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25 de junho de 2024

Arte do cartaz em 1900

 



Belas artes são aquelas em que a mão,

a cabeça e o coração andam juntos.

–– John Ruskin, 1870. 
  


Uma revolução das técnicas de composição e de impressão gráfica aconteceu no final do século 19, dando origem a uma nova forma de arte que ficaria conhecida como arte do pôster ou do cartaz. Mais de 130 anos depois, um acervo original com cerca de 500 peças raríssimas e preservadas na íntegra, que fazem parte da Coleção Leonard A. Lauder, foi reunido pelo Metropolitan Museum de Nova York para a exposição “The Art of Literary Poster” (A arte do pôster literário). O acervo permanecia inédito desde o começo do século 20 e agora, com a exposição, também está publicado em um catálogo de capa dura, com 248 páginas e todas as imagens com reprodução colorida em alta definição. No recorte temático estão cartazes em litografia e outras técnicas de gravura, impressos em policromia, no suporte papel, produzidos na última década do século 19 e nos primeiros anos do século 20, para anunciar lançamentos e novas edições de revistas, jornais, folhetins e livros. Em muitos deles, as figuras mostram pessoas lendo.

Impresso para ter vida efêmera, colado em paredes e muros dos centros urbanos, o cartaz vem de uma longa história em vários países. Uma abordagem teórica e historiográfica sobre a trajetória do cartaz no final do século 19 foi apresentada por Marcus Verhagen, historiador e professor da Universidade da Califórnia, no ensaio “Aquela arte volúvel e degenerada” (publicado no livro “O cinema e a invenção da vida moderna”, pela Cosac & Naify, em 2001). Inicialmente o cartaz era considerado apenas um recorte de papel impresso sem valor agregado, produzido às pressas sem maiores preocupações estéticas – “uma ferramenta comercial tosca, um anúncio em preto-e-branco com uma imagem altamente esquemática ou sem nenhuma imagem”, como ressalta Verhagen. A partir das últimas décadas do Oitocentos, no entanto, com a incorporação da impressão em cores e de novas técnicas, os cartazes criados para anúncios publicitários tiveram um salto de qualidade, conquistando o interesse de colecionadores e, muitas vezes, o entusiasmo dos críticos de arte.

 


 




Arte do cartaz em 1900: no alto da página, um detalhe

do cartaz promocional para divulgar o lançamento
da revista The Quartier Latin em 1898-1899,
em criação de Louis John Rhead. Acima, capa

  do catálogo da exposição no Metropolitan Museum

e a íntegra do cartaz de The Quartier Latin.

Abaixo, cartaz de lançamento de Three Gringos

in Central America and Venezuela, livro de contos

de Richard Harding Davis, com ilustração de

Edward Penfield inspirada nas pinturas de

Paul Gauguin sobre o Haiti. Também abaixo,

cartaz de Penfield anunciando uma reportagem

sobre a guerra entre Estados Unidos e Espanha,
destaque em fevereiro de 1899 na Harper’s






A moda em Art Nouveau


Esta nova era transformou o cartaz publicitário em uma nova mídia em ascensão que ganhava destaque nas ruas. O cartaz também passava a ser identificado como um dos elementos principais de um novo estilo que ficaria conhecido pelo nome em francês Art Nouveau – o estilo da arte decorativa que teve seu centro irradiador em Paris, no fim do século 19. Rapidamente, o potencial de consumo que surgia com a nova moda espalhou-se por cidades da Europa e de outros continentes. Em Londres, o novo estilo tem seu equivalente com o movimento Arts and Crafts Exhibition Society, que teve o pintor e ilustrador de livros Walter Crane como primeiro líder e presidente.

