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17 de maio de 2014

Lygia Clark no MoMA






O erótico vivido como profano e a arte vivida como algo sagrado se fundem 
em uma experiência única. Trata-se, na verdade, de misturar a arte e a vida. 

–– Lygia Clark (1920-1988).   




Lygia Clark ganhou destaque internacional com uma grande retrospectiva de sua obra no MoMA – Museum of Modern Art, em Nova York, aberta ao público de 10 de maio a 24 de agosto de 2014. Maior exposição já dedicada a uma brasileira em um museu dos EUA, “Lygia Clark: The Abandonment of Art,1948- 1988” (Lygia Clark: O Abandono da Arte, 1948-1988) aborda, pela primeira vez, todas as fases da carreira da artista que se autointitulava “não artista e que se tornou uma referência, na segunda metade do século 20, na busca por uma arte contemporânea –– ou de algo que pudesse ultrapassar os limites das formas não convencionais de arte.

Com um acervo de 300 obras nunca reunidas em uma única exposição, tomadas de empréstimo, depois de longas negociações, em coleções públicas e privadas no Brasil e outros países, a mostra apresenta desenhos, pinturas, fotografias, filmes, esculturas, objetos, instalações e obras participativas criadas nas quatro décadas de produção artística de Lygia Clark. O acervo, organizado de forma cronológica, foi reunido pela curadoria do MoMA a partir de três grandes temas: Abstração, Neoconcretismo e Abandono da Arte.

Além das obras e instalações permanentes em exposição, completam a programação do MoMA o lançamento de um catálogo com a obra completa de Lygia Clark, que inclui fac-símiles de projetos e escritos inéditos da artista, e uma série de eventos paralelos, entre oficinas, palestras e exibição de documentários com participação de Lygia – entre eles "O Mundo de Lygia Clark" (1983), de Eduardo Clark; "Memória do Corpo" (1973), de Mario Carneiro; e cinco curtas-metragens sobre a obra de Lygia realizados entre 1974 e 1979 por Anna Maria Maiolino. Também está na programação uma mostra de filmes experimentais brasileiros dos anos 1960 e 1970, com produções de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Neville D'Almeida, Ivan Cardoso, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica e Lygia Pape, entre outros (veja link para o catálogo e para uma visita virtual no final deste artigo).







  




No alto, cenas da abertura da exposição
Lygia Clark: The Abandonment of Art,
1948-1988” no MoMA, Museum of Modern Art,
em Nova York. Acima, Lygia Clark sua
Máscara Abismo com tapa-olhos em 1968.

Abaixo, Lygia Clark em uma experiência
de "arte relacional" no Rio de Janeiro,
na década de 1970; e fotografada em
Paris, em 1970, por Alécio de Andrade.
Também abaixo: 1) Lygia na primeira
Exposição Neoconcretaem 1959;
2) Lygia em frente às suas obras
Unidades, de 1958; e 3) a capa do
catálogo com a obra completa editado
pelo MoMA para a exposição











Na edição do catálogo, os organizadores da exposição apresentam de forma linear a trajetória da artista, nascida em 23 de outubro de 1920, em Belo Horizonte, Minas Gerais, e morta aos 67 anos em decorrência de um ataque cardíaco em 25 de abril de 1988, para colocar em relevo sua prática inovadora, desde seus primeiros trabalhos com tendências abstratas, literalmente abertos à participação ativa do espectador. Mais abrangente publicação já lançada sobre a arte de Lygia Clark, o catálogo reúne todo o acervo da exposição e outros trabalhos em belíssima seleção de imagens, com estudo biográfico, textos inéditos da artista e ensaios de Cornelia Butler, Luis Pérez-Oramas, Sergio Bessa, Eleonora Fabião, Briony Fer, Geaninne Gutiérrez Guimarães, André Lepecki, Zeuler Lima, Christine Maciel e Frederico de Oliveira Coelho.




Arte de vanguarda e prática terapêutica



No dossiê para a imprensa, os curadores da mostra e também organizadores do catálogo, Cornelia Butler e Luis Pérez-Oramas, destacam a importância e a atualidade de Lygia Clark e apontam que a exposição pretende valorizar sua produção inovadora e reinscrevê-la em discursos atuais da arte em diversas perspectivas, especialmente nos questionamentos e pesquisas sobre abstração, na participação interativa do público em diversos suportes e nas práticas terapêuticas.





