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5 de dezembro de 2014

Lina da Casa de Vidro





Arquitetura é, sempre, a vontade

de uma época traduzida em espaço.


Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969).  





Italiana de nascimento e brasileira por escolha a partir de 1946, Achillina Bo, mais conhecida como Lina Bo Bardi (Roma, 1914 – São Paulo, 1992), que exatamente hoje completaria 100 anos, recebeu recentemente uma homenagem de peso na mídia internacional especializada nos circuitos de arte e arquitetura: o suíço Hans Ulrich Obrist surpreendeu a todos quando, em entrevista à revista britânica “Art Review”, destacou a importância e a superioridade da arquitetura do Brasil no cenário internacional. Como se não bastasse, Obrist deixou de lado a obra monumental de Oscar Niemeyer e elegeu a Casa de Vidro de Lina Bo Bardi – onde a arquiteta viveu como o marido, Pietro Maria Bardi, por mais de 40 anos, em São Paulo – como seu projeto preferido da arquitetura brasileira.

A surpresa com a avaliação do especialista suíço sobre Lina Bo Bardi e sobre a arquitetura do Brasil ganhou maiores proporções porque Obrist é o que se pode chamar de autoridade: diretor de projetos internacionais da cultuada galeria Serpentine, em Londres, ele foi apontado, em pesquisa feita com dezenas de especialistas pela mesma revista "Art Review", a mais conceituada “bíblia” da arte e da arquitetura contemporâneas, como a personalidade mais influente das artes plásticas em nossa época. Obrist também ostenta um currículo invejável, com nada menos que 200 exposições realizadas, além de 30 livros publicados, entre eles "Uma breve história da curadoria" (lançamento no Brasil pela Editora BEI Comunicação, 2010), e “Entrevistas Brasileiras”, uma série de livros em cinco volumes, com expoentes da arte brasileira, lançada em 2009 pela Editora Cobogó.










 




O casal Lina Bo Bardi e Pietro Maria
Bardi na Casa de Vidromarco da
arquitetura brasileira, criação de
Lina Bo Bardi e residência do casal
durante mais de 40 anos.

Abaixo, o casal Pietro e Lina em 1950;
Lina fotografada em São Paulo, no mesmo
ano; Lina em 1960, em Salvador, com
pintor cearense Antônio Bandeira,
convidado por ela para expor na
inauguração do Museu de Arte
Moderna da Bahia; e com Glauber
Rocha (abaixado) e equipe técnica de
Deus e o Diabo na Terra do Sol,
durante as filmagens em Canudos, no
sertão da Bahia, fotografados em 1963













Se Oscar Niemeyer costuma monopolizar as atenções quando se fala de arquitetura brasileira, por que um especialista como Obrist escolheu Lina Bo Bardi? "Converso com artistas de vários países todos os dias e muitos me falam de Lina. Existe uma real obsessão em torno dela, o que não é nada surpreendente. Ela tem tudo a ver com o que há de mais interessante na cultura brasileira da segunda metade do século 20 e também com a maior parte dos projetos que venho desenvolvendo", explicou Obrist, na entrevista polêmica concedida à “Art Review” (para acessar a entrevista, clique aqui).



Achillina Bo



Lina Bo Bardi tornou-se uma presença incontornável da arte e da arquitetura do Brasil na segunda metade do século 20. Foi uma liderança capital nos rumos isolados e coletivos de diversos segmentos da cultura brasileira, a partir da década de 1950, exercendo influência central na segunda geração do Modernismo no Brasil e em artistas fundamentais de várias áreas, muito além da arquitetura e do design, como Glauber Rocha, Caetano Veloso, Zé Celso Martinez Corrêa e Hélio Oiticica, entre muitos outros nomes de referência do Concretismo, do teatro, do Cinema Novo e do Tropicalismo – apesar de, para a maioria dos leigos, sempre ter sido ofuscada pelo trabalho e pela presença de Niemeyer, outro gigante incontestável da arquitetura. 


