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14 de novembro de 2014

Segredos de Mafalda






Nós podemos realizar coisas agradáveis, 
inteligentes, que façam refletir os adultos 
e também as crianças. É preciso respeitar 
as crianças. Os adultos falam com elas 
como se fossem todas retardadas... 

––  Quino, criador de Mafalda.    
 

Mafalda, muito esperta e questionadora, conquista a maioria à primeira vista: tem paixão pela primavera e pelos Beatles e horror a sopa, a moscas e a guerras. Com seu humor pitoresco e observações tão breves quanto surpreendentes sobre o mundo, as pessoas, as coisas do dia a dia, as notícias delirantes da imprensa e da TV, que permanecem atualíssimas, Mafalda surgiu para o grande público em 1964, mas permanece muito popular e fazendo as perguntas que os adultos não se atrevem a fazer em voz alta. O sucesso de Mafalda começou em sua terra natal, a Argentina, mas rapidamente ultrapassou as fronteiras e conquistou fãs e leitores de vários países.

Em mais de meio século de vida, Mafalda foi traduzida em várias línguas e publicada oficialmente em mais de 30 países – com um detalhe bastante revelador no fato de ainda permanecer inédita nos Estados Unidos. No Brasil, faz sucesso desde os anos 1970 e tem tanto prestígio que disputa, há mais de uma década, com ninguém menos que Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, o título de recordista em citações nas questões apresentadas pelo ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio.

Na trajetória de Mafalda há, também, as lendas, as crises, as idas e vindas, os altos e baixos. Para começar, teve duas datas de nascimento: a princípio, ela foi criada em 1962, para compor um anúncio publicitário de eletrodomésticos, e seu nome tem a ver com as iniciais da marca do produto, com as tirinhas sendo publicadas a partir de 1964, mas até sobre a data verdadeira de seu aniversário pairam certas controvérsias que permanecem sem solução. 














Segredos de Mafalda: no alto,
Mafalda e Quino em fotografia de
setembro de 2014, em Buenos Aires,
fotografados por Natacha Pisarenko
na abertura da exposição El Mundo
Según Mafalda, em comemoração
aos 50 anos da personagem. Acima,
Quino em sessão de autógrafos em
Paris, 2004, e Mafalda com a família
e os amigos: a partir da esquerda,
Felipe, Manolito, Susanita, Liberdade,
Mamãe (Raquel), Papai (Pelicarpo),
Guilherme (seu irmão caçula, também
chamado de Guille ou Gui) e Miguelito.

Abaixo, dois dos primeiros cartuns da
Mafalda, no traço original, e amostras da
arte de Quino, muito além da Mafalda, sem
nenhuma palavra no álbum de 1980
com o título Qui est le Chef?





























O criador da Mafalda, o argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino, desenhou, em 15 de março de 1962, as primeiras charges e algumas tiras de histórias em quadrinhos sobre Mafalda para uma agência publicitária. A personagem deveria ser publicada em anúncios da empresa de eletrodomésticos Mansfield no jornal Clarín. Mas, por ironia do destino, a empresa acabou recusando os desenhos, o Clarín rompeu o contrato e Quino, contrariado, decidiu arquivar suas tiras.



Mafalda pelo mundo inteiro



Em 1964, a ideia das tiras e charges da "enfant terrible" é retomada por Quino, que consegue finalmente publicar sua criação em uma revista semanal da Argentina, a Primera Plana. A primeira vez da Mafalda impressa aconteceu em 29 de setembro daquele ano. A popularidade da personagem, no entanto, só passaria a crescer no ano seguinte, quando os desenhos chegaram às páginas do jornal diário El Mundo, na época um dos mais lidos do país. De novo, vem a ironia do destino nos caminhos de Mafalda: apesar do sucesso das tirinhas da personagem criada por Quino, o jornal foi à falência em dezembro de 1967. 










Segredos de Mafalda: acima,
a trajetória de evolução dos traços da
personagem desde 1964 e Mafalda e
Quino em maio de 2014, fotografados
para a agência EFE. Abaixo, o retrato de
Mafalda em tempos de autoritarismo
e ditadura militar em sua terra natal,
Argentina, com os cidadãos proibidos
em sua liberdade de falar, de ouvir,
de ver, e Mafalda no Brasil, nas capas
da revista Patota, publicada na década
de 1970 pela Editora Artenova, e nas
primeiras versões em livro, em 1982,
publicadas pela Global Editora





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Mafalda retornaria firme e forte seis meses depois, em outro jornal, o Siete Días Illustrados. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros. O primeiro deles, editado por Quino, teve uma marca impressionante: toda a tiragem de 5 mil exemplares foi vendida em Buenos Aires em apenas dois dias. Com o sucesso, a tirinha e os livros com coleções de tirinhas logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos em outros países da América Latina e também na Europa, onde Mafalda teve popularidade imediata na Itália, França, Espanha, Grécia, Portugal e outros países com culturas distintas, como China e Coreia.