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Ao reunir todas as partes da sua produção tão radical e tão pioneira é possível observar que ela sempre esteve na vanguarda”, aponta Luis Pérez-Oramas, reconhecendo que o pioneirismo de Lygia Clark se dá em várias frentes – seja na participação ativa dos espectadores através da composição permanente de suas obras de arte não convencionais, seja em suas práticas com arte sensorial que a levaram a pesquisas com terapia psicanalítica e a desenvolver uma série impressionante de novas proposições terapêuticas fundamentadas na arte.

A trajetória de Lygia Clark faz dela uma artista atemporal e sem um lugar muito bem definido dentro da História da Arte, tanto que ela autointitulava-se "não artista". Pintora, escultora, escritora, “performer”, terapeuta, professora: em 1972, morando em Paris desde 1968, foi convidada a ministrar um curso sobre comunicação gestual na Sorbonne e, segundo os biógrafos, suas aulas eram verdadeiras experiências coletivas apoiadas na manipulação dos sentidos e das sensações. 













São dessa época algumas das proposições impressionantes da artista, tais como “Arquiteturas biológicas, 1969", “Rede de elástico, 1973", “Baba antropofágica, 1973" e “Relaxação, 1974". Em 1976, há uma alteração marcante na trajetória, quando Lygia Clark retorna para o Rio de Janeiro para se dedicar às práticas terapêuticas com experiências individuais e coletivas em arte sensorial através dos seus "objetos relacionais". 



Abstração geométrica



Na apresentação ao evento no MoMA, Pérez-Oramas destaca no primeiro módulo da exposição, dedicado à abstração, a presença de predecessores fundamentais na obra de Lygia Clark, desde o diálogo de suas obras iniciais com mestres da arte brasileira e com grandes nomes das vanguardas, Duchamp, Calder, incluindo seus contemporâneos na abstração geométrica, Paul Klee, Fernand Léger (de quem foi aluna), Piet Mondrian, Vladimir Tatlin, Max Bill, Georges Vantongerloo.










A arte de Lygia Clark: no alto e acima,
desenhos e pinturas da primeira fase
questionam os limites entre obra e moldura 
a partir do alto, “Sem título” (1954),
Superfície Modulada nº 9” (1957) e
Superfície Modulada n° 4” (1957).

Abaixo, "Estudo" (1957) e "Composição"
(1953), formas geométricas e cores em
diálogo com as célebres experiência de
Mondrian e de Escher. Também abaixo,
painel montado em mosaico de pastilhas
no edifício Mira Mar, na Avenida Atlântica,
Rio de Janeiro, criado em 1951.
Exceto quando indicado, todas as
imagens fazem parte do acervo da
Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark”
e foram extraídas do catálogo do MoMA
Lygia Clark: The Abandonment of Art















 


Mas o grande apelo para o público está no segundo e terceiro núcleos da mostra, com os objetos relacionais da artista e suas proposições sensoriais que questionam o suporte material da obra de arte – alguns eram aplicados diretamente no corpo dos participantes, como mostram vídeos da época. Além da exibição dos originais, os visitantes contam com ajuda de monitores treinados para reproduzir com réplicas as experiências sensoriais propostas por Lygia Clark.

Como característica marcante dos desenhos e pinturas iniciais da artista, nas décadas de 1940 e 1950, já estava a complexidade das superfícies e o questionamento sobre o suporte material, com a exploração dos limites entre obra e moldura. “O que eu quero é compor um espaço e não compor dentro dele”, escreveu Lygia Clark certa vez, reconhecendo que a linha construtivista da arte brasileira – no concretismo, no neoconcretismo e seus desdobramentos – a levou a investigações para a arte além dos limites do tradicional e das formas convencionais. Nessa época, surgem os “Bichos”.










A arte de Lygia Clark: amostras das,
metamorfoses permanentes na série
“Bichos” e outras séries de Lygia Clark:
a partir do alto, Relógio de Sol”, de 1960,
e “O Dentro é o Fora”, de 1963.

