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27 de fevereiro de 2023

Arte moderna na Ucrânia

 




Não sei como será a Terceira Guerra Mundial.

Mas a Quarta, com toda certeza, será com paus e pedras.

–– Albert Einstein em 1945. 



A questão da arte moderna na Ucrânia é uma questão política – assim como é política qualquer questão sobre arte em qualquer circunstância. Na Ucrânia, a evolução da arte foi especialmente marcante na década de 1920, época da entrada do país na União Soviética, com artistas que influenciaram de maneira definitiva a arte moderna no Ocidente, em várias frentes, mas assim como toda a população ucraniana, muitas obras estão ameaçadas de destruição com a guerra iniciada em fevereiro de 2022 – um conflito de grandes proporções que já matou milhares de civis e militares e já é considerado como o maior confronto militar ocorrido na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Como estratégia emergencial, uma seleção dos acervos da arte moderna da Ucrânia foi reunida, com apoio de museus e de colecionadores, e transportada até o Museu Thyssen-Bornemisza, da Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia). Outras ações de resgate e preservação de obras de arte em áreas de bombardeios foram organizadas por historiadores e técnicos de museus da Ucrânia e de outros países em um fórum on-line coordenado pelo historiador Kilian Heck, da Universidade de Greifswald, da Alemanha, com apoio da Aliança Internacional para Proteção de Patrimônio em Áreas de Conflito (Aliph), sediada em Genebra, Suíça. Uma das ações resgatou 16 peças de arte sacra bizantina, com cerca de 1.500 anos, que estavam no Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram levadas para o Museu do Louvre, em Paris.

A guerra, que oficialmente teve início com a invasão da Ucrânia pelas tropas militares da Rússia, no final de fevereiro de 2022, na verdade começou bem antes, com a ascensão ao poder político de grupos de orientação fascista e armamentista na Ucrânia a partir do período entre 2013 e 2014, com a escalada de grandes e violentos protestos urbanos que na época foram chamados de Euromaidan ou Primavera Ucraniana. Segundo maior país da Europa em área territorial (atrás apenas da Rússia, seu país vizinho, com o qual compartilha extensas fronteiras ao leste e ao nordeste), a Ucrânia em 2016 completou 25 anos de independência em relação à União Soviética, mas seu destaque entre as maiores economias do planeta vem se degradando de forma acelerada desde a separação.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Carrossel,
pintura em óleo sobre tela de 1921, obra do
artista Davyd Burliuk. Acima, trabalhadores
e equipe técnica do Museu Nacional de Arte
da Ucrânia preparam obras do acervo para
serem transportadas para a Espanha. Abaixo,
um retrato pintado no final da década de 1920
por Kostiantyn Yeleva; e Uma camponesa,
pintura de 1910 de Volodymyr Burliuk.
Todas as obras reproduzidas abaixo fazem
parte do acervo reunido na exposição do
Museu Nacional Thyssen-Bornemysza, da
Espanha, nomeada como En el ojo del huracán:
vanguardia en Ucrânia, 1900-1930

 










De 11ª economia do mundo, no final do século 20, a Ucrânia começou a decair em potencial no novo século, assistindo a sucessivas pioras de seu parque industrial, que era complexo e desenvolvido quando o país fazia parte da União Soviética. Desde a separação, aconteceram perdas radicais em sua pauta de exportação, baseada em máquinas e produção de bens de alto valor agregado, além da grande produção agrícola, e houve uma progressiva ampliação da dependência de importações. Também em 2016, o PIB (Produto Interno Bruto) da Ucrânia já estava muito abaixo do nível que tinha antes do país separar-se da União Soviética, de acordo com Moniz Bandeira (no livro “A desordem mundial”, editora Civilização Brasileira), e a concentração de riqueza em setores restritos da elite ucraniana atingia níveis impressionantes.