Na Europa, Mafalda desde o início foi publicada com a tarja indicando que se tratava de “história em quadrinhos para adultos” – e não demorou a conquistar a simpatia dos intelectuais ligados aos movimentos sociais e aos partidos de Esquerda. Um dos primeiros a saudar a personagem como heroína rebelde foi o italiano Umberto Eco, mestre da Semiótica, que dedicou à criação de Quino um célebre ensaio, publicado pela primeira vez em 1969, em que destacava: “Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara...”







Mafalda em terras brasileiras



No Brasil, Mafalda apareceu primeiro sem periodicidade, como presença ocasional em charges reproduzidas no final da década de 1960 nas páginas do lendário Pasquim. Em 1972, também no Pasquim, foi saudada por Ziraldo: “Mafalda é uma personagem criada na América Latina que logrou obter uma fama universal; acho incrível que uma menina da classe média da Argentina tenha podido ter sucesso na Finlândia”.

A estreia oficial, sob contrato, aconteceria por aqui somente em 1972, nas páginas de uma revista infantil chamada Patota, publicada pela Editora Artenova em 27 edições mensais, entre 1972 e 1975, em coletâneas que incluíam outros personagens de autores na maioria norte-americanos, entre eles o guerreiro viking trapalhão Hagar, o Horrível (criado por Dik Browne), a dupla Frank e Ernest (de Bob Thaves), Snoopy e a turma do Charlie Brown (de Charles Schulz), além da presença ocasional de personagens brasileiros como o psiquiatra Doutor Fraud, criado por Renato Canini. Nos anos seguintes, Mafalda apareceria ocasionalmente em outros jornais e revistas brasileiros, por conta da comercialização de séries limitadas de charges e tirinhas, também por intermédio da Editora Artenova.




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Em 1982, a presença de Mafalda no Brasil ganharia um capítulo importante: com os direitos de publicação transferidos da Artenova para a Global Editora, os cartuns originais de Quino passaram a contar com uma parceria especialíssima na tradução e adaptação por um dos grandes nomes do humor e do cartum brasileiro, Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988), célebre por seu trabalho de resistência à ditadura militar e de apoio aos movimentos sociais com a Graúna, os Fradinhos, a Mãe e outras criações geniais que marcaram época.

A aventura de Mafalda em tradução de Mouzar Benedito e edição final de Henfil foi publicada em cinco livretos pela Global Editora, em preto e branco, exceto na capa, com formato de brochura horizontal em dimensões de em 14cm por 21cm. Os livretos, que alcançaram uma surpreendente vendagem de 30 mil exemplares na primeira edição, tiveram cinco números consecutivos, de fevereiro a julho de 1982, com 76 páginas e duas tirinhas por página. Em 1988, a trajetória de Mafalda em terras brasileiras passaria por outra transferência de editora e de tradução, desta vez com versões para o português por Monica Stahel para a Martins Fontes. A nova editora reeditou, em formato de livretos, todos os cartuns, até 1991, quando toda a saga da personagem lendária de Quino foi finalmente reunida no livro de capa dura “Toda Mafalda”.









Segredos de Mafalda: acima,
Quino em Buenos Aires, em

visita à exposição El Mundo Según
Mafalda, e na prancheta de trabalho,
em autorretrato dos anos 1970.

Abaixo, 
uma seleção das tirinhas
da Mafalda
em versão nacional,
em tradução e adaptação de
Mouzar Benedito e de Henfil; e uma
sequência de Quino em Buenos 
Aires,
fotografado por
Dario Lopez-Mills em 2014
na praça batizada em homenagem a Mafalda,
na abertura da exposição que celebrava
os 50 anos de criação da personagem,
nomeada El Mundo Según Mafalda 





                 

  
 
As versões de Quino



Mafalda também foi uma pioneira na abordagem de temas que não estavam em histórias em quadrinhos, tais como a repressão policial, as revoltas estudantis e as ditaduras que se multiplicavam na América Latina a partir da década de 1960. Também foi pioneira na temática do pacifismo, das questões de gênero, do feminismo e da novidade da ecologia. As grandes questões que a pequena Mafalda apresenta permanecem como perguntas sem resposta nos dias de hoje, assim como deixavam sem resposta sua mãe, Raquel, e seu pai, cujo nome nunca foi dito em nenhuma tirinha.

