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21 de julho de 2015

Mulheres de Korda










Uma “ironia do destino”: ele se tornou fotógrafo com a intenção de conhecer belas mulheres, mas terminou famoso no mundo inteiro por causa do retrato de um homem. Na verdade, não apenas um retrato qualquer – e sim, aquela fotografia que é quase um consenso como a mais reproduzida de todos os tempos: a imagem de Che Guevara. O retrato foi batizado na década de 1960 de “Guerrilheiro Heroico” pelo autor, o fotógrafo cubano Alberto Díaz Gutiérrez, mais conhecido pelo pseudônimo Alberto Korda (1928-2001). Agora, os retratos de belas mulheres, vertente de seu trabalho que ainda hoje é pouco conhecida, foram finalmente reunidas na mais importante exposição da PhotoEspanha, Festival Internacional de Fotografia e Artes Visuais, com sede em Madri, que programou uma edição dedicada à fotografia na América Latina.

Trata-se de “Korda, retrato femenino”, exposição aberta ao público no Museu Cerralbo, em Madri, que também conta com uma versão on-line e reúne, pela primeira vez, o acervo de fotografias de Alberto Korda que retratam apenas mulheres. São 60 imagens em preto e branco ou com matizes de sépia, a maior parte delas realizadas nas décadas de 1950 e 1960, sendo muitas inéditas em publicação e exibição pública. Considerado um dos mais tradicionais e consagrados eventos internacionais dedicados à fotografia, a mostra PhotoEspanha ocupa espaços de Madri e de várias cidades da Espanha e de outros países, incluindo Cascais e Lisboa, em Portugal, além de outras capitais da Europa – como Londres e Paris – Bogotá, na Colômbia, e também São Paulo, com exposições e diversos eventos em museus e espaços culturais.

Pelo recorte temático, dos 395 fotógrafos selecionados para a PhotoEspanha, a maioria vem da América Latina, incluindo nomes pouco conhecidos e também celebridades, com destaque, entre outros, para o brasileiro Mário Cravo Neto (1947-2009) e também Lola Álvarez Bravo (1903-1993), do México, Julio Zadik (1916-2002), da Guatemala, e Tina Modotti (1896-1942), italiana que viveu e trabalhou no México e em outros países. Mesmo entre tantas personalidades de importância central na fotografia do século 20, o cubano Alberto Korda surge como o grande destaque nesta edição da PhotoEspanha – com curadoria de sua obra em exposição a cargo de Ana Berruguete e contando com a colaboração da filha do fotógrafo, Diana Diaz.















Mulheres de Alberto Korda: no alto
e acima, o fotógrafo em seu estúdio em
Havana, Cuba, no ano 2000, e o filme 
de sua fotografia mais conhecida. Abaixo,
reproduções das fotografias de Korda
selecionadas para a mostra retrospectiva
da PhotoEspanha, com uma cena de
rua da Revolução Cubana de 1959 e
fotografia de 1958 com a bela Norka,
modelo que seria, anos depois, a segunda
esposa de Korda. Também abaixo, a capa
do catálogo oficial da exposição em Madri
e duas fotografias de 1956 de Nidia Ríos,
uma das musas de Korda e dos anúncios
de publicidade produzidos em
Cuba durante a década de 1950







                                











Autodidata que chegou à profissão de fotógrafo aprendendo e experimentando com uma Kodak 35 que tomou emprestada, Alberto Korda sempre dizia que buscou a fotografia somente com a intenção de conquistar mulheres, seguindo os passos do mais célebre dos fotógrafos de moda e seu preferido, o norte-americano Richard Avedon (1923-2004). A dedicação à fotografia com o objetivo de seduzir namoradas é relatada no livro "Cuba por Korda", lançado no Brasil pela Cosac & Naify. Escrito pelos franceses Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, o livro – perfil biográfico em edição recheada por 82 fotografias impressionantes, apresentadas em ordem cronológica – destaca que a trajetória de Korda foi marcada por estes estilos opostos: a moda, através dos retratos de belas mulheres, e as etapas da revolução de 1959 em Cuba, incluindo a tomada do poder e seus desdobramentos.



