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23 de agosto de 2025

Bienal das imagens de guerra

 




As guerras não machucam ninguém além das pessoas que morrem. 

–– Salvador Dalí em depoimento a Alain Bosquet em 1969.  

......





Sobre nosso olhar diante das guerras e das imagens de guerra, nosso silêncio, nossa indiferença ou nosso protesto, Susan Sontag disse quase tudo em “Diante da dor dos outros”, ensaio comovente, de fôlego e de impacto, publicado em 2003 – último livro que ela publicou, menos de um ano antes de sua morte aos 71, em 2004. Retorno ao ensaio de Sontag sobre as imagens da dor e da guerra reproduzidas diariamente por todas as mídias porque recebi, por e-mail, o belo programa da Bienal Internacional de Arte de Pontevedra, que está de volta 15 anos depois de sua última edição na província de Galiza, na Espanha, com o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás”.

A programação é extensa e tenta abraçar os mais diversos caminhos da arte contemporânea nos suportes tradicionais e formatos multimídia, presenciais e on-line. O tema da bienal tem sua inevitável inspiração no ativismo antiguerra de Susan Sontag – em sua opção por uma arte que fosse abertamente comprometida com uma real intervenção diante das guerras e da violência do presente. Pelo que se anuncia, é a temática da guerra que conduz a curadoria, com imagens de confrontos armados e massacres ganhando destaque na condição de obra de arte, incluindo retrospectivas históricas e experiências inéditas e imprevisíveis da arte viva contemporânea, como as instalações de Zehra Dogän, artista e jornalista curda nascida na Turquia, que lançam o visitante em barricadas e simulações de confrontos diante de tanques e tropas invasoras.









                   



Bienal das imagens de guerra: no alto e acima,

Etelastik”, instalação multimídia de Zehra Dogän

que lança o visitante no confronto diante dos tanques.

Também acima, os curadores da Bienal de Pontevedra

na cerimônia de abertura da edição 2025 do evento.


Abaixo, "Resiliência", escultura da artista do

Paquistão, 
Wardha Shabbir, com um imenso coração

de onde brotam folhas e flores, tudo revestido por resina

com tonalidade vermelho sangue. Também abaixo,

fotografia de cena de 
“Fora de Si”, performance de

dança e artes cênicas de Nuria Sotelo e Luz Arcas;

e “Labola”espetáculo de O Ribot, premiado em 2021

com o Leão de Ouro na Bienal de
Dança de Veneza.

Todas as imagens
reproduzidas abaixo fazem

parte do catálogo on-line da Bienal de Pontevedra,

exceto quando indicado nas respectivas legendas






                        
 






O imprevisível presencial


Entre as diversas instalações com suportes audiovisuais e multimídia, o imprevisível também é marcante nas obras de Rosalind Nashashibi, artista da diáspora da Palestina, que resgata cenas da Faixa de Gaza que desapareceram com o massacre genocida praticado diariamente pelas forças invasoras e terroristas de Israel contra tudo e contra todos: crianças que brincam, pessoas e cavalos que se banham nas águas do mar, jardins e bosques de oliveiras que o bombardeio incessante dos iraelenses transformam em ruínas e corpos destroçados. São imagens que gritam, em sua aparente simplicidade e sua beleza tão vulnerável. Visitantes também têm a experiência presencial de olhar as fotografias que Robert Capa registrou na Guerra Civil da Espanha – e por coincidência algumas das ampliações estão realmente próximas dos pontos geográficos em que foram fotografadas pelo mais célebre dos fotógrafos de guerras e por outros fotojornalistas que fizeram história.

