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8 de novembro de 2025

O fotolivro de Victor Hugo

 



Desde sua invenção, a fotografia patrocinou a expansão dos

limites do visível sobre o invisível, do revelado sobre o oculto.

–– Mauricio Lissovsky em “A máquina de esperar” (2009).   




Autor de grandes clássicos da literatura universal como “Os Miseráveis” e “O Corcunda de Notre-Dame”, romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, ativista pelos direitos humanos e senador de importante atuação na França, Victor Hugo (1802-1885) poderia também ter sido o primeiro autor de um fotolivro. Contudo, o seu projeto para “As Contemplações”, reunindo uma fotografia para cada poema, terminou rejeitado pela casa editorial Hetzel. Depois de anos de adiamentos, “As Contemplações” seria finalmente publicado em 1856, com 92 poemas que fizeram história, mas sem as fotografias selecionadas pelo autor. Sem a publicação do projeto original de Victor Hugo, as honrarias pelo primeiro livro com fotografias ficaram com o escritor e cientista inglês Henry Fox Talbot.

Também creditado como um dos inventores da fotografia, Talbot passou à condição de pioneiro como autor de “The Pensil of Nature” (O Lápis da Natureza), publicado em seis volumes, entre 1844 e 1846, pela casa editorial Longman, Brown, Green & Longmans de Londres, e celebrado por ser o primeiro livro a incluir reproduções fotográficas coladas em suas páginasO livro de Talbot não era uma obra de literatura e sim uma publicação científica que apresentava questões práticas do processo fotográfico e abordava seu potencial artístico, incluindo 24 fotografias, e não desenhos e gravuras, que eram as únicas possibilidades de ilustração para uma obra impressa até então. Cada uma das fotografias, incluindo retratos, reproduções de obras de arte e imagens da natureza, era acompanhada por textos explicativos com detalhes sobre a técnica e sobre as diversas aplicações possíveis para o aparato fotográfico.

Na mesma época da publicação do livro de Talbot, uma fotógrafa, Anna Atkins, também em Londres, conseguiu realizar um trabalho editorial que também foi uma proeza na pesquisa científica, nas artes gráficas e na história da fotografia. Com espécimes que ela mesma coletou ou recebeu de outros pesquisadores, Atkins produziu placas de fotografias colocando algas úmidas sobre papel fotossensibilizado, no processo conhecido como cianótipo, inventado em 1842 por John Herschel. O livro de Atkins, “Photographs of British Algae” (Fotografias de Algas Britânicas), teve edição artesanal em composições de manuscritos feitos por ela sobre cada uma das 307 imagens de algas em cianótipos.










O fotolivro de Victor Hugo: no alto e acima,
retrato do escritor feito em 1853 por seu filho,
Charles Hugo; e a nova edição de “Les Contemplations”,
agora ilustrada, com os poemas acompanhados de um
álbum de fotografias, conforme o projeto original que
não foi concretizado na primeira edição, em 1856.

Abaixo, as capas de “The Photobook: A History”,
publicados por Gerry Badger e Martin Parr em
três volumes, que fizeram uma retrospectiva
histórica e firmaram o conceito de “fotolivro”









Os livros com fotografias tiveram uma extensa trajetória de evolução técnica e aperfeiçoamentos desde os experimentos iniciais de Fox Talbot e Anna Atkins. Em 2005, tal trajetória, que remonta aos primórdios da fotografia, teve uma importante retrospectiva apresentada pelo trabalho de uma dupla de fotógrafos e pesquisadores, Gerry Badger e Martin Parr, autores de “The Photobook: A History” (Phaidon Press), em três volumes ilustrados, lançados respectivamente em 2005, 2006 e 2014. Além de popularizar o termo fotolivro (photobook), para o que antes era chamado de “livro de fotografia”, “livro de fotógrafo” ou “livro de artista”, o inventário de Badger e Parr define o conceito como “um tipo específico de livro de fotografia, no qual imagens prevalecem sobre o texto, e o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico ajudam a construir uma narrativa visual”.


Origens do fotolivro



Gerry Badger e Martin Parr
não citam o projeto original de Victor Hugo que não se concretizou, mas destacam o papel pioneiro de Anna Atkins e William Fox Talbot, enumerando e descrevendo a trajetória de centenas de fotolivros que marcaram época e tiveram uma importância fundamental desde o surgimento dos processos fotográficos, nas primeiras décadas do século 19. Do inventário de Badger e Parr constam obras marcantes da história da fotografia e das artes gráficas, seja com fotografias coladas nas páginas e encadernadas como livro, seja com fotografias incorporadas ao processo de impressão do livro. Nos três volumes amplamente ilustrados de “The Photobook: A History” estão listadas, descritas e contextualizadas obras surpreendentes, tanto as que alcançaram notoriedade como aquelas que somente são conhecidas por especialistas.