Abaixo, uma série de "Bichos" na
instalação do MoMA; a escultura
Trepante, Versão 1”, de 1965, 
e “Óculos” (Goggles), de 1968





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Além do limite convencional



Por volta de 1960, Lygia Clark encontrou uma maneira de desdobrar as investigações sobre arquitetura e topologia de sua fase neoconcreta para um repertório tridimensional. O resultado foi a série de esculturas conhecida como “Bichos”, obras interativas que Lygia Clark concebeu para serem inteiramente e infinitamente remoldadas por seus manuseadores.

Em cada um dos “Bichos”, as linhas orgânicas se tornam dobradiças entre painéis, permitindo que a escultura seja transformada de um achatamento esquemático para uma variedade de configurações tridimensionais inesperadas. Algumas destas obras carregam enorme semelhança com seres vivos específicos, como o “Caranguejo” (1960), enquanto outros evocam temas da investigação artística de Lygia, como “Relógio de Sol” (1960). 




 

 

O segundo núcleo inclui, além dos “Bichos”, as séries “O Dentro é o Fora” (1963) e “O Antes é o Depois” (1963), que apresentam tripas de metal entrelaçadas, sem dobradiças. Completam o núcleo obras da série “Trepantes” (1965), estruturas de metal compostas por aço inoxidável retorcido em linhas líricas e formas circulares, e “Caminhando”, que a artista criou em 1963, retorcendo uma tira de papel em 180 graus para colar suas pontas e gerar um Anel de Moebius – uma forma circular que aparenta ter dois lados, mas na verdade tem apenas um, recortado longitudinalmente até o seu limite. 

 

Exílio e abandono da arte



O terceiro núcleo da exposição aborda o período a partir do final da década de 1960, quando ela passou a se dedicar exclusivamente a obras que incluíam a participação ativa do público, que poderia transcender o papel de mero espectador, acabando com a distinção entre artista e plateia – com trabalhos muito polêmicos em sua época, uma vez que Lygia Clark nunca os considerou nem como “performance” nem como “happenings”. 







Lygia Clark no ateliê: acima, em seu
estúdio no Rio de Janeiro, na década de
1950. Abaixo, "Escada", pintura em
óleo sobre tela de 1951.

Também abaixo, Lygia em Paris,
em 1969, trabalhando na instalação
"Arquitetura Biológica II”, em fotografias
de Alécio de Andrade; e amostras das
célebres performances coletivas sob
o comando de Lygia também registradas
em fotografias de Alécio de Andrade:
A casa é o corpo”, apresentada na
Bienal Internacional de Veneza, em 1968;
"Arquiteturas biológicas", em Paris, 1969;
"Rede de Elástico" (Paris, 1973)






 
Pelo contrário: estas investigações de sua última fase terminaram por levá-la a questionar profundamente o status e utilidade de trabalhos convencionais como meios de expressão. Entre 1966 e 1988, um período que coincidiu com uma crise pessoal e uma subsequente longa temporada de exílio na Europa, Lygia retomou de forma radical conceitos e práticas que havia confrontado em trabalhos anteriores. Fez objetos muito simples a partir de coisas como luvas, sacos de plástico, pedras, conchas, água, elásticos e tecidos.

Estes “objetos sensoriais”, segundo Pérez-Oramas, foram criados para tornar possível uma consciência diferente de nossos corpos, nossas capacidades perceptuais e as nossas restrições físicas e mentais. Os “objetos sensoriais” da artista tinham o propósito de serem ativados em contato e coordenação com as nossa s funções corporais e orgânicas.

Ao combinar nossos gestos com esses simples objetos, ela pretendia projetar uma dimensão orgânica sobre os materiais inertes e industriais”, explica Pérez-Oramas. Nessa época, Lygia parou de se definir como artista e passou a se concentrar no desenvolvimento de experiências sensoriais de uso terapêutico.










A casa é o corpo



Além dos três núcleos em exposição no sexto andar do MoMA, o quarto andar é dedicado exclusivamente a uma única instalação: "A casa é o corpo: penetração, ovulação, germinação, expulsão". Criada em 1968 por Lygia Clark para a Bienal de Veneza, a instalação simula em minúcias o aparelho reprodutor feminino e permite ao público uma experiência de imersão corpórea ao percorrer o seu interior.