Ainda que entre as obras e artistas da bienal esteja indicado um consenso inequívoco sobre o genocídio praticado por Israel contra o povo palestino, o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás” também cria um paradoxo com uma emblemática citação do alemão Theodor Adorno, que sempre retorna quando o debate aborda a guerra em interface com a arte e a literatura. Adorno argumentou, em 1949, que “escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro” – no ensaio “Crítica da Cultura e Sociedade” (publicado no Brasil em 2002 no livro “Indústria cultural e sociedade”, pela editora Paz e Terra). A afirmação retornaria em outros textos em que o filósofo contextualiza sua máxima com a advertência de que ele não pretendia que se deixasse de escrever poesia, mas sim que a arte após o Holocausto não podia mais ser ingênua ou indiferente à barbárie ocorrida, sendo necessário que a própria arte refletisse sobre a catástrofe. A ironia do destino é que agora, décadas depois do Holocausto, são os judeus no comando do Estado de Israel que usam do imenso poderio militar para cometer o horror dos massacres e do genocídio contra os palestinos, um povo que não tem exércitos.



          


Bienal das imagens de guerra: acima,
um selo postal da Alemanha em homenagem
ao centenário de Theodor Adorno em 2003,
onde se lê o rascunho com a célebre e melancólica
citação “escrever um poema depois de Auschwitz
é um ato bárbaro”
.

Abaixo, extratos de Gaza Elétrica, fotografias
e instalação multimídia de Rosalind Nashashib
que mostram cenas do território de Gaza, belas e
vulneráveis,
registradas em 2014 e 2015, antes da
completa destruição e do massacre nos últimos anos
praticado pelos ataques e bombardeios de Israel
















História de transformações


A Bienal de Pontevedra tem uma história de transformações. No início, desde sua criação em 1969, foi uma exposição competitiva destinada essencialmente à promoção de artistas locais, como se pode ler na retrospectiva do site oficial (veja o link no final desta página). A partir de 1974, a bienal ganhou abertura para artistas internacionais e, em 1982, abandonou o seu caráter competitivo. Por questões internas de gestão e dificuldades financeiras, o evento foi interrompido em 2010, retornando agora com a força inquestionável que a extensa programação vem demonstrar. Sob a curadoria de Antón Castro, historiador da arte e professor da Universidade de Vigo, com a curadoria adjunta de Agar Ledo e Iñaki Martínez Antelo, a bienal abriu formalmente no final de junho e se estenderá até 30 de setembro, ocupando diversos espaços da Galiza, com algumas exposições e instalações seguindo depois para outros espaços da Espanha e outros países da Europa.

Na apresentação da bienal, os curadores ressaltam que as duas guerras mundiais, em sua época, não foram temas marcantes das artes tradicionais da pintura e da escultura, mesmo tendo influenciado radicalmente os movimentos de vanguarda e os rumos da Arte Moderna. As experiências de representar a morte e a violência provocadas pelas máquinas de guerra tiveram mais força na fotografia e no cinema, aparecendo implícitas, ou quase não ditas, de forma metafórica ou alegórica, na literatura e nas formas da arte em geral. Houve, contudo, uma forte alteração de perspectiva, porque a guerra não mais aparecia de forma gloriosa e heroica, como tinha sido representada por muitos artistas nos séculos anteriores.








Bienal das imagens de guerra: arquivo
histórico de registros da Guerra Civil Espanhola,
a partir d
o alto, uma tropa da resistência em
Cerro Muriano, uma vila da Andaluzia, Espanha,
em 5 de setembro de 1936, em fotografia de
Robert Capa. Acima, um morto é transportado
na frente da resistência em Segóvia, em
fotografia de junho de 1937 de
Gerda Taro.

Abaixo, os soldados em uma pausa para uma
fotografia na rua, em Granada, 1937, uma cena
fotografada por 
Martín Santos Yubero;
o fotojornalista uruguaio Pau Lluis Torrents,
com a câmera apoiada nos joelhos, conversa com
militantes da resistência na frente de Aragão, em
agosto de 1937, em fotografia de
Agostí Centelles;
um grupo de republicanos de esquerda assassinados
pelos
nacionalistas conservadores, liderados pelo
general Francisco Franco,
em Carabanchel Bajo (Madri),
em fotografia de dezembro de 1936 de Erich Andres;

e as covas vazias, à espera dos mortos, no cemitério
de Huesca, na província de Aragão, em fotografia
de abril de 1938 de
Albert-Louis Deschamps

















