deram origem a um fotolivro em formato pôster de mais de 500 páginas, publicado pela editora Taschen, e ontem foram apresentadas, pela primeira vez, em uma grande exposição que reabriu para o público, depois de um ano de fechamento pela pandemia de covid-19, as luxuosas galerias do Parc de la Villette da Philharmonie de Paris (veja o link para uma visita virtual no final deste artigo). De acordo com o extenso dossiê sobre o projeto distribuído à imprensa, as imagens de “Amazônia” nasceram de uma intenção política de Sebastião Salgado, que procura celebrar o que ainda resta da imensa floresta tropical para conseguir protegê-la.

Depois da temporada em Paris, onde permanecerá até 31 de outubro, a exposição já tem um roteiro itinerante programado até o final de 2022 para outros espaços nos cinco continentes, começando por Londres, depois Roma, incluindo também São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidadesAs primeiras reportagens com destaque na imprensa estrangeira apontam que “Amazônia” surge como o trabalho mais pessoal e mais reivindicativo de Sebastião Salgado, atualmente com 77 anos. O fotógrafo chegou a anunciar que convidaria, para a abertura da exposição em Paris, lideranças indígenas do Brasil, para fazer ouvir suas vozes contra a destruição da floresta e suas mensagens de alerta sobre as consequências que isso traz para o planeta. Por causa da pandemia, os convites foram descartados, mas a presença e as mensagens dos povos indígenas ressoam na exposição em fotografias magníficas e também em gravações de vídeo e no áudio de canções de seus rituais.
















Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
no alto, o fotógrafo e visitantes anônimos na
abertura da exposição em Paris, em fotografias
de Mario Garcia Sanchez. Acima, o catálogo da
exposição em formato pôster com 528 páginas
e capa dura, em edição de luxo da 
Taschen.

Abaixo, três jovens do povo Zuruahã,
no Estado do Amazonas, e uma amostra
dos registros selecionados de "Amazônia"




















Na cenografia da exposição “Amazônia” apresentada nas galerias da Philharmonie de Paris, o visitante é convidado a penetrar na penumbra e nas sombras para observar as imagens capturadas e ampliadas pelo fotógrafo. A viagem do visitante pelas galerias, seguindo os enquadramentos registrados por Sebastião Salgado, também é acompanhada por temas musicais criados para a exposição pelo francês Jean-Michel Jarre, um dos pioneiros da música eletrônica, que utilizou, para a criação e as mixagens de suas composições, os arquivos de sons da Amazônia que integram o acervo do Museu Etnográfico de Genebra, na Suíça.

Há, também, duas salas especiais anexadas à exposição que apresentam projeções em alta definição de mais de uma centena de fotos, com acompanhamento de gravações sinfônicas para “O Mito da Criação do Rio Amazonas”, composição de Heitor Villa-Lobos, e de melodias de acordes incidentais criados pelo músico Rodolfo Stroeter. Nas galerias e nas salas especiais, a natureza exuberante da imensidão verde surge em variações de preto e branco, nas grandes panorâmicas e nos detalhes do ecossistema que ocupa quase um terço do continente sul-americano, envolvendo o Brasil e mais oito países. “A Amazônia é a pré-história da Humanidade, o paraíso na Terra”, destaca Sebastião Salgado no breve texto sobre a mostra distribuído à imprensa.






Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: acima,
a preparação para um ritual do povo Yawanawá.

