16 de junho de 2025

Crônica do Bloomsday

 



A história, disse Stephen, é um pesadelo do qual estou tentando acordar.

–– James Joyce, “Ulisses”.  

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O argentino Jorge Luis Borges, uma referência da literatura do século 20, ficaria cego, gradualmente, a partir dos 55 anos, devido a uma condição hereditária, provavelmente glaucoma ou uma doença degenerativa da retina. Apesar da perda da visão, Borges continuou a produzir obras literárias até o fim da vida, quando morreu em Genebra, na Suíça, em 1986, aos 88 anos. Ele sempre soube que perderia a visão, pois o destino da cegueira era hereditário: seu pai, seu avô e seu bisavô também ficaram cegos. Lembro de Borges porque a data de hoje, dia 16 de junho, remete a outra referência incontornável da literatura universal: é a data do Bloomsday, em que os amantes da literatura, e da literatura de James Joyce, em especial, celebram Leopold Bloom, protagonista de “Ulisses”, romance de Joyce que se passa em 16 de junho de 1904.

O fascínio de Borges por Joyce, e mais ainda por “Ulisses”, por certo vem de algumas coincidências existenciais e da força capital que o tempo e a eternidade, em seus componentes de circularidade e repetição, têm na literatura de Borges e também em James Joyce. Borges menciona o autor irlandês muitas vezes em seus escritos e dedicou a ele diversos artigos e ensaios. Quando se consulta as versões on-line do Catálogo Bibliográfico Completo e do Catálogo de Artigos na Imprensa, organizados pela La Maga: Associación Borgesiana de Buenos Aires, é possível encontrar muitos textos de Borges em que Joyce é o tema central ou está citado no argumento das abordagens sobre outros autores.









Crônica do Bloomsday: no alto e acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund para uma reportagem da
revista Time
em 1939, no apartamento em que morou
de 1935 até 1939, na Rue Edmond Valentin, em Paris.
Joyce, que era supersticioso e não gostava de ser
fotografado, concordou, aconselhado por sua editora
Sylvia Beach, depois de saber que o sobrenome de
casada de Giséle Freund era Blum, em conexão óbvia
com Leopold Bloom, personagem de “Ulisses”.

Abaixo, vista da O’Connel Bridge, sobre o rio Liffey,
em Dublin, capital da República da Irlanda, terra natal
de James Joyce, em fotografia de 1905






Páginas de 'Ulisses'


Os artigos de Borges trazem referências muito poéticas sobre suas leituras da obra de Joyce – com destaque para os que foram publicados na revista semanal El Hogar, na qual Borges foi colunista entre 1936 e 1939. Na seção “Libros y autores extranjeros: Guía de lecturas”, Borges publicava artigos, resenhas e traduções fragmentadas de autores de outros idiomas além do espanhol. Joyce já havia sido abordado por ele em textos publicados em outros periódicos, os primeiros deles em Proa, revista literária fundada pelo próprio Borges em 1922, ano da publicação do “Ulisses” de Joyce. Os longos artigos em Proa, com os títulos “El ‘Ulises’ de Joyce” e “La última hoja del ‘Ulises’”, foram publicados na mesma edição, em janeiro de 1925, apenas três anos após a primeira edição do romance pela Shakespeare & Company, com sede em Paris.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund em 1939. Abaixo, Joyce
nas duas vezes em que foi a reportagem de capa da
revista Time, em janeiro de 1934 e em maio de 1939







Sobre Joyce, na El Hogar, Borges publicou “Joyce e Yeats” (em outubro de 1936); “James Joyce” (em fevereiro de 1937); “Ulysse”, sobre a tradução do romance de Joyce para o francês (em fevereiro de 1938); e “El último libro de Joyce”, sobre o lançamento de “Finnegans Wake” (em junho de 1939). Na mesma época, Borges publicaria artigos sobre Joyce na Sur, revista fundada em 1931 por sua amiga muito próxima, a escritora Victoria Ocampo. Sobre Joyce, na “Sur”, Borges publicou “Joyce e los neologismos” (em novembro de 1939) e “Fragmento sobre Joyce” (em fevereiro de 1941).


Obra de muitas gerações


Os dois artigos mais poéticos de Borges sobre Joyce estão na El Hogar. No primeiro, em fevereiro de 1937, Borges escreveu: “Mais do que a obra de um só homem, ‘Ulisses’ parece de muitas gerações” – concluindo com uma confissão muito pessoal e definitiva: “A delicada música da prosa de Joyce em ‘Ulisses’ é incomparável.” O segundo artigo, publicado em junho de 1939, aborda “Finnegans Wake”, mas faz citações a “Ulisses”, em tom de profunda melancolia, quase que anunciando o horror da Segunda Guerra Mundial, que já se desenhava no horizonte, com as tropas da Alemanha Nazista ocupando a Polônia em 1º de setembro de 1939 e invadindo mais 11 países nos meses seguintes, transformando o conflito local em uma guerra mundial.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Gisele Freund. Abaixo, o casal
Joyce e Nora Barnacle na época em que
se conheceram em Dublin, em 1904




