Mostrando postagens com marcador vanguarda. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador vanguarda. Mostrar todas as postagens

2 de dezembro de 2025

Surrealismo na fotografia

 





Todos agem “como se fossem anjos”, todos possuem

tanto “como se fossem ricos” e todos vivem “como se

fossem livres”. Não há nenhum vestígio real, contudo,

de anjos, de riqueza e de liberdade. Apenas imagens.

                                                           –– Walter Benjamin, “O Surrealismo” (1929).  




Movimento estético e artístico que provocou impacto na busca pela liberação das expressões do inconsciente, dos sonhos, da irracionalidade e das distorções da realidade, o Surrealismo também teve importância como ação política e ideológica antiautoritária e antifascista, além de representar uma linha de força fundamental nos grupos de vanguarda da Arte Moderna contra o conservadorismo. Com seu centro irradiador situado inicialmente na França, especialmente em Paris, o movimento rapidamente se espalhou pelo mundo em suas mais diversas formas de expressão, levando os domínios da arte, da literatura e do cinema “até os limites extremos do possível” – como aponta o alemão Walter Benjamin no ensaio “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”.

Na língua francesa, o prefixo “sur” sempre existiu com acepções em “acima”, “sobre” ou “além”, mas o termo “sur-realismo” só foi publicado pela primeira vez em 1917 pelo escritor e crítico de arte Guillaume Apollinaire. Em um artigo, e em sua peça teatral “As tetas de Tirésias”, considerada uma obra precursora do surrealismo, Apollinaire escreveu: “Quando o homem quis imitar o caminhar, criou a roda, que não se assemelha a uma perna. Assim, criou o surrealismo sem se dar conta”. Em outubro de 1924, sete anos depois do primeiro registro na referência pioneira de Apollinaire, o escritor e poeta André Breton publicou o “Manifesto Surrealista”, marco fundador do movimento – e definiu o Surrealismo como "automatismo psíquico puro pelo qual se destina a expressar o verdadeiro funcionamento do pensamento e dos sonhos, livre de qualquer controle ou preocupação com a razão ou a moral".










Surrealismo na fotografia: no alto da página,
Uns sobem e outros descem (Unos suben y outros
bajan, 1940), fotografia de Lola Álvarez Bravo.
Acima, mais duas fotos de Lola Álvarez Bravo,
Homem-rã (Hombre rana, 1949) e Olho (Ojo, 1950).

Abaixo, Jean Cocteau em fotografia de Julien Clergue
durante as filmagens de O testamento de Orfeu
(Le testament d’Orphee), filme de 1959 com direção,
roteiro e atuação de Cocteau no papel central.
Todas as imagens fazem parte do catálogo da
exposição Surrealism na Throckmorton Fine Art,
exceto quando indicado nas legendas









Um século depois do marco inaugural do manifesto de André Breton, um olhar em retrospectiva consegue estabelecer as características difusas e marcantes desta visão artística que explora as dimensões mais eletrizantes da imaginação humana. Nas celebrações do centenário e da herança do movimento, um dos destaques vem da Throckmorton Fine Art, de Nova York, com uma exposição sobre o impacto do movimento na fotografia, reunindo fotógrafos que atuaram na Europa, nos EUA e no México nos anos 1920 e nas décadas seguintes. No acervo selecionado estão obras que moldaram as formas e a estética do Surrealismo na fotografia e que levantam questões sobre a natureza da realidade e da identidade individual de cada fotógrafo selecionado – retomando abordagens sobre o estilo e as características do movimento surrealista que provocam polêmica desde o tempo em que a fotografia como técnica e como meio de expressão era questionada em seu estatuto de arte e muitas vezes considerada uma arte menor.


Imagens de sonho


O uso de técnicas que na época eram consideradas inovadoras e radicais, como o automatismo psíquico, as associações livres e a colagem para explorar o mundos dos sonhos e dos desejos, surgiram anunciadas como estratégias no primeiro manifesto de André Breton. Nos anos seguintes, viriam outros manifestos também escritos por Breton, “Surrealismo e Pintura”, de 1928, e “Segundo Manifesto do Surrealismo”, de 1930. Um terceiro documento, “Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente”, foi coescrito por Breton, Diego Rivera e Leon Trotsky no México, em 1938, e publicado com grande repercussão na França, na revista Partisan Review. Trotsky, liderança importante da Revolução Russa de 1917, havia sido expulso do Partido Comunista da União Soviética e estava exilado no México desde 1936, acolhido pelo casal Diego Rivera e Frida Kahlo.