Obra de fundamental importância para a história da arte brasileira – como destaca Maria Alice Milliet no ensaio biográfico “Lygia Clark: obra-trajeto”, publicado em 1992 pela EDUSP – “A Casa é o Corpo” se constituía de um grande balão plástico situado no centro de uma estrutura formada por dois compartimentos laterais e um labirinto de 8 metros de comprimento – uma obra-ambiente concebida “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético”.















 
Ao entrar (“penetração”) no primeiro dos três compartimentos da instalação, o espectador encontra um quarto escuro de piso macio; depois, segue para a “ovulação”, um espaço repleto de materiais esféricos (balões, bolas de borracha e de isopor); em seguida, entra em uma bolha transparente no formato de uma lágrima (“germinação”) e, ao final do percurso, atravessa uma cortina de fios de “cabelo” para se deparar com um espelho deformado onde vê o próprio reflexo.

Passados quase 50 anos, as imagens de “A casa é o corpo” ajudam a explicar o impacto e o estranhamento que a obra sensorial e as ideias de Lygia Clark provocaram no Brasil e naquela Bienal de Veneza, com sua influência posterior em conceitos como “suporte”, “instalação”, “arte conceitual”, “arte-terapia”. A atual celebração de sua obra pelo MoMA e a recepção unânime e surpreendente de público e crítica a trazem de volta ao futuro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Lygia Clark no MoMA. In: Blog Semióticas, 17 de maio de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/05/lygia-clark-no-moma.html (acessado em .../.../...).



Para uma visita virtual à exposição Lygia Clark do MoMA,  clique aqui.


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A arte de Lygia Clark: no alto,
uma amostra e um coletivo da série
"Bicho" (1963). Acima, "Sem título" (1957).

Abaixo, registro da Vernissage da mostra
de Lygia Clark apresentada no MoMA 



 






28 de junho de 2013

Arte entre guerras







Na paz, prepara-te para a guerra.

Na guerra, prepara-te para a paz.    

–– Sun Tzu, “A arte da guerra” (século 4 a.C.).      

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Tarsila do Amaral, Maria Martins e outros grandes nomes do Modernismo brasileiro, que atuaram nos movimentos de vanguarda e produziram trabalhos importantes no Brasil e em outros países, no período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, são algumas das ausências notáveis da exposição “New Harmony: Abstraction between the Wars, 1919–1939” (Nova harmonia: abstração entre as guerras, 1919-1939), uma das mais amplas mostras já realizadas sobre a história da arte no período de intervalo entre a primeira e a segunda guerra mundial, em cartaz em Nova York no Guggenheim, museu reconhecido no mundo inteiro por ostentar em seu acervo uma das mais valiosas e invejáveis de todas as coleções internacionais da Arte Moderna.

Ignorados pela mostra internacional no Guggenheim Museum, Tarsila, Maria Martins e artistas como Victor Brecheret, Emiliano Di Cavalcanti, Cícero Dias, Djanira, Cândido Portinari, Iberê Camargo, Alberto da Veiga Guignard e Lasar Segall, entre outros, também marcaram presença na tradição da ruptura dos movimentos de vanguarda e da Arte Moderna no período entre guerras, e todos eles têm obras presentes no acervo do Guggenheim e de outros grandes museus de Nova York, dos Estados Unidos e de outros países, o que torna ainda mais incompreensível a ausência dos brasileiros na exposição “New Harmony: Abstraction between the Wars, 1919–1939”. Em sintonia com as experiências que transcorriam na Europa, os modernistas brasileiros descobriram maneiras surpreendentes de criar uma "brasilidade" através da arte. Tarsila e Maria Martins, entre todos eles, talvez sejam os casos mais emblemáticos pela presença no centro da vanguarda europeia desde a década de 1920.

Na época da Semana de Arte Moderna, em 1922, Tarsila do Amaral (1886-1973), assim como Maria Martins (1894-1973), estavam em Paris. Maria acompanhava o segundo marido, o diplomata Carlos Martins, e na temporada em Paris estudava pintura e escultura com mestres que se tornariam, assim como ela, grandes expoentes do Surrealismo; Tarsila também estava em temporada de estudos com amigos e mentores como Constantin Brancusi, Fernand Léger, Albert Gleizes, Blaise Cendrars, Pablo Picasso, André Lhote. Assim como seus mestres, Tarsila produziria uma imaginária marcante, com influência de várias escolas das vanguardas, celebrada como referência do Modernismo, em uma trajetória em que obras como "Abaporu", óleo sobre tela de 1928, entre outras, representam autênticos manifestos e paradigmas, com conotações cubistas, dadaístas, surrealistas, em ícones do nacionalismo traduzidos nas cores e temas da vida rural e urbana brasileira (sobre Tarsila e a Geração Modernista de 1922, veja "Semióticas: Ao sol, carta é farol").












