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6 de maio de 2015

Revoluções de Orson Welles






Sim, é preciso ter dúvidas, sempre. Só os estúpidos

conseguem ter uma confiança absoluta em si mesmos.


–– Orson Welles (depoimento citado na biografia   

publicada em 1977 por Joseph McBride).   




Grandioso, grandiloquente, monumental, imponente, radical, majestoso, soberbo – são alguns dos adjetivos e superlativos que sempre vêm associados ao nome de Orson Welles, o gênio incontestado do cinema que hoje completa seu centenário de nascimento. George Orson Welles, nascido em 6 de maio de 1915 no Wisconsin, EUA, órfão de pai e mãe antes da adolescência, se tornaria uma celebridade que revolucionou o teatro, o rádio, o cinema – quando ainda era um jovem de pouco mais de 20 anos de idade. Polêmico, controverso, inconformista, ele mantém a condição de unanimidade para a maioria dos críticos e historiadores como o maior diretor de cinema de todos os tempos, depois de mais de três décadas de sua morte, em Hollywood, em 10 de outubro de 1985.

O centenário de Orson Welles recebe homenagens em vários países, inclusive no Brasil, com exibições de algumas de suas obras-primas como cineasta, ator, roteirista, entre elas “Citizen Kane” (“Cidadão Kane”, 1941). Mas sequer a imponência de seu filme mais famoso está isenta de controvérsias e de questionamentos: há quem conteste até mesmo os méritos principais de “Cidadão Kane”, com o argumento de que as grandes qualidades do filme estariam menos no trabalho de Orson Welles e mais nas inovações criadas pela direção de fotografia de Gregg Tolland, pela trilha sonora de Bernard Herrmann e, principalmente, pelo roteiro original de Herman Mankiewicz. Depois de muitas brigas intermináveis com Mankiewicz, dentro e fora dos estúdios, Welles terminou assinando como co-autor os créditos oficiais pelo roteiro de “Cidadão Kane”, e a grande ironia é que foi com este roteiro que ele venceu o único Oscar de sua longa e tumultuada carreira como um dos artistas mais excêntricos e fundamentais da história do cinema.

É uma trajetória de polêmicas e controvérsias espetaculares. Depois das revoluções que o jovem Orson Welles havia provocado nos palcos de teatro e principalmente no rádio – quando espalhou o pânico nos EUA, em 1938, com sua célebre adaptação em tom de boletim jornalístico em um programa radiofônico em cadeia nacional, ao vivo, de “A Guerra dos Mundos”, clássico da literatura de ficção científica de H. G. Wells, que levou os ouvintes a acreditarem que estava realmente acontecendo uma invasão de extraterrestres – vem o seu filme de estreia, “Cidadão Kane”, não menos polêmico nem menos espetacular, ainda hoje um marco capital da história do cinema, uma obra que há quase um século permanece em destaque como presença obrigatória no topo das listas mais prestigiadas de “melhores filmes de todos os tempos”, tanto pela abordagem crítica e feroz que apresenta sobre os meios de comunicação de massa, quanto pelas inovações técnicas e narrativas que imprime na linguagem cinematográfica.












Revoluções de Orson Welles: no alto
e acima, o artista no estúdio, durante
a transmissão pelo rádio, na noite do
dia 30 de outubro de 1938, véspera
do Dia das Bruxas, de sua versão em
tom de flagrante jornalístico para o
clássico da literatura de ficção científica
A Guerra dos Mundos, romance
publicado em 1897 pelo britânico
Herbert George Wells.

