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23 de agosto de 2025

Bienal das imagens de guerra

 




As guerras não machucam ninguém além das pessoas que morrem. 

–– Salvador Dalí em depoimento a Alain Bosquet em 1969.  

......





Sobre nosso olhar diante das guerras e das imagens de guerra, nosso silêncio, nossa indiferença ou nosso protesto, Susan Sontag disse quase tudo em “Diante da dor dos outros”, ensaio comovente, de fôlego e de impacto, publicado em 2003 – último livro que ela publicou, menos de um ano antes de sua morte aos 71, em 2004. Retorno ao ensaio de Sontag sobre as imagens da dor e da guerra reproduzidas diariamente por todas as mídias porque recebi, por e-mail, o belo programa da Bienal Internacional de Arte de Pontevedra, que está de volta 15 anos depois de sua última edição na província de Galiza, na Espanha, com o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás”.

A programação é extensa e tenta abraçar os mais diversos caminhos da arte contemporânea nos suportes tradicionais e formatos multimídia, presenciais e on-line. O tema da bienal tem sua inevitável inspiração no ativismo antiguerra de Susan Sontag – em sua opção por uma arte que fosse abertamente comprometida com uma real intervenção diante das guerras e da violência do presente. Pelo que se anuncia, é a temática da guerra que conduz a curadoria, com imagens de confrontos armados e massacres ganhando destaque na condição de obra de arte, incluindo retrospectivas históricas e experiências inéditas e imprevisíveis da arte viva contemporânea, como as instalações de Zehra Dogän, artista e jornalista curda nascida na Turquia, que lançam o visitante em barricadas e simulações de confrontos diante de tanques e tropas invasoras.









                   



Bienal das imagens de guerra: no alto e acima,

Etelastik”, instalação multimídia de Zehra Dogän

que lança o visitante no confronto diante dos tanques.

Também acima, os curadores da Bienal de Pontevedra

na cerimônia de abertura da edição 2025 do evento.


Abaixo, "Resiliência", escultura da artista do

Paquistão, 
Wardha Shabbir, com um imenso coração

de onde brotam folhas e flores, tudo revestido por resina

com tonalidade vermelho sangue. Também abaixo,

fotografia de cena de 
“Fora de Si”, performance de

dança e artes cênicas de Nuria Sotelo e Luz Arcas;

e “Labola”espetáculo de O Ribot, premiado em 2021

com o Leão de Ouro na Bienal de
Dança de Veneza.

Todas as imagens
reproduzidas abaixo fazem

parte do catálogo on-line da Bienal de Pontevedra,

exceto quando indicado nas respectivas legendas






                        
 






O imprevisível presencial


Entre as diversas instalações com suportes audiovisuais e multimídia, o imprevisível também é marcante nas obras de Rosalind Nashashibi, artista da diáspora da Palestina, que resgata cenas da Faixa de Gaza que desapareceram com o massacre genocida praticado diariamente pelas forças invasoras e terroristas de Israel contra tudo e contra todos: crianças que brincam, pessoas e cavalos que se banham nas águas do mar, jardins e bosques de oliveiras que o bombardeio incessante dos iraelenses transformam em ruínas e corpos destroçados. São imagens que gritam, em sua aparente simplicidade e sua beleza tão vulnerável. Visitantes também têm a experiência presencial de olhar as fotografias que Robert Capa registrou na Guerra Civil da Espanha – e por coincidência algumas das ampliações estão realmente próximas dos pontos geográficos em que foram fotografadas pelo mais célebre dos fotógrafos de guerras e por outros fotojornalistas que fizeram história.

Ainda que entre as obras e artistas da bienal esteja indicado um consenso inequívoco sobre o genocídio praticado por Israel contra o povo palestino, o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás” também cria um paradoxo com uma emblemática citação do alemão Theodor Adorno, que sempre retorna quando o debate aborda a guerra em interface com a arte e a literatura. Adorno argumentou, em 1949, que “escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro” – no ensaio “Crítica da Cultura e Sociedade” (publicado no Brasil em 2002 no livro “Indústria cultural e sociedade”, pela editora Paz e Terra). A afirmação retornaria em outros textos em que o filósofo contextualiza sua máxima com a advertência de que ele não pretendia que se deixasse de escrever poesia, mas sim que a arte após o Holocausto não podia mais ser ingênua ou indiferente à barbárie ocorrida, sendo necessário que a própria arte refletisse sobre a catástrofe. A ironia do destino é que agora, décadas depois do Holocausto, são os judeus no comando do Estado de Israel que usam do imenso poderio militar para cometer o horror dos massacres e do genocídio contra os palestinos, um povo que não tem exércitos.