Abaixo, imagem da aldeia Yawanawá no
território do Vale do Javari, a segunda maior
reserva indígena do Brasil; o arquipélago fluvial
de Mariuá, localizado no rio Negro; e uma
panorâmica do rio Ituí, no Vale do Javari









Agronegócio criminoso


A abertura da exposição em Paris acontece em um momento de urgência de ações políticas em defesa da região amazônica e do meio ambiente no Brasil. O Congresso Nacional está discutindo e votando um projeto de lei polêmico que altera de forma significativa o controle ambiental e dispensa licenciamento de diversos setores, entre eles as atividades agropecuárias ou obras de infraestrutura e de saneamento básico. Há também inúmeras ações irregulares do governo federal sob o comando das milícias de Bolsonaro, que têm cada vez mais posicionamento explícito pelo desmatamento da Amazônia, do Pantanal de Mato Grosso e de outras áreas de conservação, atuando para reduzir a fiscalização, para burlar as normas e para dar todo estímulo a atividades ilegais de exploração dos recursos naturais. Sebastião Salgado declarou que a ofensiva do desmonte das instituições ambientais é provisório e acabará com o fim do governo Bolsonaro, mas até as próximas eleições, em novembro de 1922, a destruição avança em larga escala.

No dia 19 de maio, véspera da abertura da exposição em Paris, enquanto Sebastião Salgado e sua esposa Lélia Wanick, parceira de todos os projetos, participavam de entrevistas coletivas na França, chegava do Brasil mais uma notícia grave sobre o desmonte premeditado das políticas de proteção ambiental e o envolvimento da gestão Bolsonaro em ações criminosas: uma grande operação foi deflagrada pela Polícia Federal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), visando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, servidores como o presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, e empresários do setor madeireiro, todos envolvidos com esquemas fraudulentos de exportação ilegal de madeira e contrabando de produtos florestais.








Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, o Monte Roraima, em formato de
mesa, localizado na tríplice fronteira entre
Brasil, Venezuela e Guiana. Abaixo, os xamãs
yanomami preparam o ritual para a subida do
Pico da Neblina (visto ao fundo), no norte do
Estado do Amazonas, fronteira com a Venezuela,
o ponto mais alto do Brasil, com 2.995 metros
de altitude, constantemente encoberto pelas
nuvens. Também abaixo, imagem aérea da
chuva que desaba sobre a Serra do Divisor,
extensa área no Estado do Acre
 

















As entidades e uma parte do aparato de fiscalização e proteção do meio ambiente no Brasil estão temporariamente paralisadas trabalhando para o lado mau da nação”, denunciou Sebastião Salgado, que também se diz confiante de que, em breve, as entidades e o aparato de proteção ambiental voltarão a ser o que sempre foram, cumprindo suas funções dentro da lei e não atuando em cumplicidade com ações criminosas. “Vejam por exemplo a Funai, Fundação Nacional do Índio, que sempre foi uma instituição de proteção à população indígena e era dirigida por antropólogos e sociólogos da maior seriedade. Hoje a Funai protege o agronegócio destruidor e é comandada por um policial sem nenhuma qualificação para o cargo”, alertou Salgado, acrescentando que o mesmo ocorre com o Ibama, uma entidade que sempre teve um papel fundamental nas questões ambientais e que no cenário catastrófico provocado pelo atual governo “não tem mais nenhuma capacidade de pressão e controle”.


Governo predador


Questionado pelos jornalistas, Sebastião Salgado classificou o atual governo brasileiro como “predador”. “O governo Bolsonaro é mau. As propostas dele são todas ruins, seja contra negros, mulheres, indígenas ou ainda a proposta absurda de armar o povo brasileiro. São todas propostas profundamente violentas. Espero que esse mal seja curado nas próximas eleições”, ressaltou o fotógrafo, alertando que a destruição das florestas brasileiras acontece por causa dos hábitos da sociedade de consumo. Segundo Salgado, grande parte da destruição da Amazônia acontece para produzir carne para o mercado externo e também para o cultivo da soja, que é exportada por grandes empresários do agronegócio para alimentar vacas e porcos “franceses, chineses e russos”. “Nós precisamos do apoio do planeta, da pressão política de todos os países, da pressão econômica sobre o governo Bolsonaro para proteger a Amazônia”, completou, convocando as autoridades internacionais a se posicionarem contra a gestão criminosa do governo Bolsonaro.










Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, imagem das instalações na exposição
na Philharmonie de Paris e Sebastião Salgado
em entrevista coletiva durante a exposição
fotografado por Shun Kambe.