Revolução e retratos femininos



Primeiro a moda e os retratos femininos – e mais tarde a fotorreportagem sobre a revolução e seus líderes Fidel Castro e Che Guevara. Nos depoimentos transcritos por Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, Alberto Korda revela que inicialmente havia optado por uma "vida frívola", mas reconhece que, aos poucos e sucessivamente, os rumos da revolução em Cuba mudaram sua maneira de ver o mundo. "Percebi que valia a pena dedicar um trabalho à revolução que propunha a supressão das extremas desigualdades sociais", confessa Korda, que acompanhou Fidel e Che Guevara até as altitudes da Sierra Maestra, ainda no período das guerrilhas, tornando-se um olhar privilegiado que fez História ao registrar, por dentro, os momentos cruciais de afirmação do novo regime. 







 
Mulheres de Alberto Korda: acima,
duas fotografias produzidas por ele
para anúncios de publicidade em
revistas femininas publicadas em
Cuba e consideradas pornográficas
depois da revolução de 1959. Abaixo,
Julia López Cruz, que foi a primeira
esposa de Korda, fotografada por
ele em Brisas del Mar, em 1956 


 





 
Na apresentação à exposição “Korda, retrato feminino”, a curadora Ana Berruguete lembra que as imagens de Che Guevara, de Fidel e de Cuba no período da revolução são a vertente mais conhecida e divulgada do trabalho do fotógrafo, mas destaca que ele sempre teve uma verdadeira obsessão em capturar a beleza das mulheres, do começo ao fim de sua trajetória dedicada à fotografia. “É indiscutível que a beleza feminina foi o gênero por excelência do trabalho de Alberto Korda”, aponta Berruguete. Entre as fotografias inéditas de Korda, reunidas na exposição, estão suas últimas imagens de belas mulheres, registradas em São Paulo, no ano 2000, e três retratos de sua primeira esposa, Julia López Cruz, mãe de Diana Diaz.

Alberto e Julia se casaram em 1951 e se separaram cinco anos mais tarde, na época em que o fotógrafo não fazia segredo sobre seus relacionamentos amorosos com as beldades que viriam a posar no Metropolitan, estúdio que fundou em 1954, em Havana, em parceria com Luis Pierce. Foi também nesta época que ele adotou o pseudônimo Alberto Korda, em homenagem aos cineastas húngaros Zoltan e Alexander Korda, dois irmãos que naquele tempo dirigiam superproduções de Hollywood que faziam muito sucesso nos cinemas em Havana, e porque a sonoridade do nome Korda, segundo ele próprio, lembrava a marca Kodak. 








 Mulheres de Alberto Korda: acima
e abaixo, Norka, musa e segunda
esposa do fotógrafo, em ensaios
fotográficos produzidos para capas
do suplemento feminino do
Diario de la Marina, em 1956 
 









 
O grande domínio da luz



De todas as mulheres que visitavam seu estúdio em Havana – que também era ponto de encontro de artistas e intelectuais – destacam-se Nidia Ríos e Natalia Méndez, também conhecida como Norka, as duas beldades e musas principais das campanhas publicitárias produzidas em Cuba na década de 1950. Tanto Nidia quanto Norka – que se tornaria mais tarde, oficialmente, a segunda esposa de Korda – eram altas, magras e loiras, com aparência que não lembrava em nada a maioria das mulheres de Cuba. A estratégia diária do trabalho de Korda, de acordo com o que relatou para seus biógrafos, começava com a procura, nas ruas, por manequins inexperientes que fossem jovens, belas, elegantes, e que, principalmente, transbordassem erotismo.

Pelas imagens selecionadas para a exposição em Madri é possível perceber o grande domínio da luz no trabalho do fotógrafo – especialmente no uso da luz natural, já que muitas de suas fotos publicitárias eram produzidas fora do estúdio, em lugares como hotéis, praças e praias, construindo cenas que parecem saídas dos filmes clássicos de Hollywood, com suas personagens posando de divas, com ar de mistério. O mesmo domínio da luz também é visível em suas fotos que registram as pessoas anônimas nas ruas e nos desfiles militares, na época da revolução. A mudança do tema de belas mulheres para os anônimos e os militares nas fotos de Korda, entretanto, não é tão radical como pode parecer.





