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16 de junho de 2025

Crônica do Bloomsday

 



A história, disse Stephen, é um pesadelo do qual estou tentando acordar.

–– James Joyce, “Ulisses”.  

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O argentino Jorge Luis Borges, uma referência da literatura do século 20, ficaria cego, gradualmente, a partir dos 55 anos, devido a uma condição hereditária, provavelmente glaucoma ou uma doença degenerativa da retina. Apesar da perda da visão, Borges continuou a produzir obras literárias até o fim da vida, quando morreu em Genebra, na Suíça, em 1986, aos 88 anos. Ele sempre soube que perderia a visão, pois o destino da cegueira era hereditário: seu pai, seu avô e seu bisavô também ficaram cegos. Lembro de Borges porque a data de hoje, dia 16 de junho, remete a outra referência incontornável da literatura universal: é a data do Bloomsday, em que os amantes da literatura, e da literatura de James Joyce, em especial, celebram Leopold Bloom, protagonista de “Ulisses”, romance de Joyce que se passa em 16 de junho de 1904.

O fascínio de Borges por Joyce, e mais ainda por “Ulisses”, por certo vem de algumas coincidências existenciais e da força capital que o tempo e a eternidade, em seus componentes de circularidade e repetição, têm na literatura de Borges e também em James Joyce. Borges menciona o autor irlandês muitas vezes em seus escritos e dedicou a ele diversos artigos e ensaios. Quando se consulta as versões on-line do Catálogo Bibliográfico Completo e do Catálogo de Artigos na Imprensa, organizados pela La Maga: Associación Borgesiana de Buenos Aires, é possível encontrar muitos textos de Borges em que Joyce é o tema central ou está citado no argumento das abordagens sobre outros autores.









Crônica do Bloomsday: no alto e acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund para uma reportagem da
revista Time
em 1939, no apartamento em que morou
de 1935 até 1939, na Rue Edmond Valentin, em Paris.
Joyce, que era supersticioso e não gostava de ser
fotografado, concordou, aconselhado por sua editora
Sylvia Beach, depois de saber que o sobrenome de
casada de Giséle Freund era Blum, em conexão óbvia
com Leopold Bloom, personagem de “Ulisses”.

Abaixo, vista da O’Connel Bridge, sobre o rio Liffey,
em Dublin, capital da República da Irlanda, terra natal
de James Joyce, em fotografia de 1905






Páginas de 'Ulisses'


Os artigos de Borges trazem referências muito poéticas sobre suas leituras da obra de Joyce – com destaque para os que foram publicados na revista semanal El Hogar, na qual Borges foi colunista entre 1936 e 1939. Na seção “Libros y autores extranjeros: Guía de lecturas”, Borges publicava artigos, resenhas e traduções fragmentadas de autores de outros idiomas além do espanhol. Joyce já havia sido abordado por ele em textos publicados em outros periódicos, os primeiros deles em Proa, revista literária fundada pelo próprio Borges em 1922, ano da publicação do “Ulisses” de Joyce. Os longos artigos em Proa, com os títulos “El ‘Ulises’ de Joyce” e “La última hoja del ‘Ulises’”, foram publicados na mesma edição, em janeiro de 1925, apenas três anos após a primeira edição do romance pela Shakespeare & Company, com sede em Paris.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund em 1939. Abaixo, Joyce
nas duas vezes em que foi a reportagem de capa da
revista Time, em janeiro de 1934 e em maio de 1939







Sobre Joyce, na El Hogar, Borges publicou “Joyce e Yeats” (em outubro de 1936); “James Joyce” (em fevereiro de 1937); “Ulysse”, sobre a tradução do romance de Joyce para o francês (em fevereiro de 1938); e “El último libro de Joyce”, sobre o lançamento de “Finnegans Wake” (em junho de 1939), que deixou Borges fascinado pela variedade de fios narrativos "mágicos" e pela fusão de palavras do inglês com outras línguas. Na mesma época, Borges publicaria artigos sobre Joyce na Sur, revista fundada em 1931 por sua amiga muito próxima, a escritora Victoria Ocampo. Na Sur, Joyce foi o tema dos artigos de Borges “Joyce e los neologismos” (em novembro de 1939) e “Fragmento sobre Joyce” (em fevereiro de 1941).