Os desastres da guerra


Uma importante exceção na representação da guerra surge de forma marcante na obra de Pablo Picasso – em 1937 ele pintou “Guernica”, sob o impacto de um dos massacres na Guerra Civil, que foi a destruição por bombardeios na pequena cidade de Guernica, criando uma obra monumental que tornou-se uma referência como o manifesto de maior impacto contra a violência do século 20. “Guernica”, a obra original, não foi cedida à Bienal de Pontevedra. Em 1981, ela foi transferida do Museu de Arte Moderna de Nova York para Espanha e permanece no Museu Rainha Sofia, em Madri, mas está presente na bienal na forma de homenagem, com uma recriação feita por uma artista do México, Fritzia Irizar, que produziu uma réplica da pintura original, feita em escala 1:1, sobre a qual foi apresentada uma performance de arte viva.

Na abertura da bienal, 
Fritzia Irizar disparou em direção à réplica de "Guernica" milhares de recortes com retratos das vítimas de massacres recentes em cidades da Palestina, da Síria, da Ucrânia, e os retratos terminaram afixados à tela que havia sido recoberta com cola de secagem rápida, gerando um efeito que oscila entre o festivo e o trágico. A homenagem a "Guernica" destaca a urgência para não esquecermos as lições do passado, provocando reflexões tanto sobre o sofrimento e o desespero de populações inteiras como sobre a banalização cotidiana da violência na cultura visual contemporânea.   

Outra exceção importante na representação dos cenários e das consequências da guerra, mas no século 19, vem de outro artista espanhol, Francisco de Goya, cujas obras estão presentes na bienal. Entre 1810 e 1815, Goya criou “Los Desastres de la Guerra”, uma série de 82 desenhos e gravuras que são referenciais pelo que retratam brutalmente tanto em evidências realistas como em metáforas e símbolos sobre a violência da guerra, tendo como tema e cenário a resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão. A série de Goya, não por acaso, fornece argumentos para Susan Sontag em “Diante da dor dos outros” e também surge como um fio condutor dos múltiplos recortes que guiaram a curadoria da bienal na seleção dos 60 artistas e das 400 obras em exposição.


















         



Bienal das imagens de guerra: no alto, "Guernica",
a obra monumental de Pablo Picasso, fotografada
por 
Francisco Seco em 2017 no Museu Rainha Sofia,
em Madri; e 
a recriação da obra pela artista do México,
Fritzia Irizar, na tela inteira e no detalhe, com as
fotografias recortadas e afixadas de milhares de
vítimas de massacres contemporâneos. Acima,
uma das gravuras originais da série
Os desastres da guerra, do mestre espanhol
Francisco de Goya (1746-1828).


Abaixo, “Naves Espaciais” (Astronauta), pintura
em técnica mista de 2024 de artista da Rússia,
Taisia Korotkova, peça da série Reconstrução;
uma imagem da série de projeções em técnica
mista "Ecologia invisível", do artista indígena
brasileiro Denilson Baniwa, uma alegoria sobre
o equilíbrio natural que tem sido violado pela
guerra cotidiana de humanos contra animais e
plantas; e “Medo”, instalação multimídia criada
a partir de uma histórias em quadrinhos de 1948,
obra do artista espanhol Antoni Muntadas
que denuncia a normalização das guerras
na imprensa e na cultura popular.

