O
poeta é um fingidor. –– Fernando Pessoa, “Autopsicografia”. |
Logo após completar 28 anos, em 31 de outubro de 1930, Carlos Drummond
de Andrade (1902-1987) criou coragem para publicar, pela Imprensa Oficial, em Belo
Horizonte, seu primeiro livro, "Alguma Poesia". Naquele
mesmo ano, aconteceria a primeira honraria para o poeta, que nasceu
em Itabira e viveu longos períodos em Belo Horizonte e Nova Friburgo
antes da mudança em definitivo para o Rio de Janeiro, onde passou a
maior parte de sua vida: "Sentimental", um dos poemas do seu primeiro livro, é declamado pelo professor Manoel de Souza Pinto na
conferência "Poesia Moderníssima do Brasil", feita no
curso de férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal.
Drummond
e sua poesia se tornariam, tempos depois dessa primeira honraria, presenças capitais na
literatura e na cultura do Brasil. Porém, nem tudo foi celebração e homenagem desde o começo. Desde o primeiro livro, o poeta, que
durante a maior parte da vida foi funcionário público, seguiu à
risca a libertação proposta por Mário e Oswald de Andrade, com o
verso livre e abolição das amarras tanto das rimas quanto da
métrica da poesia tradicional. Contudo, a partir das primeiras
semanas, logo que começou a circular, seu primeiro livro também seria objeto de polêmicas e críticas terríveis. Entre
outros, um artigo zombeteiro sobre “Alguma Poesia”, assinado por
um tal Medeiros e Albuquerque anunciava na imprensa: "O título
diz alguma poesia; mas é inteiramente inexato: não há no volume
nenhuma poesia. Se ele dissesse 'alguma tipografia', seria exato,
porque se trata de um volume bonito, bem impresso. Mas oco. Não tem
nada dentro".
Ironias
do destino: as críticas ferinas de Medeiros passariam às areias do
esquecimento, enquanto os versos de Drummond passariam à condição
de clássicos instantâneos, fazendo dele presença marcante da
literatura nacional, aclamado nas décadas seguintes como o mais
importante poeta brasileiro do século 20. O livro de estreia de
Drummond, há muito tempo item de colecionadores, retornou agora às
livrarias em edição comemorativa do Instituto Moreira Salles:
"Alguma Poesia - O Livro em seu Tempo".
Organizado
por Eucanaã Ferraz, o primeiro livro de poeta traz um fac-símile do
volume que pertenceu ao próprio Drummond, com anotações
manuscritas de mudanças que o poeta iria incorporar nas edições
seguintes. A nova edição – concluída com a colaboração dos
netos de Drummond, Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, e
da Fundação Casa de Rui Barbosa, especificamente do seu Arquivo
Museu de Literatura Brasileira, onde estão depositados os recortes,
fotos e cartas que ilustram o livro – também traz cartas de amigos
e críticos, bem como uma amostra de resenhas e artigos publicados
por jornais e revistas em 1930, data da primeira publicação.
No
texto de apresentação, Eucanaã Ferraz traça o percurso de
Drummond de 1924 até maio de 1930, data da publicação original, e
destaca a importância da correspondência que o poeta trocou com o
paulista Mário de Andrade (1893-1945) – a quem o livro é dedicado
e cujas observações foram decisivas para a publicação –
mostrando que "Alguma Poesia" fez o ano de 1930 entrar para
a história da literatura brasileira.
Edições Pindorama
Edições Pindorama
Drummond, que somava 28 anos na época do primeiro livro, enfrentou as dificuldades habituais de um iniciante: sob o selo imaginário Edições Pindorama, criado por Eduardo Frieiro, romancista, tipógrafo e seu amigo pessoal, foram impressos 500 exemplares, pagos do seu próprio bolso sob a chancela da Imprensa Oficial (em que trabalhava como redator), mediante descontos em sua folha de vencimentos.
Entre
outros belíssimos destaques, "Alguma Poesia" abre com
"Poema de Sete Faces" ("Quando nasci, um anjo torto/
desses que vivem na sombra/ falou: Vai, Carlos! ser gauche na vida) e
traz o emblemático "No Meio do Caminho" ("No meio do
caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha
uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra"), que Mario de
Andrade considerou formidável, mas fruto de um certo cansaço
intelectual.
Comovente
e surpreendente ainda hoje, "Alguma Poesia" traz facetas as
mais diversas – de breves poemas-piadas até construções mais
elaboradas, de reflexão amarga, sobre o absurdo da existência e o
impasse entre o sentimento do artista e a sociedade, que revelam uma
das marcas que Drummond aperfeiçoaria até seus últimos escritos,
em meados da década de 1980, com seu senso particular de observação
minuciosa da vida cotidiana.
No meio do caminho
No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Sem
nenhuma dúvida, "No meio do caminho" está entre os mais
conhecidos e mais polêmicos poemas da literatura brasileira. Com
apenas 10 versos, que na realidade se reduzem a três, pois repete
muitas vezes umas poucas palavras, o poema foi escrito na década de
1920 e publicado pela primeira vez em julho de 1928, no número 3 da
“Revista de Antropofagia”, dirigida por um dos medalhões do
modernismo no Brasil, o paulista Oswald de Andrade.
Desde
sua primeira edição, “No meio do caminho” serve como divisor de
águas – e também o grande pomo da discórdia entre os mais
conservadores e os defensores da novidade da estética modernista. Em
1967, para marcar os 40 anos de publicação daqueles versos
polêmicos, o próprio Carlos Drummond de Andrade trouxe a público
"Uma Pedra no Meio do Caminho - Biografia de um Poema".