Obra de muitas gerações


Os dois artigos mais poéticos de Borges sobre Joyce estão na El Hogar. No primeiro, em fevereiro de 1937, Borges escreveu: “Mais do que a obra de um só homem, ‘Ulisses’ parece de muitas gerações” – concluindo com uma confissão muito pessoal e definitiva: “A delicada música da prosa de Joyce em ‘Ulisses’ é incomparável.” O segundo artigo, publicado em junho de 1939, aborda “Finnegans Wake”, mas faz citações a “Ulisses”, em tom de profunda melancolia, quase que anunciando o horror da Segunda Guerra Mundial, que já se desenhava no horizonte, com as tropas da Alemanha Nazista ocupando a Polônia em 1º de setembro de 1939 e invadindo mais 11 países nos meses seguintes, transformando o conflito local em uma guerra mundial.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund. Abaixo, o casal
Joyce e Nora Barnacle na época em que
se conheceram em Dublin, em 1904




Às vésperas da Segunda Guerra, Joyce foi viver para França. “Ulisses” trouxe fama internacional, mas não impediu que ele vivesse angustiado e com destino de navegador errante por diversos países e endereços, numa jornada que remonta a referências da Antiguidade Clássica do personagem de Homero, do qual ele se apropriou em seu romance. Em uma carta a sua amada Nora Barnacle, ele definiu a si mesmo como “um homem solitário, insatisfeito, orgulhoso”. Diziam os amigos que, em público, Joyce era silencioso, lacônico, distante, com hábitos simples e rígidos na vida cotidiana que o levavam a comer sempre o mesmo prato, no mesmo restaurante, no mesmo horário, todos os dias.


Pavor de raios e trovões


Joyce também tinha problemas nos olhos e fez várias cirurgias que não foram suficientes para evitar o avanço do glaucoma. Seu drama com o avanço da cegueira é um dos temas de “Pomes Pennyeach” (Poemas, um tostão cada), publicado em 1927. Também era supersticioso, além de ter pavor incontrolável diante de raios e trovões, e teologia era um dos assuntos que, invariavelmente, despertavam seu interesse. Talvez por tudo isso certas críticas negativas provocassem nele imensa tristeza – críticas negativas tais como a de Virgina Woolf, que classificou “Ulisses” como “uma catástrofe memorável; imenso em atrevimento, terrível como um desastre” e recusou publicá-lo na The Hogarth Press. No artigo de junho de 1939 na El Hogar, Borges escreveu: “James Joyce, agora, vive num apartamento em Paris, com a sua mulher e os seus dois filhos. Vai sempre com os três à ópera, é muito alegre e muito conversador. Está cego.”








Crônica do Bloomsday: um fotógrafo anônimo
encontrou
James Joyce e Nora Barnacle a caminho
do casamento oficial no cartório, em Dublin, em 1931,
acompanhados de Fred Monro, advogado de Joyce,
que recomendou sobre a importância do
registro oficial de casamento.

Abaixo, uma página datilografada de “Ulisses”
com as inúmeras correções feitas a caneta por Joyce





James Joyce nasceu em Dublin em 2 de fevereiro de 1882, o mais velho de 10 crianças em uma família que passou rapidamente da riqueza à pobreza. Apesar das dificuldades, teve educação privilegiada como bolsista em uma escola jesuíta e no University College de Dublin. Sua estreia como autor foi aos 17 anos, quando publicou na Fortnightly Review o ensaio “The New Drama”, estudo sobre a obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Três anos depois, aos 20 anos, foi para Paris, com a intenção de estudar medicina, mas acabou trocando as ciências médicas pela dedicação à literatura e à leitura de seus autores preferidos naquela época, Dante, Shakespeare, Homero e Aristóteles.