A Arts and Crafts Exhibition Society montou a sua primeira exposição anual em 1888, mostrando exemplos de trabalhos que ajudassem a elevar o estatuto social e intelectual do artesanato, incluindo cerâmica, têxteis, metalurgia e mobiliário. Muitos dos artistas e artesãos que se envolveram com o movimento não só em Londres, mas também em Birmingham, Manchester, Edimburgo, Glasgow e outras grandes cidades do Reino Unido, foram influenciados pelo trabalho de um designer de sucesso na época, William Morris. Destacado também como ativista social e escritor, o próprio Morris reconhecia sua inspiração nas ideias do principal crítico de arte da Era Vitoriana, John Ruskin, elaborando novos padrões técnicos de artes gráficas e, assim como acontecia na França e outros países, novos modelos muito populares na arquitetura e como estilo intermediário entre a indústria e a arte, adotados na produção de máquinas, móveis, roupas, objetos funcionais e tudo o mais que o termo “design” passou a englobar e traduzir, provocando transformações radicais ou substituindo, gradativamente, as tradicionais oficinas de artes e ofícios.

Naquela época, o estilo Art Nouveau e a arte do cartaz se multiplicavam com velocidade, junto com o surgimento da eletricidade nos centros urbanos e a chegada dos automóveis que substituíam as antigas carroças, carruagens e bondes puxados a cavalo. O novo estilo era celebrado como a última moda, passando a contar com novos adeptos e novos consumidores. Evoluindo junto com as linhas de produção em massa da indústria mercantil e com a indústria do entretenimento, os cartazes se multiplicavam anunciando os espetáculos de ópera, de teatro, de vaudeville, os shows musicais em casas noturnas e a novidade do cinema. O projeto em comum aos artistas que adotavam o novo estilo combinava a tradição das belas artes com o artesanato em marchetaria e a produção de mercadorias utilitárias para consumo doméstico, alcançando também o mundo das artes, a pintura, a escultura e todas as técnicas de desenho e gravura.

 


 




Arte do cartaz em 1900: no alto, litografia de

Jules Chéret, o “inventor da arte do cartaz”,

anunciando, em 1889, a inauguração do

Moulin Rouge, casa de espetáculos que

marcou época em Paris. Acima, cartaz ousado

de 1896 de Henri de Toulouse-Lautrec,

com inspiração nos cartazes de Chéret,

criado para Troupe de Mlle. Églantine,

espetáculo musical parisiense que estreava

temporada em Londres, no Palace Theatre

of Vaeties, com a estrela Jane Avril,

uma das musas de Lautrec.


Abaixo, cartaz anunciando um ponto de vendas

da Bearings Magazine, voltada para ciclistas e

apreciadores de bicicletas, criado em 1896

por Charles Arthur Cox. Também abaixo, o marco

inaugural do estilo Art Nouveau no Brasil, na capa

da Revue du Brésil, criada em novembro de 1896

por Eliseu Visconti durante sua temporada

de estudos em Paris








Pioneiros do estilo


Art Nouveau também passou a ser o estilo adotado por nomes célebres da história da arte, cada um interpretando à sua maneira as novas técnicas decorativas, tais como o austríaco Gustav Klimt, o checo Alfons Mucha ou o espanhol Antoni Gaudí, entre outros. Verhagen destaca que, nas artes gráficas, o salto de qualidade na produção do cartaz teve um pioneiro que influenciou todos os outros e todo o estilo – o francês Jules Chéret, nomeado em 1890 pelo escritor Edmond de Goncourt como “o inventor da arte do cartaz”. Uma celebridade em sua época, Chéret passou a exercer forte influência sobre artistas como Toulouse-Lautrec e outros nomes do primeiro time das vanguardas europeias. Segundo Verhagen, o nome Chéret, na Paris de fim de século, passou a ser sinônimo para o cartaz mais elaborado, e a popularidade também alcançou a “chérette”, a dançarina estilizada com ares de ninfa sempre presente em seus desenhos e cartazes. Em um dos mais conhecidos, criado em 1889, a “chérette” em trajes e poses provocantes anunciava a inauguração do Moulin Rouge, a casa de espetáculos licensiosa que marcou época em Paris.