O caos na Ucrânia tem acontecimentos que antecedem em alguns anos a guerra iniciada em fevereiro de 2022. A partir de 2013, o governo decidiu suspender um acordo com a União Europeia e retomar sua aproximação com a Rússia. Desde então, grupos fascistas identificados com a sigla Pravy Sector conseguiram incendiar o país com grandes protestos urbanos que levaram à deposição do governo, dando início a um estado de terror. A calamidade gerou conflitos de guerra civil em várias regiões do país, com políticos fascistas tomando o poder e com a liberação sem restrições para o comércio de armas de fogo. A crise teria um novo capítulo em 2019, com a surpreendente eleição de um comediante, Volodymyr Zelensky, para presidente do país.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Adão e Eva,
pintura em óleo sobre tela de 1912, obra do
artista Wladimir Baranoff-Rossiné, e um esboço
em aquarela sobre papel para um movimento
coreográfico de Masks, da Escola de Dança
Bronislava Nijinska, de Kiev, obra de 1919
de Vadym Meller. Abaixo, 1º de maio, pintura
em óleo sobre tela de 1929 de Viktor Palmov;
e Composição, pintura de 1919 de El Lissitzky





   




A guerra premeditada


Muito popular na Ucrânia por sua carreira de ator e comediante antes de entrar na política para concorrer ao cargo de presidente, Zelensky teve uma trajetória com atuações em várias frentes, incluindo espetáculos cômicos em teatro em que simulava tocar piano com o pênis, e também programas de TV, em especial a série “Servo do povo”, exibida em rede nacional de 2015 a 2018 como campeã de audiência. Na série de ficção, Zelensky fazia o papel principal de presidente da Ucrânia. Com o sucesso na TV, o grupo de Zelensky registrou um partido político com o mesmo nome da série. Nas eleições seguintes, em 2019, Zelensky despontou nas pesquisas como favorito e foi eleito presidente.

O capítulo de Zelensky na Presidência da República da Ucrânia não foi tão imprevisível como pode parecer. Com interesses muito próximos a autoridades do Ocidente e a grandes conglomerados multinacionais, o novo presidente e seu partido Servo do Povo deram início a mudanças na legislação e aceleraram um completo rompimento com o governo russo, ao mesmo tempo que buscaram maior aproximação do país com a União Europeia e com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), promovendo exercícios militares conjuntos com os norte-americanos no Mar Negro e nas fronteiras com a Rússia, o que na prática sinalizava uma declaração de guerra.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, A leiteira,
pintura em têmpera sobre tela de 1922, obra do
artista Mykhailo Boichuk; e Os inválidos, pintura
em óleo sobre tela de 1924 de Anatol Petrytskyi.
Abaixo, Afiando as serras, pintura de 1927 de
Oleksandr Bohomazov; e o cineasta e teórico
do cinema Dziga Vertov em ação, nas filmagens
de O homem com a câmera, de 1929, com
imagens captadas nas cidades ucranianas
de Kiev, Odessa e Kharkiv. Também abaixo,
um trailer do filme em cópia restaurada de 2014

















O passo seguinte de Zelensky no poder foi dar início à guerra premeditada: como resposta aos sucessivos exercícios militares conjuntos de Ucrânia e norte-americanos nas fronteiras, e diante da deliberação de Zelensky para que o país passasse a ser um território da OTAN, as tropas russas começaram a ocupação da Ucrânia. A ocupação dava continuidade a um processo que teve início em 2014, quando os russos ocuparam a Crimeia, logo após o golpe que levou à deposição do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich, que tinha posição favorável à Rússia. A Crimeia havia sido anexada à Ucrânia em 1952. Quatro décadas depois, em 1991, quando a Ucrânia se separou da União Soviética, a Crimeia conquistou a posição de República Autônoma. Desde o final de fevereiro de 2022 a guerra na Ucrânia veio se agravando e gerou uma enorme onda migratória de ucranianos para a Rússia, enquanto Estados Unidos e OTAN seguem fornecendo um grande arsenal de armamentos pesados para que tropas da Ucrânia, sob o comando do inexperiente Zelensky, elevado ao posto de comandante, enfrentem as tropas russas.

Segundo analistas internacionais, o conflito armado está longe de um desfecho (enquanto escrevo a versão final deste artigo, a revista Time destaca que o presidente Lula, do Brasil, surge como um mediador para o fim da guerra na Ucrânia. A reportagem da Time relata que tanto o presidente Zelensky da Ucrânia, como o presidente Vladimir Putin, da Rússia, já estariam avaliando a proposta de Lula para encerrar a guerra, mas nenhuma ação indica uma vontade política para estabelecer a paz. Além da Time, analistas de outros importantes veículos da imprensa internacional também informam que a proposta de Lula pode criar caminhos para a paz na Ucrânia).