E há também a turma da Mafalda, com seus amigos que aparecem na sala de aula ou em sua vizinhança, estabelecendo um contraponto de diversidade que ressalta a singularidade e os questionamentos da protagonista. Na turma, os mais presentes são Suzanita, que sonha em ser mãe e esposa e nada mais, desdenhando qualquer avanço social ou os sonhos de liberdade desenhados pelas ousadias de Mafalda; Felipe, o sonhador que não consegue entender a realidade que Mafalda apresenta; Manolito, que tem a índole descontrolada de tubarão capitalista que quer devorar tudo; e Miguelito, que representa a ingenuidade mais infantil. Os caçulas são Liberdade, que sempre desafia os limites das autoridades, e Guille, o irmão mais novo de Mafalda, que surge como um bebê e depois vai crescendo no desenvolvimento das tirinhas, imitando alguns questionamentos da irmã e confessando sua paixão por Brigitte Bardot.

Mesmo com todo sucesso na Argentina e em outros países, Quino, o criador, decidiu acabar com a publicação das histórias da Mafalda em 1973, depois de publicar mais de 2 mil tirinhas e cartuns de apenas um quadro. Desde então, Quino ainda voltaria a desenhar Mafalda algumas poucas vezes, principalmente para promover campanhas sobre os Direitos Humanos – como aconteceu em 1976, quando Quino aceitou o convite para fazer um pôster para a UNICEF ilustrando a Declaração Universal dos Direitos da Criança.

Filho de imigrantes espanhóis, Quino nasceu em Mendoza, Argentina, em 1932, e mantém uma rotina discreta em Madri, Espanha, onde mora há duas décadas. Sempre avesso à curiosidade dos fãs de Mafalda e aos convites para participar de programas de TV, Quino abriu uma exceção no começo deste ano, quando foi anunciado vencedor do prestigiado Prêmio Príncipe das Astúrias, na Espanha, e concedeu uma longa entrevista à agência de notícias EFE.
















Na entrevista, Quino afirmou que permanece marxista e pessimista em relação à política, lembrou as situações que levaram à criação e ao sucesso de Mafalda, reconheceu que, para ele, a célebre e insolente garotinha é um "mais um desenho" e se autodefiniu como um carpinteiro que projetou um "móvel lindo".

"Eu sou como um carpinteiro que fabrica um móvel, e Mafalda é um móvel que fez sucesso, lindo, mas para mim continua sendo um móvel, e faço isto por amor à madeira em que trabalho", minimizou Quino, explicando que há décadas sofre de um problema de visão que o faz viver em um "mundo um pouco desfocado". Para surpresa do entrevistador, Quino também declarou que Mafalda não foi sua "melhor aliada" para dizer "o que queria e quando queria".















O futuro de Mafalda



"Meu melhor aliado fui eu mesmo, porque deixei de dizer muitas coisas que gostaria e não se podia dizer. Desde que cheguei a Buenos Aires com minha pastinha (em 1954), me disseram que não podia fazer desenhos sobre militares, sobre a igreja, o divórcio, a moral. Então me acostumei a desenhar as coisas que me permitiam", lembrou. Quino também reconheceu que a primeira encomenda para criar Mafalda pedia algo no estilo de Charlie Brown e a turma de Peanuts, a mais famosa criação de Charles Schulz (1922–2000).

"Copiei as cenas de minha rotina e de minha casa, e as pessoas gostaram, porque poucos desenhistas faziam isso. Charlie Brown me agrada muito, mas me parece um horror que não haja adultos. Em meu trabalho, apelava para as notícias do dia a dia, e escrevia sobre o que saía nos jornais. O mundo era assim. Eu não decidi e disse 'vou a fazer uma menina contestadora'. Não. Simplesmente saiu assim".





















Quino também declarou na entrevista à agência EFE que está consciente sobre o sucesso de Mafalda, que continua sendo uma personagem muito popular e muito querida no mundo todo, por leitores de todas as idades. Contudo, na conclusão da entrevista ele faz questão de dizer que não tem nenhuma ilusão sobre o que poderá acontecer com Mafalda no futuro.