O pioneiro do estilo Art Nouveau no Brasil, Eliseu Visconti, também reconheceu a influência de Chéret durante sua temporada de estudos em Paris, entre 1894 e 1897. Historiadores como Frederico Morais (em “Aspectos da Arte Brasileira”, editado em 1980 pela Funarte) apontam a importância de Visconti não só como pintor e desenhista, mas também como pioneiro do design industrial e da arte do cartaz. Um dos trabalhos de importância histórica de Visconti, a capa do primeiro número da “Revue du Brésil”, editada em Paris em novembro de 1896, é considerado um marco que introduz o estilo Art Nouveau no Brasil. Em “Biblioteca Nacional – A história de uma coleção” (Editora Salamandra, 1996), Paulo Herkenhoff também destaca Visconti como precursor da arte modernista e como pai do desenho industrial brasileiro – com seus padrões para papéis de parede e objetos utilitários, além da criação de capas e ilustrações de livros e revistas, de selos, da decoração do Teatro Municipal de Rio de Janeiro e da Biblioteca Nacional, e de seus cartazes, os primeiros a terem valor artístico reconhecido no Brasil.









Arte do cartaz em 1900: no alto, cartaz criado por

Louis John Rhead em 1894 para anunciar a edição

de Natal da Century Magazine. Acima, o beijo estilizado

da figura andrógina no encontro com o pavão, emoldurados

por ícones de iluminuras de antigos manuscritos, no cartaz

criado pelo artista e ilustrador William Henry Bradley

para o lançamento de His Book, revista literária de

Nova York que teve apenas seis números entre 1896 e 1897.


Abaixo, dois cartazes criados por mulheres: o primeiro,

de Florence Lundbourg para o lançamento da revista

The Lark, edição de fevereiro de 1897; o segundo,

criação de Ethel Reed em 1895 para o lançamento do

livro Folly or Saintiliness, do escritor José Echegaray,

Prêmio Nobel de Literatura em 1904








A novidade do cartaz literário


A exposição que resgata o “boom” do cartaz em Art Nouveau, apresentada no Metropolitan de Nova York, tem curadoria e apresentação a cargo de quatro especialistas, que também assinam a edição do catálogo e os ensaios teóricos e historiográficos: Alisson Rudnick, Shannon Vittoria e Rachel Mustalish, diretoras dos departamentos de Papeis, Desenhos e Gravuras do museu, e Jennifer Greenhil, professora de História da Arte na Universidade de Arkansas. Diante do acervo selecionado, o que mais ganha destaque para o olhar do observador do século 21 é certamente o contraste entre a sofisticação estética e a aparente simplicidade das figuras, além do apuro estético na integração de texto e imagens para a composição dos cartazes – cada um deles surgindo mais próximos de uma obra de arte do que de um anúncio publicitário.









Arte do cartaz em 1900: no alto, página standart

(o formato padrão da página de jornal impresso, com

cerca de 55 cm) criada por E. Pickert, simulando o efeito

de pastilhas de acrílico, para a edição de 6 de fevereiro de

1895 do jornal The New York Times. Acima, o cartaz de

Bertha Margaret Boyé vencedor do concurso do

Movimento Sufragista para uma campanha pela

legalização do voto feminino em 1911.


Abaixo, cartaz de Joseph J. Gould Jr. para o

lançamento da edição de julho de 1896 da

revista Lippincott’s; e a nudez no cartaz criado

por Maxfield Parrish para o lançamento da

edição de agosto de 1897 da revista The Century










Mesmo sendo, em sua época, peças apenas funcionais para divulgação e publicidade, cada um dos cartazes em estilo Art Nouveau pode ser considerado uma obra de valor específico, com detalhes que revelam tanto questões culturais do tempo em que foram produzidos, como avanços nas técnicas das artes gráficas ou da linguagem que representa e traduz informações cifradas sobre códigos de comportamento. O cartaz criado por Edward Penfield que anuncia a edição de fevereiro de 1897 da revista Harper's, escolhido para anúncio principal da exposição no Metropolitan e também reproduzido na capa do catálogo, representa um caso emblemático para o recorte do acervo.

