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20 de junho de 2012

Tiro ao Álvaro









Seu forte sotaque caipira misturado a expressões e linguajares dos imigrantes italianos produziu uma prosódia personalíssima e muito familiar ao imaginário popular: histórias tristes de perdas, carência afetiva, abandono, traição, despejo, pobreza e desassossego. Compaixão e amargura, contudo, ganham um indisfarçável tom de pândega e de ritmo irresistível nas irreverentes canções de João Rubinato, cantor, compositor, ator e comediante de primeira, vaidoso da juventude às últimas vezes em que foi fotografado, sempre posando de terno, gomalina no cabelo, chapéu de lado, gravata borboleta e caixa de fósforos nas mãos.

Sétimo filho do casal Fernando e Emma, que migraram da Itália para São Paulo, João Rubinato deixaria sua marca na cultura brasileira sob um codinome que ele próprio inventou – Adoniran Barbosa (1910-1982). Sua trajetória é feita de mudanças: nasce na cidade de Valinhos, mas em seguida vai com a família para Jundiaí. Aos 14 anos, troca a escola pelo trabalho e segue outra mudança da família, agora para Santo André, na Grande São Paulo. Aos 22 anos vai para a capital, onde trabalha como vendedor de tecidos. Em seguida, toma gosto pela música e pelas participações em programas de calouros no rádio.

É nessa época que o filho caçula, chamado de Joanin pela família, também muda de nome: Adoniran era o nome de seu melhor amigo e Barbosa foi uma homenagem ao cantor Luís Barbosa, seu ídolo. O primeiro destaque aconteceu em 1934, quando conquistou com “Dona Boa”, feita em parceria com J. Aimberê, o primeiro lugar no concurso carnavalesco da prefeitura de São Paulo. Anos depois é convidado para trabalhar como ator cômico, locutor e discotecário na Rádio Record, mas o primeiro sucesso só viria em 1955, com “Saudosa Maloca”, duas décadas após aquele primeiro prêmio.










Lembranças de Adoniran Barbosa:
acima, com os Demônios da Garoa;
abaixo, com Silvio Caldas e Grande Otelo
na lanchonete Estadão, no centro de São Paulo,
em janeiro de 1979, nos bastidores da gravação
de um programa da TV Bandeirantes em
homenagem ao aniversário da cidade







Rubinato e os Demônios da Garoa



O conjunto Demônios da Garoa, que fez a primeira gravação de “Saudosa Maloca”, passaria desde então a ser inseparável dos grandes êxitos de Adoniran, com arranjos vocais cheios de onomatopeias e breques com dramatizações que ironizam o sotaque italianado de bairros paulistanos como Brás e Barra Funda. Outros intérpretes que imortalizaram canções de Adoniran mantiveram essa marca do compositor em suas parcerias com os Demônios da Garoa – entre eles Elis Regina, que gravou em 1980 a antológica “Tiro ao Álvaro”, uma das últimas composições de João Rubinato.

Foi nessa época, dois anos antes de morrer, que Adoniran recebeu uma bela e comovente homenagem produzida por Fernando Faro. Para marcar os 70 anos do compositor, o próprio Adoniran retornou aos estúdios para gravar um disco de parcerias inéditas, cantando ao lado de grandes nomes da música brasileira suas mais famosas composições, incluindo, entre outras, “Tiro ao Álvaro” (com Elis Regina), “Bom Dia Tristeza” (com Roberto Ribeiro), “Viaduto Santa Ifigênia” (com Carlinhos Vergueiro), “Aguenta a Mão, João” (com Djavan), “Vila Esperança” (com MPB4), “Iracema” (com Clara Nunes), “Despejo na Favela” (com Gonzaguinha) e “Torresmo à Milanesa” (com Clementina de Jesus e Carlinhos Vergueiro).
















Adoniran em dois retratos em aquarelas
de 1980 de Elifas Andreato. Acima,
uma homenagem ao compositor em
retrato em um antigo painel no Bixiga.

Abaixo, Adoniran em grafite de
Izolag Armeidah; e no encontro
com o dramaturgo Plínio Marcos
em um bar no Bixiga, em São Paulo:
dois artistas que fizeram de sua
arte a voz dos excluídos









.



No encarte daquele disco, que foi relançado em CD pela EMI com o título “Adoniran Barbosa e Convidados”, Fernando Faro escreve sobre Adoniran e seu hobby de fabricar brinquedos. É um comentário breve, poético, que também pode ser lido como uma interpretação sobre suas canções mais conhecidas. “Buscando fundo na memória, ouvindo de vez em quando os amigos, e percorrendo ruas e bares, ele vai refazendo pedaço a pedaço, sem muita ordem, utilizando o metal, a madeira, os fios, e também a palavra e o samba, a humana e muito doce paisagem dessa cidade – uma cidade que muda a cada minuto, e se deforma e se reforma, e se transfigura. É São Paulo que ele constrói. Ou reconstrói".