Poeminha da pedra
Poeminha da pedra
O
livro que Drummond apresentava reunia algo inusitado: a fortuna
crítica de seu mais célebre poema. A edição apresentava os versos
polêmicos traduzido para muitas línguas, discutidos, parodiados,
atacados, interpretados, louvados - o poema já estava
definitivamente incorporado à cultura nacional pelos intelectuais e
também por pessoas simples, que o aplicavam à vida cotidiana.
Agora,
mais de 40 anos depois, o livro que faz o inventário do poema também
retornou às livrarias em publicação produzida pelo Instituto
Moreira Salles. A nova edição, revista e ampliada, também tem
organização do consultor de literatura do IMS, Eucanaã Ferraz.
Para o organizador, o livro é uma espécie de resposta em alto nível de Drummond
às duras críticas recebida pelo "poeminha da pedra".
Na entrevista que fiz com por telefone, Eucanaã Ferraz destaca que, por incrível que pareça, houve um tempo em que um trabalho miúdo e constante de difamação do modernismo tomava como exemplo da pior literatura o poema "No meio do caminho". Ferraz explica que os insultos ao poema transformaram o próprio texto em obstáculo ao escritor, criando um paralelo à situação metafórica da pedra no meio do caminho criada pelos seus versos.
“Drummond,
com uma surpreendente ironia, resolveu então publicar todas as críticas sobre seu
poema e devolveu aos seus leitores os documentos produzidos ao longo
de 40 anos. É um livro único, sem similar na literatura brasileira,
porque é o próprio poeta que resgata a vida intensa que o poema
alcançou", explica Ferraz.
O livro traz todo o conteúdo de sua versão original: texto de apresentação de Arnaldo Saraiva e fortuna crítica do poema mais discutido do modernismo brasileiro. A publicação do IMS oferece também duas seções inéditas: "Ainda a pedra", que complementa a seleção feita por Drummond com textos, charges e ilustrações sobre o poema posteriores a 1967; e "Biografia da biografia", que reúne comentários sobre o livro desde seu lançamento.
Eucanaã
Ferraz, autor de uma dissertação de mestrado sobre Carlos Drummond
de Andrade, confessa que foi extremamente prazeroso organizar a nova
edição da "Biografia de um Poema". Segundo ele, a
publicação original com o trabalho do poeta já estava completa e quase
irretocável.
"Depois
de publicar o livro, em 1967, o próprio Drummond continuou, talvez
por costume, a arquivar a fortuna crítica relativa a 'No meio do
caminho'. Drummond guardou muita coisa que saiu sobre ele ao longo da
vida, tudo separado com muito cuidado em fichas e pastas, por assunto ou pelo sobrenome do crítico",
destaca o organizador das novas edições de “Alguma Poesia” e
"Uma Pedra no Meio do Caminho - Biografia de um Poema".
Drummondiana
Drummondiana
O
lançamento dos dois livros foi o ponto de partida para o projeto de
uma futura "Drummondiana" do IMS, que promoveu no dia 31 de
outubro o primeiro “Dia D”, com homenagens ao poeta em várias
capitais e cidades de interior do Brasil. A proposta é que, a partir
de agora, o “Dia D” se repita todo ano, na data de nascimento do
poeta, em uma comemoração semelhante a outras datas relacionadas à literatura celebradas em outros países, entre elas as homenagens que os irlandeses fazem a James Joyce todos os anos em 16 de julho, chamado de Bloomsday.
"O
neto de Drummond, Pedro Augusto Graña, com seus dois irmãos, doou
todo o acervo de Drummond para o IMS", explica Eucanaã Ferraz. "Estes dois livros são a etapa
inicial de um projeto que poderá sim render outras edições no futuro,
como fruto do trabalho de pesquisa e de organização do acervo que é muito extenso e abrangente".
Uma
parte do acervo de Drummond, a mais literária, foi doada em vida
pelo poeta para a Fundação Casa de Rui Barbosa. A parte restante,
que está agora no IMS, inclui os originais que deram origem aos dois
primeiros livros e gerou uma terceira publicação, que acaba de ser
lançada. "Trata-se também de uma edição também fac-similar,
reunindo dedicatórias que Drummond fez durante a vida", explica Eucanaã Ferraz.
O
pesquisador e editor recorda que o poeta tinha o hábito de copiar em
um caderno todas as dedicatórias que enviava para os amigos. "O
novo livro reúne cerca de 500 dedicatórias, todas inéditas, que são
verdadeiros poemas. A edição inclui o título de cada livro, quem
recebeu a dedicatória, a data e a transcrição da dedicatória na
letra do próprio Drummond", completa.
Eucanaã Ferraz
também aponta o lugar de destaque, indiscutível, que Drummond ocupa
não somente na literatura brasileira, mas em toda a literatura em
língua portuguesa. "Dummond é o maior de todos os poetas da
nossa língua. É maior até que Camões, se considerarmos que
Drummond, na modernidade, atingiu toda a potencialidade da língua
portuguesa. Não houve experiência estética que Drummond não tenha
feito. Com sua poesia, a língua foi levada ao ponto máximo",
destaca.
E
os defensores de outro gigante da poesia em língua portuguesa,
Fernando Pessoa? "Pessoa é outro poeta que tocou no ponto
máximo da nossa língua, mas Drummond foi mais longe que ele, sem
nenhuma dúvida", polemiza Ferraz. "Fernando Pessoa e seus
heterônimos fragmentaram o sujeito com radicalidade, tocaram na
complexidade filosófica da personalidade, mas Drummond foi muito
mais vasto, mais ambicioso", completa.
por José
Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. O primeiro Drummond. In: Blog Semióticas, 1° de novembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/11/drummond.html (acesso em .../.../…).
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