Arte moderna na Ucrânia: no alto, O fotógrafo,
pintura em têmpera sobre papel de 1927, obra de
Ivan Padalka; acima, Gopak (dança ucraniana),
pintura de 1926-30 de Ilya Repin. Abaixo, obra de
Sonia Delaunay de 1925, Vestidos simultâneos
(três mulheres, formas, cores)
; e uma colagem
com pintura em óleo sobre tela em técnica mista,
Natureza morta, obra de 1926 de Aleksandra Ekster











Genocídio e independência


O percurso histórico da Ucrânia não foi menos violento no decorrer do último século. Além das batalhas no território ucraniano durante a Primeira Guerra Mundial, no período de 1914-1917, e na época da Revolução Russa de 1917, houve diversos conflitos armados pela independência do país no período de 1917 a 1921, até a entrada definitiva da Ucrânia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1922. Com os expurgos de Josef Stalin na União Soviética, na década de 1930, muitos líderes ucranianos foram presos ou mortos, o que gerou nova onda de protestos violentos. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o país teve posições contraditórias, com seus movimentos nacionalistas lutando simultaneamente contra os nazistas e contra os soviéticos.

Como saldo, os conflitos em decorrência da Segunda Guerra levaram à morte de cinco a oito milhões de ucranianos, na maior parte civis. Nas décadas seguintes não houve paz: as fronteiras da Ucrânia foram diversas vezes alteradas, quase sempre deflagrando mais violência e novos conflitos armados, até o fim da União Soviética, em 1991, com um referendo popular para a população ucraniana que aprovou a independência do país. No último século, a Ucrânia ainda foi palco do acidente na usina nuclear de Chernobil, em abril de 1986, que deixou milhares de mortos e consequências permanentes de contaminação e envenenamento.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Funeral,
pintura em óleo sobre papel de 1920, obra de
Oleksandr Bohomazov
. Abaixo, Retrato
de Mykhailo Semenko
, técnica mista de
aquarela, grafite e nanquim sobre papel,
obra de 1929 de Anatol Petrytskyi;
e Nova arte, desenho em técnica sobre papel,
obra em 1927 de Vasyl Yermilov para a capa
da edição nº 23 da revista Nove Mystetstvo
(Nova Arte), identificada como um marco inicial
do movimento construtivista









Um raro período de paz e prosperidade aconteceu na década de 1920, com a entrada da Ucrânia na União Soviética. Na cultura, a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema prosperavam de forma surpreendente. Sobre a literatura, o Brasil tem um vínculo importante com a Ucrânia: Clarice Lispector, uma das grandes referências da literatura brasileira, nasceu na cidade ucraniana de Tchetchelnik, enquanto seus pais percorriam as aldeias para fugir da perseguição aos judeus, durante a guerra civil na Rússia de 1920-1922. Contudo, como a própria Clarice declarou, a Ucrânia foi uma terra em que nunca pisou, pois veio para o Brasil com um ano e dois meses de idade, quando sua família de imigrantes chegou ao Recife, capital de Pernambuco. Clarice não é a única referência da Ucrânia na cultura brasileira. Outro nome importante é Gregori Warchavchik, arquiteto e artista plástico que nasceu na cidade ucraniana de Odessa e chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista, tornando-se um dos destaques da arquitetura moderna brasileira.

Depois de muitas idas e vindas, muitas perseguições e destruições, vários expoentes da arte moderna da Ucrânia permanecem na posição privilegiada de cânones da arte mundial, pelo que representaram de inovação e ruptura em seu tempo e pela influência que exercem até a atualidade como mestres do cubismo, do suprematismo, do futurismo, do expressionismo e da arte abstrata. Um grupo destes mestres tem em comum uma trajetória de formação acadêmica no início do século 20, na Ucrânia, e posterior destaque entre os modernos para além das fronteiras do país, especialmente em Moscou, na União Soviética, e em Paris, na França, onde vários deles viveram na célebre colônia de arte La Ruche (A Colmeia): neste grupo estão, entre outros, Sonia Delaunay, Olexandr Archipenko, Olexandr Bohomazov, Nathan Alman e Wladimir Baranoff-Rossiné.