"Não acredito que Mafalda ultrapasse as fronteiras da História e se transforme em algo parecido com a música de Mozart”, destacou Quino. “Haverá no futuro outras temáticas muito mais importantes do que as coisas que Mafalda disse há tanto tempo. Além disso, aparecerão muitos outros suportes de mídia que ainda não se conhece, outras muitas personagens, talvez mais interessantes. Hoje, olhando para o passado, penso que ou o mundo não evoluiu ou então a Mafalda é que sempre foi muito evoluída".


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Segredos de Mafalda. In: Blog Semióticas, 14 de novembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/11/segredos-de-mafalda_14.html (acessado em .../.../…).










Para visitar o site oficial de Quino e Mafalda, clique aqui.









15 de maio de 2012

Estilo Crumb






Desisti de ser um grande desenhista, porque, quando ainda
estava na escola, percebi que o formato havia ficado travado,
cheio de fórmulas, preso a padrões muito rígidos e comerciais.
Eu acreditava que eu era completamente inadequado a padrões.

–– Robert Crumb.    



Descobri a arte do norte-americano Robert Crumb quando eu era menino, em Barbacena, no interior de Minas Gerais. Meu tio assinava duas revistas na época de difícil acesso, “Mad” e “Grilo”, e tive o privilégio de ser o segundo leitor assim que cada exemplar chegava pelo correio. Tempos depois, também encontrei aqueles traços característicos do Crumb, estranhos e bem-humorados, nas capas dos discos de Janis Joplin e de mestres do blues. Mas demorou até que eu encontrasse suas HQs em livro. Demorou, mas aconteceu: algumas das melhores obras de Crumb agora estão publicadas no Brasil.

Entre suas obras-primas mais recentes está uma adaptação da Bíblia Sagrada: o mais genial e iconoclasta dos cartunistas em atividade, hoje aos 69 anos de idade, ousou levar para o mundo dos quadrinhos o Gênesis, primeiro livro da Bíblia, que narra a criação do mundo e a história de Adão e Eva. Mas a surpresa sobre sua nova investida vai se dissipando quando o leitor percebe que o Gênesis traz desde a Antiguidade alguns dos ingredientes que fizeram a fama de Crumb nas últimas décadas.





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A arte de Robert Crumb: no alto,
ilustração da capa de Blues. Acima,
ilustração para Adão e Eva, a capa e a
contracapa da edição em inglês de Gênesis.

Abaixo, uma amostra do traço de Crumb
para uma cena bíblica em Gênesis;
a capa da edição em espanhol; e a
sisuda e recatada capa da edição
nacional de Gênesis, lançada pela Conrad







"Se minha interpretação visual e literal do livro do Gênesis ofender ou ultrajar alguns leitores", escreveu Crumb na apresentação, "o que parece inevitável dada a reverência de tantas pessoas por ele, tudo o que posso dizer em minha defesa é que abordei isto como um trabalho de pura ilustração, sem intenção de ridicularizar ou fazer piadas visuais". A ressalva do autor é, no mínimo, sincera, porque o Deus todo-poderoso do judaísmo e do cristianismo, como não poderia deixar de ser, é o protagonista destacado no Gênesis segundo Crumb.

Mas no traço do cartunista, que nasceu em uma família católica, trata-se de um Deus vingativo, carregado de raiva e com longos cabelos e barbas. Crumb também confessa que uma noite, há muitos anos, sonhou com a figura exatamente como ela aparece retratada, antes mesmo de pensar em fazer sua versão em quadrinhos para o texto da Bíblia Sagrada. Sem pestanejar, esse Deus comete dois genocídios no intervalo de poucas páginas – um durante o Dilúvio que tem Noé como protagonista, no episódio da arca da salvação; outro na chuva de fogo implacável que vem dizimar as cidades de Sodoma e Gomorra.

Crumb também recria toda aquela sucessão de incestos, sacrifícios, inveja e misoginia que os judeus veneram na Torá e os cristão fundamentalistas idolatram no Antigo Testamento. Ele diz que dedicou cinco anos de trabalho diário para concluir a adaptação e, na breve introdução ao livro, destaca que tentou ser muito respeitoso com as crenças religiosas milenares.