 
Mulheres de Alberto Korda: acima,
Norka em fotografia para um anúncio
publicitário da joalheria Cuervo y
Sobrinos, em 1958. Abaixo, Korda
ajustando a luz em uma sessão no
estúdio, no começo da década
de 1950; e a fotografia da garota
pobre em um vilarejo na região de
Pinar de Rio, em 1958, que marca
uma mudança radical na
trajetória de Korda











Os biógrafos destacam que, com a tomada do poder em Cuba pela revolução comunista, a demanda pelo trabalho de Alberto Korda em publicidade caiu e muitas de suas fotos chegaram a ser consideradas “pornográficas”. Mas sua decisão de mudar veio antes mesmo da revolução: ele próprio relata que, certo dia, em 1958, viu nas ruas de um vilarejo muito pobre, na região de Pinar de Rio, uma menina pequena que de repente ficou assustada com sua presença e com a câmera que ele carregava. Ele lembrou de sua filha quando observou que a menina fazia uma saia improvisada de papel sujo para vestir uma boneca que, na verdade, era apenas um pedaço de madeira. Comovido, desde aquele dia resolveu se unir ao ideal revolucionário que prometia acabar com a injustiça social. Depois da revolução, seria o fotógrafo oficial de Fidel.



Guerrilheiro Heroico



As mulheres não estão ausentes na trajetória de Korda no período posterior à revolução de 1959. Pelo contrário. Na seleção apresentada pela PhotoEspanha, em Madri, não faltam retratos de belas mulheres, sejam elas as camponesas, as milicianas carregando armas e vestindo uniformes militares ou ainda as espectadoras dos desfiles nas ruas de Havana. Quase três décadas depois da revolução, já na década de 1980, Korda retomou o trabalho dedicado à moda e à publicidade, um retorno às origens que não mais abandonaria. Suas últimas fotografias também estão na exposição em Madri: foi um ensaio produzido em uma estação ferroviária de São Paulo, onde Korda retratou belas e sensuais modelos em dezembro do ano 2000. Ele morreu cinco meses depois, em Paris.









 
Mulheres de Alberto Korda: depois
da Revolução Cubana de 1959,
o fotógrafo continuaria a registrar
imagens de belas mulheres, não mais
para anúncios publicitários e ensaios de
revistas de moda, e sim personagens
anônimas nas ruas, no campo
e nos desfiles militares











Para os biógrafos, a paixão pelas belas mulheres, pelas doses generosas de rum e pela Revolução Cubana foram os gostos pessoais da dedicação de vida e das vertentes principais do trabalho de Alberto Korda, o fotógrafo que imortalizou o retrato de Che Guevara. Em 1959, ano em que as tropas lideradas por Fidel Castro ocuparam Havana, Korda já acompanhava como fotojornalista as ações da guerrilha em Sierra Maestra e depois, foi convocado para fazer parte da equipe do jornal "Revolución".

Meses depois de instalado o governo da revolução em Havana, Korda permananece em ação, tanto nas ruas como no papel de enviado especial que acompanhava Fidel ou Guevara em viagens internacionais, alternando retratos oficiais e fotojornalismo em ambientes mais descontraídos. Os “retratos femininos”, porém, com o passar dos anos foram se tornando a parte menos conhecida de sua extensa obra – que soma mais de 20 mil negativos, na maior parte ainda inéditos e só recentemente identificados.





 Mulheres de Alberto Korda: acima,
o fotojornalista em ação nas ruas de Havana,
em dezembro de 1959, registra Che Guevara
ao lado da esposa Aleida March. Abaixo,
Korda em autorretrato com sua musa,
Norka, em 1956; em seu estúdio em
Havana, em 1964, fotografado por Ida Kar;
e três dos retratos de mulheres anônimas,
da série de registros "Korda in America",
feita durante a viagem da comitiva de
Fidel aos EUA, em abril de 1959
























Também causa surpresa que a fotografia mais famosa de Alberto Korda tenha permanecido por muito tempo inédita. Na foto, Che Guevara é retratado por Korda em Havana, em 5 de março de 1960, em um encontro organizado por Fidel após o violento atentado atribuído à Agencia Central de Inteligência dos EUA (CIA) contra o navio La Coubre, ancorado no porto de Havana, em que morreram 69 marinheiros cubanos e seis franceses, deixando dezenas de feridos.