Três décadas sem Adoniran



Oito anos antes do disco, considerado um dos melhores na discografia de Adoniran, Fernando Faro também gravou com ele um programa memorável da série “MPB Especial” na TV Cultura. O programa, com uma hora de duração e em preto e branco, que apresenta Adoniran cantando e falando de momentos marcantes da carreira, foi lançado em DVD pela Biscoito Fino na série dedicada aos nomes que passaram na verdade por outro programa, o “Ensaio”, também apresentado e dirigido por Fernando Faro na TV Cultura.









No alto, Adoniran Barbosa em cena do
programa Ensaio, da TV Cultura, em
1972. Acima, em foto de Oswaldo Jurno;
 abaixo, fotografado por Pedro Martinelli
em 1978, em visita às obras na praça
da Catedral da Sé






 


Entre outras histórias, algumas melancólicas, outras hilariantes, exatamente como nas melhores canções de Adoniran, o compositor reconhece, no programa de Fernando Faro, que andava triste e esquecido quando uma campanha publicitária da cerveja Antarctica comprou os direitos para usar um dos seus antigos bordões – “nós viemos aqui pra beber ou pra conversar?” Adoniran recorda que foi “vapt-vupt”: o bordão caiu no gosto popular, trouxe de volta à mídia o compositor de “Saudosa Maloca” e ainda alavancou as vendas da cervejaria.

Além do programa na TV Cultura, outro registro memorável com Adoniran foi o especial de Elis Regina que a TV Bandeirantes exibiu em 1978, com direção de Roberto de Oliveira e Sueli Valente. Elis visita Rita Lee numa discoteca e depois mostra imagens das novelas e dos principais filmes da trajetória de Adoniran como ator (entre eles “O Cangaceiro”, de 1953, “Candinho”, de 1954, e “A Carrocinha”, de 1955), antes de sair passeando e cantando com o próprio Adoniran nos cenários que inspiraram suas mais conhecidas canções. 










Adoniran e Elis Regina em 1979, durante as
gravações de um programa da TV Bandeirantes
na Padaria Real, São Paulo, fotografados por
Marjorie Sonnenschein. Abaixo, Adoniran 
com Elis no Bar da Carmela, no Bexiga, e
Adoniran em 1980, no Viaduto Major Quedinho,
São Paulo, em fotografias de Pedro Martinelli;
e em frente à Catedral da Sé, em 1978, e
no Largo de São Bento, em São Paulo,
em fotografias de Oswaldo Jurno



 




Autor de clássicos imbatíveis que as pessoas comuns têm na ponta da língua, como “Trem das Onze” e outras dezenas de grandes sucessos que permanecem há mais de meio século na memória nacional, Adoniran, que morreu há 30 anos, em 23 de setembro de 1982, tem recebido tímidos tributos desde então. Como a maior parte de sua discografia permanece fora de catálogo, um CD com gravações inéditas de seu repertório por novatos e veteranos da MPB em 2010, ano de seu centenário, foi a homenagem mais destacada em décadas para o artista que melhor retratou as histórias e os personagens paulistanos. 



Tributos e estudos biográficos


Vida e obra do compositor, que nos últimos anos de vida passava os dias fabricando brinquedos artesanais e tinha orgulho de ser corintiano doente, também foram lembradas em três estudos biográficos: “Adoniran – Uma Biografia” (Editora Globo, 2010), de Celso de Campos Jr.; o livro em formato de agenda permanente “Adoniran Barbosa” (Editora Anotações com Arte, 2010), de Fred Rossi; e “Pascalingundum! – Os eternos Demônios da Garoa” (Editora do Autor, 2009), de Assis Ângelo, uma biografia do conjunto que está na estrada há mais de 60 anos, mas que também destaca Adoniran em primeiro plano. 
 

















 

Dos três, o livro de Celso de Campos Jr. tem o maior fôlego: resgata minúcias da trajetória de Adoniran através de mais de 80 entrevistas e extensa pesquisa em arquivos públicos, em bancos de dados de jornais e no vasto acervo pessoal do Museu Adoniran Barbosa, esquecido nos subterrâneos da antiga sede do Banco de São Paulo. Para resgatar a trajetória do compositor, cantor, ator, artista de circo, poeta, o biógrafo parte da lenda de São Paulo como “túmulo do samba” para situar Adoniran como síntese da fala popular da cidade – o que fez com que ele alcançasse a proeza de criar versos que são ainda hoje reconhecidos por todos.