Às vésperas da Segunda Guerra, Joyce foi viver para França. “Ulisses” trouxe fama internacional, mas não impediu que o autor vivesse angustiado e com destino de navegador errante por diversos países e endereços, numa jornada que remonta a referências da Antiguidade Clássica do personagem de Homero, do qual ele se apropriou em seu romance. Em uma das cartas a sua amada Nora Barnacle, Joyce definiu a si mesmo como “um homem solitário, insatisfeito, orgulhoso”. Diziam os amigos que, em público, ele era silencioso, lacônico, distante, com hábitos simples e rígidos na vida cotidiana que o levavam a comer sempre o mesmo prato, no mesmo restaurante, no mesmo horário, todos os dias.


Pavor de raios e trovões


Joyce também tinha problemas nos olhos e fez várias cirurgias que não foram suficientes para evitar o avanço do glaucoma. Seu drama com o avanço da cegueira é um dos temas de “Pomes Pennyeach” (Poemas, um tostão cada), publicado em 1927. Também era supersticioso, além de ter pavor incontrolável diante de raios e trovões, e teologia era um dos assuntos que, invariavelmente, despertavam seu interesse. Talvez por tudo isso certas críticas negativas provocassem nele imensa tristeza – críticas negativas tais como a de Virgina Woolf, que classificou “Ulisses” como “uma catástrofe memorável; imenso em atrevimento, terrível como um desastre” e recusou publicá-lo na The Hogarth Press. No artigo de junho de 1939 na El Hogar, Borges escreveu: “James Joyce, agora, vive num apartamento em Paris, com a sua mulher e os seus dois filhos. Vai sempre com os três à ópera, é muito alegre e muito conversador. Está cego.”








Crônica do Bloomsday: um fotógrafo anônimo
encontrou
James Joyce e Nora Barnacle a caminho
do casamento oficial no cartório, em Dublin, em 1931,
acompanhados de Fred Monro, advogado de Joyce, que
recomendou sobre a importância do registro de casamento.

Abaixo, uma página datilografada de “Ulisses”
com as inúmeras correções feitas a caneta por Joyce





James Joyce nasceu em Dublin em 2 de fevereiro de 1882, o mais velho de 10 crianças em uma família que passou rapidamente da riqueza à pobreza. Apesar das dificuldades, teve educação privilegiada como bolsista em uma escola jesuíta e no University College de Dublin. Sua estreia como autor foi aos 17 anos, quando publicou na Fortnightly Review o ensaio “The New Drama”, estudo sobre a obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Três anos depois, aos 20 anos, foi para Paris, com a intenção de estudar medicina, mas acabou trocando as ciências médicas pela dedicação à literatura e à leitura de seus autores preferidos naquela época, Dante, Shakespeare, Homero e Aristóteles.


As confissões eróticas


Em 1903, regressou a Dublin, por causa da doença da mãe, que faleceu logo depois. No verão de 1904, ainda em Dublin, Joyce conheceu seu grande amor, Nora Barnacle, que se tornou sua companhia inseparável. Joyce tinha 22 anos e Nora 20. A data da primeira vez que fizeram sexo é o dia 16 de junho de 1904, escolhida para a trama de “Ulisses”, sendo Nora sua inspiração para a personagem Molly Bloom. Pouco tempo depois, Joyce e Nora fogem de Dublin e saem em uma longa viagem pelo continente. Passaram alguns meses em Pula, na atual Croácia, e no ano seguinte foram morar em Trieste, na Itália, onde viveram até 1915, com Joyce no trabalho ocasional como professor de inglês. Tiveram dois filhos, registrados com nomes italianos, Giorgio e Lucia, e estiveram separados apenas por breves períodos em que Joyce viajou a Dublin. As cartas de Joyce para Nora, cheias de confissões eróticas, foram escritas nestas ocasiões.



            


Crônica do Bloomsday: acima, o casal Joyce e Nora
em fotografia da década de 1920. Abaixo, Joyce em
Zurique, em 1915, e uma cena do filme “
Nora”, lançado
no ano 2000, com direção e roteiro de
Pat Murphy, que
tem 
Ewan McGregor no papel de James Joyce
e
Susan Lynch como Nora Barnacle



         



O primeiro livro de poemas de Joyce, “Música de Câmara”, foi publicado em Londres em 1907. “Dublinenses”, seleção de 15 contos com ambientação em Dublin, teve primeira edição em 1914, no início da Primeira Guerra, época em que começou a escrever os rascunhos para “Ulisses”. A participação da Itália na guerra levou o casal a fugir novamente, em 1915, de Trieste para várias cidades da Suíça, até fixarem residência em Zurique, onde permanecem até 1919. Em Zurique, Joyce publica dois livros: “Retrato do artista quando jovem”, em 1916, e “Exílados”, em 1918.