Algumas obras-primas de mestres da Arte na
América Latina: no alto, América Invertida (1943),
do uruguaio Joaquín Torres-García (1874–1949),
único latino-americano na exposição New Harmony:
Abstraction between the Wars, 1919–1939.

Acima, a brasileira Maria Martins (1894- 1973)
fotografada com suas esculturas biomórficas em
Paris, em 1939, por Man Ray, e O impossível,
a obra mais conhecida da artista. Abaixo,
Guerra e Paz (1952-1956), painel monumental
de Cândido Portinari (1903-1962) instalado
na sede da ONU, em Nova York; e a musa do
Modernismo no Brasil, Tarsila do Amaral,
em seu ateliê em São Paulo, em 1930, seguida
de sua obra Operários, de 1933; por uma
fotografia da escrava que conviveu com
a artista na infância e inspirou sua obra
A Negra (1923); e no célebre autorretrato
com casaco vermelho de 1923



             


À frente de seu tempo


Tarsila do Amaral está à frente de seu tempo: somente muitos anos depois, a partir das décadas de 1930 e 1940, os manifestos do Dadaísmo e do Surrealismo fariam escola com expoentes de peso na América Latina, entre eles a pintora mexicana Frida Kahlo e o escritor argentino Jorge Luis Borges. Também à frente de sua época está Maria Martins, escultora, desenhista, gravurista, pintora, escritora e musicista, mineira da pequena cidade de Campanha, sempre lembrada pelos manuais de História da Arte entre as personalidades em destaque nas vanguardas da arte na Europa nas décadas de 1920 e 1930 e como única mulher nos círculos fechados do Dadaísmo e do Surrealismo francês.

Os estudos na Europa e no Japão, a partir da década de 1920, levaram Maria Martins às suas célebres esculturas biomórficas, estruturas orgânicas que travam um estranho diálogo com outras imagens também célebres da Arte Moderna, especialmente certas obras-primas de mestres da vanguarda como Jean Arp, Joan Miró, Salvador Dalí, Picasso e Piet Mondrian, entre outros, além de Marcel Duchamp, de quem ela foi a grande musa inspiradora e com quem ela viveu e trabalhou durante anos. Duchamp dedicou várias obras a Maria Martins. Contorcidas, sensuais, evocando culturas arcaicas e, assim como as telas de Tarsila, inspiradas em lendas do folclore e na natureza da Amazônia, as esculturas biomórficas de Maria Martins, que hoje estão no acervo dos grandes museus, entre eles o MoMA e o Louvre, também atraíram a atenção de André Breton, autor do Manifesto Surrealista, que a convidou para participar do grupo dos mestres, formado por Max Ernst, Yves Tanguy, Marc Chagall e Duchamp. 












Mesmo excluindo a participação brasileira, a exposição “New Harmony: Abstraction between the Wars, 1919–1939” tem o mérito de reunir célebres obras-primas de artistas de vários países que atuaram na Europa entre as duas guerras mundiais. No mesmo Guggenheim Museum, a partir de hoje está aberta ao público outra exposição que tem a arte das vanguardas do Modernismo como tema: “Kandinsky in Paris, 1934–1944”, com 150 obras da última década de vida do pintor que é apontado como um dos criadores da arte da Abstração, para muitos a mais radical das inovações da Arte Moderna.



Kandinsky em Paris



A mostra “Kandinsky in Paris, 1934–1944” também é o retrato do drama pessoal do artista, nascido na Rússia e naturalizado francês. Depois que o governo nazista fechou a Escola Bauhaus, em Berlim, onde Kandinsky foi professor e um dos mentores do projeto educacional revolucionário e libertário, ele retornaria melancólico, em 1933, aos subúrbios parisienses de Neuilly-sur-Seine, onde havia morado e trabalhado em ateliês na primeira década do século (veja mais sobre a Escola Bauhaus em "Semióticas: Criança e design em 1900").