Selecionar o repertório de Adoniran não é difícil, porque ele tem uma coleção de canções que todo mundo gosta e canta junto de memória”, apontou o produtor Thiago Marques Luiz em entrevista que fiz com ele por telefone, na época do lançamento do CD. Assim como fez no final de 2009 com as canções do mineiro Ataulfo Alves, Thiago também realizou um eclético tributo ao centenário compositor paulista. “Adoniran 100 Anos”, lançado pela gravadora Lua Music, reúne uma bela coletânea de gravações inéditas.






















Além do valor da homenagem, que atualiza os grandes sucessos do compositor, o tributo a Adoniran colocou lado a lado novos nomes – como Verônica Ferriani, Márcia Castro, Mateus Sartori – e veteranos de gêneros variados da música brasileira, do samba de Jair Rodrigues, Leci Brandão, Eduardo Gudin, Cristina Buarque e Thobias da Vai-Vai ao pop-rock de Zélia Duncan, Arnaldo Antunes, Edgar Scandurra, e daí à vanguarda paulistana (Cida Moreira, Vânia Bastos, Tetê Espíndola, Virginia Rosa, Passoca, Laert Sarrumor) e a medalhões da MPB como Demônios da Garoa, Cauby Peixoto, Célia, Wanderléa, Maria Alcina e Dominguinhos. 



Justiça ao talento



Entre os grandes sucessos e pérolas pouco conhecidas de Adoniran, o tributo da Lua Music faz justiça ao talento do compositor e impressiona tanto pela qualidade das interpretações, quanto pela variedade de artistas envolvidos. “Nossa prioridade foi convidar grandes cantores que nunca tinham gravado o repertório de Adoniran”, explica Thiago. Cada artista, ele conta, teve total liberdade para a interpretação e os arranjos. Algumas das releituras são radicais, outras se mantêm apenas respeitosas.
 







Entre as mais surpreendentes, Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra desconstroem a cadência festiva de “Trem das Onze”, transformada em experimento para guitarra, voz e percussão (por Guilherme Kastrup). Tetê Spíndola e Markinhos Moura também retornam em grande estilo. Ela, no registro habitual de agudos, na sempre comovente “Iracema”. Ele, com um tom quase feminino em “Despejo na Favela”, que faz lembrar à primeira audição a extensão vocal de Elis Regina.

Mart’nália (com “As Mariposas”), Zélia Duncan (“Tiro ao Álvaro”) e Maria Alcina (“Um Samba no Bixiga” e “Plac Ti Plac”) também brilham, assim como Wanderléa e Thomas Roth, reunidos na releitura de “Samba do Arnesto”. “O Adoniran é sim o mais paulista dos compositores e também um dos maiores da música brasileira em todos os tempos”, destaca Thomas Roth, cantor, compositor, dono da Lua Music e popular no Brasil inteiro por conta da presença nas bancadas de jurados dos programas de TV “Ídolos” (2006 e 2007), “Astros” (2008 e 2009) e atualmente no ar no “Qual É o Seu Talento?” do SBT.









O lugar e a importância de Adoniran vão além do samba e muito além de São Paulo. Ele foi incomparável pelo talento, pela originalidade e pela capacidade de transformar em canções de sucesso frases e expressões de tipos característicos da vida paulistana. Ele foi o primeiro e o melhor a fazer construções eminentemente populares, em uma época em que o academicismo e a língua culta prevaleciam e davam o tom. Adoniran é único e permanece, rigorosamente, no primeiro time da MPB”, completa Roth.

Não se pode negar, afinal, que Adoniran é uma figura dessas que têm lugar cativo no imaginário popular. “Série única, edição esgotada”, como define com propriedade Fernando Faro. Na fronteira entre o fraseado caipira e o sotaque italianado, falando em “lâmpida”, “progréssio”, tiro ao “álvaro”, fez sambas que no humor e no balanço não lembram em nada os clássicos dos bambas do Rio ou da Bahia. As belas canções de Adoniran se mantêm como as mais completas traduções dos cenários e dos tipos mais entranhados da Paulicéia, mesmo para quem não mora em São Paulo ou não conhece o Viaduto Santa Ifigênia, a Avenida São João e o Jaçanã.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Tiro ao Álvaro. In: Blog Semióticas, 20 de junho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/tiro-ao-alvaro.html (acessado em .../.../...).