Os artistas que deixaram a Ucrânia desde o começo do século 20, e que por longos períodos viveram ou em Moscou, ou na Alemanha, ou na colônia parisiense La Ruche, são conhecidos na história da arte como expoentes do Renascimento Ucraniano – entre eles nomes como Arkhip Kuindzhi, mestre da cor e dos efeitos de luz na pintura, que exerceu forte influência em seus contemporâneos e no surgimento da Arte Moderna, apontado como referência por nomes do primeiro time das vanguardas como Wassily Kandinsky e Marc Chagall, e também Dziga Vertov, de importância fundamental na história do cinema. Vertov, na verdade, nasceu na Polônia, mas teve sua formação acadêmica e técnica na Ucrânia, país onde realizou seus filmes mais importantes, mesmo depois de fixar residência em Moscou. Nascido Denis Arkadievitch Kaufman, ele mudou seu nome para Dziga Vertov – a palavra “dziga” em ucraniano significa moto-contínuo ou máquina de movimento perpétuo, e “vertov”, em russo (“vertet”), significa mover, rodar, girar.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Depois da Chuva,
pintura de 1881 de Arkhip Kuindzhi, nascido em Mariupol,
Ucrânia, na época uma província do Império da Rússia.

A
cima, a capa do catálogo da exposição realizada
no museu da Espanha. Abaixo, Composição,
pintura em óleo sobre tela 
de 1920 de Vadym Meller;
e Composição em suprematismo, colagem em técnica
mista sobre cartão, obra de 1921 de Boris Kosarev













Vanguardas ucranianas


Outro expoente do Renascimento Ucraniano é Kazimir Malevich, nascido em Kiev, mentor do movimento pioneiro da arte abstrata conhecido como suprematismo, e muitas vezes identificado erroneamente como russo, talvez por seu papel como artista central das vanguardas na União Soviética. Há outras situações semelhantes de erro de atribuição de nacionalidade de artistas ucranianos: uma delas é a trajetória de Aleksandra Ekster, uma das mulheres mais influentes das vanguardas da Europa e muitas vezes identificada como artista da Rússia, apesar de ter nascido na Polônia, ter vivido e trabalhado a vida toda na Ucrânia e ter residido apenas quatro anos em Moscou, antes de passar um longo período de exílio em Paris.

Há, também, casos de grandes artistas da Ucrânia que vêm de antes da arte moderna e que são erroneamente identificados como russos: um deles é Ilya Repin, nascido na província ucraniana de Chuguev e um dos nomes mais celebrados na Rússia na segunda metade do século 19. Depois de décadas atuando como professor na Academia Russa de Artes em São Petesburgo, Repin deixou o cargo em 1905 e foi morar na Finlândia. Quando a Finlândia se separou da Rússia, em 1917, Repin se tornaria um dos entusiastas da revolução, mas nunca mais foi autorizado a retornar a São Petesburgo ou a Moscou, nem quando houve exposições com retrospectivas de suas obras.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Três figuras de mulheres,
pintura em óleo sobre tela de 1909 de Oleksandra Ekster.
Abaixo, Anunciação, pintura em óleo sobre tela de
1908 de Oleksandr Murashko. No final da página,
Cidade, pintura de 1917 de 
Issakhar Ber Ryback;
e uma das curadoras da mostra, a ucraniana
Katia Denysova, durante uma entrevista coletiva
na abertura da exposição em Madri

  








Um século depois de seu surgimento, uma amostragem realmente importante do Renascimento Ucraniano e dos artistas de vanguarda da Ucrânia foi finalmente reunida – contraditoriamente como consequência da guerra. Tudo começou com uma viagem que parece enredo de um filme de ficção: quando teve início o bombardeamento em Kiev, em 2022, obras de arte muito valiosas que estavam no Museu Nacional da Ucrânia e em outros acervos e coleções particulares foram transportadas, secretamente, em dois caminhões que partiram da Ucrânia em direção à Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia), aberta ao público no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza. 

Depois da viagem arriscada de mais de 3 mil quilômetros atravessando a Europa, de Kiev a Madri, passando pela Polônia, as obras-primas da arte moderna da Ucrânia, talvez o patrimônio cultural móvel mais valioso do país, estarão em exposição de gala na Espanha até o final de abril. Depois da temporada na Espanha, o acervo segue para mostras em outros grandes museus, em itinerário que começa no Museum Ludwig, na Alemanha. As 70 obras reunidas para a exposição destacam, em primeiro lugar, o absurdo da guerra, de todas as guerras, mas também traduzem a importância de artistas célebres que nasceram ou trabalharam durante muitos anos na Ucrânia. São obras e artistas que deixaram marcas definitivas tanto na cultura ucraniana como no estabelecimento das revoluções radicais de sentido, de forma e de conteúdo, que convencionamos nomear no mundo inteiro como Arte Moderna.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte moderna na Ucrânia. In: Blog Semióticas, 27 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/02/arte-moderna-na-ucrania.html (acessado em .../.../…).

