No cartaz de Penfield, quatro figuras elegantes da burguesia,
três mulheres e um homem, todos eles com seus chapéus da moda, viajam de bonde e estão lendo a revista. Ao fundo, ao lado dos quatro personagens das elites, um representante da classe trabalhadora: o cobrador do bonde, que também está mergulhado na leitura. Penfield criou cartazes sempre instigantes para cada nova edição da Harper's durante mais de sete anos. Em outro anúncio, criado em 1996 por Joseph J. Gould Jr. para a edição de julho da revista Lippincott's, estão ousadias gráficas e de costumes: a jovem elegante, vestida a rigor, está em sua bicicleta e tem a revista nas mãos. Como inovação gráfica, o chapéu amarelo da jovem cobre algumas letras do nome da revista, mas sem impedir a leitura.









Arte do cartaz em 1900: no alto, cartaz anunciando

o lançamento da edição de março de 1895 de

The Boston Sunday Herald, dedicada à moda de

primavera, com sobreposições de vermelho e preto,

criação de William McGregor Paxton. Acima, cartaz

de
William Henry Bradley para o lançamento em 1894

do livro When hearts are trumps, de Tom Hall.


Abaixo, cartaz de George Reiter Brill para o

Philadelphia Sunday Press, edição de 3 de fevereiro

de 1896. Também abaixo, cartaz de Louis John Rhead

anunciando a edição
de Natal do The New York Herald,

em 1896, com o toque pioneiro de um

Papai Noel em vermelho.

No final da página, cartaz para o lançamento

da revista Self Culture de outubro de 1897, criação

de Joseph Christian Leyendecker; e um autorretrato

estilizado de Edward Penfield para a capa do

calendário de 1897 publicado pela

editora R.H. Russel & Son, de Nova York










Arte e documento histórico


Há uma grande diversidade de nomes identificados como criadores dos cartazes, no acervo reunido pelo museu, com destaque em número de obras para os norte-americanos Edward Penfield, Joseph Christian Leyendecker, Louis John Rhead e William Henry Bradley, além da surpreendente presença de mulheres no grupo de artistas, entre elas Florence Lundborg, Ethel Reed e Bertha Margaret Boyé, que era uma professora e militante política muito conhecida na época, e que venceu em 1911 o primeiro concurso de cartazes para o Movimento Sufragista de San Francisco, Califórnia, em defesa da legalização do direito do voto para mulheres. No cartaz, que faz parte do acervo, uma figura feminina com uma túnica amarela, lembrando o arquétipo de uma sacerdotisa, abre os braços para mostrar uma faixa onde se lê “Votes for Women” (Voto para mulheres). Atrás dela, o sol que está na linha do horizonte forma uma auréola sobre sua cabeça, como se indicasse simultaneamente um símbolo de beatitude e santidade e o alvorecer de novas oportunidades.

Mais de um século depois da criação da maioria das peças reunidas no acervo, ainda é possível identificar e reconhecer o impacto duradouro que os cartazes em estilo Art Nouveau continuam a exercer sobre as linguagens da ilustração, sobre o design gráfico e até sobre a forma e o conteúdo dos anúncios publicitários da atualidade. O acervo também confirma a importância do cartaz como documento histórico – um documento que registra e preserva informações preciosas, ocupando um lugar especial na interseção entre literatura, imprensa, design gráfico, sociologia, questões políticas, culturais e comportamentais da época em que foram produzidos. No ensaio que abre a apresentação das imagens do catálogo, a curadora Alisson Rudnick ressalta que, em cada um dos cartazes selecionados, está representado algo novo: são anúncios publicitários produzidos para terem duração efêmera, mas, estranhamente, mudaram de função com o passar do tempo e agora têm seu valor preservado e reconhecido como autênticas obras de arte.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 25 de junho de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/06/arte-do-cartaz-em-1900.html (acessado em .../.../…).



Para uma visita virtual à exposição do Metropolitan Museum, clique aqui.


Para comprar o catálogo The Art of Literary Poster,  clique aqui.







 

31 de dezembro de 2020

Cidades de Miguel Rio Branco


 

 

Na maioria das vezes as fotografias recentes

que encontro não me dizem nada. Só nas fotos

do século passado eu encontro um certo frescor.

–– Miguel Rio Branco.   