Trecho do livro  'Adoniran - Uma Biografia'


Mas, para azar da família, o que João Rubinato almejava estava próximo demais da sua rota de trabalho. Como o jovem não era de resistir a tentações, as estações de rádio paulistanas, que despontavam como a coqueluche da época, ganharam um assíduo frequentador. As ondas sonoras desviavam o vendedor da labuta e o carregavam para as sedes das emissoras Cruzeiro do Sul, no largo da Misericórdia, Record, na praça da República, e Rádio São Paulo, recém-inaugurada na rua 7 de Abril. Além de acompanhar os programas, o rapaz procurava acomodar-se nos bares e botecos onde os funcionários das estações recarregavam as baterias. Entre uma branquinha e outra, acabaria conhecendo figuras já consagradas no meio radiofônico local, como o locutor Nicolau Tuma, os maestros Gaó e José Nicolini e os cantores Januário de Oliveira e Raul Torres.

Em pleno horário de expediente, usava sua lábia não para empurrar mercadorias aos comerciantes, mas para convencer os cartazes do rádio de que também ele poderia fazer e acontecer diante de um microfone. Não demorou para que o admirador de Noel Rosa e Carlos Gardel, dono de uma voz que poderia ser classificada entre o regular e o sofrível – mais para o sofrível –, se enturmasse com os artistas. De tanto insistir, recebeu em 1934 o convite para participar do programa Calouros do Rádio, pioneira criação do produtor Celso Guimarães para a Rádio Cruzeiro do Sul. João estava radiante: era a oportunidade que pedira a Deus. Cheio de prosa, foi escolher o terno, a gravata e comprar um pote extra de gomalina para ajeitar os cabelos. Tinha de ficar na estica para aquele sábado.


Extraído do primeiro capítulo
de Adoniran – Uma Biografia,
de Celso de Campos Jr. Abaixo, Adoniran
na plataforma da Estação Jaçanã em 1965
e no Viaduto do Chá, em 1980,
em fotografia de Pedro Martinelli






   



12 de março de 2012

Milton no Clube da Esquina







Neste país, só há duas que cantam, Gal e eu.
E se Deus cantasse, seria com a voz do Milton.

–– Elis Regina (1945-1982).  





Até recentemente, Milton Nascimento passou alguns anos viajando a trabalho pelo Brasil e por cidades do mundo inteiro. Foram duas turnês ao mesmo tempo, intercalando a agenda de shows com os irmãos Lionel Belmondo (sax e flauta) e Stéphane Belmondo (trompete), com os quais gravou na França o CD "Milton Nascimento e Belmondo", e as apresentações com o Jobim Trio, dedicadas ao disco "Novas Bossas", que celebrou os 50 anos da Bossa Nova. Aproveitando um breve intervalo entre as viagens, Milton retornou a passeio a Belo Horizonte, onde fez o último show em abril de 2011, acompanhado pela banda formada por Kiko Continentino (teclados), Wilson Lopes (guitarras, violões e violas), Gastão Villeroy (baixo) e Lincoln Cheib (bateria e percussão).

Na véspera de sua viagem do Rio de Janeiro, onde mora há muitos anos, para o breve retorno às Minas Gerais, entrevistei Milton Nascimento por telefone para o jornal "Hoje em Dia", de Belo Horizonte. Conforme o que foi combinado com a assessoria do cantor, seria uma entrevista breve para falar sobre os novos projetos e sobre a experiência de Milton ter sua voz mixada em estúdio com Elis Regina para um álbum do Selo Discobertas. Mas a conversa avançou para outros assuntos e falamos sobre o show gratuito que Milton planeja para o campus da UFMG, com participação dos amigos do Clube da Esquina Wagner Tiso e Lô Borges, para comemorar os 85 anos da universidade, e também sobre o show planejado para as comemorações do Ano de Portugal no Brasil, em que Milton vai dividir o palco do Palácio das Artes, em BH, com Mariza, cantora de Moçambique que ele muito admira. Também falamos na entrevista sobre a experiência das turnês simultâneas fora do Brasil e sobre as expectativas para o reencontro com BH, sobre a instalação do Museu Clube da Esquina e sobre os músicos que de longa data o acompanham nos shows.

"Em Belo Horizonte é diferente. Nem parece trabalho. Aliás, dessa vez é mais a passeio do que a trabalho", ele diz. "Estar em BH já me deixa feliz por qualquer motivo. Tem os amigos, os lugares, as lembranças, os sobrinhos e meus cinco afilhados. Sem falar de todo mundo que me ouve desde menino, nos bares e nos bailes da vida". Muito bem-humorado, sem pressa, com a voz pausada, inconfundível, e com uma memória surpreendente para nomes, canções e acontecimentos marcantes em sua trajetória profissional, Milton faz as contas e lembra que neste ano de 2012 está comemorando 70 anos de idade, 50 anos de carreira profissional e 40 anos do álbum lendário "Clube da Esquina". Sua estreia nos palcos, contudo, aconteceu alguns anos antes dos festivais de música que o tornaram conhecido na década de 1960. Milton recorda que estreou exatamente em 1956, quando, aos 14 anos, começou a cantar e tocar com o amigo Wagner Tiso na noite da cidade de Três Pontas, no sul de Minas Gerais. 





