Em um de seus muito conhecidos ensaios sobre a literatura do escritor de língua alemã nascido na cidade Praga, no antigo Império Austro-Húngaro, Franz Kafka (1883-1924), o professor e crítico literário Harold Bloom questiona: O que confere a Kafka uma autoridade espiritual tão única? A resposta, para Bloom e para qualquer leitor atento que conheça a obra em questão, alcança pontos de muita complexidade. Basta lembrar que poucos escritores tiveram seu nome transformado em adjetivo com tanta propriedade. "Kafkiano", na língua portuguesa, passou a designar algo surreal, muito complicado ou labiríntico, características marcantes da escrita deste genial escritor, laureado como cânone moderno ao lado de nomes como Marcel Proust e James Joyce: uma escrita de textos breves em que afloram o tom exasperado, atencioso ao menor detalhe, em temas que vão da alienação à perseguição implacável, do gnosticismo à religiosidade cifrada em dogmas teológicos.
Um estilo, enfim, que segundo os especialistas na obra do autor de "A Metamorfose" (1915) e "O Processo" (1925), ao retratar indivíduos preocupados com o pesadelo de um mundo impessoal e burocrático, expõe em profundidade os medos e as questões existenciais mais profundas de cada um de nós e de todos, incluindo, especialmente, o próprio Kafka, nascido em uma família judaica de classe média e falante do alemão, em uma época em que os moradores de Praga, na atual República Tcheca, em sua imensa maioria, falavam tcheco. Kafka, com sua angústia perante a realidade de seu tempo e também sua solidão interior, publicou apenas alguns poucos contos em vida, não terminou nenhum de seus romances e queimou cerca de 90% de seus escritos. O pouco que restou, incluindo obras como "O Processo", "O Castelo" e "O Desaparecido", foi publicado postumamente por iniciativa de seu amigo Max Brod, que não respeitou a vontade relatada a ele por Kafka, que era de ter todos os seus manuscritos destruídos.
Denso, filosófico, simbólico, mas também inaugurando na literatura uma mistura insólita entre o horrível e o absurdo, entre o cômico e o melancólico, que nenhum autor havia antes experimentado, mas que outros adotaram depois dele, o sentido quase sempre mítico e surpreendente dos textos de Kafka tem parentesco direto com as parábolas, aquele gênero sempre associado aos evangelhos bíblicos do Novo Testamento. Tal como as narrativas alegóricas de fundo religioso, baseadas em comparações e em formas diversas de analogias, as histórias e situações imaginadas por Kafka têm, sempre, um fim didático, baseadas em confrontos de crônicas de costumes ou observações analíticas sobre questões só na aparência simples ou insignificantes.
O leitor brasileiro, que muito provavelmente, assim como eu, conhece a obra do autor tcheco pelas traduções para o português feitas por Modesto Carone, que a partir de "A Metamorfose", livro publicado pela Editora Brasiliense em 1983, traduziu até 2002 a obra completa de Kafka, agora tem mais uma possibilidade de mergulhar nesta obra emblemática. Muitos já haviam percebido o parentesco da literatura personalíssima de Kafka com as parábolas de tradições ancestrais, mas coube ao alemão Nikolaus Heidelbach a iniciativa de selecionar e ilustrar uma série delas, distribuídas na obra do autor de "A Metamorfose": em cada parábola selecionada, cada relato é sucinto, e em cada um dos pequenos fragmentos a simples e aparente normalidade da existência definitivamente sucumbe, em certo momento, diante do inadiável desespero da sobrevivência.
Ao longe, o cantar de um galo
A
seleção de Kafka segundo Heidelbach chegou às livrarias com o
título "Oportunidade para um Pequeno Desespero" (Editora
Martins Fontes). São 26 textos, organizados e ilustrados por
Heidelbach, que têm sabor de inéditos mesmo para o leitor
brasileiro mais dedicado à obra breve e fundamental de Kafka. Com um
senso de humor ferino, os desenhos de Heidelbach traduzem e dialogam
com as parábolas em seus pequenos lances que traduzem grandezas
cifradas.