O ano da pandemia chegou ao fim com uma importante homenagem a Miguel Rio Branco, um dos principais nomes da fotografia contemporânea no Brasil e, por coincidência, um fotógrafo que há mais de meio século atua registrando o isolamento social involuntário que a sociedade de consumo impõe a pessoas que, por diversos motivos, estão proscritas do sistema, às margens das grandes cidades. A homenagem veio do Instituto Moreira Salles (IMS) com a apresentação, em sua sede imponente da Avenida Paulista, da maior e mais abrangente mostra já realizada sobre a trajetória do fotógrafo. Com um título também imponente, abrangente e paradoxal, “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”, a exposição, organizada pelo próprio Miguel Rio Branco em parceria com Thyago Nogueira, curador da área de Fotografia Contemporânea do IMS, reúne mais de 200 imagens em grandes painéis que, literalmente, ampliam detalhes para destacar novos sentidos de uma obra singular, marcada pelos registros documentais e pela experimentação do suporte fotográfico no cruzamento de diferentes linguagens como a pintura, o cinema, a música.

Miguel Rio Branco, que completou 74 anos neste ano da pandemia, revê, pela primeira vez, seu arquivo da vida inteira nas imagens em cores e em preto e branco selecionadas para a exposição – um evento que, em sintonia com os novos tempos, será apresentado com rígidos protocolos de segurança, horário restrito e visitação em número reduzido, somente autorizado a partir de agendamento prévio. Além da visitação presencial com restrições e da versão on-line no site do IMS, o acervo fotográfico também está reunido em um catálogo completo de 208 páginas, na verdade uma narrativa visual editada pelo próprio fotógrafo e pela curadoria. Na apresentação ao catálogo, Thyago Nogueira destaca que Miguel Rio Branco tornou-se mundialmente conhecido por seus fotolivros – livros fotográficos construídos através de edições com critérios minuciosos e rigor técnico que conquistaram, no Brasil e no exterior, o status de obras de arte.










Cidades de Miguel Rio Branco: fotografias
selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”
,
apresentada pelo Instituto Moreira Salles. No alto,
imagem da série de 1973 Azul e Vermelho com Cavalo.
Acima, fotografia de Maria Clara Villas na abertura da
exposição no IMS da Avenida Paulista. Também acima,
fotografia de Miguel Rio Branco em homenagem à
cantora de jazz Billie Holiday no rosto de uma mulher
anônima em Salvador, Bahia, uma das três imagens
da série Billy's Triptychy, de 1984.

Abaixo, outras fotografias de Miguel Rio Branco
reunidas na exposição do IMS: Cinema Glória,
de 1975; uma imagem da série Coração,
Espelho da Carne
, de 1980; e uma imagem
da série Mona Lisa, de 1973














O artista Miguel Rio Branco exibe sua maneira pessoal de encarar a fotografia”, aponta o curador. “Aqui (na exposição ‘Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas’), a imagem não é apenas o registro de uma realidade vivida ou observada, mas um momento capaz de oferecer uma nova experiência. O que está em foco é a vivência do artista diante das cidades e sua maneira própria de escrever com imagens. A ideia do projeto era pensar a fotografia como escrita e investigar a sintaxe própria deste universo fotográfico. Ela tem a ver com um cruzamento de imagens de diferentes contextos e diferentes épocas para formar novas palavras, novas frases”, completa. Além da apresentação de Thyago Nogueira, o catálogo da exposição também apresenta um texto da crítica de arte Luisa Duarte que destaca, na experiência urbana que o fotógrafo registra, uma série de contradições comoventes e violências forjadas por “carne, pele, saliva, suor, sangue, nervo, gemidos, vertigens, provenientes de pugilistas, prostitutas, meninos, idosos, cachorros, que vivem entre facas, bebidas, cigarros, cicatrizes e tatuagens, e habitam as regiões onde as cidades ainda pulsam.