            



             



     





Milton no Clube da Esquina: no alto,
a fotografia de Carlos da Silva Assunção
Filho, mais conhecido como Cafi,
transformada em 1972 na capa do LP
Clube da Esquina. Acima, Milton aos
três anos – em 1945, quando a família se
mudou do Rio de Janeiro para Três Pontas,
Minas Gerais, em foto que foi publicada no
encarte do LP Milagre dos Peixes, de 1973;
Milton na adolescência em Três Pontas;
Milton aos 26, em 1969, em Belo Horizonte;
Milton no palco com Wagner Tiso e
Fernando Brant no final dos anos 1960;
Milton com Lô Borges Beto Guedes
em fotografia do início da década de 1970,
também em BH. Abaixo, Milton com seu
principal parceiro musical, Fernando Brant,
fotografados em Belo Horizonte, em 1970.

Também abaixo, Milton com Chico Buarque
em junho de 1977 no Show do Paraíso,
um evento lendário organizado por Milton
em plena ditadura militar em uma fazenda
próxima à cidade de Três Pontas, em
Minas Gerais, com participação de amigos
do Clube da Esquina (Wagner Tiso, Beto
Guedes, Lô Borges), além de Gonzaguinha,
Chico Buarque, Clementina de Jesus
(foto abaixo) e Francis Hime (na foto, ao piano,
com Chico e Milton), entre outros. O festival de
1977 em Três Pontas também ficaria conhecido
como Woodstock Mineiro























       












      



Ele também recorda que foi em Três Pontas, na verdade em uma fazenda perto de Três Pontas, que aconteceu um evento que deixou saudades e muitas histórias: o Show do Paraíso, que ficou conhecido como o Woodstock Mineiro, que Milton organizou com amigos em plena ditadura militar, com participação muito especial de Chico Buarque e Clementina de Jesus, entre muitos outros. Para o grande público, a estreia de Milton Nascimento foi em 1967, no Rio de Janeiro, quando classificou três canções no II Festival Internacional da Canção, entre as quais "Travessia", um de seus maiores sucessos, em parceria com Fernando Brant. "A única música que sempre faço questão de tocar em Belo Horizonte é 'Nos Bailes da Vida'. Porque é a minha história que está toda ali, contada nas palavras da canção”, ele explica.

Milton diz que o roteiro dos shows ele costuma decidir nos ensaios, ouvindo sempre o que a banda tem a propor. “Às vezes a decisão só vem no dia, na hora mesmo do show. Essa é a vantagem de tocar com músicos que você conhece muito e admira. As coisas ficam mais fáceis, tudo é mais espontâneo", reconhece, enquanto explica que nos shows prefere fazer retrospectivas das canções que foram importantes em fases diferentes de sua carreira.

"Numa das últimas vezes que estive em Belo Horizonte, para um show com o Jobim Trio, eu falava muito no palco, contava histórias. Cantava também, mas acho que falava mais do que cantava", ele diz, achando graça, como se não fosse um presente para sua plateia passar pela experiência de encontrar o ídolo cantando e contando no palco histórias longas ou breve e divertidas. Entre as experiências mais marcantes que viveu recentemente, Milton diz que a principal delas, a mais emocionante, foi mesmo o dueto póstumo que realizou com Elis Regina, por conta de um projeto do Selo Discobertas, do produtor musical Marcelo Fróes.















Memórias do Clube da Esquina: acima,
Elis Regina, Milton Nascimento e
Ronaldo Bastos no estúdio, em 1972,
durante as gravações do álbum
Clube da Esquina 2, fotografados por
Cafi; Milton com Elis Regina em 1977;
e os amigos do Clube da Esquina
no estúdio, em 1975, nas gravações do
LP "Minas". A partir da esquerda, Novelli,
Wagner Tiso, Tavinho Moura, Toninho Horta,
Nelson Angelo, Paulo Braga, Milton,
Nivaldo Ornelas e Beto Guedes.
 