Nikolaus
Heidelbach selecionou as histórias do livro entre os diários,
cartas e textos diversos de Franz Kafka, a partir de uma frase –– que
dá título ao livro e foi extraída do romance "O Castelo"
(1926), quando o personagem K. encontra-se sozinho na rua com os pés
afundados na neve, entre um castelo e uma aldeia desconhecidos, e
pensa, com uma fina ironia que questiona e ao mesmo tempo coloca em
cheque o sentido tétrico da narrativa: "Oportunidade para um
pequeno desespero".
A citação não vem reproduzida na edição, mas surge indiretamente na forma de epígrafe –– "Se alguém tem uma pele amarelada, não tem escolha a não ser mantê-la, mas não precisa, como Frieda, ainda por cima, vestir uma blusa bem decotada cor de creme, de forma que os nossos olhos transbordem de tanto amarelo (?). Em algum lugar um senhor até imitou o canto de um galo".
Entre os 26 textos, há "Cinco Amigos", que trata com humor a falta de sentido das relações humanas, como bem define o narrador: "E qual é o sentido, afinal, dessa contínua comunhão, também entre nós cinco não há sentido, mas agora já estamos juntos e vamos permanecer assim". Outras vertentes do humor, com lances de absurdo e de literatura fantástica, surgem no surpreendente "A Ponte", no qual um homem percebe o que é uma ponte e espera pelo seu próprio fim: da construção da muralha da China, o mecanismo burocrático é transportado para uma terra distante e, dessa forma, evidencia sua desumanidade.
Histórias mais absurdas
Nascido
em uma família da classe média judia e falante da língua alemã,
durante os tempos de crise do antigo Império Austro-Húngaro, Franz
Kafka deixou alguns poucos textos escritos, obras na maioria
incompletas, longes da versão final que pretendia um dia concluir.
Publicadas depois de sua morte, estas poucas obras fizeram dele uma
referência como um dos maiores escritores da Literatura Universal.
Autor
de novelas, romances e coletâneas de contos, Kafka escreveu também
a turbulenta "Carta ao Pai" (1919), com mais de 100
páginas, e centenas de páginas de diários. Muitas das obras hoje
conhecidas de Kafka ele não concluiu, especialmente as narrativas
longas, entre elas os romances "América" e "O
Castelo" e alguns capítulos de "O Processo" –
romance escrito sem ordem cronológica e sobre o qual, como em vários
outros casos, pairam controvérsias questionando se a edição
oficial é mesmo a definitiva.
Em "A Metamorfose", seu texto mais conhecido, Kafka narra o caso de um homem que acorda transformado num gigantesco inseto. Em "O Processo", um certo Josef K. é julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora. Em "O Castelo", o agrimensor K. não consegue ter acesso aos senhores que o contrataram, enquanto "Na Colônia Penal" (1914) fala sobre uma máquina que tem o poder de executar sentenças.
No sistema jurídico arbitrário de "Na Colônia Penal", apenas imaginado por Kafka, no qual o acusado não tem direito à defesa, um instrumento de tortura escreve, lentamente, sobre a pele do corpo do condenado, a sentença do crime que, muitas vezes, nem mesmo ele sabe que cometeu. Kafka antecipa, em muitas décadas, um termo que a Teoria Geral do Direito só iria incorporar em meados dos anos 1970: o "Lawfare", palavra-valise formada por "law" (lei) e "warfare" (guerra), podendo ser traduzida em português como "guerra jurídica", ou uma guerra em que a lei e manobras jurídico-legais são usadas como arma contra um adversário para fins de perseguição política.
No sistema jurídico arbitrário de "Na Colônia Penal", apenas imaginado por Kafka, no qual o acusado não tem direito à defesa, um instrumento de tortura escreve, lentamente, sobre a pele do corpo do condenado, a sentença do crime que, muitas vezes, nem mesmo ele sabe que cometeu. Kafka antecipa, em muitas décadas, um termo que a Teoria Geral do Direito só iria incorporar em meados dos anos 1970: o "Lawfare", palavra-valise formada por "law" (lei) e "warfare" (guerra), podendo ser traduzida em português como "guerra jurídica", ou uma guerra em que a lei e manobras jurídico-legais são usadas como arma contra um adversário para fins de perseguição política.