Melodia visual



Completam o acervo de duas centenas de imagens ampliadas da trajetória do fotógrafo uma instalação, “Out of Nowhere”, que foi criada para a Bienal de Havana em 1994 e agora surge remontada em nova versão concebida para o espaço da exposição no IMS. Na instalação, um fio condutor de colagens reúne fotografias de uma academia de boxe da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, e retratos de temas sobre a a violência, a miséria, a solidão, a sexualidade – fragmentos de imagens de suportes diversos, à maneira das pranchas do Atlas do historiador alemão Aby Warburg (1866-1929), em um fundo de tecido negro com espelhos antigos em formatos variados. O título da instalação vem de uma antiga canção norte-americana de 1931, época da Grande Depressão, uma composição em tons nostálgicos e melancólicos de Johnny Green e Edward Heyman que virou “standard” do jazz presente no repertório de Bing Crosby, Billie Holiday, Lena Horne, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Frank Sinatra e outros. Como ressalta o curador Thyago Nogueira, Miguel Rio Branco usa as fotografias como notas musicais que associa em dípticos, trípticos, polípticos, como quem compõe os acordes de uma melodia visual.












Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
três imagens da série Neve em Nova York,
de 1973. Abaixo, duas fotografias da série
Parede Vermelha, realizada entre 1992 e 2020,
todas presentes na exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas,
sangradas”
apresentada pelo IMS








Filho de diplomatas de origem brasileira, Miguel Rio Branco nasceu em 1946 em um cenário exótico: Las Palmas de Gran Canária, uma das cidades autônimas das Ilhas Canárias, território espanhol situado no Oceano Atlântico, próximo aos arquipélagos de Açores e de Cabo Verde, a oeste da costa africana do Marrocos. Depois da infância e da adolescência que viveu em trânsito entre Espanha, Brasil, Portugal, Suíça, Estados Unidos e outros países, Miguel veio definitivamente para o Brasil em 1967 e reconhece que descobriu, no Rio de Janeiro, uma realidade social que provocou nele um impacto tão forte, tão duradouro, que mudou definitivamente sua vida e sua visão de mundo. Segundo Miguel Río Branco, as fotografias que ele produz tentam reproduzir e traduzir, ainda hoje, aquele mesmo impacto de seus olhares em trânsito: entre a proximidade da beleza das cores que predominavam nas praias da zona sul carioca e a miséria também colorida das favelas que se espalhavam e se alongavam morro acima.

Seu interesse pelo mundo das artes começou muito cedo, com dedicação de autodidata às cores do desenho e da pintura. Sua primeira exposição como pintor, quando ele era ainda adolescente, aconteceu em uma galeria em Berna, na Suíça, no ano de 1964. Dois anos depois, enquanto morava em Nova York, foi estudar não a pintura, mas a fotografia, na condição de aluno matriculado no Instituto de Fotografia de Nova York. Também dois anos depois, já como morador da cidade do Rio de Janeiro, passou a estudar na ESDI, a Escola Superior de Desenho Industrial, simultaneamente fazendo séries fotográficas, diárias e intermináveis, sobre as ruas e favelas do Rio de Janeiro e seus habitantes e trabalhando como diretor de fotografia e como cinegrafista para cineastas como Gilberto Loureiro, Antonio Calmon, Alberto Ruschel Filho, Jom Tob Azulay e Júlio Bressane.









Cidades de Miguel Rio Branco
: fotografias
selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”
,
apresentada pelo IMS. No alto, imagem da série de
2005 
Babel Blues
. Acima, Homem na janela da
parede rosa
, imagem da série realizada em
1979 no Pelourinho, em Salvador.

Abaixo, fotografia da série Thunderdog, de 1998;
e duas imagens da série New York Sketches,
realizada em 1972-1972: uma cena das ruas
e um flagrante de Hélio Oiticica, também
em Nova York, à espera do metrô


