Fases distintas de Vasily Kandinsky (1866-1944)
em destaque nas exposições do Guggenheim
Museum: no alto, Striped (Rayé), de 1934,
da exposição New Harmony: Abstraction
between the Wars, 1919–1939. Acima,
 Contraste accompagné (1935), uma das
150 telas da fase final do artista reunidas na
mostra Kandinsky em Paris, 1934–1944,
apresentada pelo Guggenheim em 1945.
Abaixo, a capa do catálogo da exposição
de 1945, criada pelo artista em 1944









Na França, o vocabulário formal de Kandinsky mudaria de novo, radicalmente, e seus diagramas de amebas, embriões e outros ícones primitivos criaram um imaginário de cores e traços agrupados que seriam predominantes em suas pinturas tardias. No lugar antes ocupado por suas cores primárias características, a fase final de Kandinsky iria agrupar tons mais suaves de pigmentos diluídos, com sugestões figurativas e formais que lembram ícones do folclore da Rússia de sua infância. Simultaneamente, no mesmo Guggenheim Museum, a outra exposição, “New Harmony: Abstraction between the Wars, 1919–1939”, também traz uma série surpreendente das obras-primas que Kandinsky produziu em uma década na Escola Bauhaus.

Ao selecionar obras-primas de mestres da História da Arte no período entre as duas guerras, a exposição “New Harmony" explora um recorte fundamental localizado na época em que a novidade da Abstração e das formas radicais da distorção das vanguardas amadurece, finca raízes nas artes plásticas e estabelece novos domínios que vão da teoria da cor à composição musical. Nomeada em homenagem a uma tela de Paul Klee (“New Harmony”, de 1936), a mostra no Guggenheim segue a cronologia dos mestres pioneiros e seus discípulos até que a Segunda Guerra é deflagrada, em 1939.










New Harmony (1936), tela do pintor e
poeta suíço naturalizado alemão Paul Klee.
Acima, Paul Klee fotografado em Berna,
Suíça, em 1939, por Walter Henggeler.

Abaixo, Paul Klee em seu estúdio na
Escola Bauhaus, em 1926, fotografado
por seu filho Felix Klee; e um registro
de uma das salas da exposição
com obras de Kandinsky e Paul Klee







                     

Um século de Abstração



No caminho aberto na primeira década do século 20 pelas experimentações da vanguarda de Pablo Picasso, Georges Braque, Kandinsky, Duchamp e Mondrian, “Nova harmonia: abstração entre as guerras, 1919-1939” apresenta 40 obras em pintura, escultura e trabalhos sobre papel de 20 artistas de nacionalidades diversas, entre eles pintores e escultores como os franceses Fernand Léger e Francis Picabia, o alemão Kurt Schwitters, o norte-americano Alexander Calder, o suíço Alberto Giacometti e o uruguaio Joaquín Torres-García, único latino-americano selecionado.

A arte da Abstração, que completa seu primeiro centenário, também recebeu uma homenagem sem precedentes com outra megaexposição, intitulada “Inventing Abstraction, 1910–1925”, que esteve em cartaz no MoMA, também em Nova York, entre 23 de dezembro e 15 de abril de 2013 (veja também “Semióticas: Inventando a Abstração”). Mas enquanto a exposição no MoMA reuniu, pela primeira vez em um século, obras mais antigas do abstracionismo e da não-figuração, incluindo pinturas, desenhos, livros, esculturas, filmes, fotos, música atonal e apresentações ao vivo de dança e orquestra, a mostra do Guggenheim vai à segunda fase do Abstracionismo.






Anna Riwkin registrou em Paris, em 1933,
o primeiro time dos surrealistas:
Tristan Tzara, Paul Eluard,
Andre Breton, Hans Arp,
Salvador Dali, Yves Tanguy,
Max Ernst, Rene Crevel e Man Ray.
Abaixo, a pintura em guache de 1938
Composición, de Joaquín Torres-García,
e Romulus et Remus, móbile de 1928
em arame e madeira do escultor e pintor
norte-americano Alexander Calder (1898–
1976), destaques na mostra New Harmony












Tracey Bashkoff, que assina a curadoria da mostra “New Harmony: Abstraction between the Wars, 1919–1939”, destaca na apresentação ao catálogo o caráter inédito da proposta, já que algumas das mais célebres obras-primas do período, que foram selecionadas da coleção permanente do museu ou tomadas de empréstimo em instituições internacionais, nunca estiveram reunidas em um só evento. Bashkoff também chama atenção para o marco que o acervo em exposição representa para os avanços na ordem pictórica, em relação aos trabalhos dos pioneiros da Abstração.