Abaixo, Milton com Caetano Veloso e
Chico Buarque em setembro de 1975,
na época em que os três fizeram juntos
um show histórico no palco do Canecão, no
Rio de Janeiro; Cristina Aché, Tavinho Moura,
Milton e Débora Bloch em 1984, reunidos
no intervalo das filmagens de Noites do
Sertão
 – adaptação da literatura de
Guimarães Rosa com roteiro e direção
de Carlos Alberto Prates Correia e
trilha sonora com composições de
Milton Nascimento e Tavinho Moura;
e Milton com Klaus Kinski e Claudia
Cardinale em cena de "Fitzcarraldo",
filme de 1982 de Werner Herzog













No terceiro volume da trilogia “Beatles 69 – Abbey Road Revisited”, que celebrou os 40 anos da última safra de canções da banda, Milton reencontrou em estúdio a voz de Elis, sua parceira do inicio da carreira e amizade das mais intensas. Na série de três discos produzidos por beatlemaníacos e para beatlemaníacos pelo selo de Marcelo Fróes, contando com participações de diversos artistas nacionais (entre veteranos como João Donato, Joyce, Ivan Lins, e nomes das novas gerações, como BossaCucaNova, Fuzzcas e Sílvia Machete, entre outros), Milton e Elis estão presentes cantando juntos na suíte “Golden slumbers / Carry that weight”, composição de John Lennon e Paul McCartney gravada originalmente no álbum de 1969 "Abbey Road" e inspirada em versos publicados em 1606 pelo poeta inglês Thomas Dekker – sem nenhuma dúvida uma das mais especiais de todas as novas versões de canções dos Beatles reunidas no projeto do Selo Discobertas.



A presença de Elis



Foi muito emocionante, muito mesmo”, diz Milton, recordando os melhores momentos da experiência de gravar no estúdio com presença da voz de Elis. “Pensei em utilizar minha própria banda, mas o Marcelo Fróes me apresentou outros músicos e o resultado foi imprevisto e impecável. Como não sou de fechar ad portas para ninguém, seguimos em frente, apesar de algumas diferenças que fomos encontrando aqui e ali na concepção do trabalho. Mas acho que foi a melhor coisa que podia acontecer. Ficou bonito demais e foi estranho, foi como se a Elis estivesse presente. Os meninos da banda e da técnica sentiram a mesma coisa. Foi ótimo ter gravado aquilo”.








Falar em público e dar aulas para grandes plateias também foram experiências marcantes para Milton nos últimos tempos, desde que passou a ser convidado com frequência por universidades na Europa e nos Estados Unidos para apresentar conferências para os alunos. "Na primeira vez que convidaram eu fiquei surpreso, mas deu tudo certo, pelo jeito, pois depois vieram outros convites em outras universidades, em outros países”, conta Milton, explicando que estes encontros sempre resultam do improviso e acabam sendo muito especiais.
Falo de tudo nessas oportunidades. Do Brasil, da música brasileira, dos amigos, dos músicos que admiro. No meio da conversa sempre vem alguma canção, ou então é a canção que puxa outro assunto, outra canção", explica, recordando que os estudantes europeus o surpreenderam mais porque sempre demonstravam que conheciam muito o seu trabalho.
"Perguntavam sobre os discos, a história das músicas. Foi muito bom", recorda, lamentando apenas que as aulas não tenham sido gravadas ou filmadas. "Foi um descuido. Mas está nos planos para o futuro repetir a experiência e gravar tudo", justifica. Enquanto aguarda com seus companheiros de geração a instalação do Museu Clube da Esquina, a produção de um DVD com registro ao vivo de seus shows mais recentes também está nos projetos do cantor e compositor para os próximos meses.









 

Milton Nascimento retratado no inicio
dos anos 1990 em pintura em óleo sobre tela
por Carlos Bracher. Abaixo, a capa do CD
Angelus, lançado em 1994; Milton com
Tom Jobim em 1990, fotografados por
Cristina Granato; com Tom Jobim e Chico Buarque;
e Milton com o jornalista Fernando Faro
em 2009, durante a gravação do
programa Ensaio para a TV Cultura












Enquanto nos palcos algumas das canções de Milton ocupam um lugar especial no roteiro dos shows, ele reconhece que, na extensa discografia que vem construindo, é o CD "Angelus", lançado em 1994, que ainda traz as melhores lembranças. "Costumo dizer que 'Angelus' é o terceiro 'Clube da Esquina'. É meu disco mais diferente, com muitas participações especiais de amigos que a gente vai fazendo pelo mundo", recorda, enumerando as histórias engraçadas e as coincidências que envolveram vários nomes do primeiro time do jazz e da música pop na produção do CD.

Nas viagens pelo mundo afora, Milton também vai descobrindo aqui e ali novidades musicais surpreendentes. A mais recente é um coral de vozes da Bulgária. "E o que mais tenho ouvido ultimamente, junto com Miles Davis, Villa-Lobos, Ravel... Depois do projeto com os irmãos Belmondo estou mais atento à música erudita. Mas o que mais me encanta, sempre, é a música de Minas Gerais", reconhece. Para Milton, a música de Minas, incluindo compositores novos e antigos, cantoras, cantores, instrumentistas e bandas, é a melhor música que se faz hoje no Brasil.