 














Depois de deixar para trás a Itália arrasada pela Segunda Guerra, Lina passou a construir sua bagagem de referência sobre um entendimento muito particular do Brasil e da cultura brasileira em geral, a partir da arquitetura, entre interfaces do erudito e o popular – em estruturas planejadas sobre figuras geométricas básicas (como quadrados e triângulos), em lajes planas e em materiais de simplicidade rústica para complementos e revestimentos, tais como madeira, cerâmica, sapé.

O destaque de Obrist e outros especialistas, do Brasil e do cenário internacional, sobre o papel capital de Lina Bo Bardi, na verdade não surpreende, porque vem da importância incomparável das obras que ela produziu não só na arquitetura, mas também em atividades múltiplas. Além de profissional da arquitetura, Lina assumiu um papel de destaque na política e na cultura brasileira desde que aqui chegou com o marido, em 1946, e teve presença marcante como professora, como museóloga, como pesquisadora da cultura popular, como artista plástica e em criações e parcerias para o teatro, o cinema, as artes gráficas e o design, especialmente nos projetos para mobiliário.







Acima, Lina Bo Bardi em 1984,
fotografada por Niels Andreas.
Abaixo, Lina na década de 1960,
nas obras de construção do prédio
do MASP, em São Paulo, um dos seus
célebres projetos em arquitetura, e
uma vista aérea atual do edifício















 

Também merece destaque, na trajetória ímpar de Lina Bo Bardi, sua atuação como mentora de projetos culturais, sua dedicação à orientação de trabalhos e à curadoria de diversas exposições. Não menos importante foi sua contribuição como editora de “Habitat”, uma revista que circulou durante uma década, a partir de 1950, abordando desde as artes populares até a arquitetura, com ênfase em questões de inovação no ambiente sociocultural brasileiro.



Criações, intervenções, restaurações



Na arquitetura, Lina Bo Bardi é sempre lembrada pela criação do Museu de Arte de São Paulo, em 1958, considerada por muitos sua obra-prima. Mas não só: no acervo das obras da arquiteta também se destacam mais de 20 projetos grandiosos e visionários de criação ou intervenção em edificações como a Casa de Cultura de Pernambuco (1963), em Recife; a Igreja do Espírito Santo do Cerrado (1976), em Uberlândia, Minas Gerais; o Solar do Unhão, transformado por ela no começo da década de 1960 em Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador; o Teatro Oficina e o SESC Pompeia, ambos em São Paulo, em 1990, além de outros projetos inconclusos, entre eles o Palácio das Indústrias de São Paulo e o Teatro Politeama, em Jundiaí (SP). 











Algumas obras da arquiteta Lina Bo Bardi:
acima, o Segundo Subsolo e o Vão Livre
do MASP, na Avenida Paulista, em
São Paulo, e o Solar do Unhão, em
Salvador, restaurado e transformado
no Museu de Arte Moderna da Bahia
(MAM-BA), em projeto coordenado em
1963 por Lina Bo Bardi, que foi a primeira
diretora do museu na Bahia. Abaixo,
Lina fotografada na obra para instalação
do MAM-BA; Lina a bordo da Bowl Chair,
cadeira que ela criou em 1951; e fotografada
na década de 1950 por Chico Albuquerque.

Também abaixo: 1) Lina em reunião com
Zé Celso Martinez Corrêa, na época da
reformulação do prédio do Teatro Oficina, na
década de 1980; 2) o croqui para o teatro
e o prédio do Sesc Pompeia, em São Paulo,
criado por Lina em 1986 e destacado com
frequência pelos compêndios de arquitetura
entre os melhores edifícios de concreto do
mundo; 3) o interior revolucionário do
Teatro Oficina, também em São Paulo;
4) um croqui criado para um dos
projetos da arquiteta














Além da obra-prima consolidada na criação do MASP, um dos projetos centrais na trajetória de Lina Bo Bardi é o Instituto Pietro Maria Bardi, também conhecido como Casa de Vidro – um conjunto com uma base horizontal de concreto suspensa por tubos e revestido de vidro. Projetada em 1950 por Lina para ser a residência do casal, a Casa de Vidro abriga hoje parte da coleção de arte particular adquirida ao longo dos anos por Lina Bo e o marido, Pietro Maria Bardi (1900-1999). Lina e Pietro casaram-se em 1946 e, em seguida, trocaram a Itália pelo Brasil. Em 1951, adotaram a nacionalidade brasileira.