          


Bienal das imagens de guerra: acima,
um selo postal da Alemanha em homenagem
ao centenário de Theodor Adorno em 2003,
onde se lê o rascunho com a célebre e melancólica
citação “escrever um poema depois de Auschwitz
é um ato bárbaro”
.

Abaixo, extratos de Gaza Elétrica, fotografias
e instalação multimídia de Rosalind Nashashib
que mostram cenas do território de Gaza, belas e
vulneráveis,
registradas em 2014 e 2015, antes da
completa destruição e do massacre nos últimos anos
praticado pelos ataques e bombardeios de Israel
















História de transformações


A Bienal de Pontevedra tem uma história de transformações. No início, desde sua criação em 1969, foi uma exposição competitiva destinada essencialmente à promoção de artistas locais, como se pode ler na retrospectiva do site oficial (veja o link no final desta página). A partir de 1974, a bienal ganhou abertura para artistas internacionais e, em 1982, abandonou o seu caráter competitivo. Por questões internas de gestão e dificuldades financeiras, o evento foi interrompido em 2010, retornando agora com a força inquestionável que a extensa programação vem demonstrar. Sob a curadoria de Antón Castro, historiador da arte e professor da Universidade de Vigo, com a curadoria adjunta de Agar Ledo e Iñaki Martínez Antelo, a bienal abriu formalmente no final de junho e se estenderá até 30 de setembro, ocupando diversos espaços da Galiza, com algumas exposições e instalações seguindo depois para outros espaços da Espanha e outros países da Europa.

Na apresentação da bienal, os curadores ressaltam que as duas guerras mundiais, em sua época, não foram temas marcantes das artes tradicionais da pintura e da escultura, mesmo tendo influenciado radicalmente os movimentos de vanguarda e os rumos da Arte Moderna. As experiências de representar a morte e a violência provocadas pelas máquinas de guerra tiveram mais força na fotografia e no cinema, aparecendo implícitas, ou quase não ditas, de forma metafórica ou alegórica, na literatura e nas formas da arte em geral. Houve, contudo, uma forte alteração de perspectiva, porque a guerra não mais aparecia de forma gloriosa e heroica, como tinha sido representada por muitos artistas nos séculos anteriores.








Bienal das imagens de guerra: arquivo
histórico de registros da Guerra Civil Espanhola,
a partir d
o alto, uma tropa da resistência em
Cerro Muriano, uma vila da Andaluzia, Espanha,
em 5 de setembro de 1936, em fotografia de
Robert Capa. Acima, um morto é transportado
na frente da resistência em Segóvia, em
fotografia de junho de 1937 de
Gerda Taro.

Abaixo, os soldados em uma pausa para uma
fotografia na rua, em Granada, 1937, uma cena
fotografada por 
Martín Santos Yubero;
o fotojornalista uruguaio Pau Lluis Torrents,
com a câmera apoiada nos joelhos, conversa com
militantes da resistência na frente de Aragão, em
agosto de 1937, em fotografia de
Agostí Centelles;
um grupo de republicanos de esquerda assassinados
pelos
nacionalistas conservadores, liderados pelo
general Francisco Franco,
em Carabanchel Bajo (Madri),
em fotografia de dezembro de 1936 de Erich Andres;

e as covas vazias, à espera dos mortos, no cemitério
de Huesca, na província de Aragão, em fotografia
de abril de 1938 de
Albert-Louis Deschamps

















Os desastres da guerra


Uma importante exceção na representação da guerra surge de forma marcante na obra de Pablo Picasso – em 1937 ele pintou “Guernica”, sob o impacto de um dos massacres na Guerra Civil, que foi a destruição por bombardeios na pequena cidade de Guernica, criando uma obra monumental que tornou-se uma referência como o manifesto de maior impacto contra a violência do século 20. “Guernica”, a obra original, não foi cedida à Bienal de Pontevedra. Em 1981, ela foi transferida do Museu de Arte Moderna de Nova York para Espanha e permanece no Museu Rainha Sofia, em Madri, mas está presente na bienal na forma de homenagem, com uma recriação feita por uma artista do México, Fritzia Irizar, que produziu uma réplica da pintura original, feita em escala 1:1, sobre a qual foi apresentada uma performance de arte viva.