O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Vista da Janela em Le Gras” (em francês,
Point de vue du Gras), incluída na nova edição de
Les Contemplations” e considerada a fotografia
permanente mais antiga do mundo,
criada pelo
inventor francês Joseph Nicéphore Niépce, entre
1826 e 1827, no processo que Niépce batizou de
heliografia” e que abriu caminho para o
desenvolvimento da fotografia moderna.

Abaixo, as capas originais de dois fotolivros que
redefiniram o formato e são considerados referências:
American Photographs” (1938), de Walker Evans,
publicado com ensaio escrito por Lincoln Kirsten;
e “The Americans” (1958), de Robert Frank,
publicado com ensaio escrito por Jack Kerouac







No acervo reunido por Badger e Parr estão, em destaque, fotolivros que exerceram grande influência na fotografia, na literatura e nas artes em geral. "Talvez seja importante esclarecer que a criação do fotolivro é uma arte literária e narrativa que está situada entre o filme e o romance" – ressalta Gerry Badger. Alguns dos fotolivros em relevo na lista são Street Life in London” (1878), parceria do jornalista Adolphe Smith com o fotógrafo John Thomson; “Animal Locomotion” (1887), de Eadweard Muybridge; The Royal Mummies” (1912), de Grafton Elliot Smith; “Men at Work” (1932), de Lewis Hine;Paris de Nuit” (1933), com fotografias de Brassaï, pseudônimo de Gyula Halász, e texto de Paul Morand; “Facies Dolorosa” (1934), de Hans Killian; American Photographs” (1938), com fotografias de Walker Evans e ensaio de Lincoln Kirsten, e “Let Us Now Praise Famous Men” (1941), parceria entre Walker Evans e o escritor James Agee. Um terceiro fotolivro de Walker Evans na lista é “Many Are Called”, publicado em 1966, também com texto de James Agee, reunindo fotografias feitas nas décadas de 1930 e 1940 no Metrô de Nova York, com uma câmera escondida, sem que os passageiros soubessem que estavam sendo fotografados.

Também são destacados na lista de Gerry Badger e Martin Parr os fotolivros Soviet Photography” (1939), de Aleksandr Rodchenko e outros fotógrafos e artistas; Caribean Crossroads” (1941), com texto de Lewis Richardson e fotografias de Charles Rotkin; “The Sweet Flypaper of Life” (1955), poemas de Langston Hughes com fotografias de Roy DeCarava; “The Family of Man” (1955), com curadoria de Edward Steichen; “New York” (1956), de William Klein; “Hiroshima” (1958), de Ken Domon; e The Americans” (1958), com fotografias de Robert Frank e texto de apresentação de Jack Kerouac. A partir da década de 1960, avanços das artes gráficas e técnicas de impressão vão popularizar as edições, com Gerry Badger destacando que carreiras importantes foram impulsionadas por fotolivros de sucesso – caso, entre muitos outros, dos norte-americanos Alec Soth e Ryan McGinley, ou da espanhola Cristina de Middel.






O fotolivro de Victor Hugo: poesia em
diálogo com os primeiros fotógrafos. Acima,
Paisagem com nuvens”, fotografia de 1856 de
Roger Fenton. Abaixo, “A Lavadeira”, fotografia
de 1840 de Louis Adolphe Humbert de Molard;
e Tempo dos ventos”, fotografia de
1902 de Heinrich Kühn














Gerry Badger, na apresentação a “The Photobook: A History”, também inclui diversas referências à América latina. Do Brasil, são citados Mario Cravo Neto, Miguel Rio Branco e Sebastião Salgado, entre outros, com especial atenção a “Amazônia” (1978), de Claudia Andujar e George Love, que ele define como “mescla singular de política e pessoalidade”. Outros destaques são “Paranoia” (1963), com a poesia de Roberto Piva e as paisagens urbanas nas fotografias de Wesley Duke Lee; e “Bares Cariocas” (1980), de Luiz Alphonsus, com registros de um olhar afetuoso sobre os bares de bairros do Rio de Janeiro. Badger elogia a forma pela qual os fotolivros são capazes de transportar pelo olhar para uma viagem. “Nunca estive na Amazônia, nem no Rio nem na Bahia”, confessa. “Mas esses fotógrafos do Brasil me levam até esses locais (…) de um modo particular – complexo, intrigante e criativo”.