"Retrato do artista quando jovem" pode ser definido como um romance 
de formação (Bildungsroman), pontuado de referências autobiográficas, sobre o amadurecimento existencial de um personagem que iria retornar em "Ulisses", Stephen Dedalus, alter ego do autor, em sua trajetória da infância à idade adulta. O segundo livro trazia uma peça de teatro, a única que escreveu – uma reflexão sobre a formação de um triângulo amoroso entre um artista de vanguarda, Richard Rowan, um jornalista, Robert Hand, e a mulher de Richard, Bertha, que vai relatando ao marido cada passo das investidas do rival. "Exilados" (também traduzida para o português como "Exílios") remete, entre simetrias e alusões, a “Os mortos”, último conto de “Dublinenses”, e também a “Ulisses”.






Crônica do Bloomsday: acima, Joyce em 1914,
na época em que morava em Trieste, na Itália,
fotografado por seu irmão Stanislaus, tendo ao fundo
Nora e os dois filhos do casal, Lucia e Giorgio.

Abaixo, Joyce em Paris, em fotografia de 1939
de Giséle Freund, discutindo o lançamento do que
viria a ser seu último livro, “Finnegans Wake”, com
as editoras da Shakespeare and Company,
Sylvia Beach e Adrienne Monnier.

No final da página, a e
státua instalada sobre o
túmulo de James Joyce no Cemitério Fluntern,
em Zurique, na Suíça.



                   


Fluxos de consciência


Ulisses”, a obra magna de Joyce, foi editada e lançada por sua amiga Sylvia Beach na Shakespeare & Company em 2 de fevereiro de 1922, dia do aniversário de 40 anos do autor. Repleto de referências à obra de Homero e de alusões a Shakespeare, à Bíblia e a outros clássicos, o romance recria um dia na cidade de Dublin, aquele dia 16 de junho de 1904, narrando a vida cotidiana de Leopold Bloom, um vendedor de anúncios publicitários. Ao longo de 24 horas, que a narração divide em 18 episódios, Bloom é comparado ao herói grego Ulisses, experimentando encontros, desencontros e reflexões em fluxos de consciência que elevam o trivial do cotidiano a um nível épico. O enredo, que segue a estrutura da "Odisseia" de Homero, apresenta como personagens centrais Leopold Bloom, seu amigo Stephen Dedalus, jovem escritor, e Molly Bloom, esposa de Leopold, que está envolvida em um caso extraconjugal. 

Um dos motores da narrativa é a interação entre Leopold e Stephen, que o influencia em relação à arte e ao pensamento, sintetizando o encontro de duas gerações e duas formas distintas de entender o mundo. A relação entre Leopold e Stephen, complexa e multifacetada, surge como uma jornada de descoberta mútua e uma busca de sentido espiritual. Leopold Bloom é um homem de meia-idade, enquanto Stephen é um jovem intelectual e artista, ambos vivendo em Dublin. A narrativa os une através de uma série de encontros fortuitos, com Bloom vendo em Stephen um filho substituto e Stephen encontrando em Bloom um pai ausente, em aproximações com a relação entre Odisseu e Telêmaco na mitologia grega. Em contraponto, Molly Bloom traz um paralelo irônico com a Penélope da “Odisseia”, a esposa fiel do Ulisses de Homero.

A edição de “Ulisses” em inglês, considerada pelas autoridades oficiais uma obra pornográfica, foi proibida na Inglaterra, nos Estados Unidos e nos países anglo-saxônicos, o que contribuiu para Joyce se tornar o assunto principal dos círculos intelectuais e terminar reconhecido como o autor mais célebre de sua época. O livro se tornaria uma referência para toda a literatura modernista, mas só teve autorização para publicação na Inglaterra em 1936. Joyce estava aclamado como escritor quando morreu em Zurique, em 1941, prestes a completar 59 anos. Nora, desde então, passou a viver reclusa, na solidão, e também morreu em Zurique, em 1951. Para concluir, vale lembrar que depois de tantos textos e tantas análises, de Borges e de tantos leitores, anônimos ou célebres, o melhor mapa de leitura talvez seja o esquema elaborado pelo próprio Joyce para ajudar um amigo, Carlos Linati, no entendimento e na interpretação de “Ulisses”. O certo é que a literatura nunca mais seria a mesma depois daquele dia 16 de junho de 1904.


por José Antônio Orlando

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Crônica do Bloomsday. In: Blog Semióticas, 16 de junho de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/06/cronica-do-bloomsday.html (acesso em .../.../…).

 

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Um comentário:

  1. Totalmente encantada porque encontrei esta postagem que me fez grandes revelações sobre o Bloomsday, que eu achava que já conhecia e conhecia nada. Ótima apresentação do tema e diálogo perfeito entre texto e imagens. De novo, parabéns pelo alto nível deste Blog Semióticas, maravilhoso, e muito obrigada por você compartilhar.

    Monique Lacerda

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