Na abertura da bienal, 
Fritzia Irizar disparou em direção à réplica de "Guernica" milhares de recortes com retratos das vítimas de massacres recentes em cidades da Palestina, da Síria, da Ucrânia, e os retratos terminaram afixados à tela que havia sido recoberta com cola de secagem rápida, gerando um efeito que oscila entre o festivo e o trágico. A homenagem a "Guernica" destaca a urgência para não esquecermos as lições do passado, provocando reflexões tanto sobre o sofrimento e o desespero de populações inteiras como sobre a banalização cotidiana da violência na cultura visual contemporânea.   

Outra exceção importante na representação dos cenários e das consequências da guerra, mas no século 19, vem de outro artista espanhol, Francisco de Goya, cujas obras estão presentes na bienal. Entre 1810 e 1815, Goya criou “Los Desastres de la Guerra”, uma série de 82 desenhos e gravuras que são referenciais pelo que retratam brutalmente tanto em evidências realistas como em metáforas e símbolos sobre a violência da guerra, tendo como tema e cenário a resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão. A série de Goya, não por acaso, fornece argumentos para Susan Sontag em “Diante da dor dos outros” e também surge como um fio condutor dos múltiplos recortes que guiaram a curadoria da bienal na seleção dos 60 artistas e das 400 obras em exposição.


















         



Bienal das imagens de guerra: no alto, "Guernica",
a obra monumental de Pablo Picasso, fotografada
por 
Francisco Seco em 2017 no Museu Rainha Sofia,
em Madri; e 
a recriação da obra pela artista do México,
Fritzia Irizar, na tela inteira e no detalhe, com as
fotografias recortadas e afixadas de milhares de
vítimas de massacres contemporâneos. Acima,
uma das gravuras originais da série
Os desastres da guerra, do mestre espanhol
Francisco de Goya (1746-1828).


Abaixo, “Naves Espaciais” (Astronauta), pintura
em técnica mista de 2024 de artista da Rússia,
Taisia Korotkova, peça da série Reconstrução;
uma imagem da série de projeções em técnica
mista "Ecologia invisível", do artista indígena
brasileiro Denilson Baniwa, uma alegoria sobre
o equilíbrio natural que tem sido violado pela
guerra cotidiana de humanos contra animais e
plantas; e “Medo”, instalação multimídia criada
a partir de uma histórias em quadrinhos de 1948,
obra do artista espanhol Antoni Muntadas
que denuncia a normalização das guerras
na imprensa e na cultura popular.

No final da página, "Casa" e "Tanque russo",
intervenções em slides de “ativismo poético”
do artista de Cuba, Dagoberto Rodriguez, um
dos fundadores de Los Carpinteros, coletivo de
artistas cubanos que usa humor e ironia para
abordar questões políticas sobre as guerras,
as migrações humanas e as mudanças climáticas












É quase inevitável associar os cenários violentos da série de Goya ao olhar de fotógrafos presentes na bienal com registros de guerras desde o começo do século 20, seja na Segunda República, na Primeira Guerra Mundial, na Guerra Civil ou na Ditadura Franquista, na Segunda Guerra ou nos conflitos intermináveis da segunda metade do século 20 até o presente em diversas nacionalidades. Há alguns nomes célebres, especialmente na cobertura dos combates durante a Guerra Civil na Espanha, na década de 1930, com destaque para o húngaro Endre Ernő Friedmann (1913-1954), que se tornou uma figura lendária sob o pseudônimo de Robert Capa; os alemães Erich Andres (1905-1992), Walter Reuter (1906-2005) e Gerda Taro (1910-1937); a húngara Kati Horna (1912-2000); o uruguaio Pau Lluis Torrents (1891-1966); os espanhóis Martín Santos Yubero (1903-1994) e Agustí Centelles (1909-1985); o francês Albert-Louis Deschamps (1889-1972) e o polonês Emil Vedin (1912-2001), entre outros.