Che Guevara participava, ao lado de várias autoridades cubanas, da cerimônia em homenagem às vítimas da explosão. Também estavam presentes, na mesma cerimônia, na tribuna, Fidel Castro e o casal de intelectuais franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que naquela data estavam em visita a Cuba. Korda, na época, já trabalhava para o “Revolución”, mas por algum motivo a célebre fotografia de Che Guevara não foi publicada pelo jornal oficial de Cuba.












Mulheres de Alberto Korda: no alto,
modelo em um dos últimos ensaios do
fotógrafo, realizado em dezembro do ano
2000, em São Paulo. Acima, a beleza
feminina em um desfile na época da
revolução, em Havana; e uma fotografia de
Korda na capa da revista Cuba em 1964

Abaixo, Fidel Castro fotografado por Korda
em 1962Che Guevara no cinema, na versão
de 2004 de "Diários de Motocicleta", filme
com direção do brasileiro Walter Salles,
baseado no livro autobiográfico de Che, com
Gael Garcia Bernal vivendo o jovem médico
Ernesto Che Guevara na viagem de moto que
ele fez em 1952 por toda a América do Sul;
Che Guevara acompanhando o casal
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir,
fotografados por Korda durante a
visita Cuba, em 1960.

Também abaixo, Korda com sua
fotografia mais famosa, que próprio
fotógrafo batizou de Guerrilheiro Heróico;
Alberto Korda observando sua obra célebre;
e duas intervenções artísticas que ajudaram
a propagar no mundo inteiro o mítico
Che Guevara, em gravuras produzidas
por Jim Fitzpatrick (na foto ao lado da obra)
e por Andy Warhol, com o painel das
variações cromáticas, ambas datadas de 1968;
e a imagem de Che em bandeiras e camisetas
vendidas em bancas nas ruas de Havana









 











   

Somente anos depois, em 1967, pouco antes da morte de Che na Bolívia, o editor Giangiacomo Feltrinelli obteve a imagem capturada por Korda. De volta a Milão, Feltrinelli imprimiu milhões de pôsteres e postais, pelos quais Korda nunca recebeu um centavo. Segundo os depoimentos transcritos por Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, ele teria ficado ressentido apenas porque a foto vinha sem crédito. Depois disso a fotografia quase acidental do “Guerrilheiro Heróico” foi finalmente publicada na França, pela revista “Paris Match”, e em seguida ganhou o mundo, impulsionada pela morte de Che. No ano seguinte, duas intervenções de artistas ajudaram ainda mais a popularizar a fotografia de Alberto Korda.

O primeiro foi o irlandês Jim Fitzpatrick, que em 1968 transformou a imagem em um pôster pintado em preto, branco e vermelho, mas sem nenhuma menção à autoria de Korda. O retrato de Che também foi transformado em 1968 em serigrafias de cores contrastadas por Andy Warhol – que repetiu a técnica e a ideia original de sua obra mais famosa, as serigrafias de Marilyn Monroe em policromia, criadas assim que a morte da atriz foi anunciada, em agosto de 1962.

Assim como fez com a imagem de Marilyn, em que omitiu o nome de Frank Powolny (que havia fotografado a atriz em 1953), Warhol também não fez qualquer menção ao nome de Alberto Korda como autor do retrato de Che Guevara, mas ganhou fortunas com a venda das gravuras originais e com os direitos de reprodução. É um caso impressionante: passaram-se décadas e a imagem do “Guerrilheiro Heróico” continua a ser usada por muitos, em situações e intenções diversas. Nas vezes em que foi questionado sobre as apropriações que faziam de sua fotografia mais famosa, Korda declarava ter esperança de que aquela imagem jamais perderia a força de representar a utopia e a ternura. Tudo indica que ele estava certo.



por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Mulheres de Korda. In: Blog Semióticas, 21 de julho de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/07/mulheres-de-korda.html (acessado em .../.../...).