No final da página, "Casa" e "Tanque russo",
intervenções em slides de “ativismo poético”
do artista de Cuba, Dagoberto Rodriguez, um
dos fundadores de Los Carpinteros, coletivo de
artistas cubanos que usa humor e ironia para
abordar questões políticas sobre as guerras,
as migrações humanas e as mudanças climáticas












É quase inevitável associar os cenários violentos da série de Goya ao olhar de fotógrafos presentes na bienal com registros de guerras desde o começo do século 20, seja na Segunda República, na Primeira Guerra Mundial, na Guerra Civil ou na Ditadura Franquista, na Segunda Guerra ou nos conflitos intermináveis da segunda metade do século 20 até o presente em diversas nacionalidades. Há alguns nomes célebres, especialmente na cobertura dos combates durante a Guerra Civil na Espanha, na década de 1930, com destaque para o húngaro Endre Ernő Friedmann (1913-1954), que se tornou uma figura lendária sob o pseudônimo de Robert Capa; os alemães Erich Andres (1905-1992), Walter Reuter (1906-2005) e Gerda Taro (1910-1937); a húngara Kati Horna (1912-2000); o uruguaio Pau Lluis Torrents (1891-1966); os espanhóis Martín Santos Yubero (1903-1994) e Agustí Centelles (1909-1985); o francês Albert-Louis Deschamps (1889-1972) e o polonês Emil Vedin (1912-2001), entre outros.

Há também os fotógrafos nos cenários contemporâneos de guerras ocasionais ou permanentes que atravessam o Leste Europeu, os países da África, o Oriente Médio, a Ásia ou as Américas, neste nosso tempo presente em que os espectadores estão diante da dor dos outros observando-a como um espetáculo, muitas vezes em tempo real e simultâneo, acompanhando o horror pela TV ou pelas redes sociais nas telas do computador ou em celulares – com massacres de populações inteiras, incluindo muitas crianças, em atrocidades que dispensam mediação de jornalistas ou historiadores e acontecem ao vivo, diante dos olhos de milhões de espectadores. Seja por meio de fotografias, do cinema documental, dos fragmentos de transmissões on-line, seja em instalações presenciais, em pinturas, em ilustrações, em esculturas, em performances ou em técnicas mistas e imprevisíveis, as imagens de guerra reunidas pela Bienal de Pontevedra são amostras de registros incômodos e extremamente atuais da arte produzida em situações extremas – cada trabalho e todos, em conjunto, soando como alertas inquietantes e brutais.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bienal das imagens de guerra. In: Blog Semióticas, 23 de agosto de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/08/bienal-das-imagens-de-guerra.html (acesso em .../.../…).



Para visitar a  Bienal Internacional de Arte de Pontevedra,  clique aqui.






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11 de novembro de 2018

Performance com Marina Abramovic







O seu papel como artista, Marina Abramovic acredita, com

uma segurança que pode parecer ingênua e uma humildade

que desarma qualquer impulso para nos irritarmos, é levar o

seu público através de uma passagem ansiosa para um lugar de

libertação do que quer que os estava a limitar. Ela sabe que em

todas as culturas antigas há rituais para mortificar o corpo, como

forma de compreender que a energia da alma é indestrutível.

 (Judith Thurman).  
     

Poucos artistas contemporâneos conseguiram levar a experiência com a arte da performance a extremos tão aflitivos como Marina Abramovic. Com ela, os trabalhos e apelos do fazer artístico são sempre imprevistos, intensos, incômodos –– são questionamentos sempre polêmicos e quase sempre violentos que exploram a relação entre performer e público, que expõem os limites do corpo, as possibilidades da mente, e desafiam o perigo. Uma retrospectiva do extenso acervo construído pela artista em cinco décadas de atuação e de provocação permanente foi reunida em Florença, na Itália. “Marina Abramovic, The Cleaner”, exposição aberta ao público no tradicional Palazzo Strozzi de setembro de 2018 a 20 de janeiro de 2019, que depois seguirá um roteiro itinerante por outros países, apresenta e reapresenta experiências radicais que revolucionaram a arte da performance, colocando à prova o corpo da artista, como sujeito e como objeto, para sondar seus limites externos e seu imenso potencial de expressão.