Há também os fotógrafos nos cenários contemporâneos de guerras ocasionais ou permanentes que atravessam o Leste Europeu, os países da África, o Oriente Médio, a Ásia ou as Américas, neste nosso tempo presente em que os espectadores estão diante da dor dos outros observando-a como um espetáculo, muitas vezes em tempo real e simultâneo, acompanhando o horror pela TV ou pelas redes sociais nas telas do computador ou em celulares – com massacres de populações inteiras, incluindo muitas crianças, em atrocidades que dispensam mediação de jornalistas ou historiadores e acontecem ao vivo, diante dos olhos de milhões de espectadores. Seja por meio de fotografias, do cinema documental, dos fragmentos de transmissões on-line, seja em instalações presenciais, em pinturas, em ilustrações, em esculturas, em performances ou em técnicas mistas e imprevisíveis, as imagens de guerra reunidas pela Bienal de Pontevedra são amostras de registros incômodos e extremamente atuais da arte produzida em situações extremas – cada trabalho e todos, em conjunto, soando como alertas inquietantes e brutais.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bienal das imagens de guerra. In: Blog Semióticas, 23 de agosto de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/08/bienal-das-imagens-de-guerra.html (acesso em .../.../…).



Para visitar a  Bienal Internacional de Arte de Pontevedra,  clique aqui.






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27 de março de 2024

Retratos clandestinos de Helen Levitt

 




A natureza humana é quase inacreditavelmente maleável.

– Margaret Mead (1901-1978).  
 

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Durante grande parte dos quase dois séculos da história da fotografia, as mulheres tiveram pouco espaço no trabalho por trás das câmeras, mas com o passar do tempo foram expandindo seus papéis e experimentando cada vez mais os diversos aspectos do aparato fotográfico. Atualmente, qualquer seleção ou recorte sobre a história da fotografia tem, necessariamente, destaque para mulheres que atuaram ou atuam nas variadas frentes dos registros fotográficos no passado ou no presente. Desde os primeiros tempos da imagem fotográfica, a presença feminina no domínio da técnica esteve presente, porém mais como exceção do que como regra, como se comprova nos registros sobre nomes como Constance Fox Talbot (1811-1880), primeira mulher a fazer uma fotografia, em 1843, ou Ann Cooke (1796-1870), primeira mulher a abrir um estúdio de retratos fotográficos, em 1845.

Entre as mulheres que atuaram de forma marcante no campo da fotografia no século 19, ou que nasceram no Oitocentos, alcançaram destaque os nomes de Anna Atkins (1799-1871), Julia Margaret Cameron (1815-1879), Shima Ryü (1823-1900), Gertrude Käsebier (1854-1934), Frances Johnston (1864-1952), Alice Austen (1866-1952), Lady Ottoline Morrell (1873-1938), Harriet Chalmers Adams (1875-1937), Imogen Cunningham (1883-1976), Florence Henri (1893-1952), Claude Cahun (1894-1954), Lucia Moholy (1894-1989), Dorothea Lange (1895-1965), Louise Dahl-Wolfe (1895-1989), Tina Modotti (1896-1942), Germaine Krull (1897-1985), Berenice Abbott (1898-1991) e Ilse Bing (1899-1998), entre outras, sem esquecer aquelas que realizaram trabalhos importantes de forma pioneira na fotografia, mas que permaneceram no anonimato, por preconceito ou porque, por motivos diversos, não tiveram seus nomes registrados pela história oficial.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto, crianças 
dançando nas ruas de Nova York, fotografia de 1940.
Acima, mãe e filha (1939) e a família na janela (1940).
Abaixo, Helen Levitt em autorretrato (circa de 1950)
e duas meninas brincando com giz na calçada (1940).
Todas as fotografias reproduzidas nesta página estão
no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”,
apresentada na Photoghapher’s Gallery de Londres







