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6 de outubro de 2025

Imagens do fim dos tempos

 





A política sempre será a rainha das artes 

porque dela dependem todas as outras. 

–– Aristóteles (384-322 a.C.).   

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Arquiteto nascido e formado no Chile, também fotógrafo, cineasta, artista visual e ativista das causas ambientais, Alfredo Jaar prefere definir a si próprio como um idealista e passageiro das utopias. No dia 26 de setembro, ele foi anunciado como vencedor de um dos prêmios internacionais de fotografia mais prestigiados da atualidade, o Prix Pictet, que na edição 2025 tem o tema Tempestade (Storm). O trabalho premiado de Jaar, para o qual ele escolheu o título “The End”, reúne uma sequência de 10 imagens em composição primorosa de cores deslumbrantes, lembrando telas em pinturas abstratas de artes plásticas, que registram uma tragédia ambiental: o lento desaparecimento de um imenso lago de água salgada em Utah, região oeste dos Estados Unidos com grandes desertos e cordilheiras de montanhas de pedra.

Esta é a 11ª edição do Prix Pictet, criado em 2008 pelo Grupo Pictet, com sede em Genebra, na Suíça, que premia a cada dois anos um trabalho autoral em fotografia, patrocinando exposições temáticas e eventos paralelos em diversos países. Sobre sua obra premiada, Alfredo Jaar declarou: “Meu objetivo nesta série de fotografias foi mostrar o destino trágico do grande lago de Utah e revelar sua extraordinária beleza e potencial. Apesar da terrível situação em que estamos, eu queria criar imagens de beleza e também de tristeza. Diante da magnitude desta tragédia, decidi imprimir estas imagens num formato pequeno, pouco espetacular, como uma espécie de sussurro visual, um lamento pelo nosso planeta moribundo.”






Imagens do fim dos tempos: a partir do alto
da página, a sequência do ensaio fotográfico
de Alfredo Jaar, intitulado “The End”, vencedor
da edição 2025 da premiação internacional de
fotografia Prix Pictet. As 10 imagens registram
o desaparecimento do
Grande Lago Salgado
(Great Salt Lake)
de Utah,
nos Estados Unidos

















Alfredo Jaar foi premiado depois de ser anunciado na lista de 12 finalistas selecionados por um júri independente formado por 350 especialistas nomeados em países da Europa, Ásia, África, Oriente Médio, Oceania, América do Norte e América do Sul. Três representantes brasileiros fazem parte do júri do Prix Pictet: Eder Chiodetto (Fotô Editorial), Thyago Nogueira (Instituto Moreira Salles) e Jochen Volz (Pinacoteca de São Paulo). Nas edições anteriores foram premiados Gauri Gill (temática do Humano); Sally Mann (Fogo); Joana Choumali (Esperança); Richard Mosse (Espaço); Valérie Belin (Transtorno); Michael Schmidt (Consumo); Luc Delahae (Potência); Mitch Epstein (Crescimento); Nadav Kander (Terra); e Benoit Aquin (Água).


Tragédia ambiental



O dossiê de imprensa fornecido pelo Prix Pictet registra que o Grande Lago Salgado (Great Salt Lake) de Utah, tema do ensaio fotográfico de Alfredo Jaar, representa um ecossistema fundamental no Hemisfério Ocidental, com suas dimensões de 4.400 quilômetros quadrados. A área, remanescente de um imenso lago pré-histórico com alta salinidade, concentra microorganismos que dão às águas uma rara coloração em tons de rosa. Com a exploração industrial e a extração excessiva de água, desde o final do século 19 e mais acelerada nas últimas décadas, o lago já perdeu cerca de 80% de sua área de superfície, gerando grande quantidade de poeira tóxica que polui o ar e o solo, além de elevar a salinidade do que resta da água a níveis mortais para animais e plantas. As previsões indicam que o lago deve desaparecer nos próximos anos, pois o desastre ambiental já ultrapassou o ponto de não retorno.