As confissões eróticas


Em 1903, ele regressaria a Dublin, por causa da doença da mãe, que faleceu logo depois. No verão de 1904, ainda em Dublin, Joyce conheceu seu grande amor, Nora Barnacle, que se tornou sua companhia inseparável. Joyce tinha 22 anos; Nora, 20. A data da primeira vez que fizeram sexo é o dia 16 de junho de 1904, escolhida para a trama de “Ulisses”, sendo Nora sua inspiração para a personagem Molly Bloom. Pouco tempo depois, Joyce e Nora fogem de Dublin e saem em uma longa viagem pelo continente. Passaram alguns meses em Pula, na atual Croácia, e no ano seguinte foram morar em Trieste, na Itália, onde viveram até 1915, com Joyce no trabalho ocasional como professor de inglês. Tiveram dois filhos, registrados com nomes italianos, Giorgio e Lucia, e estiveram separados apenas por breves períodos em que Joyce viajou a Dublin. As cartas de Joyce para Nora, cheias de confissões eróticas, foram escritas nestas ocasiões.



            


Crônica do Bloomsday: acima, o casal Joyce e Nora
em fotografia da década de 1920. Abaixo, Joyce em
Zurique, em 1915, e uma cena do filme “
Nora”, lançado
no ano 2000, com direção e roteiro de
Pat Murphy, que
tem 
Ewan McGregor no papel de James Joyce
e
Susan Lynch como Nora Barnacle



         



O primeiro livro de poemas de Joyce, “Música de Câmara”, foi publicado em Londres em 1907. “Dublinenses”, seleção de 15 contos com ambientação em Dublin, teve primeira edição em 1914, no início da Primeira Guerra, época em que começou a escrever os rascunhos para “Ulisses”. A participação da Itália na guerra levou o casal a fugir novamente, em 1915, de Trieste para várias cidades da Suíça, até fixarem residência em Zurique, onde permanecem até 1919. Em Zurique, Joyce publica dois livros: “Retrato do artista quando jovem”, em 1916, e “Exílados”, em 1918.

"Retrato do artista quando jovem" pode ser definido como um romance 
de formação (Bildungsroman), pontuado de referências autobiográficas, sobre o amadurecimento existencial do personagem que iria retornar em "Ulisses", Stephen Dedalus, alter ego do autor, em sua trajetória da infância à idade adulta. O segundo livro trazia uma peça de teatro, a única que escreveu – uma reflexão sobre a formação de um triângulo amoroso entre um artista de vanguarda, Richard Rowan, um jornalista, Robert Hand, e a mulher de Richard, Bertha, que vai relatando ao marido cada passo das investidas do rival. "Exilados" (também traduzida para o português como "Exílios") remete, entre simetrias e alusões, a “Os mortos”, último conto de “Dublinenses”, e também a “Ulisses”.






Crônica do Bloomsday: acima, Joyce em 1914,
na época em que morava em Trieste, na Itália,
fotografado por seu irmão Stanislaus, tendo ao fundo
Nora e os dois filhos do casal, Lucia e Giorgio.

Abaixo, Joyce em Paris, em fotografia de 1939
de Giséle Freund, discutindo o lançamento do que
viria a ser seu último livro, “Finnegans Wake”,
com as editoras da Shakespeare and Company,
Sylvia Beach e Adrienne Monnier; e Joyce
em frente à sede da editora em Paris, em 1922,
com Sylvia Beach, fotografados por Noel Riley.

Também abaixo, Joyce homenageado em 1935
por Jacques-Emile Blanche em um retrato pintado
em óleo sobre tela. No final da página, a e
státua
instalada sobre o túmulo de James Joyce no
Cemitério Fluntern, em Zurique, na Suíça.