Abaixo, Manda Yawanawá, menina da
da aldeia de Escondido, no território de
Rio Gregório, Estado do Acre; e uma família
do povo Korubo, que habita a região oeste do
Estado do Amazonas; e uma família do povo
Ashaninka, que vive no Estado do Acre





.

Sebastião Salgado, que iniciou em 2013 suas expedições para o projeto “Amazônia”, também reconheceu que a mostra atual pode ser considerada uma continuidade do trabalho que ele desenvolveu e apresentou em “Gênesis”, que também mostrava áreas do planeta ainda não afetadas pela civilização e que já incluía imagens da floresta amazônica e dos povos indígenas. Sob o olhar estético personalíssimo de Salgado, o visitante da nova exposição é conduzido pelas belezas do ecossistema tropical que permanece, em grande parte, em sua forma original. Os primeiros painéis que o visitante encontra, nas galerias da Philharmonie de Paris, trazem mapas em grande escala e imagens de satélites que destacam as áreas de reservas indígenas, as terras da União, as unidades de conservação e as zonas atualmente desmatadas e degradadas, que já representam cerca de 20% do território total que recebe o nome de Amazônia.

No mapeamento das reservas dos povos indígenas, Sebastião Salgado apresenta os dez grupos com os quais conviveu durante sua jornada de sete anos, além de outras viagens pontuais que fez à região, a última em fevereiro deste ano. Durante as temporadas com cada tribo, incluindo yanonamis, marúbos, yawanawás, o fotógrafo aguardou autorização para cada contato e repetiu um mesmo ritual entre as árvores: pendurava um lençol branco e abria um largo tapete de plástico no chão, pronto para ser enrolado quando chegasse a chuva que cai quase diariamente em toda a região amazônica. Os povos indígenas com os quais Salgado conviveu durante as expedições, incluindo suas principais lideranças, estão registrados nas imagens em exposição, em fotografias para as quais se prepararam pintando o corpo e enfeitando-se com o cocar das cerimônias.







Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, Tananeloanpikit Vakwë e sua companheira
Tsamavo, da tribo que vive na região do rio Itaquaí,
acima da foz do rio Branco, e tiveram seu primeiro
contato com alguém de fora da tribo em 2015.
Abaixo, crianças do grupo de Vakwë 








Hipótese de Gaia


Amazônia”, a exposição, tem sido classificada como uma experiência mística pela imprensa estrangeira e pelos visitantes. Observando as imagens, a impressão que se tem é que Sebastião Salgado realmente conseguiu registrar e traduzir a beleza e os mistérios da última grande floresta tropical do planeta Terra. A experiência transcendental que emana de suas fotografias tem implicações filosóficas e até teológicas, mas trata-se de um acervo documental de importância política e estética em uma magnitude que ainda não havia sido realizada sobre a imensidão do ecossistema amazônico. E talvez seja, também, um dos melhores exemplos da ecologia profunda – aquele conceito que surgiu desde a década de 1970, a partir da teoria científica conhecida como “hipótese de Gaia”, proposta pelo ambientalista britânico James Lovelock e nomeada em referência ao ser da mitologia grega, Gaia, uma divindade que personificava a Mãe-Terra em suas potencialidades primordiais.






Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, Tupa e Tumi Muxavo, filhos de um
casal da tribo que teve seu primeiro contato com
não indígenas em 1996. Abaixo, Kulutxia, que
teve seu primeiro contato fora da tribo em 2015
e Sebastião Salgado em frente à ampliação de
sua fotografia Xamãs do Xingu, fotografado
por Ueslei Marcelino (Agência Reuters) 









Lovelock, que desde a década de 1960 trabalhava nos comitês científicos da NASA que analisam os parâmetros e possibilidades de vida fora do nosso planeta, passou a desenvolver e defender a teoria segundo a qual a Terra, sua biosfera e seus componentes físicos (atmosfera, criosfera, hidrosfera, litosfera), fazem parte de um complexo e monumental organismo vivo, integrado, planetário e interagente, que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas para garantir de forma cooperativa a sobrevivência de todos os seres, incluindo todo o reino vegetal, todo o reino animal e nossa espécie humana. Segundo Lovelock, essa “entidade viva” que é a Terra, que o senso comum também chama de “natureza”, representa nosso mundo físico como uma metáfora para todos os processos biológicos atuantes no planeta.