Nas entrevistas concedidas após o anúncio da premiação, Alfredo Jaar revelou que sua intenção inicial seria registrar os últimos remanescentes de vida animal na região, mas ele descobriu que a área do lago, que foi durante séculos uma das grandes rotas de aves migratórias do continente, agora é apenas natureza morta. A descoberta da situação de tragédia ambiental, com o desaparecimento irreversível do grande lago, foi descrita pelo fotógrafo: “O que costumava ser uma região próspera e fértil, para várias espécies de pássaros, agora é um cemitério com milhares de cadáveres ressecados em uma imensa planície de lama, poeira e veneno”.



Arte como ação política



Alfredo Jaar é um veterano em trabalhos na interface entre arte e ação política. Nascido em Santiago do Chile em 1956, ele viveu a experiência do governo sangrento do general Augusto Pinochet, o ditador que tomou o poder no Chile entre 1973 e 1990, apoiado pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, e testemunhou massacres terríveis quando os soldados da ditadura viajavam pelo país para torturar e assassinar opositores em uma violenta caravana da morte”. Jaar escapou do Chile em 1982, depois de terminar o curso de arquitetura, e passou a morar em Nova York, com dedicação ao trabalho com arte e fotografia. Desde então, participou de exposições e instalações em vários países, incluindo suas obras em destaque nas Bienais de Veneza (1986, 2007, 2009, 2013), de São Paulo (1987, 1989, 2010, 2021) e da Documenta de Kassel em 1987 e 2002.




















O Prix Pictet vem se somar a outras premiações internacionais importantes na trajetória de Jaar, entre elas o Prêmio de Arte de Hiroshima em 2018 e o Prêmio Hasselblad na Suécia em 2020. Em 2024, ele recebeu o Prêmio Albert Camus Mediterrâneo na Espanha e já em 2025 ele ganhou a Medalha Edward MacDowell em New Hampshire, Estados Unidos. Seu trabalho também está na coleção de grandes museus, como o MoMA e o Museu Guggenheim, em Nova York, o Centre Georges Pompidou em Paris e o Museu Reina Sofia de Madri, entre outros, além do Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Nas entrevistas incluídas no dossiê de imprensa do Prix Pictet, Alfredo Jaar faz questão de tomar posição nas questões de arte como ação política. “Eu conheço o fascismo quando vejo”, ele diz, em resposta a uma questão de Igor López, repórter do jornal El País, afirmando que, com frequência, ao ler as notícias diárias, tem a impressão de que o fim do mundo realmente se aproxima. Segundo Jaar, estamos a bordo de um mundo novo e assustador – com notícias que, para ele, provocam lembranças de experiências traumáticas vividas no Chile durante a ditadura Pinochet.







Imagens do fim dos tempos: a partir do alto
da página, a sequência do ensaio fotográfico
de Alfredo Jaar, “The End”, vencedor do
Prix Pictet 2025. Abaixo, Alfredo Jaar em
fotografia de Andrea Rego Barros.

Também nas imagens abaixo, 1) Alfredo Jaar
participando de sua instalação que teve inspiração
na obra do dramaturgo Samuel Beckett, com o título
I Can’t Go On, I’ll Go On” (Eu não posso continuar,
eu vou continuar), apresentada em 2019 no
Festival de Arte de Edimburgo; 2) imagem da 
instalação
“Estudios sobre la felicidad 1974-1981”, apresentada
em 2024 no Museo Nacional de Belas Artes, no Chile,
reunindo fotografias do jovem Alfredo Jaar, que tinha
17 anos em 1973, na época em que o golpe de estado
do general Pinochet destruiu o Chile; 3) 
a instalação
“Um milhão de passaportes alemães”, criada em 1995
e reeditada em 2023 para apresentação em Munique,
Alemanha; 4) fotografia de "The end of the world",
intalação apresentada em Berlim, Alemanha,
no primeiro semestre de 2025; 
e 5) as palavras
extraídas da obra do filósofo Antonio Gramsci
e apresentadas por Alfredo Jaar
na instalação em Roma, em 2018.