O programa de rádio de Orson Welles
ficou famoso no mundo inteiro porque
espalhou pânico entre os ouvintes dos
EUA, que imaginaram estar enfrentando
realmente uma invasão verdadeira e
violenta de seres extraterrestres. Abaixo,
o encontro de Welles com o escritor
H. G. Wellsem Nova York, em 1938, quando
Welles preparava o programa de rádio com
a adaptação de "A Guerra dos Mundos";
Welles com o roteirista Herman Mankiewicz,
co-autor do roteiro de "Cidadão Kane";
e Welles com o cenógrafo e diretor de
fotografia Greg Toland, o técnico genial
e anônimo por trás de "Cidadão Kane"
e outros clássicos do cinema da antiga
Hollywood. Também abaixo, Welles em
1938 explicando aos jornalistas, horas
depois da transmissão do programa de rádio
com sua versão de "Guerra dos Mundos",
que não tinha ideia do caos e das
consequências que provocaria















Entre as grandes homenagens a Orson Welles para celebrar seu legado, à altura de sua importância, as principais estão agendadas para o Festival de Cinema de Cannes, de 13 a 24 de maio. O tributo a Welles programado para Cannes inclui cerimônias com as presenças confirmadas de sua filha, Beatrice Welles, e de Oja Kodar, sua companheira nos últimos anos de vida, e as primeiras exibições de três filmes restaurados em alta resolução (4K): “Cidadão Kane” e “A Dama de Xangai” (1948), dirigidos por ele; e “O Terceiro Homem” (1949), de Carol Reed, que tem Orson Welles como protagonista.



Autópsia de uma lenda



O Festival de Cannes também programou exibições de dois documentários inéditos sobre o cineasta, ambos com cenas e depoimentos de Welles já anunciados como polêmicos e nunca antes exibidos: “Orson Welles, Autópsia de uma Lenda” e “Este é Orson Welles” – o primeiro com direção de Elisabeth Kapnist, produzido pela Phares et Balises e pela Arte France; o segundo com roteiro e co-direção de Clara e Julia Kuperberg, produzido pela TCM Cinéma e pela Wichita Films.









Orson Welles durante as filmagens e
em cena de Cidadão Kane (1941),
sua estreia no cinema, considerado
pela crítica como um dos melhores
filmes de todos os tempos e o mais
importante dirigido por Welles,
devido à temática de crítica à
manipulação do público pelos
meios de comunicação e pelas
inovações técnicas e narrativas
que incluem o uso dramático de
ângulos de câmera e a montagem
que não segue o tempo linear.

Abaixo, Orson Welles
chegando para a sessão de estreia
de Cidadão Kane, em Nova York,
fotografado por W. Eugene Smith;
e com Carol Reed nas filmagens de
O Terceiro Homem, filme dirigido
por Reed em 1949 com Welles
no papel de protagonista











A agenda do Festival de Cannes em tributo ao criador de “Cidadão Kane”, contudo, também traz uma frustração para a legião de admiradores e estudiosos das obras-primas de Orson Welles: não está programada, ao contrário das expectativas mais otimistas, a primeira exibição de “The Other Side of the Wind”, o filme épico que consumiu a última década de vida do cineasta e que não chegou a ser concluído. É provavelmente o filme mais famoso nunca lançado – na verdade, mais um de seus vários e grandiosos projetos incompletos, entre os quais também estão suas filmagens no Brasil para o explosivo documentário “It's All True” (É Tudo Verdade), jamais concluído por Welles.

A batalha interminável pela conclusão e lançamento de “The Other Side of the Wind”, que está completando 40 anos, tem sido anunciada e sucessivamente interrompida por motivos diversos, em grande parte por questões legais que envolvem os direitos da obra e os herdeiros do cineasta, entre eles as filhas Beatrice, Chris e Rebecca Welles, além dos netos e bisnetos. Welles foi casado oficialmente três vezes: com as atrizes Virginia Nicholson (1934–1940), mãe de Chris; com Rita Hayworth (1943–1948), mãe de Rebecca; e com Paola Mori (1955–1985), mãe de Beatrice.












Orson Welles e suas quatro esposas:
acima, com Virginia Nicholson em 1938
e com Rita Hayworth em 1941 e em 1944.

Abaixo, com Paola Mori em 1955;
e com sua companheira dos
últimos anos de vida, Oja Kodar,
em 1975, durante as filmagens de
The Other Side of the Wind










Fronteiras entre realidade e ficção



Além dos casamentos oficiais, há os vários relacionamentos extraconjugais do cineasta, conhecido como conquistador de belas mulheres. Dizem os biógrafos que Welles vivia um caso de amor com a estrela Dolores Del Rio quando se apaixonou por Rita Hayworth em 1941, durante a temporada no Brasil, ao ver uma foto da atriz na revista Life. Ao retornar a Hollywood, teve início sua aproximação com Rita, com quem se casou em setembro de 1943. O casamento chegou ao fim em 1948, depois do rompimento durante as filmagens de "A Dama de Xangai".