Amadurecimento da vanguarda



A mostra pretende mapear o amadurecimento da vanguarda na Abstração, em seus nexos mais abrangentes, até a explosão da Segunda Guerra na Europa”, explica Bashkoff, considerando que o ambiente propício às experimentações de vanguarda se estabelece quando as fronteiras são redesenhadas ou reabertas, depois da Guerra de 1917, com centros de formação tradicional da Europa, especialmente em Paris, sendo revigorados pelo intercâmbio criativo com artistas do mundo inteiro. Nas décadas de 1920 e 1930, arte e cultura alcançam progressos notáveis, até que em 1939 surge de novo o tumulto da guerra.








Duas figuras de 1932 do escultor e pintor
suíço Alberto Giacometti (1901–1966) na
exposição New Harmony: no alto, Femme qui
marche, escultura em ferro e gesso. Acima,
Femme égorgée, escultura moldada em
bronze. Abaixo, uma ala da exposição
com obras de Giacometti







Entre os destaques, a mostra traz algumas das obras-primas de artistas que permanecem quase desconhecidos para a grande maioria do público, caso do pintor, desenhista, escultor, escritor e professor Joaquín Torres-García (1874–1949), considerado o primeiro dos construtivistas da América Latina. Nascido em Montevideo, filho de mãe uruguaia e pai catalão, Torres-García viveu durante mais de 40 anos nos Estados Unidos e na Europa, com atuação destacada na França e na Espanha, onde foi colaborador de Antoni Gaudí. Na mostra "New Harmony", Torres-García aparece entre os destaques da Arte Moderna no entre guerras com obras-primas ainda hoje supreendentes, entre elas "Composión", de 1938, e “América Invertida”, de 1943.

Outro convite à descoberta, segundo Bashkoff, é a visão radical da revista “De Stijl” (“O estilo”, em holandês), publicação iniciada em 1917 por Theo van Doesburg, tendo colaboradores como Mondrian e o designer Gerrit Rietveld. Não por acaso, Theo van Doesburg, Mondrian e Rietveld viriam a compor um importante movimento de vanguarda, o Neoplasticismo, que exerceu profunda influência no mundo inteiro, no último século, não só sobre as artes plásticas, mas também sobre os rumos do que hoje se conhece de forma mais geral e abrangente por "design".










Obras do holandês Theo van Doesburg, artista
plástico, designer gráfico, poeta e arquiteto, além
de professor da Bauhaus e um dos fundadores
e líderes da lendária revista De Stijl, reunidas na
mostra New Harmony:  no alto, Composition
décentralisée, aquarela de 1924, e duas páginas
da De Stijl. Abaixo, Composition, obra realizada
entre 1925-1926. Também abaixo, a célebre
cadeira vermelha e azul, obra do arquiteto e designer
holandês Gerrit Thomas Rietveld (1888-1965)
e a capa do disco da banda White Stripes, tributo
ao design pioneiro, intitulado De Stijl







De Stijl: trajetórias



Através da trajetória das formulações radicais da revista “De Stijl”, que circulou durante uma década, entre 1917 e 1928, e que com frequência adotava a forma de manifesto, foi desenvolvida toda uma linguagem estética universal formada a partir de princípios da geometria, sugerindo formas de equilíbrio e harmonia na arte e na vida em sociedade. Na arquitetura e no design gráfico, de interiores, de moda e industrial, tudo indica que a influência da 'De Stijl' talvez tenha ido ainda mais longe.

Com o intercâmbio entre o grupo da “De Stijl' e a Escola Bauhaus, o ideal neoplástico tornou-se imensamente popular, com produção e consumo em escala industrial de infindáveis peças diretamente inspiradas pelas propostas do grupo holandês. Este ideal neoplástico, desde então, adquiriu um caráter ‘moderno’, voltado para o futuro. Até hoje, obras como a Poltrona de Rietveld e outros projetos do período da Bauhaus são imediatamente associadas a uma atitude voltada para o futuro, sendo comum ver até mesmo em filmes de ficção científica cenários recheados de elementos neoplásticos como forma de realçar o aspecto ‘futurista’ do ambiente”, completa Bashkoff.