Álbum de Contemplações


O projeto de Victor Hugo de reunir no mesmo livro uma seleção de poemas em diálogo com uma coleção de fotografias finalmente está concretizado – por iniciativa de duas pesquisadoras, Florence Naugrette e Hélène Orain Pascali. Em uma nova edição de “As Contemplações”, elas acrescentam 120 imagens fotográficas, todas produzidas nos primórdios da fotografia por contemporâneos do escritor. O ponto de partida foi um exemplar da primeira edição do livro, no arquivo privado que pertenceu ao autor, que mantinha entre suas páginas uma seleção de 34 fotografias, com anotações e correspondências entre poemas e cada uma das imagens, estabelecidas, ao que se sabe, pelo próprio Victor Hugo, talvez como uma lembrança nostálgica sobre o projeto que não pôde ser concretizado na época, mas enriquecendo, na presença das imagens, o espectro das interpretações literárias.





O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Fotografia de imagem da retina de um vaga-lume”
imagem de 1890 de Sigmund Exner. Abaixo,
Genebra, céu nublado acima do lago
e da cidade”
, fotografia de 1890 de
Gabriel Loppé
; e um eclipse solar visto
no dia 10 de janeiro de 1889 no alto do
Monte Santa Lucia, ao norte da Califórnia,
em fotografia de
Carleton Watkins







Dois ensaios das organizadoras contextualizam a nova edição do livro de Victor Hugo. Em “Contemplações”, Hélène Pascali, historiadora da arte, vai pontuar como o nascimento da fotografia provoca o surgimento de um novo olhar sobre o mundo e sobre as imagens do real. Em Como um Álbum”, Florence Naugrette, professora de Literatura na Sourbonne, confirma que o projeto original de Victor Hugo teria um impacto de grandes proporções em sua época porque seria o primeiro álbum de fotografias, uma experiência sem precedentes em uma época em que a fotografia era uma grande novidade. Especialista na literatura de Victor Hugo, ela também revela que sempre considerou os poemas deste livro como imagens estáticas apresentadas e descritas em preto e branco.

No diálogo que se estabelece entre os poemas e as fotografias, as questões de tempo e memória remetem ao trajeto biográfico do autor e também à história social: paisagens, cenas e personagens citados nos versos evocam, de maneira quase inevitável, imagens fotográficas em suas referências a tons da neve, das nuvens, do céu noturno, dos pássaros voando ao longe, do mármore e de detalhes da construção das casas, da areia da praia, das árvores imóveis ou agitadas pelos ventos e dos dias nublados de inverno. A própria estrutura do livro lembra um álbum de fotografias, traçado no itinerário de cada poema, que vêm legendados com data e lugar, como se fossem um diário de viagem. Folheando o álbum, cada poema e cada imagem torna-se um convite para seguir os passos do autor entre caminhadas, pensamentos, sentimentos, lembranças, busca metafísica e alguma esperança – como se lê em um poema sem título de 1855:


Je ne vois que l’abîme, et la mer, et les cieux,
Et les nuages noirs qui vont silencieux;
Mon toit, la nuit, frissonne, et l’ouragan le mêle
Aux souffles effrénés de l’onde et de la grêle.

(“Écrit en 1855”, Jersey, janvier 1855.)

Vejo somente o abismo, e o mar, e os céus,
E nuvens negras que
passam em silêncio;
M
eu telhado, à noite, estremece, e o furacão o mistura
Com os sopros frenéticos das ondas e do granizo.

(“Escrito em 1855”, Jersey, janeiro de 1855).






O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Sol e nevoeiro”, fotografia de 1898 de
Léonard Misonne. Abaixo, Roman Campagna”,
um estudo de nuvens na área rural de Roma, Itália,
em fotografia de 1855 de Carlo Baldassarre.

Também abaixo, Victor Hugo em 1853, durante
seu exílio na Ilha de Jersey, contemplando
o oceano, no alto da rocha conhecida como
“Le Rocher des Proscrits” (A Rocha dos Proscritos),
em Jersey, fotografado por seu filho Charles Hugo
e seu amigo Auguste Vacquerie











Evolução da técnica


Victor Hugo foi eleito para a Academia Francesa aos 37 anos, em 1839, ano do anúncio oficial da invenção da fotografia com os equipamentos e técnicas de Louis Daguerre, batizados de Daguerreótipos. O escritor, porém, era entusiasta da fotografia desde que tomou conhecimento das experiências de Nicéphore Niépce, que fez os primeiros registros de imagens a partir de 1826. Victor Hugo também se dedicou ao desenho e à pintura, mas sempre se confessou um apaixonado pela fotografia, que ele chamava de "imagens pintadas pelo sol e pela luz". Mesmo depois da edição incompleta de "Les Meditations", ele continuou acompanhando com muito interesse a evolução da técnica e dos processo fotográficos pelos anos e décadas seguintes.