Logo que chegaram ao Brasil, em recepções, no Rio de Janeiro, Lina e Pietro conheceram personalidades como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Burle Marx e Assis Chateaubriand, de quem Pietro receberia o convite para fundar e dirigir um museu de arte. Do convite surgiu o projeto arquitetônico de Lina que abrigaria o MASP, o museu mais importante da América Latina. A primeira sede foi instalada em 1947, na rua Sete de Abril. Uma nova edificação começou a ser planejada por Lina em 1958 – mas a construção demoraria 10 anos para ser concluída e foi inaugurada oficialmente pela Rainha da Inglaterra, Elizabeth 2ª, em 1968.





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Entre tantos projetos e áreas de atuação, Lina Bo Bardi também sonhava em desenhar casas populares – mas os planos foram definitivamente adiados por questões de conjuntura política, para além da vontade da arquiteta. Entre outros projetos e utopias que nunca saíram do papel também estão a sede para um museu do Instituto Butantan e uma “floresta tropical” que seria criada sob os viadutos no Vale do Anhangabaú, no Centro de São Paulo.

"Eu tenho projetado algumas casas, mas só para pessoas que eu conheço. Tenho horror em projetar casas para madames”, ela confessa, em um dos textos reunidos em “Lina por escrito”, livro organizado por Silvana Rubino e Marina Grinover e publicado pela editora Cosac Naigy em 2008. "Entre madames, sempre entra aquela conversa insípida em torno da discussão de como vão ser as cortinas...", confidenciava, entre a ironia e as lembranças autobiográficas mais realistas. O mundo sonhado e construído por Lina Bo Bardi tinha outra dimensão e outras prioridades para uma realidade concreta.



por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Lina da Casa de Vidro. In: Blog Semióticas, 5 de dezembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/lina-da-casa-de-vidro.html (acessado em .../.../...).















Obras da arquiteta Lina Bo Bardi:
acima, dois croquis: o primeiro foi feito
para o bar do SESC Pompeia; o segundo,
para o projeto de reforma do Teatro Oficina
(obra que se arrastou por 14 anos até ser
finalizada em 1994). Abaixo, projeto para o
Vão Livre do MASP e Lina na
Casa de Vidro, fotografada em 1952













29 de março de 2012

Lampião no cinema








A poeira dos arquivos de que muita gente 
fala sem nunca a ter visto ou sentido, esta 
poeira clássica, levanto-a diariamente. 

–– Euclides da Cunha (1866-1909).   




O fotógrafo e mascate libanês Benjamin Abrahão Botto teria passado à história como amigo, secretário e confidente do mítico Padre Cícero Romão Batista (1844-1934), o Padim Ciço da devoção popular nordestina, se não tivesse investido numa aventura que por muito pouco lhe custou a vida na década de 1930: enquanto mascateava e prestava serviços itinerantes como fotógrafo lambe-lambe, Benjamin Abrahão foi criando coragem para ir ao encontro do lendário Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), vulgo Lampião, líder do bando de cangaceiros que espalhava o terror pelo sertão.

A aventura do mascate acabou rendendo as únicas imagens registradas em filme e fotografias de Lampião e seu bando. Mas os objetivos de Abrahão, ao que se sabe, não eram dos mais nobres: a intenção era infiltrar-se entre os cangaceiros para fazer as imagens e angariar fortuna com a venda do filme e das fotografias para jornais e revistas do Brasil e de outros países. 

O desfecho da aventura foi um golpe da sorte e do acaso, já que a intimidade com Padim Ciço serviu para salvar a vida do mascate no primeiro encontro com o bando de foras-da-lei. Abrahão sobreviveu à fúria do bando graças à sua iniciativa de caso pensado de invocar o nome do religioso: ele sabia que Lampião era devoto do padre e temeroso respeitador de suas crenças e conselhos.