A teoria de Lovelock foi descrita por ele em suas célebres conferências, em diversos artigos científicos e no livro “Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra”, publicado em 1979 e, desde então, considerado um dos marcos principais do movimento ecológico que surgia naquela época. Segundo os estudos de Lovelock e de seus colaboradores, todos especialistas em diversas áreas do conhecimento, também os componentes inorgânicos do nosso planeta Terra, como as águas e a atmosfera, devem ser considerados parte da biosfera porque são fundamentais e definitivamente integrados, atuando em equilíbrio e tornando possíveis os processos evolutivos que nos habituamos a chamar de “vida”. A conclusão, como alerta Sebastião Salgado, com urgência e gravidade, é inevitável: a destruição de um ecossistema da magnitude da Amazônia, em última instância, provocará o rompimento desse equilíbrio cooperativo que garante a sobrevivência de todos os seres que habitam nosso planeta. Inclusive dos seres humanos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado. In: Blog Semióticas, 20 de maio de 2021. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2021/05/gaia-amazonia-por-sebastiao-salgado.html (acessado em .../.../…).



Para uma visita virtual à exposição na Philharmonie de Paris,  clique aqui.





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11 de julho de 2012

Gênesis por Sebastião Salgado





Fotografia é uma coisa tangível.
Você captura, você olha para ela.
É algo semelhante à memória.

Sebastião Salgado.   



Tive a sorte de entrevistar Sebastião Salgado para um jornal de Belo Horizonte quando uma exposição, com as primeiras imagens que ele havia produzido para o projeto Gênesis, iria ser aberta no Museu de Artes e Ofícios. Era outubro de 2006 e, ao receber a encomenda da pauta para iniciar a reportagem, comemorei a oportunidade de falar com o fotógrafo que sempre admirei. Os primeiros contatos com as assessorias, entretanto, não foram nada animadores: informaram que ele estava apenas de passagem pelo Brasil, que não havia previsão para entrevistas, que a agenda estava completa e que Sebastião Salgado não viria a BH para a abertura da exposição.

Depois de várias tentativas sem resultado, decidi recorrer a um caminho dos mais prosaicos. Naquela época eu também trabalhava como professor em uma faculdade na cidade de Congonhas e uma aluna me disse que era afilhada de batismo de Lélia Wanick Salgado, esposa do fotógrafo. Comentei com a aluna sobre a dificuldade para conseguir a entrevista e, dias depois, quando eu finalmente estava para desistir da pauta, ela me passou um telefone de contato com Lélia e Sebastião Salgado em São Paulo. Liguei e falei com uma secretária sobre o pedido de entrevista, expliquei que ele poderia responder por e-mail.

Para minha surpresa, a secretária pediu que eu aguardasse na linha e, depois de poucos minutos, o próprio Sebastião Salgado estava ao telefone. Ele atendeu e foi muito gentil, mas antes de tudo fez uma ressalva: a entrevista teria que ser muito breve, brevíssima, porque ele estava esperando o carro que o levaria ao aeroporto. Conversamos durante mais ou menos 15 ou 20 minutos, com o entrevistado sem demonstrar pressa ou qualquer desatenção. Confira um trecho da entrevista:









Pergunta – Como foi que Sebastião Salgado descobriu a fotografia?