O último e mais duradouro caso de amor de Orson Welles foi com Oja Kodar, sua companhia mais frequente nas duas últimas décadas de vida, enquanto ele ainda estava casado com Paola Mori. Atriz, modelo fotográfico, fotógrafa, escritora e roteirista nascida na Croácia,
Oja Kodar aparece na filmografia de Welles como co-argumentista e co-roteirista de “F for Fake” e de “The Other Side of the Wind”, do qual detém ainda hoje todo o material originalmente filmado por Welles e para o qual já anunciou uma parceria firmada com a plataforma Netflix para pós-produção e exibição do filme.

O projeto grandioso de “The Other Side of the Wind” contou com um elenco que incluía dezenas de nomes conhecidos do cinema, entre eles os também cineastas John Huston, Peter Bogdanovich, Dennis Hopper, Claude Chabrol e Mercedes McCambridge. Ao que se sabe, o filme traz uma história que dilui as fronteiras entre realidade e ficção, ao estilo de “Cidadão Kane” e "F for Fake", para acompanhar a festa de 75 anos de Jake Hannaford, alter-ego de Welles. No filme, o cineasta ficcional é interpretado por John Huston, que foi um dos grandes amigos na trajetória pessoal e profissional de Orson Welles.










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Orson Welles em cena: no alto,
com Rita Hayworth, em 1947, em
A Dama de Xangai. Acima, com
Jeanne Moreau, em 1967, em duas
cenas de The Deep, baseado no romance
Dead Calm”, de Charles F. Williams,
um dos vários projetos grandiosos e
inacabados do cineasta. Abaixo,
uma prosa animada entre dois gênios:
 Orson Welles e Charles Chaplin
em um bar de Los Angeles, em 1947 










Desde a estreia nos palcos, aos 17 anos, como ator e diretor de teatro, ou no grande escândalo provocado com sua versão radiofônica de “A Guerra dos Mundos”, e daí às turbulentas produções dos 13 filmes de longa-metragem que concluiu, de “Cidadão Kane” a “F for Fake”, uma grande questão perpassa todos os projetos de Orson Welles, incluindo os argumentos da maioria dos mais de 100 filmes em que participou como ator ou narrador: a denúncia contra o fascismo explícito ou dissimulado na manipulação da opinião pública através dos aparatos da mídia.

Esta grande questão, considerada uma afronta pelos grandes executivos de Hollywood desde “Cidadão Kane”, está na origem das maiores dificuldades que Welles enfrentou em seus projetos mais ambiciosos – mas também fez dele um mestre e uma referência exemplar diante de sucessivas gerações de cineastas e pensadores do cinema, dos pioneiros do Neo-Realismo italiano no pós-guerra aos lendários críticos da revista "Cahiers du Cinéma" e aos diretores da Nouvelle Vague francesa. Não por acaso, coube ao teórico do cinema, André Bazin, um dos fundadores da "Cahiers du Cinéma", o título como um dos principais biógrafos de Orson Welles.









Orson Welles em terras brasileiras:
no alto, com Vinicius de Moraes no
Cassino da Urca. Acima, proseando
com Dorival Caymmi, que havia sido
contratado para compor as canções da
trilha sonora para o filme It's All True.