Cores saturadas



Não é por acaso que uma das primeiras experiências de Miguel Rio Branco no cinema tenha sido como assistente do diretor de fotografia Affonso Beato em “Pindorama”, filme que Arnaldo Jabor realizou em 1970, no auge da ditadura militar. Pindorama, nome dado ao Brasil pelos povo Tupi (a palavra, na língua tupi-guarani, significa “terra das árvores altas”), no filme de Jabor traduz uma alegoria sobre a formação de uma grande cidade brasileira no século 16, reunindo imagens da beleza dos cenários tropicais em contrastes de guerras e destruição com negros, índios e aventureiros europeus. Nos anos 1970, a trajetória do fotógrafo incluiu outra longa temporada em Nova York, onde trabalhou e conviveu com nomes de referência da arte brasileira contemporânea, entre eles Hélio Oiticica (1937-1980), Rubens Gerchman (1942-2008) e Antonio Dias (1942-2018). No final da década, em 1979, as fotografias experimentais e documentais que Miguel Rio Branco registrava, pelas ruas e pelas periferias do Rio de Janeiro e de Nova York, o levaram a ser contratado como correspondente internacional da prestigiada e lendária Agência Magnum de Paris, uma atividade em que atuou até 1982.

É desse período uma de suas séries fotográficas mais conhecidas, realizada durante uma longa temporada em Salvador, Bahia: “Pelourinho”, registro de 1979 sobre a parte mais antiga e mais degradada do bairro tradicional da capital baiana, em que se destacam as imagens dos corpos da prostituição e os rostos na penumbra, com detalhes em destaque de cicatrizes na pele e nos enquadramentos de velhas construções arruinadas pelo tempo. As características das imagens que o fotojornalista Miguel Rio Branco produziu sob encomenda para a Agência Magnum reúnem, em síntese, as qualidades mais abrangentes de sua concepção de arte e fotografia: cores saturadas em variações de contrastes cromáticos, experimentos com foco e movimento, diluição dos contornos, jogos de espelhamentos e de texturas, a temática de impacto para as denúncias sobre os contrastes sociais das cidades, a exclusão dos marginais, a violência, a pobreza, as atmosferas ao mesmo tempo sensuais e melancólicas.









Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
duas imagens da série Maldicidade #3,
realizada entre 1970 e 1990. Abaixo:
1) três jovens mulheres do povo Kayapó,
na Amazônia brasileira, em fotografia
de 1983; 2) imagens de Amaú, 1983-2016,
projeto iniciado em 1983 com a instalação
Diálogos com Amaú, que foi apresentada
na Bienal Internacional de São Paulo,
com a experiência da fotografia em interface
com a pintura e o cinema; e 3) fotografias da
série "Blue tango", sobre os movimentos e
a dança da capoeira, realizada na Bahia no
período entre 1984 e 2003. Também abaixo,
duas fotografias da montagem da exposição
apresentada no IMS da Avenida Paulista
























Em 1983, depois de interromper sua colaboração com a Agência Magnum e de realizar uma experiência incomum como cineasta (com um documentário realizado em 1981, “Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno”), uma participação na Bienal Internacional de São Paulo, com a instalação Diálogos com Amaú, iria inaugurar uma nova etapa na trajetória do fotógrafo, pintor, artista multimídia e cineasta, com instalações que reúnem fotografia, pintura, escultura, música e cinema, levando Miguel Rio Branco a realizar diversas exposições no exterior. Com as novas investidas em instalações e obras de formas híbridas também vieram as publicações de livros de catálogo e premiações importantes, entre elas o Prêmio Kodak da Crítica Fotográfica (1982), a Bolsa de Artes da Fundação Vitae (1994) e o Prêmio Nacional da Funarte, Fundação Nacional de Artes (1995). Entre os livros com registros sobre séries fotográficas e instalações, com recursos gráficos e editoriais incomuns de transparências e uma diversidade de suportes de impressão estão “Dulce sudor amargo” (1985), “Nakta, uma reflexão sobre a parte animal do homem” (1986), “Silent book” (1996), “Entre olhos, o deserto” (2001), “Você está feliz?” (2012), “Out of nowhere” (2013) e “Mechanics of women” (2018).