                

  



Fluxos de consciência


Ulisses”, a obra magna de Joyce, foi editada e lançada por sua amiga Sylvia Beach na Shakespeare & Company em 2 de fevereiro de 1922, dia do aniversário de 40 anos do autor. Repleto de referências à obra de Homero e de alusões a Shakespeare, à Bíblia e a outros clássicos, o romance recria um dia na cidade de Dublin, aquele dia 16 de junho de 1904, narrando a vida cotidiana de Leopold Bloom, um vendedor de anúncios publicitários. Ao longo de 24 horas, que a narração divide em 18 episódios, Bloom é comparado ao herói grego Ulisses, experimentando encontros, desencontros e reflexões em fluxos de consciência que elevam o trivial do cotidiano a um nível épico. O enredo, que segue a estrutura da "Odisseia" de Homero, apresenta como personagens centrais Leopold Bloom, seu amigo Stephen Dedalus, jovem intelectual, e Molly Bloom, esposa de Leopold, que está envolvida em um caso extraconjugal. 

Um dos motores da narrativa é a interação entre Leopold e Stephen, que o influencia em relação à arte e ao pensamento, sintetizando o encontro de duas gerações e duas formas distintas de entender o mundo. A relação entre Leopold e Stephen, complexa e multifacetada, surge como uma jornada de descoberta mútua e uma busca de sentido espiritual. Leopold Bloom é um homem de meia-idade, enquanto Stephen é um jovem escritor e artista, ambos vivendo em Dublin. A narrativa os une através de uma série de encontros fortuitos, com Bloom vendo em Stephen um filho substituto e Stephen encontrando em Bloom um pai ausente, em aproximações com a relação entre Odisseu e Telêmaco na mitologia grega. Em contraponto, Molly Bloom traz um paralelo irônico com a Penélope da “Odisseia”, a esposa fiel do Ulisses de Homero.






A edição de “Ulisses” em inglês, considerada pelas autoridades oficiais uma obra pornográfica, foi proibida na Inglaterra, nos Estados Unidos e nos países anglo-saxônicos, o que contribuiu para Joyce se tornar o assunto principal dos círculos intelectuais e terminar reconhecido como o autor mais célebre de sua época. O livro se tornaria uma referência para toda a literatura modernista, mas só teve autorização para publicação nos Estados Unidos em 1933. Na Inglaterra, só foi publicado em 1936. Na Irlanda, terra natal do autor, nunca foi oficialmente proibido, mas a censura alfandegária impediu sua ampla circulação até a década de 1960. O leitor brasileiro também teve que esperar durante décadas pela primeira edição do livro de James Joyce, o que só aconteceu em 1966, com a tradução feita por Antônio Houaiss para publicação pela Civilização Brasileira.

“Ulisses” teve mais duas edições no Brasil. Em 2005, Bernardina da Silveira Pereira fez a segunda tradução, publicada pela Editora Objetiva. A terceira tradução foi feita por Caetano Galindo e publicada em 2012 pela Companhia das Letras em parceria com a Penguin Classics, que teve revisão e nova edição em 2022. Há, também, uma nova edição com 18 tradutores, um para cada capítulo, anunciada pela Ateliê Editorial. Além das traduções integrais, fragmentos de “Ulisses” foram traduzidos por outros autores, entre eles Pagu, Erasmo Pilotto, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. O livro de Joyce também mereceu análises dos principais nomes da intelectualidade no Brasil desde o primeiro momento. O primeiro foi Mário de Andrade, que escreveu sobre sua leitura de “Ulisses” no artigo “Da fadiga intelectual”, publicado na Revista do Brasil, em junho de 1924. Meses depois, em dezembro, Gilberto Freyre publicou no Diário de Pernambuco um artigo com o título “Ulisses”, no qual descreve o romance de James Joyce como “reportagem taquigráfica de flagrantes mentais”.