Com links para a transmissão on-line de um cronograma bem variado de eventos que inclui visitas monitoradas e mostra de objetos, figurinos, fotografias, filmes, e também conferências, aulas magnas e mini-cursos, e dando continuidade às atividades que o Palazzo Strozzi vem transmitindo via internet (como aconteceu com exposições recentes de nomes também célebres e controversos da arte contemporânea como o chinês Ai WeiWei e o norte-americano Bill Viola, entre outros), a retrospctiva dedicada a Marina Abramovic reúne um calendário de atividades incomuns para um museu de arte. Na agenda também há performances da artista em formato multimídia e re-performances ao vivo, com atores selecionados e treinados pela própria Marina Abramovic para apresentar mais de 100 trabalhos de sua trajetória, oferecendo ao visitante uma visão geral de sua arte instigante desde os anos 1960 até experiências mais recentes.

Nas amplas salas, saguões e jardins do Palazzo Strozzi o visitante pode ter a sorte de encontrar a presença da própria artista, ao vivo, em aparições e performances não identificadas em datas e horários da agenda, talvez como medida de segurança para evitar aglomerações excessivas no espaço. Há também as re-performances com atores em ambientes sedutores que incluem telões para exibição de filmes, vídeos, fotografias, pinturas, esculturas e objetos em diversas instalações que provocam e comovem. Além de atividades dirigidas para crianças, escolas, famílias, estudantes de arte ou universitários, o calendário anuncia para o anfiteatro principal eventos com a própria Marina Abramovic em conferências e performances (veja os links para a exposição e cronogramas do Palazzo Strozzi no final deste artigo).










Performance com Marina Abramovic: no alto,
Anima Munditrabalho da artista em 1983 em
parceria com o performer Frank Uwe Laysiepen,
mais conhecido como Ulayna recriação da cena
bíblica em que Maria recebe nos braços o corpo de
Cristo após a Crucificação. Acima, a artista em uma
das performances que integram a série de oficinas
nomeadas como Limpando a casa, de onde saiu
o nome da exposição realizada em Florença,
The cleaner (ou “Il pulitore”, em italiano).

Abaixo, "Cleaning the Floor" (Limpando o chão),
de 2004, célebre reflexão sobre o feminismo,
com a violência de gênero investigada em
relação ao ambiente doméstico; e o encontro
de Marina e Ulay em duas performances que
marcaram época: o beijo revolucionário
de 19 minutos em Inspirar / Respirar,
realizado em 1977 no Centro de Cultura Estudantil
de Belgrado, na Sérvia; e AAA AAA, apresentada
em 1978, em Amsterdã, agora exibidas em
filmes na exposição do Palazzo Strozzi






   

 
Arte em relação com o corpo


A artista  que se autodefine como “cidadã do mundo” e como “avó da arte da performance” nasceu em Belgrado, antiga Iugoslávia, hoje capital da Sérvia, em 1946, ao final da Segunda Guerra Mundial. Filha de dirigentes do Partido Comunista, Marina Abramovic estudou na Academia de Belas-Artes em Belgrado e em Zagreb, onde se formou em cursos de artes plásticas e artes cênicas. No final dos anos 1960, ainda morando em seu país de origem, deu início a séries de performances que provocaram escândalo e chamaram atenção para seu nome –– entre elas apostas em limites da relação com o corpo e com o público nomeadas “Brincadeiras com facas” (Rhythm 10), “Deitar no meio de uma estrela de fogo” (Rhythm 5), “Ficar sob efeito de drogas controladas” (Rhythm 2) e “Estar semi-nua à disposição dos espectadores” (Rhythm 0), esta última retomada em 2010 no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, quando ela esteve presente durante os três meses da exposição: extensas filas se formaram com os interessados em ficar um minuto em silêncio, sentados, imóveis, diante da artista.

Em 1976, Marina Abramovic mudou-se para Amsterdã, Holanda, onde encontrou seu parceiro mais constante, o artista alemão Frank Uwe Laysiepen, mais conhecido como Ulay. O trabalho dos dois consistiu em testar e provocar os limites do público em intransigentes façanhas de resistência e loucura, a que os dois chamaram "trabalhos de relação", e que algumas vezes terminaram com a intervenção policial depois de denúncias dos mais conservadores sobre comportamento obsceno ou ameaças de violência. Uma destas performances, nomeada “Imponderabilia”, foi apresentada pela primeira vez na Itália, em Bolonha, 1977, na Galeria Comunale d’Arte Moderna. A aparente simplicidade da representação contrasta com altos níveis de complexidade: em um portal de passagem estreita, o casal está nu, imóvel, um corpo diante do outro, olhando-se fixamente. Quem quiser chegar do outro lado da sala para continuar a visita à exposição tem que passar entre os dois e tem que passar de lado, optando por se virar para um ou para o outro.