Florence Naugrette e Hélène Pascali seguiram as pistas com registros deste interesse especial de Victor Hugo pela fotografia e, nos mais de três anos de pesquisas para a seleção das imagens que agora acompanham os poemas, investigaram as correspondências temáticas no acervo do escritor e em coleções privadas e públicas, em museus da França e de outros países. No dossiê de imprensa distribuído para o lançamento do livro, Florence Naugrette ressalta que a relação de Victor Hugo com a fotografia se dava intensamente na vida cotidiana, tanto que ele sempre esteve muito próximo de fotógrafos em sua época e cultivou uma forte amizade com Nadar, para muitos o maior fotógrafo do século 19.

“É possível localizar diversas referências ao retrato e à fotografia na obra de Victor Hugo”, ela destaca, “mas na coleção de poemas reunidos nestas ‘Contemplações’ a questão imagética e fotográfica está mais evidente, tanto na busca de palavras e de figuras para redescobrir a experiência como nas confissões sobre a importância de ouvir a natureza, maravilhar-se, buscar o significado, cultivar e traduzir. Palavra e imagem aqui estão em diálogo para expressar um mesmo sentido, o que é surpreendente, principalmente se considerarmos que todos os poemas, e todo o projeto original de Victor Hugo para o livro, foram criados à luz da invenção da fotografia e ainda nos primórdios dos processos fotográficos”.





Na versão final do livro “As Contemplações de Victor Hugo ilustradas pelos primórdios da fotografia” (Les Contemplations de Victor Hugo illustrées par les débuts de la photographie), lançamento da Editions Diane de Selliers, em capa dura e 400 páginas, os 92 poemas são contemplados com 120 fotografias, produzidas em datas que vão de 1826 a 1910 e selecionadas por Florence Naugrette e Hélène Pascali do acervo de 85 fotógrafos, todos apresentados com perfil biográfico. O resultado é um inventário inédito sobre nomes de importância no início da história da fotografia e uma retrospectiva surpreendente que alcança das experiências dos pioneiros ao aperfeiçoamento dos equipamentos e ao domínio da técnica, seja na aplicação de princípios estéticos, com evoluções de enquadramento, de foco, de iluminação e de contraste, seja nas intervenções nos processos de impressão, levando a imagem fotográfica a um campo de autonomia e de independência, em relação às outras artes, para o registro instantâneo de fragmentos da realidade.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O fotolivro de Victor Hugo. In: Blog Semióticasde novembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/11/o-fotolivro-de-victor-hugo.html (acesso em .../.../…).



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O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Avenida no inverno”, fotografia de 1893
de
Alfred Stieglitz. Abaixo, “O alto da montanha”,
fotografia de 1860 dos irmãos
Louis-Auguste Bisson
e Auguste-Rosalie Bisson





7 de dezembro de 2013

Jim Morrison aos 70








O xamã se move separado de todos os demais, vive sozinho,

fala com todos os mortos e com a lua cheia em línguas que só

ele entende porque só o xamã tem esse pensamento metamágico.

Quando você olha para as mais diversas sociedades humanas

tradicionais, todas têm xamãs. Mas o xamã não é uma pessoa

descontrolada do jeito que é o esquizofrênico. O xamã sempre

sabe o ponto certo e só entra em transe na cerimônia

certa porque ele é suave, tem poder, tem autocontrole.

–– Robert Sapolsky, “Crença e Biologia”. 



A imagem de Jim Morrison, sua poesia e suas performances, provocam ainda hoje uma estranha sedução – décadas depois de sua morte cercada de mistérios em Paris, em 3 de julho de 1971, aos 27 anos. Mas o que há em comum entre o rock'n'roll, a poesia e as religiões ancestrais? A questão, central para a legião de fãs de Jim e para todos os estudos biográficos assinados por jornalistas e pesquisadores que seguiram a trilha do Lizard King, fornece o fio condutor para o livro “Jim Morrison: O poeta-xamã”, lançamento da Editora UFMG.