Para uma visita às exposições da mostra PhotoEspanha,  clique aqui.


















20 de dezembro de 2014

Natal surreal de Salvador Dalí






Não há nenhum vestígio real, bem entendido, de
anjos, de riqueza ou de liberdade. Apenas imagens.
.....
––  Walter Benjamin em "O surrealismo, último  
instantâneo da inteligência europeia" (1929) 


Uma série de aquarelas com cenas bíblicas que permaneceu inédita por mais de meio século e duas coleções de cartões de Natal criadas por Salvador Dalí (1904-1979) são as mais recentes novidades do acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí com sede na Espanha. As obras foram incluídas no Catálogo Raisonné, que é a publicação completa dos trabalhos oficiais do artista, depois de aprovadas por especialistas em minuciosas avaliações comparativas e laudos técnicos. A série de 105 aquarelas foi pintada entre 1963 e 1964, sob encomenda para uma edição de luxo da Bíblia Sagrada em espanhol. Mas uma série de desentendimentos entre o artista e os editores interrompeu o projeto e só recentemente as aquarelas foram localizadas e autenticadas pelos técnicos da fundação.

Quanto às coleções de cartões de Natal, uma delas, com as aquarelas criadas por Salvador Dalí sob encomenda, no final década de 1950, para a editora norte-americana Hallmark, permanecia inédita. Quando recebeu a encomenda, Dalí exigiu um pagamento antecipado de 15 mil dólares para 10 cartões de felicitações com temas de Natal. O pagamento foi feito e a encomenda foi entregue no prazo previsto, mas os cartões foram considerados perturbadores e polêmicos demais para alcançarem sucesso comercial, motivo pelo qual a direção da empresa apresentou a série em uma exposição em sua galeria de arte, mas produziu apenas uma tiragem restrita. A outra coleção, com obras que em sua maioria também permaneciam inéditas, reúne aquarelas e ilustrações feitas entre 1958 e 1976 para os cartões que a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica enviava a um seleto grupo de clientes a cada final de ano. 

As obras que chegaram ao Catálogo Raissoné são surpreendentes e polêmicas, como sempre, em se tratando da arte de Dalí. “A diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista” – costumava dizer, em estado de provocação, o mestre Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol. Dalí sempre teve a seu favor uma técnica de pintura extraordinária, com habilidade e domínio criativo tão grandes quanto sua loucura e originalidade, e atravessou o último século influenciando artistas das mais diversas áreas, das mais diversas tendências e nacionalidades, da brasileira Tarsila do Amaral ao norte-americano Andy Warhol, entre muitos e muitos outros.










As imagens do Natal surreal segundo
Salvador Dalí: no alto e acima, o artista
fotografado em seu castelo em Cadaqués,
Espanha, no Natal de 1970, pelo turco
Ara Güller. Também acima, Dalí e Gala,
sua musa e agente que direcionou sua carreira
durante décadas, fotografados na cerimônia do
casamento civil, em 1934, por Eric Schaal.

Abaixo, Crucifixión, Cristo en la cruz,
aquarela criada sob encomenda para uma
edição de luxo da Bíblia Sagrada, em 1964.
Também abaixo, dois cartões de Natal
criados sob encomenda: o primeiro para
a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica
(Anjo de Natal, 1967) e o segundo para
editora Hallmark na década de 1950












Dalí também merece destaque, entre os mestres da arte no século 20, como um dos que mais produziram, segundo apontam seus mais importantes biógrafos, Robert Descharnes e Gilles Néret. Suas obras, disputadas pelos grandes museus, estão em sua maioria nas coleções do Museu Salvador Dalí em Saint Petersbourg, na Flórida, Estados Unidos, e na Fundação Gala-Salvador Dalí, na Espanha. A fundação, criada pelo próprio Dalí, em 1983, administra três museus na Catalunha: a sede, em Figueras, e as duas residências de Dalí e Gala, sua esposa e musa inspiradora desde 1929, transformadas, após a morte do artista, no Teatro-Museu Dalí, também em Figueras, e no Museu Port Lligat, em Cadaqués.