11 de novembro de 2018

Performance com Marina Abramovic







O seu papel como artista, Marina Abramovic acredita com 
uma segurança que pode parecer ingênua e uma humildade 
que desarma qualquer impulso para nos irritarmos, é levar o 
seu público através de uma passagem ansiosa para um lugar 
de libertação do que quer que os estava a limitar. Em todas as 
culturas antigas há rituais para mortificar o corpo como forma 
de compreender que a energia da alma é indestrutível. 

(Judith Thurman).  
     

Poucos artistas contemporâneos levaram a experiência com a arte da performance a extremos tão aflitivos como Marina Abramovic. Com ela, os trabalhos e apelos do fazer artístico são sempre imprevistos, intensos, incômodos –– são questionamentos sempre polêmicos e quase sempre violentos que exploram a relação entre performer e público, que expõem os limites do corpo, as possibilidades da mente, e desafiam o perigo. Uma retrospectiva do extenso acervo construído pela artista em cinco décadas de atuação e de provocação permanente está agora em cartaz em Florença, na Itália. “Marina Abramovic, The Cleaner”, exposição aberta ao público no tradicional Palazzo Strozzi de setembro de 2018 a 20 de janeiro de 2019, que depois seguirá um roteiro itinerante por outros países, apresenta e reapresenta experiências radicais que revolucionaram a arte performática, colocando seu corpo à prova, como sujeito e como objeto, para sondar seus limites externos e seu potencial de expressão.

Com links para a transmissão on-line de um cronograma bem variado de eventos que inclui visitas monitoradas e mostra de objetos, figurinos, fotografias, filmes, e também conferências, aulas magnas e mini-cursos, e dando continuidade às atividades que o Palazzo Strozzi vem transmitindo via internet (como aconteceu com exposições recentes de nomes também célebres e controversos da arte contemporânea como o chinês Ai WeiWei e o norte-americano Bill Viola, entre outros), a retrospctiva dedicada a Marina Abramovic reúne um calendário de atividades incomuns para um museu de arte. Na agenda também há performances da artista em formato multimídia e re-performances ao vivo, com atores selecionados e treinados pela própria Marina Abramovic para apresentar mais de 100 trabalhos de sua trajetória, oferecendo ao visitante uma visão geral de sua arte instigante desde os anos 1960 até experiências mais recentes.

Nas amplas salas, saguões e jardins do Palazzo Strozzi o visitante pode ter a sorte de encontrar a presença da própria artista, ao vivo, em aparições e performances não identificadas em datas e horários da agenda, talvez como medida de segurança para evitar aglomerações excessivas no espaço. Há também as re-performances com atores em ambientes sedutores que incluem telões para exibição de filmes, vídeos, fotografias, pinturas, esculturas e objetos em diversas instalações que provocam e comovem. Além de atividades dirigidas para crianças, escolas, famílias, estudantes de arte ou universitários, o calendário anuncia para o anfiteatro principal eventos com a própria Marina Abramovic em conferências e performances (veja os links para a exposição e cronogramas do Palazzo Strozzi no final deste artigo).










Performance com Marina Abramovic: no alto,
Anima Munditrabalho da artista em 1983 em
parceria com o performer Frank Uwe Laysiepen,
mais conhecido como Ulayna recriação da cena
bíblica em que Maria recebe nos braços o corpo de
Cristo após a Crucificação. Acima, a artista em uma
das performances que integram a série de oficinas
nomeadas como Limpando a casa, de onde saiu
o nome da exposição realizada em Florença,
The cleaner (ou “Il pulitore”, em italiano).

Abaixo, "Cleaning the Floor" (Limpando o chão),
de 2004, célebre reflexão sobre o feminismo,
com a violência de gênero investigada em
relação ao ambiente doméstico; e o encontro
de Marina e Ulay em duas performances que
marcaram época: o beijo revolucionário
de 19 minutos em Inspirar / Respirar,
realizado em 1977 no Centro de Cultura Estudantil
de Belgrado, na Sérvia; e AAA AAA, apresentada
em 1978, em Amsterdã, agora exibidas em
filmes na exposição do Palazzo Strozzi






   