No Brasil, de acordo com o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro – Fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), de Boris Kossoy, publicado pelo Instituto Moreira Salles em 2002, entre centenas de fotógrafos que atuaram naquele período também há algumas mulheres que tiveram um papel pioneiro da maior importância, entre elas Fanny Volk, que atuou no Paraná; Hermina de Carvalho Menna da Costa, em Pernambuco; Leocadia Amoretti e Madame Lavenue, no Rio de Janeiro; Madame Reeckel, no Rio Grande do Sul; Maria Brasilina de Magalhães Faria, no Espírito Santo; Maria Izabel da Rocha, em Sergipe; e Roza Augusta, na Paraíba. Em São Paulo, Gioconda Rizzo (1897-2004), descendente de italianos, foi uma das primeiras mulheres a atuar como fotógrafa e a primeira a abrir um estúdio fotográfico, a Photo Femina, em 1914; e Elvira Pastore (1876-1972), casada com Vicenzo Pastore (1865-1918), ambos italianos, dividia com o marido todo o trabalho no estúdio fotográfico que abriram em São Paulo em 1900.

A presença e a importância de mulheres na fotografia têm aumento qualitativo e quantitativo no decorrer do século 20, incluindo a presença inédita de mulheres fazendo a cobertura fotográfica em cenários de guerra, como Gerda Taro (1910-1937) e Kati Horna (1912-2000) na Guerra Civil Espanhola, ou Margaret Bourke-White (1904-1971), Lee Miller (1907-1977) e Dickey Chapelle (1915-1965) na Segunda Guerra Mundial. Mulheres também exerceram o papel de fotógrafas nos movimentos de vanguarda da arte moderna, registrando paisagens e temas abstratos, nudez, cenas urbanas, retratos de famosos e de anônimos, muitas delas com premiações importantes e destaque na imprensa, espaços que antes eram restritos quase exclusivamente para os homens.







Retratos clandestinos de Helen Levitt: meninas
e meninos em grupo nas ruas de Nova York em
fotografias de Helen Levitt na década de 1980,
em 1982 (acima) e 1986 (abaixo)










Entre as mulheres que alcançaram importância como fotógrafas em movimentos de vanguarda estão Florence Arquin (1900-1974), Lisette Model (1901-1983), Lola Alvarez Bravo (1903-1993), Grete Stern (1904-1999), Nina Leen (1906-1995), Dora Maar (1907-1997), Gisèle Freund (1908-2000), Ruth Gruber (1911-2016), Eve Arnold (1912-2012), Annemarie Heinrich (1912-2005)Nina Leen (1914-1995), Maya Deren (1917-1961), Ruth Orkin (1921-1985), Inge Morath (1923-2002), Diane Arbus (1923-1971) e Sabine Weiss (1924-2021), além das que tiveram atuação de destaque no pós-guerra e na cena contemporânea em diversos países, como fotojornalistas ou em trabalhos independentes, em estilos e temáticas variadas. Na lista de fotógrafas que ganharam destaque internacional no último século também estão nomes como Rineke Dijkstra, Roni Horn, Mary Ellen Mark, Markéta Luskacová, Nan Goldin, Jo Spence, Annie Griffiths, Vivien Maier, Graciela Iturbide,  Candida Höfer, Cindy Sherman, Annie Leibovitz, Kiki Smith, Carrie Mae Weems, Carol Guzy, Catherine Leroy, Francesca Woodman, Donna Ferrato, Gauri Gill ou Sally Mann, entre outras.

Há também uma galeria de grandes fotógrafas que atuam ou atuaram no Brasil desde as primeiras décadas do século 20 até a cena contemporânea. Entre os nomes que alcançam maior destaque estão Hildegard Rosenthal (nascida na Suíça), Gertrudes Altschul (nascida na Alemanha), Alice Brill (nascida na Alemanha), Claudia Andujar (nascida na Suíça), Maureen Bisilliat (nascida na Inglaterra), Madalena Schwartz (nascida na Hungria), Alice Kanji, Hermínia Borges, Dulce Carneiro, Jacqueline Joner, Avani Stein, Marisa Alvarez Lima, Nair Benedicto, Vania Toledo, Rosa Gauditano, Anna Mariani, Elvira Alegre, Rosângela Rennó e mais uma lista extensa de veteranas e nomes das novas gerações.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,
duas crianças na janela, fotografia de 1939.
Acima, crianças brincando na calçada (1940).
Abaixo, a família (1945) e casal improvável (1941)