Abaixo, Welles desembarcando no Brasil
e passeando na praia de Copacabana,
 no Rio de Janeiro, durante o Carnaval de
1942; no Cassino da Urca, sendo apresentado
à estrela Linda Batista, com quem teve um
breve romance; filmando os foliões nas rua e
flagrado
em um baile popular; em uma entrevista
coletiva 
no Copacabana Palacetambém no
Rio de Janeiro, fotografado para um
a reportagem
da 
revista O Cruzeiro; e os flagrantes de Welles
com a equipe de It's All True durante as
filmagens em Fortaleza, registrados pelo
fotógrafo Chico Albuquerque (1917-2000).
Também abaixo, o músico Arrigo Barnabé
no papel de Orson Welles em cena de
"Nem tudo é verdade"filme realizado
em 1985 por Rogério Sganzerla
























Orson Welles no Brasil



O reconhecimento a Welles como cineasta mais importante de todos os tempos também vem dos nomes mais importantes do cinema do “Terceiro Mundo” – entre eles os brasileiros Paulo Emílio Salles Gomes, Vinicius de Moraes (que durante anos foi crítico de cinema e conviveu com Welles desde 1940, quando Vinicius atuou como Adido Diplomático em Los Angeles), bem como para Glauber Rocha, para Rogério Sganzerla e para os demais protagonistas do Cinema Novo no Brasil.

Vinicius de Moraes dedicou ao cinema de Orson Welles textos que são elogios incondicionais, publicados nas décadas de 1940 e 1950 nos jornais “Última Hora” e “A Manhã” e nas revistas “Diretrizes” e “Sombra”. O mesmo se dá com o principal pensador do cinema no Brasil, Paulo Emílio Sales Gomes, que dedica à importância de Orson Welles um autêntico dossiê em dezenas de crônicas publicadas nas décadas de 1950 e 1960, no jornal “Estado de São Paulo”, e posteriormente reunidas nos dois volumes de “Crítica de Cinema no Suplemento Literário” (Editora Paz e Terra, 1982).












Entre os cineastas do Brasil, o prestígio de Orson Welles também foi destacado em longos e poéticos ensaios de Glauber Rocha, que antes de cineasta foi crítico de cinema do “Diário de Notícias” e do “Jornal do Brasil”. Welles e “Cidadão Kane”, segundo Glauber, também foram a referência confessa para “Terra em Transe” (1967), uma das principais obras-primas do cinema brasileiro. “Se Eisenstein foi o maior intérprete da revolução soviética”, escreve Glauber no livro “O Século do Cinema” (Cosac Naify, 2006), “Orson Welles é o maior intérprete da tragédia imperialista”.

Além de Glauber, há ainda Rogério Sganzerla, que dedicou ao cinema de Orson Welles, e à sua tumultuada passagem pelo Brasil, quatro filmes: “Nem Tudo é Verdade” (1986), “A Linguagem de Orson Welles” (1991), “Tudo é Brasil” (1998) e “O Signo do Caos” (2003). A influência de Welles sobre a obra de Sganzerla impressiona pelas questões de forma e conteúdo – presentes já em seu filme de estreia, “O Bandido da Luz Vermelha” (1969), que faz uma paráfrase permanente ao tom épico de “Cidadão Kane” e é apresentado como narração radiofônica – não por acaso remetendo ao tom alarmante de Welles em sua versão para o rádio de “A Guerra dos Mundos”.




















Papéis verdadeiros



Para Orson Welles, segundo informa o ensaio biográfico escrito em 1950 por André Bazin (publicado no Brasil com o título “Orson Welles" pela Editora Jorge Zahar, em 2005), as filmagens no Brasil representavam uma parte importante da visão progressista do cineasta sobre a cultura afrodescendente – que teve início com o trabalho de Welles nos palcos da Broadway, em 1936, especialmente na montagem de “Macbeth”, de Shakeaspeare, transferindo a ação da Escócia para o Haiti, com as bruxas transformadas em feiticeiros do Vodu e um elenco formado somente por atores negros, com a presença de músicos haitianos no palco.

Nosso objetivo não era extravagante”, descreve Welles a Bazin. “Queríamos dar a artistas negros a oportunidade de interpretar papéis que fossem papéis verdadeiros, em vez de confiná-los nos eternos personagens de babás de touca ou tios Tom”. A abordagem da cultura afrodescendente por Orson Welles, destaca Bazin, seria também o centro de outras duas de suas obras monumentais, mas infelizmente inacabadas: a adaptação do romance “Coração das trevas”, de Joseph Conrad, cujo argumento seria depois transformado no “Apocalipse Now” (1979) de Francis Ford Coppola, e o documentário “It’s All True”, filmado no Brasil, em 1942, mas que teve a produção bruscamente interrompida naquele ano pelos executivos dos estúdios RKO. 