Didático, investigativo, o autor, que é professor da Faculdade de Letras da UFMG, convida o leitor a uma viagem fascinante em busca de respostas a partir da transcrição dos poemas em versão original e em português. Nos caminhos que se bifurcam, surge em detalhes a trilha de brilho intenso de Jim Morrison. No trajeto da argumentação sobre a definição de "poeta-xamã", as afinidades eletivas entre a contracultura, a tradição literária e o misticismo, em meio a referências incomuns para um roqueiro que incluem a mitologia da Antiguidade Clássica, os filhos de Zeus, Dionísio, Apolo, os povos pré-colombianos, Baudelaire, Rimbaud, Nietzsche, Freud, Kafka, Lévi-Strauss, Castaneda, Kerouac, entre muitos outros poetas, artistas, pensadores.










O poeta-xamã: no alto e acima,
Jim Morrison fotografado em
1968, em New York, por Yale Joel.

Abaixo: 1) outra imagem da sessão
em estúdio de 1968 com Yale Joel;
2) Jim Morrison e The Doors no palco,
em março de 1968, na abertura da casa
de shows Fillmore East, que se tornaria
um lugar lendário em Nova York, em
três fotografias de Elliott Landy;
3), 4) e 5) em fotografias de Ken Regan
que registram superformance no palco, em
janeiro de 1970, no Westbury Music Fair;
6) mais duas fotografias do ensaio de 1968
por Yale Joel7) e 8) no palco em
Phoenix, Arizonaem fevereiro de
1968, fotografado por Paul Ferrara;
9) na capa da revista Rolling Stone
em agosto de 1971, em edição especial
de homenagem póstuma; e 10) a capa do
livro Jim Morrison: O poeta-xamã






















Amoroso, místico, científico



O perfil de Jim Morrison, como destaca Marcel de Lima Santos, autor do livro "Jim Morrison: O poeta-xamã", vai muito além das fotografias do astro do rock reproduzidas ao infinito há quase meio século. O poeta e astro de primeira grandeza da Era do Rock é um personagem surpreendente. Jim Morrison é sofisticado, conhecedor da cultura erudita, ao mesmo tempo amoroso, místico, científico. É um daqueles personagens que conseguem escapar de qualquer rótulo simplificador porque ultrapassa os limites tênues entre arte, magia, política, para alcançar as grandes questões de nossa época – questões que não por acaso explodiram na década de 1960 e mantêm uma atualidade que impressiona, como nos versos do século 19 de outro poeta místico, William Blake, fonte de inspiração para o poeta e sua banda The Doors: “Se as portas da percepção estivessem abertas, tudo pareceria como sempre foi – infinito”.

Na presença fulgurante de Jim, autêntico Orfeu imerso no turbilhão industrial da cultura de massas, com seus escritos e performances de poeta xamã, o livro reúne citações eruditas ao exercício semiótico em detalhes reveladores, essenciais para a desconstrução e a busca do entendimento sobre o mosaico de complexidades que conduz a trajetória do artista e que sua obra representa. Exatamente como o xamã ancestral, que detém os segredos de outros mundos e compartilha, com doses generosas de lógica e magia, sonhos míticos habitados por utopias e deuses e espíritos.
















  



Além de “Jim Morrison: O poeta xamã”, há uma extensa lista de livros sobre Morrison lançada no Brasil – incluindo muitas biografias e fotobiografias, estudos sobre sua poesia e sobre a trajetória da banda, também apresentada no filme ficcional de Oliver Stone, “The Doors”, de 1991, com a convincente performance de Val Kilmer como protagonista. Há ainda os dois livros de poemas que Jim Morrison publicou e as duas coletâneas de inéditos, póstumas, todos lançados pela editora portuguesa Assírio & Alvim: “Os Mestres e as Criaturas Novas”, “Uma Oração Americana”, "Abismos" e “Últimos Escritos”. A mesma editora lançou “Daqui Ninguém Sai Vivo”, tida como sua principal biografia, escrita pelos jornalistas Daniel Sugerman e Jerry Hopkins, que acompanharam o percurso de Jim desde quando ele era estudante de cinema na Universidade da Califórnia.

 

Poesia, prosa, filosofia



A arte que Jim Morrison representa faz lembrar que nem sempre a prosa e a filosofia estão mais próximas da realidade do que a poesia. Nos textos mais antigos que sobreviveram desde o mais remoto da Antiguidade Clássica, na Grécia Antiga, encontramos aqueles fundamentos que muitos escritores e muitos pensadores da linguagem e da Semiótica como Walter Benjamin, Roland Barthes, Umberto Eco, propõem como centro a partir do qual se desenvolve a cultura do que é humano: a poesia no ponto de partida dos caminhos que se bifurcam nos domínios da linguagem.