 








 
O encontro do mascate Benjamin Abrahão
com o bando do capitão Virgulino Lampião
em 1936: no alto e acima, o mascate posa
com o bando, em fotografia tirada pelo
cangaceiro Juriti. Da esquerda para a
direita, estão Vila Nova, um não identificado,
Luís Pedro, Benjamin Abrahão (à frente),
Amoroso, Lampião, Cacheado (ao fundo),
Maria Bonita, mais um cujo nome não foi
identificado e Quinta-Feira. Acima e abaixo,
Lampião e sua Maria Bonitae o retrato
mais conhecido de Lampião feito por
Benjamin Abrahão também em 1936








 
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Em Juazeiro do Norte, Benjamin Abrahão havia presenciado o único encontro entre Lampião e Padre Cícero em 1926, ano em que a Coluna Prestes, liderada pelo militar e político Luis Carlos Prestes (1898-1990), percorria o interior do Brasil desafiando o Governo Federal. Na intenção de combater as tropas de Prestes, que seguiam se embrenhando pelos confins do sertão, Padre Cícero e outros líderes regionais convocaram a ajuda das forças de Lampião e seu bando, com a promessa de que em troca todos receberiam anistia por seus crimes e o líder do grupo teria uma patente de capitão.

A versão mais conhecida da história aponta que o bando de Virgulino deixou Juazeiro do Norte sem nunca ter enfrentado a Coluna Prestes. O mascate, na época secretário de Padre Cícero, fez uma única foto do religioso ao lado do chefe dos cangaceiros e, desde então, passou a acalentar os planos da ambição de filmar e fotografar Lampião e seu bando para, de posse das imagens, fazer fama e fortuna. 



Mascate e fotógrafo ambulante



Comerciante de tecidos, perfumes, bugigangas e miudezas, Benjamin Abrahão, ao que se sabe, nasceu nos territórios árabes do Líbano, território na época dominado pelo Império Otomano, em 1890, e havia aportado no Brasil em 1915, nas levas de imigrantes dos países árabes que fugiam da guerra e da miséria e que, muitas vezes, ao desembarcar, sequer sabiam que estavam na América do Sul. Sem dinheiro e sem rumo, Benjamin Abrahão primeiro decidiu tentar a sorte em Recife, depois seguiu para Juazeiro, atraído pela oportunidade de ganhar a vida no comércio com a frequência dos romeiros que buscavam Padre Cícero.







Padre Cícero aos 80 anos, em 1924, em
fotografia atribuída a Benjamin Abrahão.

Abaixo, o padre em 1929 ao lado de
Benjamin Abrahão, seu secretário, que
mais tarde trocaria as funções na igreja de
Juazeiro do Norte pela atividade de
mascate e fotógrafo ambulante









Letrado e hábil negociante, Abrahão terminou por conseguir, em Juazeiro do Norte, o posto de secretário de Padre Cícero. Exerceu a função por 10 anos consecutivos. Depois, com a morte do líder religioso, em 1934, Abrahão partiu para uma empreitada sem rumo pelo sertão, na tentativa de encontrar o bando. Quando conseguiu chegar ao acampamento onde estavam os cangaceiros, foi salvo pela fé em Padre Cícero. Clamando para não ser morto, apelou para a devoção pelo religioso e conseguiu: teve a vida poupada e recebeu pousada no grupo.

Lampião, vaidoso, ainda permitiu que o mascate registrasse as imagens que imortalizaram o bando de cangaceiros nas estampas de jornais e revistas durante o Estado Novo. As fotografias foram disputadas pela imprensa da época e mobilizaram o público nas principais capitais, enquanto o filme de Abrahão atiçava a curiosidade popular e chegou a ser exibido em Fortaleza. Mas em maio de 1938 o mascate acabou assassinado a facadas – um crime nunca esclarecido – e o filme foi apreendido a mando do presidente Getúlio Vargas.










Imagens lendárias



As únicas imagens do lendário Lampião e seu bando, filmadas pelo mascate libanês, acabaram sendo localizadas no final da década de 1950, quando a instalação da Fundação Getúlio Vargas recuperou para seu acervo os arquivos do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), o órgão de censura do Estado Novo. Depois disso as cenas registradas por Benjamin Abrahão, por duas décadas consideradas perdidas, vieram a público quando foram inseridas em dois documentários que foram exibidos nos cinemas: "Memória do Cangaço", realizado em 1964 com direção e roteiro de Paulo Gil Soares e depoimentos de cangaceiros sobreviventes e policiais que participaram da caçada ao grupo de Lampião; e "A Musa do Cangaço", realizado em 1982 por José Umberto Dias com depoimentos da sobrevivente Dadá, mulher de Corisco.











