Os
homens fazem a sua própria História,
mas
nunca a fazem como querem.
–– Karl Marx, “O 18 de Brumário
de Louis Bonaparte” (1852).
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“Atravessar
o Rubicão” é uma expressão que remete a um dos mais famosos
episódios de Roma na Antiguidade Clássica: o general e estadista
Júlio César, no ano 49 antes de Cristo, tomou a decisão crucial de
atravessar o rio Rubicão com seu exército, transgredindo a lei que
determinava o licenciamento das tropas armadas toda vez que elas
retornassem pelo norte de Roma. Com a máxima “alea jacta est” (a
sorte está lançada), César assumiu todos os riscos, transpôs o
rio com suas tropas e mudou os rumos da história.
O
episódio de César, alegoria milenar sobre aqueles que tomam
decisões radicais e arcam com as consequências de suas atitudes,
perpassa o romance “O Dossiê Rubicão – Quando a morte assume o
poder” (Editora Batel), terceiro livro publicado pelo jornalista
Ramiro Batista. A proposta do romance não poderia ser mais corajosa:
uma trama ficcional que reúne jornalistas às voltas com a cobertura
política que alcança da emocionante, porém frustrada, campanha popular pelas eleições Diretas Já, até a posse malograda, porque não houve, do presidente eleito Tancredo Neves
(1910-1985).
O
título do livro, aliás, além de remeter ao drama e à redenção
de César na história do Império Romano, também é uma citação
a uma das mais famosas frases de Tancredo – uma frase que todos os jornalistas
que cobriam as pautas de política na década de 1980 conhecem de cor
e salteado: “Ninguém tira os sapatos antes de chegar ao rio, mas
ninguém vai ao Rubicão só para pescar”.
“Meu livro, Dossiê Rubicão, é uma mistura de ficção e realidade para tentar desvendar segredos e bastidores de Tancredo Neves em sua campanha à Presidência da República”, destaca o autor, que naquele período histórico que fornece o pano de fundo ao romance fazia seu aprendizado como jornalista profissional em Belo Horizonte. Os personagens da política da época tiveram seus nomes reais mantidos no romance, mas os nomes dos profissionais de imprensa são todos fictícios, segundo o autor, que mistura experiências reais e literárias para contar aquele episódio que foi um dos momentos mais traumáticos da história recente do Brasil.
Ficção e jornalismo caminham juntos
No
romance de Ramiro Batista, ficção e jornalismo caminham juntos,
abarcando o breve período que vai do fim de janeiro 1984, quando é
realizado o primeiro grande comício pelas Diretas, na Praça da Sé,
em São Paulo, até o dia 15 de março de 1985, data da posse de
Tancredo Neves como presidente da República. Não fossem as
interfaces com os dramas da política brasileira da década de 1980,
o livro também poderia ser descrito como um daqueles roteiros
policiais de filmes “noir” que envolvem sexo, drogas e traições
intrincadas.
Há
um jovem repórter em busca do furo jornalístico, o desaparecimento
de uma bela fotógrafa com um dossiê suspeito e a denúncia sobre os
bastidores das armações de um grande jornal. Mas além da farsa,
também há a tragédia: o fracasso do sonho de democracia da
campanha das Diretas e as conspirações repletas de contradição,
para abafar e conduzir a mobilização popular que tinha ganhado as
ruas. Sem contar a pressão dos militares e os esquemas da corrupção
eleitoral.
Tudo
isso e mais a presença em cena do veterano Tancredo Neves,
ex-ministro da Justiça de Getúlio Vargas (1982-1954) que
atravessaria a história brasileira do século 20 e chegaria como
protagonista à eleição indireta em janeiro de 1985. No Colégio
Eleitoral, Tancredo enfrenta e vence Paulo Maluf, ex-governador de
São Paulo, sagrando-se como primeiro presidente civil depois de 20
anos de ditadura militar. Ironias do destino: Tancredo ganha, mas não
leva. Em seu lugar assume o vice José Sarney, partidário do PDS,
antiga Arena, partido que durante duas décadas havia dado
sustentação política à ditadura militar.