Joyce estava aclamado como escritor quando morreu em Zurique, em 1941, prestes a completar 59 anos. Nora, desde então, passou a viver reclusa, na solidão, e também morreu em Zurique, em 1951. Para concluir, vale lembrar que depois de tantos textos e de tantas análises, de Borges e de tantos leitores, anônimos ou célebres, o melhor mapa de leitura de "Ulisses" talvez ainda seja o esquema elaborado pelo próprio Joyce para ajudar um amigo, o escritor e tradutor italiano Carlo Linati, no entendimento e na interpretação de sua obra monumental. O certo é que a literatura nunca mais seria a mesma depois daquele dia 16 de junho de 1904.


por José Antônio Orlando

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Crônica do Bloomsday. In: Blog Semióticas, 16 de junho de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/06/cronica-do-bloomsday.html (acesso em .../.../…).

 

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23 de setembro de 2024

Sobre Fredric Jameson





Os últimos anos foram marcados por um milenarismo invertido em que 

todo pensamento sobre o futuro, catastrófico ou redentor, foi substituído 

por sentidos do fim deste ou daquele sistema: o fim da ideologia, da 

história, da arte, da luta de classes, da social-democracia ou do estado 

de bem-estar social, etc., etc., etc.; em conjunto, todos estes “finais” 

talvez constituam o que vem sendo chamado de pós-modernismo. 

–– Fredric Jameson.  




Para muitos, Fredric Jameson, que morreu ontem (22 de setembro), aos 90 anos, foi um dos mais importantes e mais influentes pensadores de nossa época. Autor de referência em um vasto espectro bibliográfico das Ciências Humanas, da Sociologia à História, das Comunicações às Ciências Políticas, das Letras à Filosofia, Jameson foi brilhante em várias frentes, como crítico literário, como crítico cultural e como teórico marxista. Suas ideias, seus livros e seus ensaios talvez sobrevivam pelas próximas décadas em destaque.

Tive a sorte de entrevistá-lo há exatamente duas décadas, em 2004, em sua passagem por Belo Horizonte, onde participou como conferencista em um seminário internacional promovido pela UFMG. Na realização da entrevista, fui acompanhado por duas autoridades, as professoras da Faculdade de Letras da universidade Eneida Maria de Souza, leitora contumaz da obra de Jameson e também conferencista no mesmo evento, e Ana Lúcia Gazzola, uma de suas tradutoras e, na época, reitora da UFMG.

Na entrevista, publicada pelo jornal O Tempo, Jameson comentou sobre suas surpresas com o Brasil e, com muito bom humor e ironia, sobre algumas diferenças peculiares que descobriu de Minas Gerais com o Rio de Janeiro, com São Paulo e com o Rio Grande do Sul, que ele também visitou naqueles dias. Falou sobre a gastronomia, sobre a música que ouvia nas ruas, sobre o repertório eclético de seus ouvintes nas conferências e sua expectativa para visitar os cenários barrocos de Ouro Preto e o Adro dos Profetas do Aleijadinho em Congonhas, que ele conhecia de longa data por fotografias. Também falou com muito otimismo sobre as expectativas para um primeiro governo de esquerda no Brasil – o presidente Lula havia sido eleito para o primeiro mandato e estava no cargo há pouco mais de um ano.










Sobre Fredric Jameson: no alto, Jameson na sala de aula,

na Duke University, em 1988. Acima, na Sala São Paulo,

em 2011, convidado como conferencista do simpósio

internacional Fronteiras do Pensamento. Abaixo,

reprodução da capa do último livro de Jameson,

"Inventions of a present", publicado em maio

pela Verso Editions. Nas imagens abaixo, Jameson

no Fronteiras do Pensamento em São Paulo

 




O futuro do capitalismo


A entrevista durou cerca de uma hora, no intervalo após o almoço típico da cozinha mineira. Jameson demonstrou ser um brasilianista – um conhecedor da cultura e da literatura brasileira, com avaliações e comparações sobre algumas notícias que viu em destaque na imprensa e sobre os filmes “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, e também Machado de Assis, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, canções da Bossa Nova e do Tropicalismo.