Desde então, o movimento surrealista se espalhou pelo mundo como tendência e influência para artistas das áreas mais variadas. O impacto do Surrealismo também foi sentido no Brasil, onde os ideais do movimento prosperaram na primeira geração dos modernistas da Semana de 1922, com destaque na literatura de Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Limaou na arte de Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Flávio de Carvalho e Cícero Dias, entre outros, além da presença incontornável de Maria Martins, parceira de Marcel Duchamp e primeira mulher a despontar como expoente nos círculos surrealistas de Paris.






Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
Ruínas com forma masculina
(Ruins and Male Form,
década de 1920), fotografia
s e colagem de Lionel Wendt.

Abaixo,
Torre do Rockfeller Center nº 14
(Rockefeller Center Tower nº 14), fotografia
de 1932 de
Rosa Covarrubias. Também abaixo,
Cartografia interior nº 23 e nº 21, fotografias com
intervenções e colagens de 1995 e 1996, no estilo
surrealista, por Tatiana Parcero







Nomeada como “Surrealismo: Mais de um século unindo os reinos dos sonhos e da realidade” (Surrealism: Over a Century Merging the Realms of Dreams and Reality), a mostra na galeria Throckmorton Fine Art, com curadoria da historiadora María Míllan, reúne 50 fotografias ampliadas, a maioria delas em preto e branco, de 25 artistas que abraçaram os ideais surrealistas para produzir imagens que expressam elementos do acaso e um forte simbolismo na composição. Em comum a todos eles, um método de trabalho para criar representações inesperadas por meio da fotografia. É um acervo valioso, mas trata-se tão somente de uma amostragem: quem tem algum repertório sobre o movimento irá perceber, pela lista de fotografias selecionadas, que nem todos os nomes do primeiro time do Surrealismo na fotografia estão representados na mostra.

Entre os nomes de destaque histórico do movimento que atuaram na fotografia, Man Ray (1890-1976), Claude Cahun (1894-1954) e Hans Bellmer (1902-1975) talvez sejam as ausências mais marcantes da mostra, ainda que isso não diminua seu alcance e sua importância como retrospectiva, porque a curadoria consegue contemplar um conjunto coerente de obras e
autores. Como o Surrealismo sempre foi inerentemente político, desde seus primórdios como movimento de protesto e de combate ao fascismo, ao autoritarismo e ao conservadorismo, o acervo selecionado não exclui o potencial da estética surrealista como arma política para romper barreiras – entre temáticas, entre gêneros e entre linguagens. É o que a fotografia surrealista representa: ao contrário da atuação centrada exclusivamente na produção fotográfica, o que fotógrafos com ideais surrealistas estabelecem são possibilidades criativas de intercâmbio da fotografia com formas de expressão das artes plásticas, das artes cênicas, da literatura, do cinema – aproximando flagrantes do real, por meio do aparato fotográfico, ao inesperado, ao impossível e às formas do inconsciente.









Limites extremos


Pelas fotografias selecionadas, é possível perceber que a linguagem e o espírito do movimento surrealista se estendem para muito além dos nomes que os manuais de história da arte enumera como artistas canônicos, alcançando também fotógrafos que adotaram abordagens lúdicas e experimentais inspiradas nos ideais estéticos do Surrealismo. Na fotografia, tais ideais formam um arsenal que funciona como ferramentas de composição, potencializado com base no próprio aparato dos equipamentos, que a linguagem fotográfica nas primeira décadas do século 20 ainda navegava na transição entre as possibilidades do meio como documentação e como autoexpressão. Na aproximação com o Surrealismo, novas diretrizes surgiam na busca pelos limites extremos da técnica em variações de dupla exposição, negativos sobrepostos, fotomontagens, solarização e polarização, uso de lentes especiais, de iluminação incomum, de perspectivas distorcidas em enquadramentos surpreendentes ou até mesmo recorrendo a adereços absurdos com o objetivo de proporcionar resultados de efeitos dramáticos.