Henfil (1944-1988) |
Entre a farsa e a
tragédia
Nas
páginas do romance, farsa e tragédia estão na zona de fronteira
que divide, e às vezes confunde, a ficção e o jornalismo: os
personagens do romance investigam e Tancredo chega a montar um
escritório secreto no Rio de Janeiro para se encontrar às
escondidas com sinistras figuras do regime militar; também esconde
até o limite sua doença, com medo de que a notícia possa
interferir no processo. A posse, afinal, é malograda e o que seria a
grande manchete da imprensa ninguém deu, para não colocar em risco
a transição – ameaçada pela truculência dos baluartes da
direita e dos setores mais reacionários, mal acostumados às
benesses espúrias que a ditadura militar proporcionava.
A
trama ficcional também lança mão do contexto jornalístico para
situar o leitor sobre o que ocorria no mundo naquele momento
histórico: o governo belicista do norte-americano Ronald Reagan
planejava invadir a Nicarágua, o cardeal alemão e futuro Papa Joseph
Ratzinger comandava no Vaticano uma perseguição implacável contra
as lideranças da Teologia da Libertação no Brasil e na América
Latina – e uma doença até então desconhecida, tida como uma
“peste gay”, começava a dar seus primeiros sinais. Tudo isso num
cenário cultural em que despontavam como novidades o teatro
besteirol, as rádios FM e uma profusão de bandas de rock “made in
Brazil”.
“O Dossiê
Rubicão”, que teve a primeira edição lançada no começo de
2010, é o terceiro livro publicado por Ramiro. A estreia na ficção
foi em 1983 com “A Pintinha Negra”, coletânea de sátiras
políticas sobre sua terra natal, Muriaé, na Zona da Mata de Minas
Gerais, onde Ramiro trabalhou em jornais locais. Em 1986 ele
lançaria seu primeiro romance, “O Camaleão no Abismo”, em que
descreve a educação sentimental de seu protagonista.
Além
de jornalista, Ramiro também se formou em Literatura e trabalhou em
assessorias de imprensa. Da sua trajetória profissional constam
ainda uma temporada como repórter no jornal “Estado de Minas” e
um período como funcionário da Assembleia Legislativa de MG. Muito
desta trajetória transparece em “O Dossiê Rubicão” na história
de seu alter-ego Gustavo Guerra, jornalista inexperiente, mas cheio
de ideais, que chega à redação de um jornal de São Paulo e se
apaixona por uma bela fotógrafa.
É
a fotógrafa, na trama do romance, que guarda o grande segredo: a
cópia de um dossiê comprometedor, batizado Projeto FR ou Folha
Rubicão. O dossiê parece ser uma seleção de documentos sobre uma
possível reformulação do jornal, mas na verdade também inclui uma
análise das artimanhas de certos bastidores da sucessão
presidencial que poderia levar Tancredo Neves à Presidência da
República.
Ameaças de retrocesso
No
meio das falcatruas, o caso de amor entre Gustavo e Camila e a
sucessão de pautas da cobertura jornalística, com uma série de
ações militares que na verdade são ameaças de retrocesso frente à
tentativa de abertura política. Há ainda a presença de alguns dos
mais emblemáticos personagens do nosso passado recente: Ulysses
Guimarães, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e muitos
outros. A certa altura, o jornalista e protagonista do romance
descobre que Tancredo está doente. É assim em “O Dossiê
Rubicão”: a cada lance, os acontecimentos reais servem de alavanca
para a trama.
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“O
Dossiê Rubicão” consumiu três anos de trabalho, segundo o
autor. “Há muitos anos que venho maquinando este livro, mas o
começo da redação, de fato, foi há cerca de três anos, quando li 'O Código Da Vinci'. Foi o best-seller do norte-americano Dan Brown
que deflagrou a escrita do livro, mas acho que o modelo para a
narrativa está mais para 'Agosto', do Rubem Fonseca”, aponta.
Publicado em 1990, o romance policial de Rubem Fonseca também funde ficção
e história do Brasil, culminando com o suicídio do presidente
Vargas. Na versão da história oficial, Tancredo Neves teria recebido das mãos do
próprio Getúlio Vargas a carta-testamento que seria divulgada por ocasião
da morte do presidente.