Como sempre, em Kafka, no território de "Na Colônia Penal" não há sinal algum de redenção. Trata-se, na verdade, de uma história absurda sobre uma Colônia que usa esta máquina para torturar e matar pessoas, sem que estas sequer saibam o porquê de sua morte. Para a maior parte dos críticos e pesquisadores de literatura, os protagonistas das narrativas de Kafka são projeções dele mesmo e de sua incapacidade de adaptação na vida social e nos estudos.
Pesadelos burocráticos
Autor
de uma literatura personalíssima que quase não encontra paralelos
com obras produzidas nos séculos anteriores – e que deu origem ao
adjetivo “kafkiano”, aplicado quando o que está em jogo são
perseguições e situações características dos escritos do autor, Kafka retrata, talvez invariavelmente, indivíduos comuns preocupados com os pesadelos avassaladores de um mundo
impessoal, injusto e burocrático. Um mundo que domina, que oprime, sem critério e sem justificativa.
O mais velho de seis filhos de um pai descrito pelo biógrafo Stanley Corngold (em "Introdução à Metamorfose", 1972) como “um grande negociante egoísta e arrogante", e pelo próprio filho como "um verdadeiro kavka ("gralha", em tcheco) nos quesitos força, saúde, apetite, sonoridade vocal, resistência e conhecimento da natureza humana" (em "Carta ao Pai"), Kafka atingiu pouca ou nenhuma fama, nem prestígio, com seus livros, na maioria editados postumamente. Em cada texto, o autor abarca à perfeição o conceito de “literatura moderna” e expõe seus medos, sua angústia perante o mundo, sua solidão e sua relação problemática com a família e os círculos sociais de sua época. Morreu em junho de 1924 num sanatório perto de Viena, onde se internou com tuberculose.
Desde então, seu legado único, incompleto, pessimista – resgatado e publicado pelo amigo Max Brod – exerce enorme influência na literatura e na cultura em geral, com adaptações para o cinema e outras mídias e como referência para outros escritores, artistas de áreas diversas e também músicos, como comprova o trabalho singular do cantor, compositor e instrumentista Otto em videoclipes, no show, nas canções e na concepção do CD intitulado “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos”.
O artista intranquilo
"Certa
manhã, quando Gregório Samsa acordou, após um sono intranquilo,
achou-se em sua cama convertido em monstruoso inseto". O músico pernambucano Otto
tomou emprestada esta frase célebre, que abre o livro "A Metamorfose", uma das obras mais conhecidas de Franz Kafka, para batizar um dos melhores CDs da safra recente produzida no
Brasil, o impecável "Certa Manhã Acordei de Sonhos
Intranquilos".
O
quarto álbum de estúdio do cantor, compositor e percussionista
pernambucano – lançado no apagar das luzes de 2009, pelo selo
Arterial Music, reunindo dez canções, oito delas inéditas, com
sonoridade dançante e belas letras cheias de melancolia – consumiu
cinco anos de trabalho do músico. Mas todo o esforço foi recompensado com a aclamação pelo público que acompanha a trajetória de Otto, além do histórico de prêmios que conquistou e dos elogios
unânimes dos críticos mais renitentes, no Brasil e no exterior.
"Deu sim muito trabalho e muita aporrinhação, mas o resultado eu acho que traduz um pouco do meu melhor", explica Otto, com muita calma e muito bem-humurado, do Rio de Janeiro, na entrevista que fiz com ele por telefone, para um jornal de Belo Horizonte. A entrevista foi feita em uma data das mais emblemáticas do calendário político brasileiro: a tarde do feriado do dia sete de setembro. Lembro a ele da data especial e do simbolismo que ela representa, assim que começamos a entrevista.
"Sim, engraçado que hoje é mesmo dia sete de setembro, isso mesmo, o dia em que Dom Pedro gritou que era independência ou morte", ele constata, meio que achando graça de sua distração com o calendário. "Mas agora tem também o 11 de setembro, que virou uma outra data emblemática no mundo inteiro. Há muito tempo que penso nesta data do 11 de setembro para um show que seja mesmo marcante, que chegue para ficar na cabeça das pessoas como uma lembrança boa, porque as lembranças boas é o que movem a vida da gente", ele diz.