Outra característica marcante no acervo selecionado pela Throckmorton Fine Art está no número expressivo de mulheres no espectro da fotografia surrealista. Dos 25 artistas presentes na exposição, mais da metade são mulheres, com destaque para Dora Maar, Kati Horna, Stella Snead, Tina Modotti, Berenice Abbott, Germaine Krull, Lola Álvarez Bravo, Mariana Yampolsky, Imogen Cunningham, Graciela Iturbide, María García e Francesca Woodman. Também marcam presença na exposição composições inesperadas na forma e no enquadramento de objetos inanimados por Edward Weston; nas distorções do corpo por André Kertész; nos flagrantes irônicos de Henri Cartier-Bresson; e nas encenações mirabolantes de Philippe Halsman.







Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
fotografia de Berenice Abbott da década de 1920,
As mãos de Jean Cocteau, da série Rostos de 1920
(
Jean Cocteau's Handsfrom, Faces of the 20's Portfolio).

Abaixo, fotografia sem título de 1962 de Kati Horna,
da série Oda a la necrofilia, Cuidad de México.

Também abaixo, duas fotografias de Henri Cartier-Bresson:
um retrato de 1930 
do escritor André Peyre próximo a um
cartaz publicitário; e um flagrante em fotografia de
1933 em uma rua de Valência, Espanha













Poder da imaginação


Para o senso comum, que faz com frequência uma associação direta do Surrealismo com as provocações de mestres como Salvador Dalí e René Magritte nas artes plásticas, Luis Buñuel no cinema ou Antonin Artaud no teatro, talvez possam parecer pouco expressivas as pequenas variações sobre imagens cotidianas em algumas fotografias selecionadas. Tais variações, no entanto, não podem ser separadas da estética surrealista se questionam a ditadura da razão e valores burgueses como pátria, família, religião, trabalho, ou se fazem um elogio subversivo ao poder da imaginação – porque, no primeiro manifesto, Breton declarava sua crença na possibilidade de reduzir dois estados tão contraditórios, sonho e realidade, a uma espécie de síntese de uma realidade absoluta, uma sobre-realidade (ou surrealidade).














Uma importante alteração no Surrealismo surge no final da década de 1930, com a Segunda Guerra Mundial explodindo em países da Europa. Neste cenário, os Estados Unidos e outros países do continente americano atraem uma onda de artistas e intelectuais europeus que fugiam das zonas de guerra. Há, também, um evento catalisador realizado na Cidade do México em 1940: a Exposição Internacional do Surrealismo, organizada por André Breton, que marca um momento crucial para o envolvimento e a contribuição da América Latina para o estilo e para os ideais surrealistas. Embora o movimento surrealista seja amplamente considerado europeu, obras de artistas e fotógrafos do México e de outros países latino-americanos também passam a destacar a relação do Surrealismo com a produção cultural dos povos do continente que abrigou, desde sempre, tanto tradições como imaginação criativa inclinadas para o maravilhoso e o fantástico – como confirma a ascensão do realismo mágico na literatura e nas artes plásticas.


Fronteiras da realidade


As imagens violentas e chocantes dos campos de batalha na Segunda Guerra podem receber a nomeação de surrealistas, pelo impacto que provocaram, já que o termo passou a ser incorporado como adjetivo na linguagem cotidiana para se referir ao que é estranho ou surpreendente, fora do comum, mas o movimento de forma geral teve o seu desfecho no pós-guerra. O fim do surrealismo como uma força vital está ligado a uma exposição, “Le Surrealisme en 1947”, concebida e realizada por André Breton e Marcel Duchamp com o objetivo anunciado de marcar o retorno do movimento surrealista a Paris após a guerra. O objetivo, no entanto, não se concretizou. A exposição, na verdade, demonstrou que a geração mais jovem, incluindo artistas como Francis Bacon, Alan Davie, Eduardo Paolozzi e Richard Hamilton, estava se movendo em direções diferentes com outros ideais.







Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
Adelaido, El Conquistador
, fotografia de 1951
de
Héctor García. Abaixo, Dançarina satírica
(Satiric Dancer), uma fotografia de 1926
de
André Kertész.