No alto, Lampião com um exemplar do
jornal O Globo e Lampião com Juriti.
Acima, Benjamin Abrahão fotografado
por Juriti, com Lampião e Maria Bonita;
Maria Bonita, Juriti, Vila Nova e Lampião;
Juriti (ao fundo, à direita), Nenê (sentada),
Luis Pedro e Maria BonitaAbaixo,
Lampião ao lado de sua Maria Bonita,
que foi descrita por Benjamin Abrahão
como uma moça encantadora.

Também abaixo, duas fotografias
de Maria Bonita, seguidas por
Dadá e Corisco, um dos conhecidos casais
do bando; Benjamin Abrahão tomando
notas, junto ao bando e junto a Lampião,
fotografado por Juriti; e um dos cartazes
que circularam pelo Nordeste do Brasil na
década de 1930 oferecendo recompensa
pela captura de Lampião e seu bando















As imagens que mostram o verdadeiro Lampião e seus cangaceiros registrados por Benjamin Abrahão também são o ponto de partida para “O Baile Perfumado”, de 1997, longa-metragem de estreia dos diretores Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Além de seus méritos inegáveis, que renderam prêmios em festivais no Brasil e em outros países, o filme de Caldas & Ferreira traz como acréscimo esta preciosidade: a íntegra das imagens originais (cerca de 12 minutos) do bando, registradas pelo mascate em suas andanças pelo sertão nordestino, na época em que Lampião imperava e apavorava como Rei do Cangaço.

O Baile Perfumado” parte das imagens documentais do mascate (interpretado por Duda Mamberti) e faz delas passagem cenográfica em várias sequências, lançando mão das filmagens realizadas na mesma região que na primeira metade do século 20 foi adotada como refúgio pelos bandos de cangaceiros. O roteiro segue as andanças de Abrahão e o dia a dia de Lampião e seus homens nas localidades áridas da caatinga, entre os estados de Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Bahia. 














Benjamin Abrahão e o bando de Lampião:
abaixo, Lampião preparando as armas;
a líder Nenê com Juriti (ao centro) e
dois cangaceiros não identificados; duas
fotografias do grupo acompanhando
o casal Corisco e Dadá (à esquerda);
e duas fotografias dos cangaceiros com
Lampião e Maria Bonita à direita




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Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que haviam publicado em co-autoria, também em 1997, na Revista Cinemais, um longo ensaio sobre o encontro de Benjamin Abrahão com Padre Cícero e com Lampião (“A modernidade, a tradição e a vaidade de Lampião”), realizaram um filme inspirado em que cenas reconstituídas em forma de ficção dialogam com os registros documentais. As imagens autênticas que foram fotografadas e filmadas por Abrahão na década de 1930 pontuam a narrativa, enquanto a reconstituição realista e ficcional com os atores mostra o contexto da ação do bando, com o estreante Luis Carlos Vasconcelos incorporando em minúcias o que as imagens de época, e os relatos remanescentes, revelam sobre o célebre capitão Virgulino Lampião.



O Baile Perfumado



Alternando com as cenas coloridas da ficção, que em algumas sequências vão perdendo cores para se fundir às imagens da década de 1930, as cenas documentais de Abrahão registram o verdadeiro Rei do Cangaço. Na intimidade, Lampião surge maravilhado com a modernidade das câmeras e das filmagens, tomando uísque, banhando-se em perfume francês e festejando as conquistas das incursões pelas fazendas e pelos vilarejos do sertão nordestino em bailes com Maria Bonita e com os outros casais do bando, daí a origem do título “O Baile Perfumado”.







Acima e abaixo, cenas de O Baile Perfumado,
com Luis Carlos Vasconcelos no papel de
Lampião. Também abaixo, imagens do
filme, a capa do lançamento em VHS e DVD
e Chico Science com a banda Nação Zumbi,
músicos da trilha sonora de O Baile Perfumado








Na época do lançamento do filme em Belo Horizonte, em agosto de 1997, entrevistei o diretor Lírio Ferreira para o jornal “O Tempo”. Entusiasmado com a acolhida favorável da crítica e do público nos festivais de Gramado e de Brasília e nas capitais onde o filme já estava em cartaz, o diretor comemorava também os convites para uma extensa agenda de exibição em mostras importantes em outros países. Nos próximos meses, o filme iria competir e ganhar prêmios nos festivais internacionais de cinema de Havana e em Nova York, Toronto e Biarritz, entre outros.