 






O legado do grupo “De Stijl” também está presente na liberdade dos cartuns, nas histórias em quadrinhos e no que se convencionou chamar de “graphic novel”, além de embalagens em geral e até em áreas insuspeitas e improváveis como a música pop: em 2000, o duo norte-americano de blues-rock White Stripe lançou um álbum denominado “De Stijl”, cuja capa é composta por uma foto do casal de integrantes da banda em um ambiente inspirado pelo movimento holandês – pontuado por blocos lisos vermelhos e brancos e hastes pretas.



Revoluções: Dadaísmo e Surrealismo



Ao observar algumas das imagens presentes na mostra do Guggenheim, é possível reconhecer de memória, sem muito esforço, certas padronagens industriais do último século. Segundo Bashkoff, de todas as experiências estéticas e formais da arte naquele período entre guerras, incluindo as revoluções do Dadaísmo e do Surrealismo, as composições da “De Stijl”, tanto quanto sua influência para os mestres da Bauhaus e de outras escolas, fincaram mais forte suas raízes no imaginário popular e nas linhas de montagem industrial pelo mundo afora.









 


A partir do alto, Peinture murale (1924–25),
Femme tenant un vase (1927) e Trois
soeurs (1933), obras-primas na mostra
New Harmony do pintor e desenhista francês
Fernand Léger (1881-1975), que foi
professor de Tarsila do Amaral.

Abaixo, visitantes no Gugenheim diante de
uma pintura de Kandinsky; uma das salas
da exposição; e, no final da página, uma
seleção de obras da mostra: Four or Five
Times (Quatre ou cinq fois), óleo sobre tela
de 1929 do pintor e fotógrafo norte-americano
Emanuel Rudzitsky, mais conhecido como
Man Ray (1890–1976), seguida por
Composition N° 96 (1935), do pintor alemão
Friedrich Vordemberge-Gildewart (1899–1962)
e por Column (1923), escultura do russo
Naum Gabo em acrílico, madeira, metal e vidro









Com sua mistura de cores contrastantes e figuras geométricas de traços mínimos, imprecisas e irregulares, a influência da 'De Stijl' torna-se imediatamente reconhecível não só nas artes plásticas, com a Abstração passando de experiência marginal ao centro da concepção estética de toda uma época, sendo em sequida apropriada pela indústria cultural em tudo o que envolva composição e diagramação em artes gráficas, de livros, jornais, revistas, discos, cartazes e letreiros em geral ao cinema, à moda, ao mobiliário”, destaca Bashkoff.

Exemplos e modelos desta influência maciça de elementos dadaístas e surrealistas permaneceram e se multiplicaram durante as últimas décadas, conduzindo a profusão de padronagens de telas e cardápios de conteúdo em nossa era digital, muitas vezes atualizadas com inspiração nos célebres estudos geométricos em dimensão espacial das obras-primas de mestres da Abstração. Segundo Bashkoff, quando falamos em design gráfico, em qualquer suporte, a arte original de Mondrian e dos estetas da “De Stijl” está em primeiro plano como referência, em variações que vão de estampas para usos diversos aos objetos industriais produzidos em larga escala, não necessariamente relacionados à arte.

Na lista dos convites à descoberta de Bashkoff também estão construtivistas como o escultor russo Naum Gabo (1890–1977), expoente da Arte Cinética e ativista da Documenta 1, em Kassel, além de colaborador importante da "De Stijl". “A influência de Gabo, que defendia a abstração geométrica e migrou para a Europa em 1921, quando a política soviética começou a apoiar a expressão mais conservadora contra as artes de vanguarda, é fundamental para a escultura se afirmar no ambiente da Arte Moderna”, aponta Bashkoff. Naum Gabo é outro dos mestres que também participaram da comunidade educacional da Bauhaus, lar de artistas com ideais sociais como Josef Albers, Vasily Kandinsky, Paul Klee e László Moholy-Nagy, todos eles com obras em destaque na mostra do Guggenheim Museum.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte entre guerras. In: Blog Semióticas, 28 de julho de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/06/arte-entre-guerras.html (acessado em .../.../...).



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