Gênesis e Blues



Se minha interpretação literal e visual do Gênesis ofende alguns leitores”, alerta, “em minha defesa só posso dizer que me aproximei dele como um trabalho meramente ilustrativo, sem intenção de ridicularizar nada nem fazer brincadeiras visuais”. O lançamento de “Gênesis” aconteceu simultaneamente em 20 países, incluindo o Brasil, precedido pela publicação de trechos na revista mais influente dos EUA, a “The New Yorker”, que tem Crumb em seu elenco de colaboradores. 

 







A estratégia de lançamento levou “Gênesis” para as listas dos mais vendidos, um feito raríssimo para uma publicação em quadrinhos. Além do “Gênesis”, Crumb agora está disponível nas livrarias brasileiras com alguns de seus álbuns especialíssimos, publicados pela editora Conrad, incluindo, entre outros, “Minha Vida”, “Blues”, “América”, “Meus Problemas com as Mulheres”, “Fritz, the Cat” e “Mr. Natural”.

Há ainda “Kafka de Crumb”, que além dos desenhos do cartunista traz texto de David Zane Mairowitz. Os álbuns de Crumb editados pela Conrad não chegam a ser uma HQ e nem um livro propriamente dito, mas flutuam entre ambos. Assim como os outros clássicos de Crumb, “Kafka” traz resumos, análises e seus desenhos característicos – no caso, imagens que traduzem “A Metamorfose”, “Na Colônia Penal”, “O Processo” e “O Castelo”, entre outros escritos de Kafka, considerado por muitos o nome mais fundamental da literatura do século 20. 

 







Além dos álbuns de HQ, a arte do cartunista também é celebrada em um documentário antológico – “Crumb”, produzido por David Lynch e dirigido por Terry Zwigoff em 1994. O filme reúne imagens de arquivo, charges e depoimentos – do próprio Crumb e de seus amigos e parentes. Há cenas impagáveis, como o irmão descrevendo rituais inacreditáveis ou Crumb imitando Janis, que lhe disse: “Oh, Robert, precisa deixar o cabelo crescer, botar uma bata, calça boca-de-sino. Tá muito caretão”. Crumb conta e se diverte – como virginiano, ele prefere os uniformes: as mesmas roupas no mesmo estilo.



Bizarro e politizado



O humor mais bizarro e politizado de Crumb aparece por inteiro em “Minha Vida”, autobiografia em quadrinhos que mantém a contestação gaiata que fizeram dele uma lenda entre os clássicos imbatíveis da era do rock. Imagens e piadas visuais, ideias ousadas e uso diversional de sexo e alucinógenos, que ele vem burilando desde o final dos anos 1950, contra o pior conservadorismo, revelam em “Minha Vida” as experiências confessionais do autor e constroem seu melhor melhor personagem: ele mesmo.









Com doses generosas de muita sinceridade, muito humor negro e nenhuma concessão à moral vigente na indústria cultural, “Minha Vida” encadeia histórias publicadas do começo dos anos 1970 a 1994, incluindo cartuns, autorretratos, narrativas mais extensas e outras de poucas páginas ou até de apenas um quadro, tanto em preto-e-branco como no mais lisérgico colorido. Seu traço febril, distorcido, genial e demolidor, explode em sarcasmo subversivo contra tudo e contra todos.

Em “Minha Vida”, Crumb fala de si com nenhuma piedade, enumerando seus melhores ataques contra a hipocrisia, mais os escândalos e muitos problemas com a justiça nos Estados Unidos, que o levariam por fim ao exílio na Europa na última década. Em 2010, quando esteve no Brasil como convidado especial da Flip – a Feira Literária de Paraty – Crumb surpreendeu a todos na entrevista coletiva: disse que viajou meio a contragosto e que só aceitou o convite depois de muita insistência da esposa, a também cartunista Aline Kominsky. 










Robert Crumb mora com a esposa e a filha desde 1991 na França e, neste autoexílio, passa a maior parte do tempo ouvindo discos antigos, lendo e desenhando. Além da dedicação à sua versão do Gênesis, nos últimos anos ele também vem produzindo projetos por encomenda e histórias curtas para jornais e revistas, incluindo a “The New Yorker” e a “W”, especializada em moda e comportamento.

Para a “W”, uma das criações recentes de Crumb foi a retrospectiva em capítulos sobre a trajetória feminina através dos séculos, seguindo das agruras das mulheres no tempo das cavernas até maquinações mais atuais e espúrias de personagens estranhos como Lyndee England, aquela militar norte-americana que, em 2003, foi fotografada torturando prisioneiros no Iraque. Crumb e seu humor são implacáveis.