No final da página, o encontro lendário de
Leon Trotsky, Diego Rivera e André Breton
no México, 
fotografado por Fritz Bach em junho
de 1938, na época em que os três escreveram, em
parceria, o Manifesto por uma Arte Revolucionária
Independente
, publicado pela revista Partisan Review.

Também no final da página, mais duas fotografias do
catálogo da exposição
na Throckmorton Fine Art:
Três marionetes em um cenário de navio
(Three Puppets in a Ship Setting), fotografia
de 1929 de
Tina Modotti; e Nu em abstração
(Nude Abstraction), fotografia de 1953 de
Weegee









Um século após seu surgimento, o Surrealismo continua a existir, como estilo e como referência, não somente na fotografia, mas em todos os domínios da criação artística, no mundo inteiro, em grande parte como citação às obras dos pioneiros do movimento nas décadas de 1920 e 1930. Seu legado e influência se mantêm inegáveis sempre que estão em cena imagens com sugestões oníricas e inesperadas, fantásticas, bizarras ou grotescas, que nos levam a reavaliar nosso olhar sobre a realidade e a vida cotidiana. O acervo selecionado na exposição atual, com uma gama significativa de imagens de fotógrafos pioneiros, tem grande valor como retrospectiva não só porque promove uma revisão das conquistas do Surrealismo na fotografia, mas porque reafirma a importância, urgente e contínua, de examinarmos as fronteiras entre a realidade e as representações da realidade.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Surrealismo na fotografia. In: Blog Semióticas, 2 de dezembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/12/surrealismo-na-fotografia.html (acesso em .../.../…).



Para visitar a exposição na  Throckmorton Fine Art,  clique aqui.













27 de fevereiro de 2023

Arte moderna na Ucrânia

 



Eu não sei como será a Terceira Guerra Mundial. 

Mas a Quarta, com toda certeza, será com paus e pedras. 

–– Albert Einstein em 1945.   

  



A questão da arte moderna na Ucrânia é uma questão política – assim como é política qualquer questão sobre arte em qualquer circunstância. Na Ucrânia, a evolução da arte foi especialmente marcante nas primeiras décadas do século 20, época da entrada do país na União Soviética, com artistas que influenciaram de maneira definitiva a arte moderna no Ocidente, em várias frentes. Na atualidade, depois da tragédia que foi a eleição de Volodymyr Zelensky, em 2019, as crises foram se agravando na Ucrânia, com muita violência e destruição desde o início da guerra em fevereiro de 2022 – um conflito de grandes proporções que já matou milhares de civis e militares e já é considerado como o maior confronto militar ocorrido na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Como estratégia emergencial, uma seleção dos acervos da arte moderna da Ucrânia foi reunida, com apoio de museus e de colecionadores, e transportada até o Museu Thyssen-Bornemisza, da Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia). Outras ações de resgate e preservação de obras de arte em áreas de bombardeios foram organizadas por historiadores e técnicos de museus da Ucrânia e de outros países em um fórum on-line coordenado pelo historiador Kilian Heck, da Universidade de Greifswald, da Alemanha, com apoio da Aliança Internacional para Proteção de Patrimônio em Áreas de Conflito (Aliph), sediada em Genebra, Suíça. Uma das ações resgatou 16 peças de arte sacra bizantina, com cerca de 1.500 anos, que estavam no Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram levadas para o Museu do Louvre, em Paris.

A guerra, que oficialmente teve início com a invasão da Ucrânia pelas tropas militares da Rússia, no final de fevereiro de 2022, na verdade começou bem antes, com a ascensão ao poder político de grupos de orientação fascista e armamentista na Ucrânia a partir do período entre 2013 e 2014, com a escalada de grandes e violentos protestos urbanos que na época foram chamados de Euromaidan ou Primavera Ucraniana. Segundo maior país da Europa em área territorial (atrás apenas da Rússia, seu país vizinho, com o qual compartilha extensas fronteiras ao leste e ao nordeste), a Ucrânia em 2016 completou 25 anos de independência em relação à União Soviética, mas seu destaque entre as maiores economias do planeta vem se degradando de forma acelerada desde a separação.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Carrossel,
pintura em óleo sobre tela de 1921, obra do
artista Davyd Burliuk. Acima, trabalhadores
e equipe técnica do Museu Nacional de Arte
da Ucrânia preparam obras do acervo para
serem transportadas para a Espanha. Abaixo,
um retrato pintado no final da década de 1920
por Kostiantyn Yeleva; e Uma camponesa,
pintura de 1910 de Volodymyr Burliuk.