Optamos por uma abordagem que fosse pouco convencional, até porque o cangaço já rendeu alguns grandes clássicos do cinema brasileiro, como os dois filmes do Glauber – 'Deus e o Diabo na Terra do Sol' e 'O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro' – e 'O Cangaceiro', de Lima Barreto”, explicou Lírio Ferreira. Na entrevista, o diretor também anunciou o lançamento do filme em vídeo e a publicação do roteiro, em edição ilustrada, pelas editoras Gryphus e Forense. O lançamento em vídeo quase simultâneo à exibição no cinema, assim como a edição do roteiro, era feitos raros a serem comemorados numa época que hoje é lembrada como a retomada do cinema brasileiro.









Esta recepção tão positiva não poderia ter sido melhor. Foi muito além de qualquer expectativa otimista que poderíamos ter, ainda mais que é o primeiro longa-metragem para mim e para o Paulo Caldas na direção e também o primeiro longa para a quase totalidade da equipe e para os atores principais”. Segundo Lírio Ferreira, a figura de Benjamin Abrahão e sua história de aventura e pioneirismo sempre exerceu um fascínio muito forte sobre quem se interessa por cinema, principalmente no Nordeste do Brasil.



Trilha do mangue beat



Aqui nas cidades do Sudeste são poucos os que conheciam a história do mascate que arriscou a vida para filmar o bando de Lampião", explicou o diretor. "Mas o Benjamin Abrahão sempre foi uma figura mítica para os estudantes de cinema de todos os estados do Nordeste. Talvez pela proximidade geográfica com aqueles cenários da caatinga e do São Francisco, e também pelo envolvimento do Padre Cícero nesta história. Eu e o Paulo Caldas e várias gerações de estudantes do Nordeste crescemos ouvindo as histórias de Lampião, do Padim Ciço. E a existência desse personagem libanês, mascate, que viveu a aventura de se embrenhar sozinhos pelas trilhas do sertão para filmar o bando de cangaceiros precisava virar filme”. 







Foi durante nossa conversa na entrevista que o diretor recebeu por telefone o informe que contabilizava os bons resultados de bilheteria de “O Baile Perfumado” nas primeiras semanas de exibição, depois do lançamento em cinemas do Rio de Janeiro e São Paulo. Animado com os resultados de bilheteria, segundo ele surpreendentes, Lírio Ferreira ainda enumerou alguns de seus próximos projetos individuais e um próximo e acalentado longa-metragem, que também seria dirigido a quatro mãos em parceria com Paulo Caldas.

O principal projeto é um roteiro ambicioso, que estamos adiando, mas que promete render um grande filme. Não sei ainda quando começaremos a filmar, mas será uma abordagem de ficção baseada em fatos históricos sobre a invasão holandesa no Brasil, no século 17, que terá um certo parentesco com 'O Baile Perfumado' porque vai reunir a mesma mistura de reconstituição de época em forma de ficção e muita coisa de documentário, culminando com a chegada de Maurício de Nassau aos territórios do Nordeste do Brasil”, revelou Ferreira. Hoje, décadas depois daquela entrevista, tudo indica que o projeto original e grandioso ainda permanece no papel.



Enquadramentos surpreendentes



Em “O Baile Perfumado”, apontado como um dos grandes momentos da retomada do cinema nacional, depois do desastre do Governo Collor e do fechamento da Embrafilme em 1994, merecem destaque questões técnicas como o virtuosismo do roteiro, a edição, os movimentos de câmera e os enquadramentos surpreendentes, às quais a direção de Lírio Ferreira e Paulo Caldas acrescentaram a ousadia de um elenco afinado e muito convincente, sendo que à época quase todos eram estreantes em cinema ou desconhecidos do grande público.