Performance com Marina Abramovic: acima,
Imponderabilia (à esquerda, a re-performance
em cartaz na exposição do Palazzo Strozzi; à direita,
performance original, com Marina e Ulay em 1977,
em Bolonha, na Itália, que foi interrompida pela
polícia). Abaixo, uma das salas da exposição atual
com Luminosidade casa-espírito, apresentada ao vivo,
com atores (re-performance), na exposição em Florença;
e a performance original Rhythm 5, realizada em 1974
por Marina no Student Cultural Center, em Belgrado











O incômodo da nudez



A situação de nudez cria, naturalmente, desconforto, como em todas as performances e trabalhos que Marina Abramovic propõe, com ou sem Ulay. Mas a nudez ou o desconforto não impedem várias pessoas de avançar, largando bolsas ou casacos, e passarem roçando nos dois corpos nus. Geralmente, do outro lado há alguém que fotografa o momento. A primeira performance de “Imponderabilia” em Bolonha foi interrompida muito antes das sete horas previstas, pela polícia, chamada para pôr fim ao “comportamento indecente” dos artistas. A mesma peça pode agora ser vista no Palazzo Strozzi, em Florença, integrada na retrospectiva de Marina Abramovic, reencenada por atores nus.

Desde a abertura da exposição na Itália, entretanto, não houve, ainda, nenhuma intervenção policial e nem protesto do público tentando impedir ou proibir as performances, mas as muitas fotos e vídeos feitos pelos muitos visitantes são, neste tempo de redes sociais, completamente invisíveis no espaço público. A tentativa de publicar fotografias da nudez da artista ou dos atores das re-performances em uma conta de Facebook, por exemplo, é imediatamente impedida por mensagens automáticas da empresa de Mark Zuckerberg avisando que a imagem é proibida por apresentar nus e violar ou não respeitar as regras da comunidade. Evoluiu a tecnologia, mas a arte de Marina Abramovic permanece plena de ousadia e um tanto incômoda. E tanto agora, como antes, continua a provocar os instintos mais repressores e a intolerância da censura.







Performance com Marina Abramovic: acima,
a artista nos bastidores, durante a montagem da
exposição em 2010 no MoMA, em Nova York. Abaixo,
registros de duas das performances do início de sua
trajetória que provocaram escândalo e chamaram
atenção para seu nome: Rhytm 10 (de 1973), em que
ela crava uma faca entre os dedos, em ritmo crescente,
ferindo-se várias vezes durante o processo; e
Relação no espaço, um dos primeiros trabalhos
da parceria na vida e na arte com Ulay








Performance e vida cotidiana



O encontro da artista em 1975 com Ulay, filho de um soldado nazista, nascido no mesmo dia que ela, 30 de novembro (Marina nasceu em 1946 e Ulay em 1943), marcou definitivamente sua trajetória e abriu novas perspectivas para as experiências levadas ao limite. Depois das obras mais tradicionais em pintura figurativa e pintura com abstrações em sua juventude, e depois das primeiras experiências radicais de performances em que o seu próprio corpo era o suporte, a fase de parceria com Ulay durou exatos 12 anos e estendeu o trabalho de performance para todos os momentos da vida cotidiana, registrados em peças que marcaram época e que sobreviveram em filmes e fotografias.