Uma trajetória de polêmicas



O acervo do Catálogo Raissoné das obras de Dalí conta, entre suas peças mais valiosas, com mais de 1.500 quadros que se inscrevem entre as mais celebradas e reproduzidas pinturas do último século. Também fazem parte do acervo completo mais de uma centena de esculturas, milhares de desenhos e ilustrações feitas sob encomenda para livros e revistas, cartazes publicitários, obras realizadas em colaborações e parcerias para teatro e cinema, cartas e manuscritos autobiográficos, séries de performances em fotografias, entrevistas e vários outros projetos, todos com o traço e as formas inconfundíveis das criações de Salvador Dalí.










Os cartões de Natal criados por
Salvador Dalí: acima, a Sagrada Família
em aquarela criada para a empresa
Hallmark na década de 1950; e um cartão
de Natal criado para o UNICEF em 1981.

Abaixo, variações para as árvores
de Natal nas ilustrações criadas por Dalí
para a Hoechst Ibérica, as duas primeiras
em 1958 e as duas seguintes em 1968














No século passado, Salvador Dalí foi muito criticado por conta de sua dedicação ao “irracional” e por suas posições políticas reacionárias, entre elas o apoio ao general Francisco Franco, que chegou ao poder no rescaldo da Guerra Civil Espanhola. Contudo, passou ileso pelas incontáveis polêmicas e continua em evidência, como uma autêntica celebridade, quase 30 anos depois de sua morte, com as exposições de suas obras sempre atraindo multidões e batendo recordes de público pelo mundo afora.

A trajetória de controvérsias e provocações de Dalí teve início nas primeiras décadas do século 20, com a expressão radical de suas obras que firmou o conceito de Surrealismo nas artes plásticas. No final da década de 1930, entretanto, ele foi expulso do grupo dos surrealistas da Europa pelo poeta e mentor do “Manifesto Surrealista” (1924), André Breton – que passaria a se referir ao desafeto como “Avida Dólares” (ávido por dólares), um anagrama perfeito para o nome Salvador Dalí.






O Natal segundo Salvador Dalí em
aquarelas criadas para os cartões da
Hoechst Ibérica: acima, Felicitación
de Navidad Astronautica, de 1962,
reflete o impacto que as notícias
sobre os primeiros voos
espaciais exerceram no artista.

Abaixo, Dalí em seu ateliê em 
Paris,
em 1930, começando a pintar
La persistência de la memoria,
uma de suas obras mais célebres;
e três variações criadas por Dalí
para a tradição das árvores de Natal
em ilustrações para cartões que foram
impressos em 1967, 1971 e 1970













A grande arte: caos e criação



Depois do rompimento com os surrealistas, Dalí e Gala partiram em 1940, rumo aos Estados Unidos, para prestar serviços em Hollywood e “comercializar” sua produção em artes plásticas (veja mais em Semióticas: Alice volta ao futuro). A temporada de uma década na América foi brilhante e também polêmica, como tudo o que se refere à obra do mestre surrealista. De volta, com Gala, à sua terra natal, Figueras, na Catalunha, Espanha, na década de 1950, Dalí iria diversificar cada vez mais seus projetos – incluindo, entre eles, as séries de aquarelas e ilustrações para cartões de natal criadas sob encomenda.

Pelo que relatam Robert Descharnes e Gilles Néret, nas biografias e catálogos publicados pela Taschen (“Dalí – A Obra Pintada” e “Salvador Dalí – A Conquista do Irracional”), Dalí produziu 19 aquarelas e ilustrações para os cartões de Natal produzidos pela empresa farmacêutica Hoechst Ibérica, entre 1958 e 1976. A empresa, que tinha sede em Barcelona, decidiu imprimir uma grande tiragem em formato de 10,04cm X 6,93cm e os cartões eram enviados, a cada final de ano, para médicos e profissionais de saúde. Atualmente, estes cartões originais com as ilustrações de Dalí são relíquias valiosas, disputadas por colecionadores.