Todas as obras reproduzidas abaixo fazem
parte do acervo reunido na exposição do
Museu Nacional Thyssen-Bornemysza, da
Espanha, nomeada como En el ojo del huracán:
vanguardia en Ucrânia, 1900-1930

 










De 11ª economia do mundo, no final do século 20, a Ucrânia começou a decair em potencial no novo século, assistindo a sucessivas pioras de seu parque industrial, que era complexo e desenvolvido quando o país fazia parte da União Soviética. Desde a separação, aconteceram perdas radicais em sua pauta de exportação, baseada em máquinas e produção de bens de alto valor agregado, além da grande produção agrícola, e houve uma progressiva ampliação da dependência de importações. Também em 2016, o PIB (Produto Interno Bruto) da Ucrânia já estava muito abaixo do nível que tinha antes do país separar-se da União Soviética, de acordo com Moniz Bandeira (no livro “A desordem mundial”, editora Civilização Brasileira), e a concentração de riqueza em setores restritos da elite ucraniana atingia níveis impressionantes.

O caos na Ucrânia tem acontecimentos que antecedem em alguns anos a guerra iniciada em fevereiro de 2022. A partir de 2013, o governo decidiu suspender um acordo com a União Europeia e retomar sua aproximação com a Rússia. Desde então, grupos fascistas identificados com a sigla Pravy Sector conseguiram incendiar o país com grandes protestos urbanos que levaram à deposição do governo, dando início a um estado de terror. A calamidade gerou conflitos de guerra civil em diversas áreas do país, com políticos fascistas tomando o poder pelas eleições ou com golpes institucionais para derrubar governos eleitos de forma democrática em suas 457 cidades reunidas em 27 regiões, sendo 24 oblasts (províncias), mais a República Autônoma da Crimeia e duas cidades na condição de distritos federais, Kiev e Sebastopol. A crise teria um novo capítulo em 2019, com a surpreendente eleição de um comediante, Volodymyr Zelensky, para presidente do país.












Arte moderna na Ucrânia: no alto, Adão e Eva,
pintura em óleo sobre tela de 1912, obra do
artista Wladimir Baranoff-Rossiné. Acima, um esboço
em aquarela sobre papel para um movimento coreográfico
de Masks, da Escola de Dança Bronislava Nijinska, de Kiev,
obra de 1919 de Vadym Meller; e desenhos de 1922 de
Anatol Petrytskyi para o balé Danças Excêntricas, espetáculo
apresentado pelo Ballet de Câmara de Moscou.


Abaixo, 1º de maio, pintura em óleo sobre tela
de 1929 de Viktor Palmov; e Composição, pintura
de 1919 de El Lissitzky





   




A guerra premeditada


Muito popular na Ucrânia por sua carreira de ator e comediante antes de entrar na política para concorrer ao cargo de presidente, Zelensky teve uma trajetória com atuações em várias frentes, incluindo espetáculos cômicos em teatro em que simulava tocar piano com o pênis, e também programas de TV, em especial a série “Servo do povo”, exibida em rede nacional de 2015 a 2018 como campeã de audiência. Na série de ficção, Zelensky fazia o papel principal de presidente da Ucrânia. Com o sucesso na TV, o grupo de Zelensky registrou um partido político com o mesmo nome da série. Nas eleições seguintes, em 2019, com a Ucrânia mergulhada em violência, depois da liberação total para a comercialização de armas de fogo, Zelensky despontou nas pesquisas como favorito e terminou eleito presidente.

O capítulo de Zelensky na Presidência da República da Ucrânia não foi tão imprevisível como pode parecer. Com interesses muito próximos a autoridades do Ocidente e a grandes conglomerados multinacionais, o novo presidente e seu partido Servo do Povo, que também conseguiu eleger a maioria para o parlamento, deram início a mudanças na legislação e aceleraram um completo rompimento com o governo russo. Ao mesmo tempo que buscavam por todos os meios uma maior aproximação do país com a União Europeia e com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), Zelensky e os parlamentares de seu partido, a maior parte deles em primeiro mandato, derrubaram todos os impedimentos estratégicos e começaram séries de exercícios militares conjuntos com tropas dos norte-americanos no Mar Negro e em toda a extensão das fronteiras da Ucrânia com a Rússia, o que na prática sinalizava uma declaração de guerra.