“O
título inicial era para ser ‘Pequenas Vilanias’, para remeter às
imposturas do dia a dia, tanto na imprensa e na política como na
vida das pessoas comuns. Também cheguei a trabalhar com o título ‘O
Código Tancredo’, mas gostei muito da sugestão do editor para o
título definitivo. Ficou mais abrangente e mais literário”,
avalia. Na época descrita no romance, o autor também trabalhava em
jornal de BH, mas preferiu situar seus personagens em uma redação
fictícia em São Paulo, por ele batizada de “Folha do Povo”.
“A
imprensa brasileira naquele período vivia muitos dilemas e
transformações”, recorda o autor de “O Dossiê Rubicão”.
“Era a transição da censura da ditadura militar para as
liberdades democráticas e era o começo das mudanças na tecnologia
para a produção industrial da notícia, das laudas de papel nas
barulhentas máquinas de escrever para as primeiras telas silenciosas
de computador”.
Dan Brown e Rubem Fonseca
O
processo técnico do jornalismo, descrito em várias passagens do
romance, fornece as imagens da primeira página do livro, que
reproduz uma antiga lauda datilografada com a manchete que traz o
“furo” de reportagem que mudaria a história do Brasil e que
movimenta as intrigas criadas pelo “O Dossiê Rubicão”. Ao final
do romance, mesmo para o leitor que não é jornalista paira uma
certeza, ou antes uma suspeita: a farsa e a tragédia daquele momento
resultaram das armações dos setores corruptos e conservadores da
sociedade brasileira, mas também foram decorrência das limitações
do trabalho jornalístico dos profissionais que cobriram a eleição
e o fim de Tancredo.
Antes
do drama de Tancredo, a campanha pelo voto direto para presidente
mobilizou multidões em grandes comícios nas capitais que juntavam
políticos a artistas e intelectuais. A campanha começou ignorada
sistematicamente pelos maiores veículos de imprensa, mas o
gigantismo das manifestações nos primeiros meses de 1984, nas ruas em várias capitais, rompeu o
silêncio. Na Praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro, data do aniversário da cidade, 300 mil pessoas participaram do comício. Em Belo Horizonte, cerca de 400 mil pessoas estavam presentes no comício da Praça da Rodoviária, em 24 de fevereiro. Na Candelária, no Rio de Janeiro, um comício reuniu um milhão de pessoas em 10 de abril. Em São Paulo, em 16 de abril, no último comício uma multidão se reuniu na concentração da Praça da Sé e seguiu em passeata até o Vale do Anhangabaú, com cerca de 1,5 milhão de
pessoas.
“Este
distanciamento de quase três décadas nos ajuda a compreender melhor
os boicotes, as traições e as ameaças de golpe que o Tancredo
enfrentou. Tanto que, no livro, ele aparece mais humanizado, cercado
por toda aquela teia complexa de acontecimentos que fizeram
história”, explica o autor, reconhecendo que transcreveu frases
históricas dos políticos envolvidos no processo e interligados à
extensa galeria de eventos que incluem o primeiro Rock’n Rio e o
que mais fosse notícia no Brasil e no mundo.
O
ritmo de trabalho para o livro foi intenso, confessa Ramiro Batista. “Li
muito, pesquisei jornais e revistas, e tentei ser metódico na
redação de pelo menos três páginas por dia”, recorda. Dos primeiros comícios pelas Diretas Já, até as vésperas da posse do
presidente Tancredo Neves, em abril de 1985, o romance percorre as tramas imaginadas pela ficção e segue os passos
imprevistos
e imprevisíveis da
história.
Conduzidos
pela farsa e pela tragédia, a sequência dos capítulos de "O
Dossiê Rubicão" persegue os registros
oficiais e os acontecimentos que se tornaram notícia naquela época de expectativas e de incertezas. Enquanto Tancredo investe nos acordos de toda ordem para
tomar posição de frente na cena política, as tramas da ficção descrevem o
triângulo amoroso entre o jovem repórter, uma editora do “Folha
do Povo” e Leão Machado, personagem emblemático que, não por
acaso, redige a carta-testamento que encerra o romance. Trata-se,
afinal, de um daqueles casos declarados da ficção em que qualquer
semelhança com os fatos reais não terá sido apenas uma mera coincidência.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Tancredo
virou ficção.
In: Blog
Semióticas,
21
de abril
de 2012.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/tancredo-virou-ficcao.html
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