 

Literatura, jazz e rock'n'roll



Jazz, blues, rock'n'roll e altas literaturas permeiam cada quadro na narrativa de “Minha Vida”, entre passagens de estilo gráfico surpreendente, breves, inconformistas. O mundo característico de Crumb e sua bizarria fornecem o fio condutor a cada traço em fragmento confessional, intercalados por poucas páginas de textos, algum trecho de entrevista e uma ou outra anotação circunstancial.

A síntese da contracultura passa pelo imaginário que Crumb retrata nos quadrinhos. Em “Minha Vida”, esta síntese inclui a infância católica em subúrbios protestantes na Philadelphia (onde ele nasceu, em 30 de agosto de 1943), a escola sempre repressora, a família substituída na adolescência pelas experiências quando foi morar com o irmão mais velho (que o levariam em definitivo ao mundo da música, da libido à flor da pele e da psicodelia), os primeiros desenhos publicados, os hippies de San Francisco, os esoterismos e as manias de estrelas do pop-rock.















Enquanto “Minha Vida” carrega saborosas confidências autobiográficas, as mais antológicas lendas do blues, do jazz, do rock'n'roll e das origens da música popular na América do Norte estão reunidas em “Blues”, outra obra-prima do cartunista que ganhou da Editora Conrad uma edição das mais caprichadas. Detalhe: de acordo com o próprio Crumb, a versão brasileira é melhor e mais completa que a edição original em inglês.

Com bela encadernação em capa dura e colorida, “Blues” inclui – além dos casos mais surpreendentes sobre as origens da música na América, seus personagens principais, as bebedeiras, a vida na zona rural, os cantores cegos, a discriminação racial e os pactos nas encruzilhadas – todas as histórias em HQs, cartuns e tirinhas “musicais” criadas por Crumb, mais as belas capas de disco que ele produziu, as filipetas de culto dos colecionadores, os anúncios publicitários e os cartazes de shows que marcaram época.







No alto, retratos de Crumb, um autorretrato
e uma página inteira extraída do álbum

"Uma breve história da América",
no qual a arte de Crumb traduz a passagem
do tempo, como se fosse uma câmera fixada
no horizonte, registrando as mudanças e
destruições provocadas pelo estúpido modo
de vida do capitalismo selvagem.

Acima e abaixo, i
magens extraídas de "Blues",
álbum que, na edição brasileira, reúne as
lendas
mais antigas do blues, do jazz
e do
rock'n'roll recriadas por Crumb,
incluindo os casos mais surpreendentes
sobre as origens da música popular
na América do Norte, seus personagens
principais e os shows que marcaram época








Crumb é impressionante. Seu traço característico, sujo, algo disforme, com formas grotescas que denunciam a proximidade com o universo das drogas alucinógenas, definem também o que de melhor a cultura underground produziu nas últimas décadas. Como apresenta muito bem o ensaio “Faróis da Eternidade”, de Rosane Pavam, que abre a edição nacional de “Blues”:

Crumb viu o sonho da liberdade nascer e escapar. Assistiu à decretação da morte de tudo – da religião, do cinema, da música, da dança – mas não a desejou. Libertar é diferente de matar, e o trator de Crumb passou sobre as senzalas suave-mente, bem raciocinado”.

Foi na década de 1960 que Crumb surgiu como referência da contracultura, com os baluartes de seus cartuns cáusticos que questionam valores. Sua arte se mantém assim desde aquela época, quando revolução era a palavra de ordem: seus traços de humor negro abalaram tabus, desmascararam falsidades puritanas, revelaram obsessões sexuais e, em “Blues”, reverenciam e criticam a “evolução” da música popular no decorrer do último século.