Outro trunfo do filme está na surpreendente trilha sonora – que se tornaria uma coleção instantânea de clássicos do “mangue beat”, assinada, entre outros, por Chico Science, Fred Zero Quatro e Lúcio Maia, integrantes das bandas Nação Zumbi e Mundo Livre. Foi outra estratégia pouco usual no cinema nacional que trouxe pioneirismo à empreitada do sucesso alcançado por “O Baile Perfumado”: o lançamento da trilha sonora em CD simultaneamente à chegada do filme às salas de exibição em várias capitais.

Depois do filme de ficção que resgatava as imagens originais de Lampião e seu bando feitas pelo mascate libanês no sertão nordestino, Lírio Ferreira e Paulo Caldas continuaram na realização de longas-metragens. Caldas, paraibano de João Pessoa, lançou em 2007 “Deserto Feliz”, pelo qual venceu os prêmios da crítica e do júri popular no Festival de Gramado e foi premiado em festivais no México, Portugal e França, além de ser selecionado para a mostra principal no Festival de Veneza, em 2000, com o documentário “O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas”. Caldas também realizou “O País do Desejo” (2011), ainda inédito, e escreveu o roteiro de “Cinema, aspirinas e urubus” (2005), em parceria com Marcelo Gomes e Karim Aïnouz. Dirigido por Marcelo Gomes, o longa foi selecionado para a mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes, e venceu o prêmio especial do júri no Festival do Rio.

Lírio Ferreira, pernambucano de Recife, escreveu e dirigiu mais três longas de destaque na safra recente do cinema nacional: “Árido Movie” (2006), sobre um jornalista de São Paulo que retorna à sua cidade-natal no Nordeste para o enterro do pai que foi assassinado; o documentário “Cartola – Música para os Olhos” (2007), com imagens de arquivo e depoimentos sobre a trajetória do sambista Cartola, em co-direção com Hilton Lacerda; e “O Homem que Engarrafava Nuvens” (2009), documentário sobre o compositor cearense Humberto Teixeira, autor de "Asa Branca" e outros grandes sucessos do cancioneiro popular em parceria com Luiz Gonzaga, o aclamado rei do baião e do acordeão. O filme foi produzido pela atriz e cineasta Denise Dumont, filha de Humberto Teixeira, que além de poeta e pesquisador das tradições e dos ritmos musicais nordestinos também foi eleito deputado federal em 1954 e tem, em seu legado, a autoria das leis de direito autoral que ainda hoje estão em vigência no Brasil.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Lampião no cinema. In: Blog Semióticas, 29 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/lampiao-no-cinema.html (acessado em .../.../...).



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Filmografia do Cangaço



De “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, premiado em Cannes e um dos grandes sucessos internacionais do cinema brasileiro, até “O Baile Perfumado”, um total de 22 produções para cinema e TV tiveram o cangaço como argumento e tema central, incluindo uma refilmagem de “O Cangaceiro”, feita em 1997 por Aníbal Massaini Neto; duas obras-primas de Glauber Rocha, “Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1963) e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969); e três comédias que levaram ao cinema paródias sobre as aventuras de Lampião e seu bando com os comediantes mais populares da época: uma em 1959, “Os Três Cangaceiros”, que reuniu Grande Otelo, Ronald Golias e Ankito; outra em 1964, “O Lamparina”, com Amácio Mazzaropi; e outra em 1983, “O Cangaceiro Trapalhão”, com direção de Daniel Filho, também explorando o sucesso popular de Renato Aragão e sua trupe do programa de TV “Os Trapalhões”.





Há, também, outras duas produções que merecem destaque por motivos diversos, entre elas “Faustão”, de 1971, uma das raras incursões do documentarista Eduardo Coutinho pelos domínios da ficção, com um cangaceiro negro, vivido por Eliezer Gomes, e com Anecy Rocha em destaque no elenco; “Lampião e Maria Bonita”, de 1982, com Nelson Xavier e Tânia Alves nos papéis principais (foto abaixo), que inaugurou com grande sucesso de público e crítica o formato de minissérie na TV Globo com oito episódios, cada um com 45 minutos, e que também teve uma versão exibida nos cinemas com duração de 1h52min; e “O Cangaceiro”, uma co-produção Itália e França de 1969 com Tomas Milian no papel principal e elenco e equipe técnica internacionais, dirigida pelo italiano Giovanni Fago com filmagens no Nordeste do Brasil e lançada nos cinemas brasileiros como “Rebelião dos Brutos”.