O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a homenagem a
Don Quijote em cartão criado
para a Hoechst Ibérica em 1960.

Abaixo, uma homenagem de Dalí
para Las Meninascélebre pintura de
1656 de Diego Velázquez, no cartão
criado em 1961; a árvore de Natal no
cartão criado em 1974; e o Papai Noel
em um dos cartões rejeitados pela
empresa Hallmark em 1960









As imagens da série sob encomenda para a Hoechst Ibérica não foram as únicas criadas por Salvador Dalí com temas de Natal. Ele também criou cartões de Natal exclusivos para amigos e colaboradores como Enrique Sabater, seu secretário particular a partir de 1969. Há ainda uma série de pinturas em óleo sobre tela, criada entre 1964 e 1967, com variações sobre imagens de São José e da Virgem Maria com o Menino Jesus. Como quase tudo que o mestre produziu, são pinturas que também impressionam, talvez porque, mesmo representando o tema religioso, a série, batizada de “Iesu Nativitas” (Natal, em latim), revela imagens que fogem ao lugar-comum da tradição das cenas de Natal.

O caso mais polêmico envolvendo Salvador Dalí e as encomendas para cartões de Natal parece ter sido mesmo a série produzida para a empresa norte-americana Hallmark. O fundador da empresa, Joyce Clyde Hall, desde o final da Segunda Guerra convidava artistas muito conhecidos para produzir imagens para os cartões de Natal da Hallmark. A iniciativa trouxe prestígio para a empresa e alavancou as vendas, com cartões criados por nomes como Pablo Picasso Georgia O'Keeffe, entre vários outros. Mas com a série criada em 1960 por Dalí surgiu um impasse.






O impasse com a encomenda a Dalí para a criação dos cartões de Natal aconteceu porque, assim que recebeu as imagens originais, pintadas a óleo e em guache sobre papel, a empresa passou a temer repercussão negativa ou até mesmo protestos do público. O pagamento de US$ 15 mil foi feito pelo Hallmark antecipadamente, por exigência do artista. Das 10 imagens criadas por Dalí, a maioria foi considerada pelos executivos da empresa “surreais” em excesso e terminaram rejeitadas e arquivadas, não sendo comercializadas no formato de cartões para produção em larga escala, como antes estava previsto. A série foi apresentada em uma exposição na galeria de arte da empresa, em Kansas City, Missouri, no Natal de 1960, e alguns cartões foram impressas para distribuição restrita. Desde então as imagens permaneceram inéditas.


Além dos cartões para a Hoechst Ibérica e para a Hallmark, Dalí também criou outras ilustrações natalinas sob encomenda para revistas e para anúncios publicitários. Alguns destes trabalhos já estavam no catálogo de suas obras-primas, caso das pinturas e aquarelas que tiveram versões publicadas em dezembro de 1948 na capa da revista “Vogue” norte-americana e dos anúncios de publicidade para as meias de nylon da marca Bryans, publicadas na edição de Natal da “Harper's Bazaar”, também em 1948, quando Dalí e Gala ainda moravam nos Estados Unidos.







Cartões de Natal segundo Salvador
Dalí: acima, o cartão criado em 1969
para presentear seu secretário
particular, Enrique Sabater

Abaixo, quatro cartões da série de Natal
criada por Dalí em 1960 para a Hallmark:
1) a árvore de Natal formada por borboletas;
2) a visita dos três reis magos; 3) o anjo
sem cabeça tocando alaúde para Maria
e o menino recém-nascido; e 4) a borboleta
noturna que visita a Madonna e seu filho.
Também abaixo, a Virgem Maria e Jesus
 em aquarela criada para o cartão
da Hoechst Ibérica em 1960



















As estranhas simetrias



Nas pinturas, desenhos e ilustrações com os temas de Natal criados por Salvador Dalí, existe a inevitável persistência de determinados símbolos que percorrem toda a sua trajetória: no lugar dos típicos cenários de neve, de pinheiros verdejantes, de laços e bolas coloridas, as imagens natalinas do mestre surrealista representam outros elementos, com sugestões arquitetônicas e formas geométricas em estranhas simetrias de corpos femininos, além dos adornos propositalmente incomuns que provocam saborosas ilusões de ótica e remetem a polêmicas que marcaram época.