Sebastião Salgado –
Foi completamente por acaso. Na época, no final da década de 1960, eu e minha esposa, que é arquiteta, vivíamos em Paris e estávamos impedidos de retornar ao Brasil por muitos anos por razões políticas, porque participávamos dos movimentos de esquerda contra a ditadura militar. Minha esposa comprou uma câmera Leica para tirar fotos de edifícios e, como eu sempre acompanhava o trabalho dela, comecei a olhar através da lente. Foi aí que a fotografia começou a invadir minha vida. Quando terminei meu doutorado em Economia, abandonei tudo para dedicar mais tempo a meus filhos, Juliano, que nasceu em 1974, e Rodrigo, que nasceu em 1979 e tem Síndrome de Down. Desde então comecei uma nova vida como fotógrafo, primeiro na Organização Internacional do Café, em Londres, entre 1971 e 1973, e depois nas agências internacionais Sygma, Gamma e Magnum. Mais tarde, em 1994, criei minha própria estrutura como agência, a Amazon Images. Isso ainda é minha vida até hoje.

Nossa época testemunha a passagem do equipamento analógico para as mídias digitais. As novas tecnologias da imagem, na sua avaliação, trouxeram mais qualidade para a fotografia?
 

Eu fotografei com rolos de filme por muitos anos, mas agora que estou começando a trabalhar com equipamento digital, percebo que a diferença é enorme. A qualidade é inacreditável: eu não uso flash e com o equipamento digital posso até mesmo trabalhar em condições de luz muito ruins. Além disso, é um alívio não perder mais as fotografias para máquinas de Raio-X nos aeroportos.




 


Imagens de Sebastião Salgado para
o projeto Gênesis: no alto, pescaria da
tribo Waurá na laguna chamada Piulaga,
na Amazônia. Acima, ritual dos Waurá
durante o Kuarup. Abaixo, uma índia
da tribo dos Waurá amamenta a filha








Qual dos mestres da fotografia mais influencia seu trabalho?

Todos eles (risos). Mas quando eu estava começando, tive a incrível sorte de conhecer Henri Cartier-Bresson em Paris. Lembro até hoje das palavras dele, quando o encontrei, já muito velhinho, dizendo que era preciso confiar nos meus instintos mais sutis para fazer um trabalho que tivesse algum valor além do registro banal. Acho que foi a principal lição que já ouvi em toda a minha vida. Comentei isso em outra entrevista, porque aquela lição mudou minha compreensão sobre a fotografia, mudou minha compreensão sobre o mundo, me fez entender coisas muito complexas e muito profundas. Fotografia é uma coisa tangível. Você captura, você olha para ela. É algo semelhante à memória, com toda a complexidade e toda a profundidade de nossa memória.

Tem algum projeto agendado para depois da série Gênesis?

Nos próximos anos, pretendo me dedicar a este projeto para que ele esteja completo e tenha um certo alcance. O que está agora em exposição é apenas uma pequena parte dele, uma prévia, com as fotografias que eu tinha feito em Galápagos, no Virunga, que é um parque nacional entre o Congo, Uganda e Ruanda, e a Península Valdes, na Argentina. O Gênesis surgiu há uns dois anos e tem como objetivo, principalmente, despertar a atenção das pessoas para conceitos de biodiversidade, de sociodiversidade e do papel que todos nós devemos ter na conservação ambiental. Metade do planeta Terra ainda está intacta e pretendo me dedicar através da fotografia para mostrar a parte que a ação do homem ainda não destruiu. Acredito que podemos compreender o que ainda é possível preservar.

O que Sebastião Salgado ainda não fez, mas pretende fazer? 
 
Pretendo continuar o trabalho que venho desenvolvendo. Devemos estar todos cientes de que o planeta está passando por uma situação limite, uma situação muito grave que ninguém pode ignorar. O homem já destruiu mais da metade do nosso planeta e não pode seguir nesta depredação brutal. Se eu puder contribuir com uma pequena parte para a preservação, se eu puder tocar o coração das pessoas, meu objetivo terá sido alcançado. Talvez este seja meu último longo projeto, mas não tenho do que reclamar. Muito pelo contrário. Tenho vivido uma vida extremamente privilegiada. Visitei mais de 120 países, vi muitas pessoas diferentes, vi coisas maravilhosas e coisas terríveis.