Não por acaso, Otto escolheu outra data cabalística como cláusula prevista em contrato para o lançamento do próximo disco. "Dia 11 do 11 de 2011 é a data marcada e assinada para a estreia do próximo show e para o lançamento do próximo CD, que vai trazer canções inéditas sobre garotas, máquinas e amores", ele conta, antecipando detalhes mirabolantes, ideias e planos – "alguns impossíveis para agora, mas gravados na ponta do lápis para uma próxima", ele diz - para a produção do próximo trabalho.
Um cenário que lembra a Lua
"Será
um disco experimental, diferente, com uma mistura de sons e de
ritmos, umas coisas de sons espaciais e muitas referências ao Pink
Floyd, que eu amo de paixão, e ao filme 'Farenheit 451', de François Truffaut, que é uma coisa que mexeu muito e ainda mexe muito comigo, mais
a presença luxuosa de um bando de músicos que eu acho que são de primeira linha",
destaca Otto.
"Já
está tudo acertado", ele diz. "Ah, e tem também a
participação muito especial de dois mestres que são o Naná Vasconcelos e
uns remixes de passagens de som do Fela Kuti, os dois vão estar presentes no espírito do disco, meu grande mestre pernambucano, pioneiro em misturar
percussão com mil coisas, e meu mestre africano, pioneiro da música que a gente chama hoje de afrobeat".
"Já tenho até a foto da capa do próximo CD na cabeça: será um cenário que lembra a lua, com um trono africano e eu e os músicos montados em trajes da tradição tribal. Tem também um verso que está me perseguindo e que deve conduzir as composições que ainda estão por vir. O verso é assim: há um lado da cama que existe entre nós" – ele recita, cantarolando o improviso ao telefone e explicando o parentesco intrincado das novas ideias com outros discos, outras canções, outros filmes e livros.
Enquanto o próximo disco vai fervilhando na cabeça do artista, o último CD segue rajetória de sucesso, com turnê de Otto e banda pelo Brasil e outros países e elogios na imprensa internacional – entre eles o aval do sisudo "The New York Times", que rasgou elogios em longa matéria especial e chamou Otto de "Moby do sertão" – em referência ao festejado artistas da cena eletrônica dos EUA.
O Moby do sertão
Como
se não bastasse, o CD "Certa Manhã Acordei de Sonhos
Intranquilos" – que traz projeto gráfico
surpreendente e fotos na capa e encarte de Cafi e Talita Miranda que
registram Otto na Floresta da Tijuca – também emplacou
simultaneamente duas canções com sucesso em trilhas de novelas que
disputaram a audiência no mesmo horário. Coisa rara. Otto emplacou
"Crua" como um dos principais temas musicais em "Passione",
da Rede Globo, e "Naquela Mesa", na trilha de "Ribeirão do
Tempo", da Rede Record.
"Este
disco, com este título que no princípio todo mundo achava
esquisito, é de certa forma minha evolução", ele diz. "Do
primeiro CD, 'Samba pra Burro', posso dizer que é o que mais gosto,
porque era uma carta de intenções. Os seguintes, incluindo o
'Condom Black' e o 'Sem Gravidade', também acho bons, fortes. Mas
este atingiu um ponto legal, porque é um disco difícil,
sofisticado, literário, que está provando que é possível sim,
tocar as pessoas e emocionar e divertir e fazer pensar sem abrir
concessões e sem explorar o mais fácil, o previsível. E também
não pode ser impaciente”, ele diz, citando a sabedoria da
literatura de Kafka:
"Tem
uma passagem muito bonita do Kafka que eu li e que ficou na minha
cabeça. Ele fala que talvez exista apenas um pecado capital, que é
a impaciência. Muito louco isso. O Kafka escreveu que foi por causa
da impaciência que fomos expulsos do Paraíso. E depois diz que é
por causa da impaciência que não podemos voltar”.
por José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Parábolas de Kafka. In: Blog
Semióticas,
21 de julho de 2011. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/parabolas-de-kafka.html
(acessado em .../.../…).
Para comprar o Box Franz Kafka (três livros), clique aqui.
Para
comprar Oportunidade
para um pequeno desespero, clique aqui.