 








A poesia de Jim Morrison editada em
português, em publicações da Assírio & Alvim,
editora de Portugal: acima, capas para o primeiro
livro, Os Mestres e as Criaturas Novas, e para
Uma Oração Americana, de publicação póstuma.
Acima, The Doors no começo de carreira, antes
de gravarem o primeiro disco, fotografados em
agosto de 1966 por Linda McCartney no palco
do Whisky A Go Go, na época uma pequena
casa de shows em West Hollywood, Califórnia;
e Jim Morrison em Los Angeles, em
1967, em fotografia de Paul Ferrara.

Abaixo: 1) os quatro integrantes de The Doors
em Venice Beach, Los Angeles, fotografados
por Bobby Klein em 1967: a partir da esquerda,
John Densmore, Ray Manzarek, Jim e Robby Krieger;
2) e 3) 
Jim em Amsterdam, Holanda, em 1968,
em 
duas fotografias de Nico van der Stam;
na segunda, com Ray Manzarek ao fundo:
4) Jim na 
Alemanha, durante a turnê de The Doors
em setembro de 1968, fotografado por Gunter Zint;
5) 
Jim Morrison banda fotografados em 1968
por 
Art Kane na saída de emergência para incêndio, no
quarto de Morrison 
no lendário Chateau Marmont Hotel
em 
Los Angeles, o preferido de astros e estrelas do
cinema e do rock; 6) Jim e seu cão Stone no
Griffith Observatory, em Los Angeles, em fotografia
de 1968 de Paul Ferrara que com frequência é
reproduzida na capa das edições de seus livros

















Se voltamos aos mais antigos textos que a historiografia pode localizar, de Platão e Aristóteles, e mesmo antes deles, na tradição da mitologia da Grécia Antiga e de outras civilizações da Antiguidade Clássica, encontramos a palavra no que ela tem de mágico e de criação do mundo tal e qual o conhecemos. Platão fala do “furor poético” que incorpora alguns seres, os seres iluminados, e faz deles interlocutores com o além, o sobrenatural, o desconhecido.

O furor poético e a inspiração dos poetas da Grécia Antiga estavam presentes no primeiro incidente, e primeiro grande acontecimento na trajetória de Jim Morrison e The Doors, que foi uma espécie de presságio sobre os escândalos que seguiriam o poeta e sua banda: The Doors eram um grupo desconhecido, em começo de carreira, antes mesmo de gravarem o primeiro disco, quando foram despedidos da casa de shows Whisky A Go Go porque apresentaram pela primeira vez no palco a canção "The End", uma versão ainda hoje polêmica de Jim Morrison para a tragédia "Édipo Rei', de Sófocles.

Os poetas, como ensinava Platão, entre estes seres iluminados, seriam aqueles tomados pelo sopro de Orfeu, o primeiro entre os poetas, o filho do deus Apolo e descendente da família do deus Dionísio. Orfeu, aquele que estava predestinado a inventar a arte da música, encantando a tudo e todos com sua lira e transmitindo o grande segredo, mas um segredo cifrado em poemas musicais. Os poetas, como também revela Hesíodo em sua "Teogonia", oito séculos antes de Cristo, na Grécia Antiga, são aqueles seres humanos escolhidos pelas Musas entre os mortais, por elas inspirados em rituais místicos.










O poeta-xamã: acima, as capas de outros
dois livros de Jim Morrison também de edição
póstuma, Abismos e Últimos Escritos,
publicados em português pela Assírio & Alvim,
editora de Portugal. Abaixo, imagens raras da
estreia de The Doors para grandes plateias, no
palco do Fantasy Fair and Magic Mountain Music
Festival (Feira de Fantasia e Festival de Música
da Montanha Mágica), no topo do monte Talmapaís,
Condado de Marin, Califórnia, em junho de 1967,
em fotografias de John Gavrilis e Elaine Mayes.
O festival aconteceu na época em que The Doors
lançou seu primeiro álbum e "Light My Fire"
despontou como grande sucesso











A questão transcendental



Esta mística da criação pela arte e pela poesia, do grande segredo cifrado nas palavras da criação poética, talvez seja a questão mais transcendental que acompanha a Arte e a Literatura desde o mais antigo da civilização humana. Basta lembrar que os manuais de História da Arte vão situar o começo de tudo muito antes da Grécia e das culturas da Antiguidade – segundo alguns há mais de 10 mil, 20 mil ou 30 mil anos, com a arte rupestre da Pré-História e suas imagens representadas nas paredes das cavernas: figuras humanas e bisões e outros animais ruminantes com dois chifres e quatro patas, pintados com sangue, carvão e extratos vegetais.