Entre os trabalhos mais conhecidos da parceria entre Marina e Ulay estão “Breathing In / Breathing Out” (em que um respirava para dentro da boca do outro durante 19 minutos), “Light / Dark” (em que os dois se esbofeteavam criando um ritmo durante 20 minutos), “AAA AAA” (em que ambos gritavam desesperadamente, cara a cara, durante 15 minutos), “Relação no espaço" (os dois correm de pontos opostos, completamente nus, e passam um pelo outro, repetindo o movimento durante 58 minutos, até que no último momento colidem, correndo em alta velocidade) ou “Rest Energy” (Energia de repouso), de 1980, talvez a cena mais angustiante, entre tantas outras, na qual Marina segura um arco e Ulay segura uma flecha apontada para o coração dela, ambos em uma posição de evidente desequilíbrio, durante quatro minutos e 10 segundos. A tensão e o perigo iminente provocaram, como sempre, desconforto e reações extremas do público.







 
Performance com Marina Abramovic: acima,
Rest Energy (Energia de repouso), parceria com
Ulay em 1980. Abaixo, o reencontro de surpresa do
casal em 2010 no MoMA, depois de duas décadas:

Ulay sentou-se à frente de Marina, os dois
ficaram emocionados e emocionaram o público



        






Arte em novas fronteiras



Durante o período de 12 anos da parceria, o casal morou em uma van Citroën de cor preta na maior parte do convívio (a van também está em exposição, aberta ao público, no pátio do Palazzo Strozzi) e teve aproximação maior com questões místicas e espirituais em temporadas e performances que incluíram viagens pelos cinco continentes –– com momentos históricos em uma tribo de nativos na Austrália ou em rituais com monges budistas no Tibete. O final da relação em 1988 também foi encenado como uma performance, monumental, nomeada em comum acordo pelos dois como “The Lovers” (Os amantes), com duração de três meses registrada por câmeras de fotografia e vídeo: cada um caminhou de um ponto extremo da Grande Muralha da China até se encontrarem, no meio do trajeto, para se despedirem um do outro com um demorado e afetuoso abraço de adeus.

Sem Ulay, nas últimas décadas, Marina Abramovic seguiu em direção a novas fronteiras: fez uma parceria com o dramaturgo britânico Robert Wilson para a montagem de um espetáculo teatral chamado "A vida e a morte de Marina Abramovic", apresentado com trilha sonora de Antony Hegarty em 2011 no festival internacional de Manchester, Inglaterra, e em 2012 no Teatro Basel, na Suíça, com Marina dividindo a autoria com Robert Wilson e dividindo as cenas no palco com o ator Willem Dafoe; e passou a investir no treinamento de atores para novas performances e para retomar antigos trabalhos, no que ela chama de re-performances ao vivo, como as que agora ela apresenta em Florença.

Sobre as críticas proibitivas de um ou outro teórico mais purista, que insista em defender o caráter da unicidade das performances, tal como elas surgiram no final da década de 1960, Marina Abramovic argumenta que a montagem em re-performance ao vivo é exatamente isto: uma forma de arte cênica e presencial para fazer perdurarem trabalhos que têm natureza efêmera, ao contrário do que ela mesmo professava nos anos 1970, quando havia um consenso defendendo que as performances eram únicas e irrepetíveis, o que as distanciava radicalmente do espetáculo de teatro. Nas duas últimas décadas, a artista também retornou à sua terra natal para buscar inspiração para trabalhos como “Barroco dos Balcãs” (1997), que traduz de forma simbólica as tragédias da Guerra da Bósnia. Apresentada na Bienal de Veneza, rendeu a Marina Abramovic o prêmio máximo do evento, o Leone d’Oro.











Performance com Marina Abramovic: acima,
Vida e morte de Marina Abramovic, parceria da
artista com o dramaturgo britânico Robert Wilson
apresentada nos palcos do festival internacional de
Manchester em 2011 e no Teatro Basel, na Suíça,
em 2012. Abaixo, Barroco dos Balcãs, uma
performance com ossos de animais premiada com o
Leone d’Oro no Festival de Veneza em 1997







.