Uma poesia visual


Na legião de mulheres atuando como fotógrafas, um dos destaques inevitáveis é a norte-americana Helen Levitt (1913-2009), com seu trabalho com a câmera nas ruas que atravessou todo o século 20, atuando em todas as frentes e temáticas da fotografia de arte e do fotojornalismo. Descendente de imigrantes judeus-russos, Helen Levitt nasceu em Nova York – cidade que, com seus personagens, foi cenário da maioria de suas fotografias de 1930 até sua aposentadoria, no final da década de 1990, o que levou Susan Sontag, sua admiradora de longa data, a definir as imagens de Helen Levitt como “uma poesia visual sobre Nova York”.

Neste século 21, depois que Helen Levitt morreu, aos 95 anos, em 2009, grandes retrospectivas temáticas sobre sua obra foram organizadas no Festival PhotoEspaña em Madri e também na Fundação Cartier-Bresson em Paris, no Sprengel Museum em Hannover, no Albertina Museum em Viena, no Fotografiemuseum de Amsterdã e no Festival de Fotografia de Arles (no sul da França), entre outras exposições importantes que tiveram as imagens de Levitt como tema. A retrospectiva mais abrangente, que cobre toda a pauta temática de sua trajetória de 70 anos dedicados à fotografia, foi aberta em 2022 na Photographer’s Gallery de Londres, nomeada como “Helen Levitt: in the street”.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,
as amigas, fotografia de 1941. Acima, os irmãos (1944).
Abaixo, um gato (1945) e retrato de Walker Evans (1940)











De todos os aspectos que sobressaem quando se observa um conjunto de fotografias de Helen Levitt, o lúdico talvez seja o mais marcante – ainda que o grande fotógrafo das questões sociais nos Estados Unidos, Walker Evans (1903-1975), seja reconhecido por ela como sua maior influência. O lúdico e o poético nas imagens de Helen Levitt, contudo, talvez tenha uma relação mais direta com as fotografias humanistas de outros mestres, como os franceses Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e Robert Doisneau (1912-1994). O fato de Levitt creditar Walker Evans como sua maior influência vem, por certo, de coincidências biográficas: quando circulavam as primeiras fotografias de Evans mostrando cenas dramáticas e extremamente realistas de agricultores pobres do sul dos Estados Unidos, no período da Grande Depressão, Levitt começava a trabalhar com fotografia, como assistente em um estúdio comercial instalado no Bronx, em Nova York. Evans, naquele período, havia sido contratado pela Farm Security Administration, agência federal criada pelo governo do presidente Franklin Roosevelt, e suas fotografias publicadas por vários jornais e revistas causavam uma grande comoção.

Na mesma época, no começo dos anos 1930, a jovem Helen Levitt participava de vários grupos de ativistas e sindicalistas e um dos principais líderes, Sid Grossman, também fotógrafo e fundador da cooperativa Photo League, pedia a jornalistas e fotógrafos mais atenção aos trabalhadores e aos movimentos sociais como consciência de classe – conforme ela declarou em uma de suas raras entrevistas, à National Public Radio, reproduzida no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”. “Eu decidi que deveria tirar fotos de pessoas da classe trabalhadora e assim dar minha contribuição verdadeira para apoiar os movimentos sociais que estavam se organizando”, afirmou Levitt. Ela era descrita por seus parceiros de trabalho como uma pessoa extremamente gentil e simpática, mas muito tímida, com poucos amigos, que nunca se casou e morou a vida inteira em Nova York, no mesmo apartamento em Greenwich Village, com curtos intervalos de uma temporada que passou no México, em 1941, e outra em viagem pela Europa, no final da década de 1950, depois que conseguiu uma bolsa de financiamento da Fundação Guggenheim.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: acima,
crianças no Halloween (1940) e fumantes (1940).
Abaixo, o bebê rindo muito no carrinho (1940)
e à procura de um táxi urgentemente (1982)