Imagens-poemas, ruínas do mundo



Dois fotolivros lançados em 2020 vêm somar complexidades às publicações de acervos de imagens de Miguel Rio Branco. O primeiro é uma nova versão, revista e atualizada, para “Maldicidade”, catálogo fotográfico que teve primeira edição pela Cosac Naify em 2014, em parceria com o curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff, diretor do MAR, Museu de Arte do Rio de Janeiro. O segundo é um catálogo em edição bilíngue, francês e inglês, em lançamento pela editora parisiense especializada em livros de artista, Toluca Éditions, com uma retrospectiva que vai dos seus primeiros trabalhos em fotografia, no final dos anos 1960, até o começo dos anos 1990.

Enquanto o catálogo da Toluca Éditions, com o título “Miguel Rio Branco: Oeuvres Photographiques / Photographic Works, 1968-1992”, apresenta o acervo que foi reunido para uma exposição em cartaz em Paris, no espaço LE BAL (de 16 de setembro de 2020 a 14 de março de 2021), que os curadores Alexis Fabry e Diane Dufour definem como “realismo exorbitante” e “imagens-poemas nas ruínas do mundo”, o acervo reunido em “Maldicidade”, na definição do próprio fotógrafo, é um inventário com cenas urbanas e justaposições de imagens capturadas de 1970 a 2010 para retratar diferentes partes do mundo, como Japão, Estados Unidos, Cuba, Peru e Brasil.








Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
fotografias da montagem da exposição
apresentada no IMS da Avenida Paulista.
Abaixo, o fotógrafo em entrevista via Zoom






Em outro catálogo, que teve como título o nome do fotógrafo, “Miguel Rio Branco”, publicado em primeira edição pela Companhia das Letras em 1998, um outro nome de referência da fotografia contemporânea, Sebastião Salgado, escreve no posfácio uma definição bastante precisa e preciosa, em artigo co-assinado por sua esposa Lélia Wanick Salgado:

Como brasileiros que somos, também vemos Miguel Rio Branco como um fotógrafo profundamente brasileiro. Ele capta a umidade das cores tropicais do Brasil, a fera luz que transfigura rosas, verdes e azuis. Ele entra no espírito da cor, penetrando seu âmago como nenhum outro fotógrafo de hoje que trabalha com a cor. Talvez se beneficie do fato de ser também artista plástico e cineasta: Miguel Rio Branco usa a cor como um pintor e a luz como quem faz cinema. Um outro Brasil também está presente aqui. Não tanto em imagens específicas, porque Rio Branco também trabalha em outros lugares, mas no espírito. É como se o fato de ter nascido fora de seu país, numa família de diplomatas, tenha despertado nele uma ânsia, um sentimento quase de urgência, de descobrir suas próprias raízes. Ao captar a beleza e a brutalidade de sua terra, ele descobriu a alegria e a tristeza de ser brasileiro. Em seu trabalho, vemos o coração do Brasil. Olhamos esse livro e nos vemos em suas páginas.”

Nos dois fotolivros recentes, publicados em 2020, assim como no catálogo da exposição que está em cartaz no IMS, ou no catálogo que mereceu o artigo de elogios de Sebastião Salgado e Lélia Wanick, ou mesmo nos demais fotolivros da trajetória incomum de Miguel Rio Branco, não se trata tão somente de livros de luxo e de arte sobre belezas exóticas de paisagens urbanas, nem de registros que exaltam monumentos históricos e arquitetônicos. Também não se trata de cenários de cartão postal emoldurados para enfeitar ambientes comerciais de grifes de interiores ou publicações sobre turismo e roteiros de viagens. Para além da beleza das cores e dos contrastes nos flagrantes sobre as ruínas do mundo, uma outra definição sobre a arte da fotografia segundo Miguel Rio Branco talvez possa acrescentar que suas imagens registram a catástrofe de nossa época – registros sobre os abismos sociais de nossas cidades, ainda que cada flagrante que ele captura também seja, de alguma forma, o resgate de algo estranhamente poético, de algo que guarda alguma empatia pelas pessoas mais simples e excluídas, algo que resta do sentimento humano nos cenários da miséria, da violência, da melancolia.


por José Antônio Orlando


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Cidades de Miguel Rio Branco. In: _____. Blog Semióticas, 31 de dezembro de 2020. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2020/12/cidades-de-miguel-rio-branco.html (acessado em .../.../...).



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