Revoluções de Orson Welles: no alto,
Welles com Oja Kodar durante as filmagens
do inacabado The Other Side of the Wind,
seu último projeto, com participação de seus
amigos, entre eles os cineastas John Huston
Peter Bogdanovich (acima).

Abaixo, Welles, Oja Kodar e Gary Graves
durante a temporada das filmagens de
The Other Side of the Windencontro
registrado por outro grande amigo de
Welles, o fotógrafo Frank Marshall
  





 
Orson Welles tinha 27 anos e um contrato ambicioso com os Estúdios RKO quando veio para o Brasil em fevereiro de 1942 com a missão de realizar um filme musical sobre o samba, o carnaval e outros elementos da cultura brasileira. A missão foi organizada por Nelson Rockefeller, na época coordenador de Assuntos Interamericanos do governo dos EUA e maior acionista dos Estúdios RKO, para apoiar os esforços de guerra e de aproximação com o Brasil, que ficariam conhecidos como Política da Boa Vizinhança. Welles vinha do sucesso no teatro, da prodigiosa carreira no rádio e da explosão criativa e impactante que foi seu projeto de estreia no cinema, com “Cidadão Kane”. Em troca, como parte dos acordos entre os dois países, a maior estrela do rádio, do teatro e do cinema do Brasil, Carmen Miranda, havia sido enviada aos EUA para atuar na Broadway e em Hollywood.

Constava do projeto grandioso de Orson Welles para a Política da Boa Vizinhança a realização de três episódios previstos para o longa "It's All True": o primeiro foi filmado no México pelo segundo diretor da equipe de Welles, Norman Foster, e seria nomeado “My Friend Bonito”; o segundo e o terceiro, com títulos provisórios de “Carnaval” e “Quatro Homens numa Jangada”, teriam cenas filmadas no Rio de Janeiro e em Fortaleza. Welles também filmou em Ouro Preto, Minas Gerais, durante as celebrações da Semana Santa, e ficou encantado com os rituais católicos nos cenários barrocos, que sugeriam uma viagem no tempo, e pelo emaranhado de ladeiras da cidade com calçamento de pedra.

Apesar do entusiasmo de Welles e de sua equipe pelo projeto, o desfecho foi melancólico.
Welles gastou muito mais dinheiro que o previsto, esgotou todos os cronogramas e acabou mudando completamente o projeto inicial, por conta própria. Ao invés de filmar um documentário espetacular sobre o samba e o carnaval carioca, concentrou todos os esforços e verbas para acompanhar e reconstituir a viagem de 61 dias de quatro jangadeiros que foram de Fortaleza ao Rio de Janeiro para chamar a atenção do então presidente Getúlio Vargas para os problemas trabalhistas dos pescadores.












Orson Welles na Europa: no alto,
em visita a Paris, em 1952, para o
lançamento de seu filme Othelo
fotografado por Fred Brommet.
Acima, com o escritor e cineasta
Pier Paolo Pasolini, em 1962, na
Itália, durante as filmagens de
A Ricota, filme com roteiro e
direção de Pasolini e participação
de Welles como ator. Abaixo,
Welles em Paris, em 1962, com
o ator Anthony Perkins, nas
filmagens de O Processo,
adaptação de Welles para
o conto de Franz Kafka




 


Grandioso, porém inacabado



Mas algo desastroso ocorreu durante a produção de "It's All True" e deflagrou a tragédia. No período das filmagens da reconstituição da travessia pelo mar de Fortaleza para o Rio de Janeiro, numa tarde chuvosa, um dos jangadeiros conhecido como Jacaré recusou-se a sair ao mar para gravar por questões de segurança. Orson Welles insistiu e ofereceu um cachê maior ao jangadeiro, que no final acabou aceitando. Durante a viagem, a jangada virou, jogando os jangadeiros ao mar e Jacaré desapareceu. Seu corpo foi encontrado dias depois, quase irreconhecível, devorado por tubarões.