 
Arte em relação com o corpo


A artista  que se autodefine como “cidadã do mundo” e como “avó da arte da performance” nasceu em Belgrado, antiga Iugoslávia, hoje capital da Sérvia, em 1946, ao final da Segunda Guerra Mundial. Filha de dirigentes do Partido Comunista, Marina Abramovic estudou na Academia de Belas-Artes em Belgrado e em Zagreb, onde se formou em cursos de artes plásticas e artes cênicas. No final dos anos 1960, ainda morando em seu país de origem, deu início a séries de performances que provocaram escândalo e chamaram atenção para seu nome –– entre elas apostas em limites da relação com o corpo e com o público nomeadas “Brincadeiras com facas” (Rhythm 10), “Deitar no meio de uma estrela de fogo” (Rhythm 5), “Ficar sob efeito de drogas controladas” (Rhythm 2) e “Estar semi-nua à disposição dos espectadores” (Rhythm 0), esta última retomada em 2010 no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, quando ela esteve presente durante os três meses da exposição: extensas filas se formaram com os interessados em ficar um minuto em silêncio, sentados, imóveis, diante da artista.

Em 1976, Marina Abramovic mudou-se para Amsterdã, Holanda, onde encontrou seu parceiro mais constante, o artista alemão Frank Uwe Laysiepen, mais conhecido como Ulay. O trabalho dos dois consistiu em testar e provocar os limites do público em intransigentes façanhas de resistência e loucura, a que os dois chamaram "trabalhos de relação", e que algumas vezes terminaram com a intervenção policial depois de denúncias dos mais conservadores sobre comportamento obsceno ou ameaças de violência. Uma destas performances, nomeada “Imponderabilia”, foi apresentada pela primeira vez na Itália, em Bolonha, 1977, na Galeria Comunale d’Arte Moderna. A aparente simplicidade da representação contrasta com altos níveis de complexidade: em um portal de passagem estreita, o casal está nu, imóvel, um corpo diante do outro, olhando-se fixamente. Quem quiser chegar do outro lado da sala para continuar a visita à exposição tem que passar entre os dois e tem que passar de lado, optando por se virar para um ou para o outro.









Performance com Marina Abramovic: acima,
Imponderabilia (à esquerda, a re-performance
em cartaz na exposição do Palazzo Strozzi; à direita,
performance original, com Marina e Ulay em 1977,
em Bolonha, na Itália, que foi interrompida pela
polícia). Abaixo, uma das salas da exposição atual
com Luminosidade casa-espírito, apresentada ao vivo,
com atores (re-performance), na exposição em Florença;
e a performance original Rhythm 5, realizada em 1974
por Marina no Student Cultural Center, em Belgrado











O incômodo da nudez



A situação de nudez cria, naturalmente, desconforto, como em todas as performances e trabalhos que Marina Abramovic propõe, com ou sem Ulay. Mas a nudez ou o desconforto não impedem várias pessoas de avançar, largando bolsas ou casacos, e passarem roçando nos dois corpos nus. Geralmente, do outro lado há alguém que fotografa o momento. A primeira performance de “Imponderabilia” em Bolonha foi interrompida muito antes das sete horas previstas, pela polícia, chamada para pôr fim ao “comportamento indecente” dos artistas. A mesma peça pode agora ser vista no Palazzo Strozzi, em Florença, integrada na retrospectiva de Marina Abramovic, reencenada por atores nus.

Desde a abertura da exposição na Itália, entretanto, não houve, ainda, nenhuma intervenção policial e nem protesto do público tentando impedir ou proibir as performances, mas as muitas fotos e vídeos feitos pelos muitos visitantes são, neste tempo de redes sociais, completamente invisíveis no espaço público. A tentativa de publicar fotografias da nudez da artista ou dos atores das re-performances em uma conta de Facebook, por exemplo, é imediatamente impedida por mensagens automáticas da empresa de Mark Zuckerberg avisando que a imagem é proibida por apresentar nus e violar ou não respeitar as regras da comunidade. Evoluiu a tecnologia, mas a arte de Marina Abramovic permanece plena de ousadia e um tanto incômoda. E tanto agora, como antes, continua a provocar os instintos mais repressores e a intolerância da censura.