O Natal surreal de Dalí é repleto de analogias que fogem dos limites da religiosidade e avançam em aproximações com o abstrato, o irreal, o sonho. Mesmo quando o que está representado é a Sagrada Família, formada por São José, a Virgem Maria e o Jesus Cristo recém-nascido, a imagem vai revelar outras simetrias – com cores imprevistas, com fragmentos de peixes e insetos, com anjos e árvores delineados em forma de ambiguidades, às vezes bizarras, e também com figuras lendárias da história da arte e da literatura, como a Infanta Margarita Teresa, imortalizada em “Las Meninas”, pintura de 1656 de Diego Velázquez, ou o Don Quijote de la Mancha criado por Miguel de Cervantes no livro de 1600.









O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a capa de Dalí para a
edição que comemorou o aniversário
de 50 anos da revista Vogue, em abril de
1944, e a adaptação da ilustração do artista
na capa da Vogue de dezembro de 1946.

Abaixo, a mesma ilustração nas
versões originais criadas por Dalí;
na terceira ilustração, a dobra que
permite outra visualização da figura











O próprio Dalí declarou muitas vezes que a irracionalidade e o apelo ao universo do pensamento onírico sempre foram os princípios condutores de todo o seu processo criativo. Em dois dos documentários que ele realizou, em parcerias com o fotógrafo Philippe Halsman (“Chaos and Creation”, 1960) e o cineasta Jack Bond (“Dalí in New York”, 1965), Dalí explica, com muitos exemplos e em mínimos detalhes, as etapas de seu processo de criação e as técnicas envolvidas dos primeiros esboços à finalização, condenando toda arte que esteja pautada sobre as regras da tradição e do “bom gosto”.







O Natal surreal segundo Dalí:
acima, o anúncio publicitário
para as meias de nylon da marca
Bryans, publicado em dezembro de
1948 pela revista Harper's Bazaar.

Abaixo, mais três pinturas sob encomenda
para estampar cartões de Natal, a primeira
de 1967 duas seguintes criadas em 1964, da
série intitulada Iesu Nativitas, com o nascimento
de Jesus na gruta em Belém e com a fuga da
Sagrada Família para o Egito. Também abaixo,
uma estampa em homenagem a Dalí,
instalada em dezembro de 2013 na escadaria
do Philadelphia Museum of Art (EUA)














A tradição da ruptura



No filme em parceria com o fotógrafo Philippe Halsman, seu mais fiel colaborador desde a década de 1940, Salvador Dalí volta às suas declarações polêmicas da época do rompimento definitivo com o grupo surrealista (“a diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista”) para avaliar os avanços que a Arte Moderna e o Surrealismo proporcionaram ao século 20. Segundo Dalí, toda a influência e as referências que a arte produzida por ele legou à História vão muito além das exposições em galerias e do destaque de suas obras nos acervos dos principais museus internacionais: elas atingiram o comportamento individual de muitos, muito antes da "atitude rock" de estrelas da música e da cultura pop, e marcaram presença até em questões de ciência e tecnologia.

Na sequência final do filme, o artista das controvérsias e das polêmicas apresenta sua conclusão profética que continua extremamente atual, depois de mais de 50 anos. "O Surrealismo irá, pelo menos, ter servido para provar que a esterilidade e as tentativas de automatizações foram longe demais e ainda correm o sério risco de conduzir toda arte e toda civilização a um único sistema totalitário", alerta. Não resta nenhuma dúvida: o provocador Salvador Dalí permanece como um daqueles grandes mestres, raros e visionários, que sempre conseguem surpreender.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Natal surreal de Salvador Dalí. In: Blog Semióticas, 20 de dezembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/natal-surreal-de-salvador-dali.html (acessado em .../.../...).

















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