Gênesis por Sebastião Salgado:
no alto, o fotógrafo em ação na
África, fotografado por seu filho,
Juliano Salgado. Acima, campo
de gado da tribo Dinka, no sul do
Sudão; e guerreiro Dinka com a
pele coberta de cinzas para proteção
contra os insetos e parasitas.

Abaixo, Sebastião Salgado em visita
ao povo indígena Zoé, a noroeste do
Pará, na região da floresta amazônica,
fotografado por Juliano Salgado; e mulheres
do povo Zoé nas cachoeira dos rio Erepecuru,
na região de Oriximiná. Também abaixo,
mulher da tribo Himba, na Namíbia,
África; e Salgado fotografado por sua
esposa, Lélia Wanick, em 2005,
também na Namíbia, durante as
expedições do projeto Gênesis











.



.

 


O sal da terra


Passados alguns anos desde daquela entrevista por telefone, encontro uma notícia publicada em destaque no jornal inglês “The Guardian” sobre a próxima exposição de Sebastião Salgado e nomeando o brasileiro como um dos nomes mais importantes da fotografia contemporânea. A exposição terá uma seleção de imagens inéditas registradas desde o início do projeto Gênesis, em 2004, no qual o fotógrafo desvia seu olhar da temática que o consagrou – a condição humana em meio às desigualdades sociais – para apresentar lugares e comunidades que ainda não foram tocadas pela mão do homem ocidental. A exposição está agendada para ter sua primeira apresentação no Museu de História Natural de Londres.

Segundo a reportagem do “The Guardian”, além da abertura da exposição em Londres, também estão anunciados um roteiro internacional da mostra por vários, incluindo o Brasil, o lançamento do catálogo em versões brochura e de luxo pela editora Taschen sobre o trabalho de Sebastião Salgado no projeto Gênesis, com os registros fotográficos que também estarão na exposição, e ainda a produção do documentário “O Sal da Terra" (The Salt of Earth), filme dirigido pelo alemão Wim Wenders, que contará com a colaboração de Juliano Salgado, filho do fotógrafo. O documentário de Wenders sobre Salgado tem previsão para estrear nos cinemas em 2014.








Gênesis por Sebastião Salgado:
no alto, imagens do Alto Xingu, na
Amazônia, com chefe guerreiro da
tribo Kuikuro; e a família do xamã
Takara Kamayura. Abaixo, menina
no ritual da oca: depois de um ano
em reclusão, por causa da primeira
menstruação, ela se prepara para
entrar no mundo e casar; e Sebastião
Salgado na abertura da exposição
do projeto Gênesis em Londres,
em frente à fotografia dos xamãs
do Alto Xingu, fotografado
por Don Wong









Dividido em quatro blocos, intitulados “Criação”, “Arca de Noé”, “Homem Antigo” e “Sociedade Antiga", o projeto Gênesis, que tem financiamento da Unesco, apresenta para o mundo as paisagens naturais mais preservadas e distantes da interferência humana. O objetivo, anunciado por Sebastião Salgado já naquela entrevista em 2006, é registrar os últimos cenários intocados do planeta Terra e o modo de vida de tribos e comunidades que preservam suas tradições ancestrais.

Desde 2004, Sebastião Salgado já percorreu lugares ermos em territórios dos cinco continentes, com especial interesse em regiões como Sudão, Namíbia, Patagônia, Antártica, Indonésia, Cazaquistão e Brasil, onde o fotógrafo passou uma temporada no Pará acompanhando a vida cotidiana da tribo Zo'e. No site do “The Guardian” estão disponíveis imagens do projeto Gênesis e um vídeo que mostra o trabalho do fotógrafo durante a temporada com os índios no Pará. Além do “The Guardian”, imagens do projeto Gênesis também foram publicadas desde 2004 na França (“Paris Match”), Estados Unidos (“Rolling Stone”), Espanha (“La Vanguardia”), Portugal (“Visão”), Itália (“La Repubblica”) e por várias agências internacionais de notícias. 