Na lista de produções entre filmes brasileiros que têm o cangaço como tema há, também, três documentários que tiveram lançamento nos cinemas. Um deles, “O último dia de Lampião”, realizado em 1975 por Maurice Capovilla, reconstitui a morte de Lampião, de Maria Bonita e de 11 cangaceiros na fazenda de Angicos, no sertão de Sergipe. Os outros dois documentários, assim como acontece em “O Baile Perfumadoapresentam partes das sequências filmadas na década de 1930 por Benjamin Abrahão com o bando de Lampião: “Memória do Cangaço, realizado em 1964 por Paulo Gil Soares, e “A Musa do Cangaço”, realizado em 1982 por José Umberto Dias.

As imagens do filme de Benjamin Abrahão também aparecem em “Sermões, A História de Antônio Vieira”, filme de 1989 de Júlio Bressane, mas como elas somente ilustram uma sequência do filme, que não é uma abordagem específica nem sobre Lampião nem sobre o cangaço, o filme de Bressane não foi incluído nesta filmografia. Também não foi incluído na lista, porque teve lançamento depois de "O Baile Perfumado", o caso notável de "O Auto da Compadecida", filme de 2000 de Guel Arraes, sucesso de público e de crítica, baseado na peça teatral de mesmo título, de 1955, de Ariano Suassuna, que tem a presença de cangaceiros como elemento central na trama. O filme foi uma adaptação de formato da minissérie exibida pela Rede Globo em 1999.


Confira, abaixo, a lista completa de filmes em longa-metragem sobre o cangaço realizados no Brasil em meio século, de 1953 a 1997: 



1. “O Cangaceiro” (1953)
    direção de Lima Barreto

2. “Os Três Cangaceiros” (1959)
    direção de Victor Lima

3. “A Morte Comanda o Cangaço” (1960)
    direção de Carlos Coimbra e Walter Guimarães Motta

4 “Lampião, o Rei do Cangaço” (1962)
    direção de Carlos Coimbra

5. “Três Cabras de Lampião” (1962)
    direção de Aurélio Teixeira

6. “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963)
    direção de Glauber Rocha






7. “O Lamparina” (1963)
      direção de Glauco Mirko Laurelli

8. “Memória do Cangaço” (1964)
      direção de Paulo Gil Soares

9. “Entre o Amor e o Cangaço” (1965)
      direção de Aurélio Teixeira

10. “Cangaceiros de Lampião” (1967)
      direção de Carlos Coimbra

11. “Maria Bonita, Rainha do Cangaço” (1968)
       direção de Miguel Borges

12. “Corisco, o Diabo Loiro” (1969)
       direção de Carlos Coimbra

13. “O Cangaceiro (Rebelião dos Brutos)” (1969)
       direção de Giovanni Fago

14. “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969)
       direção de Glauber Rocha







15. “Quelé do Pajeú” (1970)
       direção de Anselmo Duarte

16. “Meu nome é Lampião” (1970)
       direção de Mozael Silveira

17. Faustão” (1971)
       direção de Eduardo Coutinho

18. “O último dia de Lampião” (1975)
       direção de Maurice Capovilla

19. “Lampião e Maria Bonita” (1982)
       direção de Paulo Afonso Grisolli e Luis Antônio Piá

20. “O Cangaceiro Trapalhão” (1983)
       direção de Daniel Filho

21. “Corisco e Dadá” (1996)
       direção de Rosemberg Cariry

22. “O Cangaceiro” (1997)
       direção de Aníbal Massaini Neto

23. “O Baile Perfumado” (1997)
       direção de Paulo Caldas e Lírio Ferreira






Lírio Ferreira, Luiz Carlos Vasconcelos e Paulo Caldas
durante as filmagens de 
Baile Perfumado. Abaixo,
Vasconcelos como Lampião em cena do filme e
mais duas imagens
originais do bando de cangaceiros
registradas em 1936 por 
Benjamin Abrahão
















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