Imagens pintadas por quem e para quê? A resposta é difícil, quase impossível, mas abriga muitas possibilidades, a maior parte delas indicando que aquela arte rupestre estava a serviço de um ritual religioso: para festejar o passado, o presente ou o futuro, ou para registrar o sucesso da caça, ou para espantar os maus espíritos, ou para atrair os bons espíritos, mas por certo como diálogo do Homem com a Divindade do sobrenatural. 









Daqui Ninguém Sai Vivo, a mais
célebre das biografias de Mr. Mojo Risin',
foi publicada em 1979 por Daniel Sugerman
e Jerry Hopkins, e An American Prayer
última sessão de gravação de Jim Morrison
em estúdio, álbum que teve lançamento
póstumo e acréscimo de música incidental
por seus três companheiros de banda.

Abaixo: 1) Jim Morrison em viagem pelo
deserto de Sierra Madre, no México, em
1969, fotografado por Jerry Hopkins;
2) Jim Morrison no ensaio na tarde de
5 de julho de 1968 no Hollywood Bowl,
onde à noite aconteceria um dos lendários
shows de The Doors; 3) The Doors ao vivo no
palco do Northern California Folk-Rock Festival,
em maio de 1968; 4) Jim Morrison no palco em
Nova York, em 1968, fotografado por Yale Joel;
e 4) Jim Morrison em uma festa de amigos
em Los Angeles com a namorada de
longa data, Pamela Courson











 



Esta questão muito antiga reluz nas últimas décadas na figura midiática e na poesia de Jim Morrison, esta persona bela e sedutora com suas imagens reproduzidas ao infinito nos últimos 50 anos, uma persona que encarna como nenhum outro, ou talvez mais do que qualquer outro, o espírito do tempo da Contracultura. Jim Morrison alcançou uma personificação que remete aos mitos da Antiguidade Clássica em plena Era Industrial.



Rock'n'roll e religiões ancestrais



Mas o que há em comum entre o rock'n'roll, a poesia e as religiões ancestrais? Estudioso da filosofia e da história, observador atento de seu tempo e da arte da literatura, Morrison, o poeta-xamã, também vem inscrever sua presença numa certa tradição da ruptura que é a própria tradição da poesia, da Antiguidade à Renascença, na baixa Idade Média, e daí às aspirações do sublime e do excesso como oráculo das revelações com os românticos da Europa, Goethe, Blake, Byron, Baudelaire, Rimbaud, bem como sua influência que se expandiu por outros continentes, outras línguas e outras linguagens.
 













 
Esta mesma tradição da ruptura encontra e fornece os fundamentos, no começo do século 20, para a Arte Abstrata e para a Literatura nos mais diversos movimentos de vanguarda, para o Surrealismo, para o elogio aos estados alterados de consciência como possibilidade visionária, louvada por sucessivas gerações de artistas e poetas no último século – a mesma tradição que também está nas raízes do que se convencionou chamar de rock'n'roll nas últimas décadas do século 20.

Na explosiva década de 1960, Jim Morrison incorpora esta persona do poeta, radical, indecente, profano, uma espécie de sacerdote no "casamento do céu e do inferno", para usar a expressão de William Blake, autor dos versos que inspiram a Morrison o nome da banda, The Doors. O que mais impressiona em Jim Morrison, ainda hoje, além de sua imagem sedutora, talvez seja a densidade da poesia que ele improvisa, enquanto seus companheiros de banda Ray Manzarek (teclados), Robby Krieger (guitarra) e John Densmore (bateria) tocavam ao vivo, entre referências de blues, acordes em citação a canções dos Beatles e a Jimi Hendrix, cantos tribais, melodias dos cabarés da Europa da primeira metade do século 20 e também da Bossa Nova do Brasil. Uma mistura tão improvável como arriscada e surpreendente, ainda hoje, depois de mais de meio século.












 

No alto, Jim Morrison em 1968 em foto
de Linda McCartney. Acima, Morrison
& The Doors por Henry Diltz, fotógrafo
de Morrison Hotel e das capas e encartes
de outros álbuns da banda. Abaixo, The Doors
na praia de Venice, em Los Angeles, em
foto de Henry Diltz; na porta dos fundos do
Morrison Hotel, também em Los Angeles,
em foto de Henry Diltz; e os quatro integrantes
na arte da capa do álbum de estreia da banda,
lançado em 4 de janeiro de 1967, com fotos
e arte de Joel Brodsky, o fotógrafo
preferido de Jim Morrison.