A temática das ruas


Na retrospectiva que ocupou todos os salões e corredores dos dois andares da Photographer’s Gallery de Londres, centenas de fotografias que Helen Levitt produziu, durante mais de 70 anos, com sua câmera Leica de 35 mm, foram selecionadas em torno de três núcleos temáticos: as ruas, as cenas do metrô e as experiências com os filmes coloridos, nas quais ela foi uma das pioneiras entre fotojornalistas. Na temática das ruas, pela qual ela é mais amplamente conhecida, estão registrados personagens e cenários de sua vizinhança em Nova York, incluindo o Lower East Side de Manhattan, o Bronx e o perímetro espanhol do Harlem. Na maioria das imagens, as crianças são o centro da atenção de Helen Levitt, em flagrantes poéticos de jogos e brincadeiras e também distraídas, observando algo que está fora do enquadramento da fotografia, como se a fotógrafa estivesse em atitude clandestina e sua presença não fosse notada pelos personagens em cena.









Retratos clandestinos de Helen Levitt
no alto, Helen Levitt no metrô em 1938, em
fotografia de Walker Evans. Acima e abaixo,
retratos no metrô feitos por Helen Levitt
nos anos de 1978, 1973, 1975 e 1978.


No final da página, Amigas saindo de férias (1973),
A loja de doces (1971), A cabine telefônica (1988),
Fumante na cabine telefônica (1980),
Na esquina de calção azul (1981) e
A menina procura algo (1980)









A citada influência marcante de Walker Evans torna-se mais evidente com as fotografias feitas por Helen Levitt no metrô de Nova York. São personagens anônimos, que remetem às célebres fotografias que Evans capturou no mesmo cenário, quando viajava quase diariamente no metrô, vestindo um sobretudo sob o qual ocultava sua câmera Contax de 35 mm, entre fevereiro de 1936 e janeiro de 1941. As fotografias de Evans no metrô (Veja mais em: Semióticas – Homens ilustres), que foram apresentadas em uma exposição que marcou época, no pós-guerra, e depois publicadas no fotolivro Many are called (Muitos são chamados), reeditado em 2004 pela Yale University Press, também influenciaram o jovem Stanley Kubrick, que trabalhou durante anos como fotojornalista em Nova York antes de se tornar cineasta (Veja mais em: Semióticas – Kubrick no Metrô).

Helen Levitt teve a oportunidade de acompanhar, em 1938, algumas viagens de trabalho de seu mentor Walker Evans fotografando anônimos no metrô de Nova York e, nos anos e nas décadas seguintes, repetiu por diversas vezes a experiência de fotografar os passageiros, também em anonimato, com seu próprio estilo e seu equipamento mais modesto. Uma seleção destas fotografias foi apresentada pela primeira vez em 1991, em uma exposição no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, e em 2017 foi reunida no fotolivro Manhattan Transit: The Subway Photographs of Helen Levitt (‎Walther König Editions).

No terceiro grupo temático da exposição “In the street”, onde estão amostragens das experiências de Helen Levitt com as fotografias coloridas, produzidas a partir da década de 1950, também estão selecionadas as imagens que provocam com mais intensidade o senso de humor e algum estranhamento do observador. Algumas cenas têm mesmo um certo apelo surrealista, ainda que sejam registros poéticos sobre a vida que a fotógrafa, depois de décadas de trabalho diário, continuava a encontrar nas ruas de Nova York. Há crianças brincando, casais de namorados, maridos e esposas, mães com seus bebês, mulheres indo e vindo, velhos solitários, pessoas comuns.

Em uma das fotografias coloridas, uma mulher de vestido azul florido está de costas, usando um telefone público, e ocupa todo o espaço da cabine, em uma esquina de Nova York, enquanto duas crianças, possivelmente seus filhos, estão espremidas contra as paredes de vidro, uma de cada lado. Parece que cada fotografia de Helen Levitt conta toda uma história repleta de detalhes. A maioria de suas imagens coloridas, para as quais ela dedicou muito trabalho e atenção em seus últimos anos de atuação, nunca foi publicada em livro, mas esteve presente nas retrospectivas que celebraram, nos últimos anos, seu olhar personalíssimo que conquistou legiões de seguidores na arte da fotografia.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos clandestinos de Helen Levitt. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/03/retratos-clandestinos-de-helen-levitt.html (acessado em .../.../…).



 
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