Sonhos na origem



Amigo de Milton Nascimento de longa data, desde antes da criação do Clube da Esquina, Márcio Borges diz que seu livro "Os Sonhos não Envelhecem" conta, antes de tudo, a história de uma amizade. "Não é uma biografia, nem autobiografia, nem reportagem. É uma crônica sobre a história de minha amizade com Milton", define o autor e protagonista da história, compositor de "Equatorial", "Gira Girou" e outros clássicos do Clube da Esquina, que apresenta no livro um belo relato poético, apesar de rememorar, entre outras histórias, páginas da ditadura militar que calou a utopia de várias gerações de brasileiros.







O livro, que estava esgotado há anos, ganhou recentemente uma nova edição. A primeira, que saiu em 1996, em pouco tempo esgotou em todo o Brasil toda a tiragem de 30 mil exemplares. A nova versão, que mereceu uma edição de luxo da Geração Editorial, tem preço promocional, graças ao apoio conseguido junto ao Ministério da Cultura.

O novo “Os Sonhos não Envelhecem” manteve o texto original de 1996, que vai dos primórdios da adolescência aos últimos tempos da parceria de Márcio com Milton Nascimento, que resultou no sucesso do Clube da Esquina. A história transformada em livro chega às lojas com formato diferenciado, com 376 páginas, farta iconografia e um acréscimo de peso para agradar aos fãs mais exigentes: um CD com uma seleção musical que inclui "Girassol", "Canto Latino", "Tudo que você podia ser" e outras canções marcantes de Milton, Lô Borges, Wagner Tiso e outros nomes de referência no movimento.








Duas fotos de Cafi reproduzidas no livro
Os Sonhos não Envelhecem: a contracapa
do LP Clube da Esquina e os amigos na estrada,
nos anos 1970, a bordo do Jeep Manuel Audaz
pilotado por Toninho Horta.

Abaixo, Milton Nascimento, Toninho Horta,
Beto Guedes, Fernando Brant, Lô Borges
e Márcio Borges em um bar no bairro
de Santa Teresa, em Belo Horizonte;
Milton com o norte-americano Quincy Jones,
maestro, arranjador e compositor que atuou
com Frank Sinatra, Michael Jackson e outros
nomes de grande sucesso internacional;
e com uma estrela do Jazz, Sarah Vaughan,
em 1977, na época da gravação do álbum
O som brasileiro de Sarah Vaughan







 





Narrador de histórias saborosas – da explosiva década de 1960 aos anos 1980 e 1990 e também casos recentes da maturidade e das aventuras da terceira idade – Márcio Borges no livro fala ao leitor numa prosa apaixonada, emocionante. Seu livro parece um roteiro de filme, até porque o cinema tem presença constante no repertório do autor e dos personagens retratados, em especial aqueles que, como ele, viveram na pele os piores momentos da ditadura militar.

Há quase 10 anos, Márcio Borges vem se dedicando à criação e instalação do Museu Clube da Esquina – que de acordo com os planos de longa data terá sua sede física próxima à Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. O museu, por enquanto, está limitado ao formato virtual, no site do bar Clube da Esquina. Nos planos de Márcio Borges também estão o lançamento de outros livros sobre as histórias dos amigos do Clube da Esquina e a adaptação de "Os Sonhos não Envelhecem" para o cinema.



Dilma e o Clube da Esquina



Márcio Borges prepara dois novos livros: o primeiro será um romance, o outro será uma coletânea de cartas. Enquanto os outros livros não chegam às livrarias, ele trabalha para transformar "Os Sonhos não Envelhecem" em filme. Para isso, ele está concluindo as negociações para produção com o cineasta Paulo Thiago. "Ainda não sabemos se será documentário ou obra de ficção. Estamos acertando", explica.







Tempos sombrios: Dilma Rousseff aos
22 anos, na sede da Auditoria Militar
 no Rio de Janeiro, em novembro de 1970;
na foto, tirada depois de mais de 20 dias
de tortura, Dilma mostra um olhar firme,
mas os militares que a interrogam
tentam esconder o rosto.

Abaixo, Milton Nascimento no
Rio de Janeiro, em junho de 1968,
fotografado quando participava da
Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura;
com Caetano Veloso, em fotografia da
década de 1970; e com Sarah Vaughan
e João Bosco no Rio de Janeiro,
na época da gravação do álbum
O Som Brasileiro de Sarah Vaugan















Entre canções de poesia irresistível que fizeram história, o autor mistura no livro “Os Sonhos não Envelhecem” a história de músicas e muitas memórias compartilhadas. Sem contar uma curiosidade que ganharia força com passar do tempo: Márcio Borges teve como colega de turma no colégio, em Belo Horizonte, Dilma Rousseff, que abraçaria a militância política de resistência à ditadura militar e chegaria décadas depois à Presidência da República.