Abalado pelas dificuldades e ameaçado pelos estúdios, Welles ainda filmou várias sequências com pescadores e cenas poéticas com os belos cenários de cartões postais do Nordeste do Brasil, fez a viagem imprevista para filmar em Ouro Preto, visitou os morros cariocas e participou de reuniões com as principais lideranças políticas de esquerda, antes de voltar para os EUA, onde seguiria sua carreira cada vez mais polêmica, radical e conturbada. As centenas de rolos filmados no Brasil terminaram extraviadas e nunca seriam editadas por ele.






Orson Welles em cena: acima,
durante as filmagens de Chimes at
Midnight, em 1964, fotografado
por Nicolas Tikhomiroff. Abaixo,
Welles filmando The Black Rose 
no Marrocos, em 1948,
fotografado por Robert Capa







Tal como uma ficção que tivesse sido imaginada pelo gênio de Orson Welles, “It's All True” foi dado como definitivamente perdido durante décadas, até que os rolos de filme foram encontrados em um antigo depósito de Hollywood em 1990. O material então foi editado e transformado em um filme lançado em 1993 que é pura metalinguagem: um documentário sobre o documentário apaixonado que Welles filmou no Brasil e não conseguiu finalizar. “It's All True” e suas imagens tão belas quanto melancólicas, editadas à revelia do cineasta, vem completar a lista de seus projetos grandiosos e inacabados, junto a suas adaptações épicas para “Moby Dick”, “O Coração das Trevas”, “Don Quixote” e  também “The Other Side of the Wind”, entre outras.



Um aventureiro legítimo



Sobre a temporada de Orson Welles no Brasil e sobre a importância das revoluções provocadas pelo cinema que ele produziu, vale lembrar as palavras de Vinicius de Moraes em uma crônica publicada ainda na década de 1940 no jornal “A Manhã” e incluída em "O Cinema de Meus Olhos", coletânea publicada em livro em 1992 pela Companhia das Letras com os textos que Vinicius dedicou ao cinema: “É preciso confiar em Orson Welles. Tudo o que há de perigoso nesse homem, na sua arte, na sua violência, na sua crítica, no seu desmando, é necessário à cultura de um novo cinema que nasce (…). Welles aí está, impuro, manchado de astúcia, de fraude muitas vezes, um aventureiro legítimo”.






O último filme lançado por Orson Welles:
F for Fake (no Brasil, “Verdades e 
Mentiras"), mistura de autobiografia com
documentário e ficção que aborda as
verdades e falsificações da arte – uma
brincadeira de gênio, com Welles
como apresentador e protagonista
e com participação de Oja Kodar e
Joseph Cotten, ator de Cidadão Kane
e da maioria dos filmes que Welles
realizou. Abaixo, Welles filma Oja Kodar,
sua companheira nas duas últimas
décadas de vida, e o cartaz original
para o lançamento de It's All True







O jovem Vinicius de Moraes, que mais tarde seria celebrado como referência na cultura brasileira como poeta, cantor, compositor, havia percebido que Orson Welles trazia outra coisa além do cinema tradicional, algo novo, talvez a Grande Arte – mesmo constatando que, em sua época, em tempos de guerra, ninguém andava mais em busca de arte, nem de crítica.

“De arte está o mundo cheio, dessa arte artística de contornos exatos e estética determinada, que se faz sem sofrimento. Orson Welles traz-nos uma natureza persuasiva, que não se vexa da própria sordidez e sabe-se com prazer no espetáculo da grandeza e da miséria da vida”, conclui. Para o jovem Vinicius, como para o genial Orson Welles, a grande arte é, inevitavelmente, uma imitação da vida. Ou seria o contrário?


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Revoluções de Orson Welles. In: Blog Semióticas, 6 de junho de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/05/revolucoes-de-orson-welles.html (acessado em .../.../...).






No alto, Orson Welles em sua última imagem,
fotografado por Michael O'Neill em maio de 1985.
Acima, o cineasta no papel dele mesmo
em cena do filme "F for Fake"




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