Concluímos a entrevista com um questionamento sobre o futuro do capitalismo e sobre o cenário de guerra que estava no horizonte – os eventos de 11 de setembro de 2001 ainda eram história recente e uma questão inevitável a ser abordada. Jameson foi pessimista nas previsões, mas ressaltou alguma promessa de felicidade nos rumos da arte e da literatura, na maneira como arte e literatura sempre colocam em primeiro plano não as soluções ocasionais para um problema, mas as grandes contradições de uma época, o que sempre vem possibilitar, para os estudos acadêmicos e para o exercício do pensamento crítico, “o salto de um tigre em direção ao passado e em direção ao entendimento do tempo presente”.








Nas expectativas sobre o futuro também estavam, segundo Jameson, as previsões para um novo ciclo de democracia e de desenvolvimento para os países da América Latina, que pela primeira vez, depois de décadas, estavam deixando para trás regimes autoritários e ditaduras militares. Quanto ao progresso econômico e à superação dos abismos na distribuição de renda, no entanto, suas expectativas eram reticentes, ainda que bastante realistas e bem fundamentadas. Progresso sim, ele reconhecia, mas com certeza um progresso caminhando a passos lentos e pontuados de incerteza. Nas palavras de Jameson: seria mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.


A invenção do presente


O livro mais recente de Jameson também aborda este “salto do tigre” em direção ao passado. Inventions of a Present: The Novel in Its Crisis of Globalization (Invenções de um presente: o romance em sua crise de globalização), com título retirado de uma epígrafe de Mallarmé, foi lançado em maio pela Verso Editions de Londres e Nova York. Ainda sem publicação no Brasil, traz uma coletânea de ensaios sobre livros e autores – sobre romances, como indica o subtítulo, e sobre autores recorrentes nas reflexões de Jameson, tais como Joseph Conrad, Henry James, Norman Mailer, Margaret Atwood, Günter Grass, Gabriel García Márquez e outros.








No Brasil, a extensa obra de Jameson (com cerca de 30 livros em inglês) tem alguns poucos títulos editados em uma variedade de editoras. Dos mais recentes, Arqueologias do futuro: O desejo chamado Utopia e outras ficções científicas saiu em 2021 pela Editora Autêntica. Um dos mais conhecidos, Pós-Modernismo – A lógica cultural do capitalismo tardio, saiu em 1997 pela Editora Ática, que também publicou outros dois livros centrais no pensamento autor, O inconsciente político, em 1992, e As sementes do tempo em 2008.

Outras edições nacionais são Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios, que saiu em 2006 pela Editora da UFRJ; As marcas do visível, que saiu em 1995 pela Editora Graal e foi reeditado em 2007 pela Editora Paz e Terra; e Modernidade singular, editado em 2005 pela Editora Civilização Brasileira, que também publicou em 2006 A virada cultural. Em 2001 foi lançado A cultura do dinheiro pela Editora Vozes. Em 1997, O marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética foi publicado em edição conjunta da Editora UNESP e da Boitempo Editorial.


A utopia de pensar o futuro


Há também o primeiro livro de Jameson lançado no Brasil, Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX, publicado pela Editora Hucitec em 1985, além de ensaios dispersos em coletâneas e publicações científicas. A grande maioria dos livros que Jameson publicou, contudo, permanece inédita em português, entre eles seus célebres estudos sobre autores que estão na gênese de seu pensamento crítico – como Jean-Paul Sartre (Sartre: The origins of a style), Walter Benjamin (Benjamin filles) e Bertolt Brecht (Brecht and method).