Performance com Marina Abramovic: acima,
a artista nos bastidores, durante a montagem da
exposição em 2010 no MoMA, em Nova York. Abaixo,
registros de duas das performances do início de sua
trajetória que provocaram escândalo e chamaram
atenção para seu nome: Rhytm 10 (de 1973), em que
ela crava uma faca entre os dedos, em ritmo crescente,
ferindo-se várias vezes durante o processo; e
Relação no espaço, um dos primeiros trabalhos
da parceria na vida e na arte com Ulay








Performance e vida cotidiana



O encontro da artista em 1975 com Ulay, filho de um soldado nazista, nascido no mesmo dia que ela, 30 de novembro (Marina nasceu em 1946 e Ulay em 1943), marcou definitivamente sua trajetória e abriu novas perspectivas para as experiências levadas ao limite. Depois das obras mais tradicionais em pintura figurativa e pintura com abstrações em sua juventude, e depois das primeiras experiências radicais de performances em que o seu próprio corpo era o suporte, a fase de parceria com Ulay durou exatos 12 anos e estendeu o trabalho de performance para todos os momentos da vida cotidiana, registrados em peças que marcaram época e que sobreviveram em filmes e fotografias.

Entre os trabalhos mais conhecidos da parceria entre Marina e Ulay estão “Breathing In / Breathing Out” (em que um respirava para dentro da boca do outro durante 19 minutos), “Light / Dark” (em que os dois se esbofeteavam criando um ritmo durante 20 minutos), “AAA AAA” (em que ambos gritavam desesperadamente, cara a cara, durante 15 minutos), “Relação no espaço" (os dois correm de pontos opostos, completamente nus, e passam um pelo outro, repetindo o movimento durante 58 minutos, até que no último momento colidem, correndo em alta velocidade) ou “Rest Energy” (Energia de repouso), de 1980, talvez a cena mais angustiante, entre tantas outras, na qual Marina segura um arco e Ulay segura uma flecha apontada para o coração dela, ambos em uma posição de evidente desequilíbrio, durante quatro minutos e 10 segundos. A tensão e o perigo iminente provocaram, como sempre, desconforto e reações extremas do público.







 
Performance com Marina Abramovic: acima,
Rest Energy (Energia de repouso), parceria com
Ulay em 1980. Abaixo, o reencontro de surpresa do
casal em 2010 no MoMA, depois de duas décadas:

Ulay sentou-se à frente de Marina, os dois
ficaram emocionados e emocionaram o público



        






Arte em novas fronteiras



Durante o período de 12 anos da parceria, o casal morou em uma van Citroën de cor preta na maior parte do convívio (a van também está em exposição, aberta ao público, no pátio do Palazzo Strozzi) e teve aproximação maior com questões místicas e espirituais em temporadas e performances que incluíram viagens pelos cinco continentes –– com momentos históricos em uma tribo de nativos na Austrália ou em rituais com monges budistas no Tibete. O final da relação em 1988 também foi encenado como uma performance, monumental, nomeada em comum acordo pelos dois como “The Lovers” (Os amantes), com duração de três meses registrada por câmeras de fotografia e vídeo: cada um caminhou de um ponto extremo da Grande Muralha da China até se encontrarem, no meio do trajeto, para se despedirem um do outro com um demorado e afetuoso abraço de adeus.

Sem Ulay, nas últimas décadas, Marina Abramovic seguiu em direção a novas fronteiras: fez uma parceria com o dramaturgo britânico Robert Wilson para a montagem de um espetáculo teatral chamado "A vida e a morte de Marina Abramovic", apresentado com trilha sonora de Antony Hegarty em 2011 no festival internacional de Manchester, Inglaterra, e em 2012 no Teatro Basel, na Suíça, com Marina dividindo a autoria com Robert Wilson e dividindo as cenas no palco com o ator Willem Dafoe; e passou a investir no treinamento de atores para novas performances e para retomar antigos trabalhos, no que ela chama de re-performances ao vivo, como as que agora ela apresenta em Florença.

Sobre as críticas proibitivas de um ou outro teórico mais purista, que insista em defender o caráter da unicidade das performances, tal como elas surgiram no final da década de 1960, Marina Abramovic argumenta que a montagem em re-performance ao vivo é exatamente isto: uma forma de arte cênica e presencial para fazer perdurarem trabalhos que têm natureza efêmera, ao contrário do que ela mesmo professava nos anos 1970, quando havia um consenso defendendo que as performances eram únicas e irrepetíveis, o que as distanciava radicalmente do espetáculo de teatro. Nas duas últimas décadas, a artista também retornou à sua terra natal para buscar inspiração para trabalhos como “Barroco dos Balcãs” (1997), que traduz de forma simbólica as tragédias da Guerra da Bósnia. Apresentada na Bienal de Veneza, rendeu a Marina Abramovic o prêmio máximo do evento, o Leone d’Oro.