Projeto Gênesis: a partir do alto, nativo
caçando pássaros no Deserto de Kalahari,
no sul da África; moradores do Vale de
Lalibela, na Etiópia, África; e uma grande
manada de búfalos selvagens no Kafue,
território de Zâmbia, também na África.
Abaixo, o cartaz original da exposição






  


Apontado como um dos mais premiados e respeitados fotojornalistas da atualidade, Sebastião Ribeiro Salgado Júnior é mineiro da cidade de Aimorés, nascido no dia 8 de fevereiro de 1944. Formado em Economia, trabalhava na Organização Internacional do Café até 1973, quando decidiu se dedicar integralmente à fotografia. Depois da publicação de seus primeiros trabalhos, foi contratado pelas agências de fotografia Sygma e Gamma. Em 1979, entrou para a Agência Magnum e dois anos depois foi pautado para uma série de fotos nos EUA sobre os primeiros 100 dias do governo de Ronald Reagan.

Até que aconteceu o imponderável da sorte: acompanhando a comitiva do presidente em Washington, na tarde do dia 30 de março de 1981, Salgado foi o único fotógrafo a registrar o atentado a tiros sofrido por Reagan. A venda daquelas fotos para jornais e revistas do mundo inteiro permitiu ao fotógrafo financiar seus primeiros projetos pessoais de viagens pelos locais mais remotos do planeta. Em 1994, abriu sua própria agência, a Amazonas Images. 









Sebastião Salgado presenteia o
presidente Lula com o catálogo
Trabalhadores, em outubro de 2006.
No alto, as fotos de Salgado na cena do
atentado contra o então presidente dos EUA,
Ronald Reagan, publicadas no Brasil
pela extinta revista Manchete em 1981.

Abaixo, o encontro de Sebastião
Salgado (e seu filho Juliano, à esquerda)
com o povo Zoé e no encontro com
uma tribo da Indonésia, em fotografias
de sua esposa Lélia Wanick Salgado.
Também abaixo, Sebastião Salgado e
Lélia em dois autorretratos em
Paris na década de 1970


















Desde então, Sebastião Salgado tornou-se embaixador do UNICEF, criou em sua terra natal (a fazenda Bulcão, em Aimorés) uma reserva ambiental como sede do Instituto Terra, gerenciado por ele e por sua esposa, e publicou vários livros com seleções de suas fotografias, sempre com imagens em preto e branco que denunciam a violação dos direitos humanos em meio a situações de guerra, de pobreza e de outras injustiças. Entre seus livros de fotografias, sempre lançados em parcerias com instituições humanitárias e com exposições internacionais itinerantes, estão “Trabalhadores” (1996), “Terra” (1997), “Serra Pelada” (1999), “Êxodos” (2000), "O Fim da Pólio" (2003) e “África” (2007). Na introdução de “Êxodos”, Sebastião Salgado escreveu:

"Há diferenças de cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reações das pessoas são semelhantes no mundo inteiro. Pessoas fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras, adaptam-se a situações extremas. Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma.”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Gênesis por Sebastião Salgado. In: Blog Semióticas, 11 de julho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/07/genesis-por-sebastiao-salgado.html (acessado em .../.../...).



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Gênesis: a partir do alto, nativo da tribo
Yali em caçada nas montanhas Jayawijaya
de Irian Jaya, na Papua Ocidental, Indonésia;
o refúgio da vida selvagem no extremo norte
do Alaska; pinguins Chinstrap que vivem
sobre icebergs nas Ilhas Sandwich do Sul,
Antártica; uma menina no ritual do peixe
sagrado, no Alto Xingu, Amazônia; e o
detalhe da pata de um lagarto nas
Ilhas Galápagos, Equador



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