Arte moderna na Ucrânia: no alto, duas pinturas
em têmpera sobre tela
do artista Mykhailo Boichuk,
A leiteira, de 1922, e Mulheres sob a árvore de maçãs,
de 1920.
Boichuk liderou um grupo de artistas nacionalistas
que promoveu um resgate das tradições folclóricas ucranianas,
mas após a consolidação de Josef Stalin no poder na década
de 1930, na União Soviética, a maior parte dos murais e
pinturas de Boichuk e dos "boichukistas" foi destruída.

Acima, Os inválidos, pintura em óleo sobre
tela de 1924 de Anatol Petrytskyi. Abaixo,
duas pinturas de
Oleksandr Bohomazov:
Afiando as serras, de 1927, e Paisagem do Cáucaso,
de 1915. Também abaixo, o cineasta e teórico
do cinema Dziga Vertov em ação, nas filmagens
de O homem com a câmera, de 1929, com
imagens captadas nas cidades ucranianas
de Kiev, Odessa e Kharkiv. Também abaixo,
um trailer do filme em cópia restaurada de 2014


















O passo seguinte de Zelensky no poder foi dar início à guerra premeditada: como resposta aos sucessivos exercícios militares conjuntos de Ucrânia e norte-americanos nas fronteiras, e diante da deliberação de Zelensky para que o país passasse a ser um território da OTAN, as tropas russas começaram a ocupação das fronteiras com a Ucrânia. A ocupação dava continuidade a um processo que teve início em 2014, quando os russos ocuparam a Crimeia, logo após o golpe que levou à deposição do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich, que tinha posição favorável à Rússia.

A Crimeia havia sido anexada à Ucrânia em 1952. Quatro décadas depois, em 1991, quando a Ucrânia se separou da União Soviética, a Crimeia conquistou a posição de República Autônoma. 
Desde o final de fevereiro de 2022 a guerra na Ucrânia veio se agravando e gerou uma enorme onda migratória de ucranianos para a Rússia, enquanto Estados Unidos e OTAN seguem fornecendo um grande arsenal de armamentos pesados para que tropas da Ucrânia, sob o comando do inexperiente Zelensky, elevado ao posto de comandante, enfrentem as tropas russas.

Segundo analistas internacionais, o conflito armado está longe de um desfecho (enquanto escrevo a versão final deste artigo, a revista Time destaca que o presidente Lula, do Brasil, surge como um mediador para o fim da guerra na Ucrânia. A reportagem da Time relata que tanto o presidente Zelensky da Ucrânia, como o presidente Vladimir Putin, da Rússia, já estariam avaliando a proposta de Lula para encerrar a guerra, mas nenhuma ação indica uma vontade política para estabelecer a paz. Além da Time, analistas de outros importantes veículos da imprensa internacional também informam que a proposta de Lula pode criar caminhos para a paz na Ucrânia).









Arte moderna na Ucrânia: no alto, O fotógrafo,
pintura em têmpera sobre papel de 1927, obra de
Ivan Padalka; acima, Gopak (dança ucraniana),
pintura de 1926-30 de Ilya Repin. Abaixo, uma pintura
em óleo sobre tela de Sonia Delaunay de 1925,
Vestidos simultâneos (três mulheres, formas, cores);
e duas obras de
Aleksandra Ekster: uma colagem
em técnica mista com pintura em óleo sobre tela,
Natureza morta, de 1926, e Composição (Gênova),
pintura em óleo sobre tela de 1912













Genocídio e independência


O percurso histórico da Ucrânia não foi menos violento no decorrer do último século. Além das batalhas no território ucraniano durante a Primeira Guerra Mundial, no período de 1914-1917, e na época da Revolução Russa de 1917, houve diversos conflitos armados pela independência do país no período de 1917 a 1921, até a entrada definitiva da Ucrânia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1922. Com os expurgos de Josef Stalin na União Soviética, na década de 1930, muitos líderes ucranianos foram presos ou mortos, o que gerou nova onda de protestos violentos. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o país teve posições contraditórias, com seus movimentos nacionalistas lutando simultaneamente contra os nazistas e contra os soviéticos.