Performance com Marina Abramovic: acima,
Vida e morte de Marina Abramovic, parceria da
artista com o dramaturgo britânico Robert Wilson
apresentada nos palcos do festival internacional de
Manchester em 2011 e no Teatro Basel, na Suíça,
em 2012. Abaixo, Barroco dos Balcãs, uma
performance com ossos de animais premiada com o
Leone d’Oro no Festival de Veneza em 1997







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O espaço além



Também ambientadas em sua terra natal são “O Herói” (2001), performance dedicada a seu pai, que lutou na resistência contra nazistas e fascistas, durante a Segunda Guerra, e “Épico Balkaniano”, instalação com três telões e imagens individuais de Marina, seu pai, sua mãe – somente Marina fala, contando histórias macabras sobre sua infância, na fronteira entre a realidade da memória e a imaginação fabulosa. Outra referência à sua terra natal e aos cenários de guerra aparece em destaque em "A casa com vista para o mar" (2002), apresentada na Galeria Sean Kelly, Nova York: durante 12 dias, de forma ininterrupta, ela ficou em completo silêncio e em completo jejum, observada pelos visitantes em uma estrutura suspensa que teve como único acesso escadas feitas com facas afiadas.

A fase mais recente da trajetória da artista avança pelo misticismo: em “Contando o arroz”, de 2015, criada como parte de uma série de oficinas nomeadas como “Limpando a casa” (também apresentadas em Florença e de onde saiu o nome da exposição atual, “The cleaner”, ou “Il pulitore”, em italiano), a artista propõe ao público um isolamento com fones de ouvido à prova de som para cada um, sentado à mesa, separar o arroz branco misturado a lentilhas pretas, anotando em uma folha o número de grãos – um convite à reflexão e à conexão consigo mesmo em busca de calma e concentração. Em “Objetos transitórios”, também de 2015, ela apresenta ferramentas incomuns feitas de cristais de quartzo e outros materiais frágeis para serem manuseadas com cuidado, provocando viagens interiores de meditação e transcendência.













Performance com Marina Abramovic: acima,
The Current (A corrente), performance de 2017
gravada em vídeo em tempo real, sem cortes,
com uma hora e 35 minutos em que a artista
permanece impassível. Também acima,
A casa com vista para o mar (performance
de 2002), uma alegoria sobre os cenários da
Guerra dos Balcãs. Abaixo, cenas do documentário
Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil












Com retrospectivas de seu trabalho realizadas nos últimos anos em diversos países, incluindo uma temporada no Sesc Pompeia em São Paulo, em 2015 (a primeira exposição retrospectiva da artista apresentada em um país da América Latina), o capítulo mais recente de sua trajetória de experimentações também se passa no Brasil: em parceria com o diretor Marco Del Fiol, Marina Abramovic apresenta em um documentário, “Espaço Além”, uma viagem esotérica de 87 minutos com uma série de performances e registros audiovisuais sobre lugares místicos, sobre preces de invocação e sobre cultos de devoção muito diferentes entre si. O filme estreou nos cinemas brasileiros em 2016 e segue sua trajetória de exibição em outros países e em festivais pelo mundo afora.

No “Espaço Além”, Marina Abramovic é a protagonista e a voz narrativa que tudo conduz. Com sua equipe de produção, a artista pesquisou e visitou, a partir de 2012, em diversos períodos, comunidades espirituais que incluem, entre outros cenários e ambientações, dos diversos rituais que convivem no Vale do Amanhecer, em Brasília, ao xamanismo na Chapada Diamantina, e daí a momentos de emoção e reflexão no candomblé da Bahia, nas cerimônias com chás de ayahuasca, nas benzeções tradicionais em Goiás, nas simpatias com sessões em banhos de ervas ou de lama, nas curas operadas por médiuns, por pessoas comuns, por cristais e outras pedras de poder que nomearam há séculos o território de Minas Gerais. Uma frase de Marina Abramovic, em algum momento do filme, talvez seja uma tradução fiel sobre sua trajetória: ela diz que sempre quis, desde o começo, em seu país de origem, ampliar a consciência através da arte para que outras pessoas pudessem, através de sua arte, ver a si mesmas em seu próprio reflexo. A artista, em sua presença imponente, polêmica e benevolente, não se esconde.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Performance com Marina Abramovic. In: Blog Semióticas, 11 de novembro de 2018. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2018/11/performance-com-marina-abramovic.html (acessado em .../.../...).


Para uma visita virtual à exposição no Palazzo Strozzi,  clique aqui.

















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