Também abaixo, Morrison em 
fotos de Joel Brodsky na célebre sessão
nos estúdios do fotógrafo em Nova York,
em 1967, batizada como The young lion,
e a capa da revista Rolling Stone em
abril de 1991: Jim Morrison ressurge
na mídia internacional, com força total,
20 anos após sua morte, com o lançamento
do filme de Oliver Stone, "The Doors", com
uma impressionante performance de Val Kilmer
 (foto com assinatura) no papel de protagonista.

No final da página: 1) a banda em foto de
Brodsky reproduzida na capa do Blu-ray
R-Evolution, o último lançamento de
  gravações e performances ao vivo que
ainda permaneciam inéditas; 2) The Doors
em um outdoor em Sunset Boulevard
em Hollywood, Califórnia, em janeiro de
1967, em três fotografias de Bobby Klein;
3) The Doors no palco, em 1968, no
Fillmore East de Nova York, em
fotografia de Yale Joel; 4) uma das últimas
fotos de Morrison,
poucos dias antes de sua
morte, feitas por seu amigo Alan Ronay,
em Saint-Leu-d’Esserent, norte de Paris;
e 5) o túmulo de Jim Morrison instalado
no Cemitério de 
Père-Lachaise,
em Paris, que permanece como local de
peregrinação dos fãs e um dos pontos
turísticos mais visitados da França














Percepção mística



Mas inscrever Jim Morrison nesta tradição da ruptura, com fundamentos na história e na história da literatura, também é correr o risco de diminuir seu valor. Afinal, se a obra do poeta Jim Morrison é feita de citações e de diálogos com outros poetas e outros pensadores, isso poderia ser entendido também como uma tentativa de retirar dele, de sua arte, de sua poesia, o que ele mantém de mais autêntico e mais original.

Para concluir e lançar muitas outras dúvidas e perguntas, lembro um aspecto fundamental quando o assunto é a poesia de Jim Morrison: o fato de que vem dele, também, algumas das canções e performances mais intrigantes e explosivas da era do rock. Tão intrigantes que a imprensa dos EUA considerava Jim um "inimigo público" quando ele morreu, no início dos anos 1970. Sua imagem de ídolo irresistível da cultura pop e a importância de The Doors entre o turbilhão de bandas da década de 1960 só seriam reabilitadas muitos anos depois da morte de Jim.

Manzarek, Krieger e Densmore tentaram seguir com a banda, mas desistiram depois de gravar um único álbum instrumental como The Doors sem a presença do poeta-xamã. O renascimento aconteceu em 1979, quando Francis Ford Coppola apresenta "The End" como trilha sonora na abertura de "Apocalypse Now", ainda hoje o filme definitivo sobre a guerra do Vietnã. Nos anos 1980, várias bandas gravaram covers das canções de The Doors ou revelaram suas fortes influências. E, em 1991, Oliver Stone lançou "The Doors", cinebiografia de Jim Morrison e da banda lendária, com Val Kilmer em uma performance brilhante como protagonista. Desde então, o prestígio e as reverências ao legado de Morrison e da banda permanecem em evidência, reforçados por diversos lançamentos de inéditos e reedições das gravações do acervo.


















  
Ou, dizendo por outras palavras: a poesia de Jim Morrison, seus textos, suas performances, no máximo sentido teatral e místico, se tornam ainda mais absolutamente irresistíveis e encantadoras quando vêm associadas a sua voz, ao mesmo tempo máscula, vigorosa, estranha, sensual, melancólica, nas gravações que são a mais perfeita tradução dos festins apocalípticos da era do rock e também do xamã, do Rei Lagarto, tal como indica o anagrama que os fãs identificam e repetem: Mr. Mojo risin'.

Um convite à reflexão, a poesia de Jim Morrison e suas gravações ao vivo e em estúdio com a banda The Doors estabelecem novas perspectivas e convergências cada vez mais raras e ausentes da cultura pop, e nesse sentido a publicação do livro "Jim Morrison: O poeta xamã", traz uma contribuição da maior importância para a compreensão do enigma e de sua abrangência. Em seus extremos de poesia, música, teatro, ritual místico, as performances de Jim com The Doors, e nos raros registros que sobreviveram sem a banda, alcançam e ultrapassam os nexos da cronologia existencial, conjugando o efêmero da experiência e a permanência visionária da percepção que nos permite ser e conviver – exatamente como convém à Grande Arte e à vida que segue, com seus mistérios cotidianos, suas revelações nas pequenas coincidências que nos cercam.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Jim Morrison aos 70. In: _____. Blog Semióticas, 7 de dezembro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/12/jim-morrison-aos-70.html (acessado em .../.../...).



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