Janis Joplin e seu amigo Robert Crumb 
o cartunista presenteou Janis com várias
homenagens em quadrinhos, incluindo as
capas e encartes de dois discos antológicos:
I Got Dem ol'Kozmic Blues Again Mama,
de 1969, e Cheap Thrills, de 1968. Abaixo,
um encontro de Janis com Crumb em 1969;
os dois cartuns da homenagem de Crumb
para Janis em Blues; o cartum para
Robert Johnson, também em Blues;
e dois cartuns eróticos da série
The Mind Boggles incluídos em
Mr. Natural (1977) e publicados
no Brasil no final dos anos 1970
pela revista Grilo














De Robert Johnson a Monty Python



Robert Johnson, uma das figuras mais lendárias e enigmáticas da música das primeiras décadas do século 20 está presente em “Blues”, em destaque, assim como Furry Lewis e a galeria dos bluesmen que assombraram os conservadores e criaram os fundamentos do rock e da cultura negra dos EUA que depois se espalharam pelo mundo. Howlin'Wolf e seus pares também são retratados, com Jimi Hendrix que alucina e leva junto a sacerdotisa do rock, miss Janis Joplin. Ela ganharia do amigo Crumb várias homenagem em cartuns e quadrinhos e duas capas antológicas: “I Got Dem ol'Kozmic Blues Again Mama” (1969) e “Cheap Thrills” (1968).

Aclamado como gênio e revolucionário, Crumb nasceu em uma família de cinco irmãos na Philadelphia e começou a desenhar ainda na primeira infância. No documentário dirigido por Terry Zwigoff, ele confessa que o motivo da estreia nas HQs aconteceu por insistência do irmão mais velho, Charles, que também o iniciou em certos hábitos bizarros envolvendo sexo, mulheres, política, drogas, literatura e muita música.






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O hobby dos cartuns virou ganha-pão em 1962, quando Crumb se tornou ilustrador da “American Greetings” e da “Help”. Depois viriam os contratos que alcançaram maior público com a revista “Mad”, outros projetos os mais diversos em áreas idem e, claro, as charges e as HQs mais marcantes da contracultura em todo o planeta. Até o final dos anos 1960, a arte de Crumb estaria restrita ao universo da contracultura, do blues e do rock. Mas isso começou a mudar quando ele lançou “Fritz, the Cat”.

Nesta série, as histórias se passam numa grande cidade habitada por animais antropomórficos, sendo que o gato Fritz é o personagem principal. Muito calmo, entregue à preguiça e ao lado mais hedonista da vida, com algumas tendências artísticas, Fritz sempre se vê envolvido pelo acaso com personagens alucinantes em aventuras selvagens, nas quais vai encontrando as mais diversas experiências sexuais.








Fritz apareceu em histórias desenhadas por Crumb quando criança e viria a se tornar o mais famoso dos seus personagens. As tiras e cartuns com o gato primeiro foram publicadas nas revistas “Help!”, “Cavalier” e “Mad”, mas como elas foram se tornando cada vez mais explícitas, Crumb teve que migrar com seu personagem para revistas mais undergrounds. Depois chegaram com sucesso às eróticas “Playboy” e “Hustler”, nas décadas de 1960 e 1970.

Em 1972, o ponto alto da popularidade: “Fritz, the Cat” foi transformado em filme de animação pelo diretor e roteirista Ralph Bakshi. Com a venda dos direitos sobre seu personagem, Crumb conquistou fama e fortuna e também mais perseguição pela censura. “Fritz” foi o primeiro desenho animado a ser classificado com o código X (impróprio para menores), mas também é considerado um dos filmes independentes de maior sucesso comercial de todos os tempos.

O sucesso e o escândalo de “Fritz, the Cat” ainda ganhariam um capítulo inesperado no final de 1972, quando Crumb publicou uma história que pôs fim à trajetória de seu personagem mais famoso: depois de uma última orgia, Fritz é assassinado por uma ex-namorada. Com Crumb é sempre assim: o banal, o comum, o imprevisível e o humor insano de pequenas bobagens cotidianas fornecem um arsenal de piadas visuais com ares libertários.








Reconhecido como influência ou guru de grandes nomes da cultura pop, Crumb tem legiões de pupilos notáveis. Entre eles, astros e estrelas do rock, do blues e do jazz, jornalistas, escritores e midas da tecnologia como Steve Jobs e Bill Gates, além de Harvey Kurtzman, criador e editor da revista “Mad”, e Terry Gilliam, um dos mentores do grupo de comediantes ingleses do lendário Monty Python. Não é pouco.

Líder mundial do movimento underground, entretanto, é um título que Crumb sempre rejeitou. Prefere ser líder de coisa nenhuma, em suas investidas contra o moralismo e as hipocrisias que encontramos aqui e ali. Alguém já disse, não me lembro quem: ao ler Crumb, é o sol que finalmente brilha em nossa porta dos fundos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Estilo Crumb. In: Blog Semióticas, 15 de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/estilo-crumb.html (acessado em .../.../...).



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