Como saldo, os conflitos em decorrência da Segunda Guerra levaram à morte de cinco a oito milhões de ucranianos, na maior parte civis. Nas décadas seguintes não houve paz: as fronteiras da Ucrânia foram diversas vezes alteradas, quase sempre deflagrando mais violência e novos conflitos armados, até o fim da União Soviética, em 1991, com um referendo popular para a população ucraniana que aprovou a independência do país. No último século, a Ucrânia ainda foi palco do acidente na usina nuclear de Chernobil, em abril de 1986, que deixou milhares de mortos e consequências permanentes de contaminação e envenenamento.









Arte moderna na Ucrânia: acima, Funeral,
pintura em óleo sobre papel de 1920, obra de
Oleksandr Bohomazov
; e um autorretrato em
pintura sobre madeira de 1922 de Vasyl Yermilov.


Abaixo, Retrato de Mykhailo Semenko,
técnica mista em aquarela, grafite e nanquim
sobre papel, obra de 1929 de Anatol Petrytskyi;
e Nova arte, desenho em técnica sobre papel,
obra em 1927 de Vasyl Yermilov para a capa
da edição nº 23 da revista Nove Mystetstvo
(Nova Arte), identificada como um marco inicial
do movimento construtivista









Um raro período de paz e prosperidade aconteceu na década de 1920, com a entrada da Ucrânia na União Soviética. Na cultura, a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema prosperavam de forma surpreendente. Sobre a literatura, o Brasil tem um vínculo importante com a Ucrânia: Clarice Lispector, uma das grandes referências da literatura brasileira, nasceu na cidade ucraniana de Tchetchelnik, enquanto seus pais percorriam as aldeias para fugir da perseguição aos judeus, durante a guerra civil na Rússia de 1920-1922. Contudo, como a própria Clarice declarou, a Ucrânia foi uma terra em que nunca pisou, pois veio para o Brasil com um ano e dois meses de idade, quando sua família de imigrantes chegou ao Recife, capital de Pernambuco. Clarice não é a única referência da Ucrânia na cultura brasileira. Outro nome importante é Gregori Warchavchik, arquiteto e artista plástico que nasceu na cidade ucraniana de Odessa e chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista, tornando-se um dos destaques da arquitetura moderna brasileira.

Depois de muitas idas e vindas, muitas perseguições e destruições, vários expoentes da arte moderna da Ucrânia permanecem na posição privilegiada de cânones da arte mundial, pelo que representaram de inovação e ruptura em seu tempo e pela influência que exercem até a atualidade como mestres do cubismo, do suprematismo, do futurismo, do expressionismo e da arte abstrata. Um grupo destes mestres tem em comum uma trajetória de formação acadêmica no início do século 20, na Ucrânia, e posterior destaque entre os modernos para além das fronteiras do país, especialmente em Moscou, na União Soviética, e em Paris, na França, onde vários deles viveram na célebre colônia de arte La Ruche (A Colmeia): neste grupo estão, entre outros, Sonia Delaunay, Olexandr Archipenko, Olexandr Bohomazov, Nathan Alman e Wladimir Baranoff-Rossiné.

Os artistas que deixaram a Ucrânia desde o começo do século 20, e que por longos períodos viveram ou em Moscou, ou na Alemanha, ou na colônia parisiense La Ruche, são conhecidos na história da arte como expoentes do Renascimento Ucraniano – entre eles nomes como Arkhip Kuindzhi, mestre da cor e dos efeitos de luz na pintura, que exerceu forte influência em seus contemporâneos e no surgimento da Arte Moderna, apontado como referência por nomes do primeiro time das vanguardas como Wassily Kandinsky e Marc Chagall, e também Dziga Vertov, de importância fundamental na história do cinema. Vertov, na verdade, nasceu na Polônia, mas teve sua formação acadêmica e técnica na Ucrânia, país onde realizou seus filmes mais importantes, mesmo depois de fixar residência em Moscou. Nascido Denis Arkadievitch Kaufman, ele mudou seu nome para Dziga Vertov – a palavra “dziga” em ucraniano significa moto-contínuo ou máquina de movimento perpétuo, e “vertov”, em russo (“vertet”), significa mover, rodar, girar.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Depois da Chuva,
pintura de 1881 de Arkhip Kuindzhi, nascido em Mariupol,
Ucrânia, na época uma província do Império da Rússia.

