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5 de outubro de 2011

Humor romeno





O cérebro é o meu segundo órgão favorito.
(My brain: it's my second favorite organ.)

 ....–– Woody Allen, no papel de Miles Monroe,
em cena de “Sleeper” (O Dorminhoco). 


Brevidade, poesia e humor – indicadores por excelência das qualidades gráficas – são características que servem como uma luva para definir o trabalho do ilustrador Saul Steinberg (1914-1999), conhecido no mundo inteiro por conta de seus trabalhos publicados durante décadas na revista norte-americana "The New Yorker". Tidas como difíceis para o senso comum, burguesas, surreais e muitas vezes impenetráveis, as ilustrações e charges da revista tiveram no trabalho do artista nascido na Romênia um de seus principais baluartes. Hoje, é difícil separar a arte de Steinberg da identidade visual que a “The New Yorker” representa.

Uma amostra sofisticada da arte de Steinberg chegou ao Brasil através de um livro que reúne seus desenhos e textos memorialistas. Também recentemente uma exposição prestou tributo ao artista romeno, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro em parceria com a Pinacoteca do Estado de São Paulo. O livro de Steinberg recebeu no Brasil o título "Reflexos e Sombras" (IMS), enquanto a exposição "Saul Steinberg: As aventuras da linha" vai reuniu os originais de 111 desenhos feitos entre os anos 1940 e 1960, época em que o artista, atuando como designer gráfico e cartunista, passou a colaborador da "The New Yorker" (a revista começou a publicar seus desenhos em 1941) e começou a despontar como artista internacional.

















A mostra no IMS, com curadoria a cargo da historiadora Roberta Saraiva, apresenta uma seleção da arte produzida por Saul Steinberg que vem do acervo da fundação que gerencia seu legado (a Saul Steinberg Foundation, com sede em Nova York), incluindo obras que foram restauradas recentemente e também trabalhos em formatos incomuns, entre eles quatro desenhos em rolos de papel feitos por Steinberg para a Trienal de Milão, Itália, de 1954. São desenhos murais de formato ousado e proporções arquitetônicas. O maior, "The Line", tem 10 metros de comprimento. Os murais nunca haviam sido expostos em conjunto.

Também integram a exposição dois desenhos com inspiração brasileira: "Pernambuco", uma mistura de personagens, bichos e motivos locais, e "Grande Hotel de Belém", ambos realizados a partir de desenhos de anotação e de cartões-postais colecionados por Steinberg durante uma viagem que fez pelo Brasil em 1952. Na época, o artista veio acompanhar uma exposição em retrospectiva sobre sua obra, apresentada naquele ano no Museu de Arte de São Paulo (MASP). A exposição aconteceu por conta da amizade de Steinberg com Pietro Maria Bardi, diretor e mentor do MASP. Assim como Steinberg, Bardi também havia colaborado com a revista Il Settebello, quando ambos ainda moravam na Itália, na década de 1930.


















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Humor romeno
: no alto, amostras da
complexidade na implacável crítica de
costumes do traço de Saul Steinberg para
as capas da revista The New Yorker.
Acima, dois cartuns anti-fascistas,
Desfile (1945) e Arquiteto Adolf Hitler
(1943), publicados no jornal de
Nova York PM (Picture Magazine).

Abaixo, uma seleção de charges
também publicadas na The New Yorker:
Passado, de 1949; Cowboys, de 1952;
Retrato de família, na capa de 1968;
Felizes para sempre, de 1953; Miami, de
1977; e Dia de Ação de Graças, de 1976



















 
O livro “Reflexões e Sombras” nasceu das muitas conversas entre Saul Steinberg e seu amigo italiano Aldo Buzzi, que depois transcreveu e editou as gravações. Steinberg demonstra na brevidade do texto o que suas ilustrações traduzem em poucos traços. Ele conta sua história em poucas palavras e procura fazer passar diante do leitor todo o século XX, mostrando desde sua infância na Romênia ao sucesso em Nova York.



O real e o imaginado



Sou o contrário de um expressionista”, confessa Steinberg nos breves textos incluídos na edição brasileira do livro “Reflexões e Sombras”. “E, de resto, também de um impressionista”. No livro, o real e o imaginado se duplicam, como se a alegoria do desenho da capa da edição brasileira fosse uma exata tradução do conteúdo. No breve relato de Steinberg, não faltam muito bom humor e pausas de uma memória singular, num jogo metalinguístico tão saboroso como os desenhos selecionados que intercalam o texto breve.





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Saul Steinberg ficou conhecido por, usando às vezes uma única linha, questionar em seus desenhos o papel das rotinas, a vida que levamos. Uma amostra resumida do melhor de Steinberg está representada nas 63 imagens da edição brasileira de “Reflexos e Sombras”. Observações mínimas, ao mesmo tempo leves e filosóficas, figuras de cartum junto a reproduções realistas de recortes de fotografias e objetos.

O livro é preciso ao intercalar ideias e imagens na aparência simples, mas que encerram uma complexidade que se multiplica quando o leitor olha devagar para elas e se deixa envolver nos significados. O texto é brevíssimo: comentários sobre o passado, pessoas, a luz, a cor, a paisagem, o ângulo de visão – e reflexões saborosas, tanto quanto minimalistas, como o breve comentário sobre o hábito romeno de usar a expressão “sentir o gosto da lua numa colherada de água de poço”.