O espaço além



Também ambientadas em sua terra natal são “O Herói” (2001), performance dedicada a seu pai, que lutou na resistência contra nazistas e fascistas, durante a Segunda Guerra, e “Épico Balkaniano”, instalação com três telões e imagens individuais de Marina, seu pai, sua mãe – somente Marina fala, contando histórias macabras sobre sua infância, na fronteira entre a realidade da memória e a imaginação fabulosa. Outra referência à sua terra natal e aos cenários de guerra aparece em destaque em "A casa com vista para o mar" (2002), apresentada na Galeria Sean Kelly, Nova York: durante 12 dias, de forma ininterrupta, ela ficou em completo silêncio e em completo jejum, observada pelos visitantes em uma estrutura suspensa que teve como único acesso escadas feitas com facas afiadas.

A fase mais recente da trajetória da artista avança pelo misticismo: em “Contando o arroz”, de 2015, criada como parte de uma série de oficinas nomeadas como “Limpando a casa” (também apresentadas em Florença e de onde saiu o nome da exposição atual, “The cleaner”, ou “Il pulitore”, em italiano), a artista propõe ao público um isolamento com fones de ouvido à prova de som para cada um, sentado à mesa, separar o arroz branco misturado a lentilhas pretas, anotando em uma folha o número de grãos – um convite à reflexão e à conexão consigo mesmo em busca de calma e concentração. Em “Objetos transitórios”, também de 2015, ela apresenta ferramentas incomuns feitas de cristais de quartzo e outros materiais frágeis para serem manuseadas com cuidado, provocando viagens interiores de meditação e transcendência.













Performance com Marina Abramovic: acima,
The Current (A corrente), performance de 2017
gravada em vídeo em tempo real, sem cortes,
com uma hora e 35 minutos em que a artista
permanece impassível. Também acima,
A casa com vista para o mar (performance
de 2002), uma alegoria sobre os cenários da
Guerra dos Balcãs. Abaixo, cenas do documentário
Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil












Com retrospectivas de seu trabalho realizadas nos últimos anos em diversos países, incluindo uma temporada no Sesc Pompeia em São Paulo, em 2015 (a primeira exposição retrospectiva da artista apresentada em um país da América Latina), o capítulo mais recente de sua trajetória de experimentações também se passa no Brasil: em parceria com o diretor Marco Del Fiol, Marina Abramovic apresenta em um documentário, “Espaço Além”, uma viagem esotérica de 87 minutos com uma série de performances e registros audiovisuais sobre lugares místicos, sobre preces de invocação e sobre cultos de devoção muito diferentes entre si. O filme estreou nos cinemas brasileiros em 2016 e segue sua trajetória de exibição em outros países e em festivais pelo mundo afora.

No “Espaço Além”, Marina Abramovic é a protagonista e a voz narrativa que tudo conduz. Com sua equipe de produção, a artista pesquisou e visitou, a partir de 2012, em diversos períodos, comunidades espirituais que incluem, entre outros cenários e ambientações, dos diversos rituais que convivem no Vale do Amanhecer, em Brasília, ao xamanismo na Chapada Diamantina, e daí a momentos de emoção e reflexão no candomblé da Bahia, nas cerimônias com chás de ayahuasca, nas benzeções tradicionais em Goiás, nas simpatias com sessões em banhos de ervas ou de lama, nas curas operadas por médiuns, por pessoas comuns, por cristais e outras pedras de poder que nomearam há séculos o território de Minas Gerais. Uma frase de Marina Abramovic, em algum momento do filme, talvez seja uma tradução fiel sobre sua trajetória: ela diz que sempre quis, desde o começo, em seu país de origem, ampliar a consciência através da arte para que outras pessoas pudessem, através de sua arte, ver a si mesmas em seu próprio reflexo. A artista, em sua presença imponente, polêmica e benevolente, não se esconde.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Performance com Marina Abramovic. In: Blog Semióticas, 11 de novembro de 2018. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2018/11/performance-com-marina-abramovic.html (acessado em .../.../...).


Para uma visita virtual à exposição no Palazzo Strozzi,  clique aqui.

















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