A
cima, a capa do catálogo da exposição realizada
no museu da Espanha. Abaixo, Composição,
pintura em óleo sobre tela 
de 1920 de Vadym Meller;
e Composição em suprematismo, colagem em técnica
mista sobre cartão, obra de 1921 de Boris Kosarev













Vanguarda na Ucrânia


Outro expoente do Renascimento Ucraniano é Kazimir Malevich, nascido em Kiev, mentor do movimento pioneiro da arte abstrata conhecido como suprematismo, e muitas vezes identificado erroneamente como russo, talvez por seu papel como artista central das vanguardas na União Soviética. Há outras situações semelhantes de erro de atribuição de nacionalidade de artistas ucranianos: uma delas é a trajetória de Aleksandra Ekster, uma das mulheres mais influentes das vanguardas da Europa e muitas vezes identificada como artista da Rússia, apesar de ter nascido na Polônia, ter vivido e trabalhado a vida toda na Ucrânia e ter residido apenas quatro anos em Moscou, antes de passar um longo período de exílio em Paris.

Há, também, casos de grandes artistas da Ucrânia que vêm de antes da arte moderna e que são erroneamente identificados como russos: um deles é Ilya Repin, nascido na província ucraniana de Chuguev e um dos nomes mais celebrados na Rússia na segunda metade do século 19. Depois de décadas atuando como professor na Academia Russa de Artes em São Petesburgo, Repin deixou o cargo em 1905 e foi morar na Finlândia. Quando a Finlândia se separou da Rússia, em 1917, Repin se tornaria um dos entusiastas da revolução, mas nunca mais foi autorizado a retornar a São Petesburgo ou a Moscou, nem quando houve exposições com retrospectivas de suas obras.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Três figuras de mulheres,
pintura em óleo sobre tela de 1909 de Oleksandra Ekster.
Abaixo, Anunciação, pintura em óleo sobre tela de
1908 de Oleksandr Murashko. No final da página,
Cidade, pintura de 1917 de 
Issakhar Ber Ryback;
e uma das curadoras da mostra, a ucraniana
Katia Denysova, durante uma entrevista coletiva
na abertura da exposição em Madri

 







Um século depois de seu surgimento, uma amostragem realmente importante do Renascimento Ucraniano e dos artistas de vanguarda da Ucrânia foi finalmente reunida – contraditoriamente como consequência da guerra. Tudo começou com uma viagem que parece enredo de um filme de ficção: quando teve início o bombardeamento em Kiev, em 2022, obras de arte muito valiosas que estavam no Museu Nacional da Ucrânia e em outros acervos e coleções particulares foram transportadas, secretamente, em dois caminhões que partiram da Ucrânia em direção à Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia), aberta ao público no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza. 

Depois da viagem arriscada de mais de 3 mil quilômetros atravessando a Europa, de Kiev a Madri, passando pela Polônia, as obras-primas da arte moderna da Ucrânia, talvez o patrimônio cultural móvel mais valioso do país, estarão em exposição de gala na Espanha até o final de abril. Depois da temporada na Espanha, o acervo segue para mostras em outros grandes museus, em itinerário que começa no Museum Ludwig, na Alemanha. As 70 obras reunidas para a exposição destacam, em primeiro lugar, o absurdo da guerra, de todas as guerras, mas também traduzem a importância de artistas célebres que nasceram ou trabalharam durante muitos anos na Ucrânia. São obras e artistas que deixaram marcas definitivas tanto na cultura ucraniana como no estabelecimento das revoluções radicais de sentido, de forma e de conteúdo, que convencionamos nomear no mundo inteiro como Arte Moderna.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte moderna na Ucrânia. In: Blog Semióticas, 27 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/02/arte-moderna-na-ucrania.html (acessado em .../.../…).


































Outras páginas de Semióticas