 






Saul Steinberg em 1962, fotografado
por Inge Morath com as máscaras 
que ele inventou e tornou célebres no
mundo inteiro. No alto, Longevidade,
de 1977. Abaixo, humor e política em
Vinte Norte-Americanos, de 1969,
Peru de Natal, arte para a capa da
revista The New Yorker em 1992.
Também abaixo, Estúdio Turco,
arte de 1953 em lápis crayon, tinta
e aquarela sobre papel; e Van Gogh,
ilustração de 1982 em colagem, giz
de cera e pintura em técnica mista





 











Na Romênia, conta Steinberg, nas noites de lua, as camponesas olhavam para o fundo dos poços até ver a lua. Então jogavam um balde no poço, lentamente puxavam a água com a lua dentro e bebiam o reflexo com uma colher. Histórias de Steinberg: o gosto, o silêncio, o gostar, o imaginar, um escritor que desenha em vez de escrever.

Como se vê na lenda romena, os traços e a palavra de Steinberg traduzem à perfeição sensações, para logo em seguida tudo desaparecer, quando se vira a página e lá está outra imagem surpreendente. Algumas imagens de jornais e revistas o leitor esquece com facilidade, outras resistem na memória e convidam a novas associações. As imagens produzidas por Steinberg pertencem a este segundo grupo.











Reflexões com recheio de imagens 



"Reflexos e Sombras", como aponta Marcelo Coelho na apresentação, traz à tona o pendor literário de um mestre do desenho que gostava de dizer que, na verdade, era um escritor que desenhava em vez de escrever. Recheado de surpreendentes desenhos e charges, o livro é dividido em quatro capítulos, nos quais Saul Steinberg descreve suas lembranças: a infância difícil na Romênia, a viagem a Milão em 1933 (onde estudou arquitetura e viveu sob o fascismo), a emigração para os Estados Unidos em 1942, suas impressões sobre a América e suas reflexões sobre a arte e o mundo artístico em geral.

Com um sofisticado senso de humor que o leitor mais desavisado pode considerar lacônico, a experiência de vida do autor acompanha os rumos da história no século passado, com uma galeria extensa de personagens descritos a mão livre e com um mínimo de palavras: tios pintores, camponesas italianas, judeus deportados, cozinheiros chineses, artistas e políticos de todo o credo em Nova York e em Washington ou solitários no exílio em qualquer recanto do planeta, incluindo os cenários brasileiros.


O Brasil é um país com o qual Steinberg manteve aproximação de longa data durante as décadas de 1940, 1950 e 1960, com relações afetivas e de trabalho, tendo produzido a primeira capa da revista brasileira "Sombra", de 1940 (reprodução abaixo), e apresentado uma exposição individual no MASP, Museu de Arte de São Paulo, na década de 1950. Steinberg, no Brasil, é sempre lembrado também pela influência decisiva que representa para o traço de muitos grandes artistas, de modo destacado para os desenhistas da geração "O Pasquim", entre eles Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar e outros.



















"A ideia dos reflexos me veio à mente quando li uma observação de Pascal, citada num livro de W. H. Auden, que escreveu uma espécie de autobiografia insólita, recolhendo todas as citações que anotara ao longo da vida, o que é uma bela maneira de se mostrar como reflexo dessas mesmas citações", revela Steinberg, sempre bem-humorado, irônico e poético.

Do pai impressor, encadernador e fabricante de caixas de papelão em Bucareste, o futuro mestre do desenho herdaria o fascínio por papel, rabiscos, marcas e carimbos. Encaminhado para a engenharia, diplomou-se numa universidade em Milão, mas não chegou a exercer a profissão. Em Milão, onde viveu oito anos, descobriu sua real vocação, bolando cartuns humorísticos sob encomenda e sentindo na pele a repressão. 


Defensor contumaz da liberdade e dos direitos humanos, durante a Segunda Guerra, decidiu engajar-se e foi servir à inteligência dos Aliados na China, no Norte da África e na Itália. Depois de 1945, retornou ao engajamento com o humor e o nanquim. Tudo é relembrado com minúcias e ironias cifradas no livro "Reflexos e Sombras"
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Funny Face (1960), fotografia e humor
ao estilo Steinberg. Acima e abaixo,
uma seleção de trabalhos produzidos
nas décadas de 1940 a 1970 para a
revista The New Yorker e editados em
livro em 1979 pela Penguin Books.
Também abaixo, Steinberg fotografado
em 1978 por Evelyn Hofer


















Traduzido por Samuel Titan Jr., “Reflexos e Sombras” serviu de catálogo para a exposição no Instituto Moreira Salles e tem o mérito de apresentar a arte sofisticada de Saul Steinberg às novas gerações. "Sente-se o silêncio, crescendo entre um parágrafo e outro, à medida que a noite se aproxima. Tudo se torna, por vezes, preciso e concreto, para logo em seguida desaparecer em fantasmagoria", destaca Marcelo Coelho.

O próprio Steinberg, refletindo sobre o passado e sobre a linha e a luz confessa em uma passagem do livro – sempre com a emoção contida pela pausa, pela intensidade vertiginosa da síntese – com alguma melancolia que começou de baixo: "Aprendi trabalhando e consegui escapar de alguns becos sem saída, vulgaridades do desenho humorístico e banalidades da arte comercial". Surpresa, graça e inteligência são o que de melhor a grande arte de Saul Steinberg pode despertar.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Humor romeno. In: Blog Semióticas, 5 de outubro de 2011. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2011/10/humor-romeno.html (acessado em .../.../...).



Para comprar o livro "Reflexos e Sombras", de Saul Steinberg,  clique aqui.












No alto, Saul Steinberg em fotografia de
  Evelyn Hofer, em 1978, em uma exposição
em Long Island (EUA), segura pela mão
um recorte fotográfico dele mesmo aos
8 anos de idade. Acima, Steinberg na
Itália reencontra para um passeio de
bicicleta o amigo italiano e co-autor de
Reflexos e Sombras, Aldo Bruzzi.

Abaixo, uma seleção de amostras da
metalinguagem e da simplicidade apenas
aparente da grande arte de Steinberg













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