Dilma Rousseff é personagem do livro do Márcio Borges porque surge no relato na época em que os dois estudaram no antigo Colégio Estadual Central. O reencontro com a colega dos tempos de colégio só aconteceu em 2010, durante um dos compromissos de Dilma na campanha presidencial em BH. Mas não é Dilma e sim Milton Nascimento o personagem central do relato, que tem prefácio assinado por Caetano Veloso.

Reza a lenda que a mitologia do Clube da Esquina surgiu do encontro de um grupo de amigos que se reuniam na esquina da Rua Divinópolis com Paraisópolis, no bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte. Formado, entre outros, por Tavinho Moura, Wagner Tiso, Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Flávio Venturini, Toninho Horta, Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant e os integrantes do 14 Bis, o grupo de jovens amigos se juntava para cantar e tocar desde a segunda metade da década de 1960.










Cenários do Barroco Mineiro: acima,
os amigos do Clube da Esquina em
Diamantina, Minas Gerais, no lendário
Beco do Mota e no encontro histórico
com o ex-presidente Juscelino Kubitschek,
em 1971, fotografados por Juvenal Pereira
para uma reportagem da revista O Cruzeiro.

Abaixo, Fernando Brant, Lô Borges,
Márcio Borges e Milton Nascimento
nas ladeiras de Diamantina






Nas reuniões informais dos amigos no bairro de Santa Tereza e nos passeios do grupo pelas cidades históricas de Minas foram criadas as canções e o imaginário de um dos discos mais antológicos da MPB, o LP “Clube da Esquina”, gravado em 1972 e tendo como protagonistas Milton Nascimento e Lô Borges, com produção de Ronaldo Bastos. Mas o Clube da Esquina também foi feito de histórias das estradas de ferro. 



Memórias afetivas



Basta lembrar dos versos dos maiores clássicos de Milton Nascimento e companhia: o trem que ligava Minas ao porto, ao mar, a ferrovia, o caminho de pedra, a travessia, a paisagem na janela. A histórica estrada de ferro Vitória-Minas, que já rendeu inspiração para todos os compositores do grupo, também surge homenageada em outro livro de Márcio Borges, "Entradas e Outras Bandeiras: A Chegada da Vitória-Minas".

Com breves textos e versos de Márcio Borges, mais fotografias e direção de arte de Arthur Senra, o livro foi editado pelo clube de amigos do Museu Clube da Esquina, com recursos do Fundo Estadual de Cultura. "É um tema muito especial para cada um de nós, porque está ligado à memória afetiva do mineiro e à história do Clube da Esquina em particular", explica Márcio Borges. 











A capa do LP Clube da Esquina 2 e o
reencontro dos amigos, organizado na
passagem dos 35 anos do lançamento
do primeiro disco. Abaixo, a imagem
original de 1890 do fotógrafo inglês
Francis Meadow Sutcliffe e Milton
com a islandesa Björk no camarim da
cantora, após o show na Marina da Glória,
Rio de Janeiro, em outubro de 2007.
Björk sempre foi fã de Milton e gravou
a canção "Travessia" com arranjo
de Eumir Deodato, que também
é autor do arranjo original da
primeira gravação de Milton








 

"Este livro, que batizamos de 'Entradas e Outras Bandeiras: A Chegada da Vitória-Minas', é um retrato desta ligação afetiva, entrando pela viagem poética a que o assunto convida. A vida da gente é feita dessas memórias. Agora, com a instalação do Museu Clube da Esquina, fiquei mais atento às questões da memória, da história oral, do registro fotográfico. Senão, a gente não consegue evitar aquele risco perigoso do passado se perder", confessa Márcio Borges.

O convênio de instalação do museu no antigo espaço do Servas já foi assinado com o Governo do Estado e, segundo Márcio Borges, a instalação do projeto está adiantada. "Já há inclusive uma emenda parlamentar aprovada pelo Congresso Nacional que destinou recursos para a instalação do museu", explica, feliz com a notícia. O Museu Clube da Esquina tem meta de instalação e abertura ao público na inauguração do Circuito Cultural Praça da Liberdade, previsto para os próximos meses. O projeto para a abertura do museu, segundo Borges, tem orçamento de aproximadamente R$ 10 milhões.



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Milton no Clube da Esquina. In: Blog Semióticas, 12 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/o-clube-da-esquina.html (acessado em .../.../...).
















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