O legado de Jameson é inegável e também incontornável. Ao retomar pressupostos de pensadores que vieram antes dele, e também de seus contemporâneos, ele atualizou a perspectiva utópica de pensar o futuro sob o prisma da transformação social e cultural. Quando suas ideias e seus livros começaram a ganhar destaque, na década de 1970, a novidade de Jameson estava, principalmente, no reconhecimento das múltiplas camadas do texto literário (e também do cinema e de outras formas narrativas). Tal novidade pode ser percebida ainda hoje na leitura de sua primeira publicação de destaque, Marxismo e forma, de 1971. O livro, que surge no contexto da Nova Esquerda dos EUA, apresenta uma revisão ousada, e também didática, sobre as contribuições da tradição de crítica cultural marxista da Europa, incluindo Lukács, Adorno, Benjamin, Bloch, Marcuse, Sartre e outros autores que, naquele momento histórico, também eram lançados no ambiente acadêmico brasileiro.

As circunstâncias históricas e o contexto social de um texto (ou de uma narrativa, ou de um determinado objeto estético), da mesma maneira que seu conteúdo, nas análises de Jameson direcionam a interpretação, seja em uma abordagem sobre uma obra canônica da literatura ou sobre gêneros e autores raramente estudados no contexto acadêmico, desde a ficção científica até histórias policiais de Raymond Chandler ou filmes que escapam ao gosto da crítica tradicional ou do senso comum. Mesmo diante da cultura de massa e das formas que a crítica considera degradadas na cultura contemporânea, como o cinema mais comercial ou obras voltadas para o entretenimento, as armas da dialética marxista estão, para Jameson, a serviço de análises que evidenciam profundas contradições formais, contribuindo para revelar aspectos férteis para uma utopia de transformação ou para o surgimento de algum senso crítico no público ou no leitor.








A formulação de alternativas


Nascido em Cleveland, Ohio, em 1934, com doutorado em Yale, em 1959, e desde 1985 professor na Duke University, Carolina no Norte, Jameson tornou-se um teórico central em abordagens sobre marxismo, modernismo, pós-modernismo e aproximações entre literatura e outras artes. De sua tese inaugural, sobre a literatura de Sartre, às discussões críticas sobre arquitetura, filmes, artes visuais, autores de ficção ou trabalhos estritamente filosóficos, as questões teóricas sobre ideologia e modernismo que Jameson aborda quase sempre vêm revelar as contradições do capitalismo. Pelas diretrizes e conclusões de suas análises, o leitor entende como as formas culturais refletem e participam da dinâmica histórica do poder e das ligações inevitáveis entre política, economia e cultura. Conforme Jameson ressalta, as formas culturais são determinadas por modos de produção que são resultado de escolhas históricas, mas que não são eternas. Sempre é possível mudar tudo.

Estas ligações inevitáveis entre política, economia e cultura dimensionam a tese que resume sua obra mais famosa, Pós-Modernismo – A lógica cultural do capitalismo tardio, de 1991. No livro, Jameson, com seus argumentos sempre questionadores e inconformistas, introduz o conceito de pós-modernismo como uma fase histórica, e não um estilo, ligada ao capitalismo tardio, argumentando que a fragmentação e a superficialidade da cultura contemporânea não são apenas estratégias de alienação: elas são, na verdade, sintomas das transformações políticas e econômicas do mundo globalizado. Talvez por isso a grande urgência para o pensamento crítico que Jameson propõe esteja na formulação de alternativas, diante do caos ou diante da complexidade, para desmascarar e transformar as estruturas de poder que dominam e condicionam a cultura contemporânea.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Sobre Fredric Jameson. In: Blog Semióticas, 23 de setembro de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/09/sobre-fredric-jameson.html (acessado em .../.../…).


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Fredric Jameson homenageado em colagem de Matthieu Bourel.

Abaixo, a íntegra de uma conferência de Jameson
 
no simpósio Fronteiras do Pensamento













 

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