No final da página, “Um logotipo para a América”,
instalação com telas e painéis de lâmpadas apresentada
na Times Square, em Nova York, depois de ter sido
selecionada pelo Fundo de Arte Pública da Cidade
de Nova York. A instalação foi criada em 1987
e reeditada em 2014 e no começo de 2025



















“Quando consegui escapar daquele cenário de horror, em 1982, e quando a ditadura no Chile chegou ao fim, em 1990, nem mesmo em meus sonhos mais loucos e mais terríveis eu esperava ver o mundo enfrentando o que está enfrentando agora”, ele reconhece. “Temos as mudanças climáticas no mundo todo e assistimos o fascismo crescer em todos os lugares, na metade da Europa, nos Estados Unidos, nos países da América Latina. Isso é um pesadelo que devemos combater. Não podemos jamais ficar indiferentes ao fascismo e às ideias que pregam o ódio, o preconceito, a violência e a destruição”.



Desafios para a civilização



Em entrevista a Ellen Corry, da revista “Musée”, Alfredo Jaar defende que uma das principais missões da arte é levar o espectador a abandonar um olhar neutro e qualquer indiferença. Para argumentar, ele cita o pensador marxista italiano Antonio Gramsci, para quem viver significa tomar partido. “Se deixarmos de ser parasitas e nos tornarmos participantes ativos, o mundo será um lugar melhor. Temos que nos recuperar da falta de humanidade que a sociedade contemporânea está passando; é intolerável e inaceitável”, aponta. “Sou apenas um arquiteto que faz arte, mas sei que a grande arte tem esta característica de representar um grito desesperado para que todos nós nos tornemos humanos novamente.”







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Sobre sua conquista do Prix Pictet, Alfredo Jaar faz questão de colocar em primeiro plano que a política precisa ser o norte para toda e qualquer experiência com a arte. Ele cita como exemplo seu trabalho com “The End”, a série de fotos que registra o que provavelmente será o fim do Grande Lago Salgado (Great Salt Lake) de Utah, explicando que sua intenção, antes de tudo, foi alertar que a questão ecológica é sempre uma questão política. Na sua avaliação, a destruição e a perda do lago se tornou uma tragédia de magnitude incalculável, uma tragédia ambiental, econômica e humanitária, e um sinal de acontecimentos também assustadores que estão por vir no futuro próximo, afetando toda a experiência humana no planeta Terra.

“O fim do Grande Lago de Utah é mais um sinal inequívoco do fracasso da civilização”, ele alerta, em entrevista ao The Guardian, enquanto reconhece que, nas últimas décadas, desde o século passado, o fracasso junto com a incapacidade de mudar tem sido uma constante para a civilização contemporânea. “Reconheço que sou um idealista e um utópico, um passageiro das utopias. Quero mudar o mundo, mas tenho fracassado o tempo todo porque ainda não consegui mudá-lo. Eu não consegui mudar nem a realidade mais próxima ao meu redor, mas ainda tenho esperança de que todos nós, juntos, talvez possamos conseguir”, completa. Para Alfredo Jaar, artista visual e ativista que vem se consagrando como um dos mais premiados de nossa época, a esperança é a última que morre.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Imagens do fim dos tempos. In: Blog Semióticas, 6 de outubro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/10/imagens-do-fim-dos-tempos.html (acesso em .../.../…).










Para uma visita ao site do  Prix Pictet,  clique aqui. 


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Para comprar o catálogo Alfredo Jaar: 
Hasselblad Award, clique aqui. 




















23 de agosto de 2025

Bienal das imagens de guerra

 




As guerras não machucam ninguém além das pessoas que morrem. 

–– Salvador Dalí em depoimento a Alain Bosquet em 1969.  

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Sobre nosso olhar diante das guerras e das imagens de guerra, nosso silêncio, nossa indiferença ou nosso protesto, Susan Sontag disse quase tudo em “Diante da dor dos outros”, ensaio comovente, de fôlego e de impacto, publicado em 2003 – último livro que ela publicou, menos de um ano antes de sua morte aos 71, em 2004. Retorno ao ensaio de Sontag sobre as imagens da dor e da guerra reproduzidas diariamente por todas as mídias porque recebi, por e-mail, o belo programa da Bienal Internacional de Arte de Pontevedra, que está de volta 15 anos depois de sua última edição na província de Galiza, na Espanha, com o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás”.

A programação é extensa e tenta abraçar os caminhos da arte contemporânea nos suportes tradicionais e formatos multimídia, presenciais e on-line. O tema da bienal tem sua inevitável inspiração no ativismo antiguerra de Susan Sontag – em sua opção por uma arte que fosse abertamente comprometida com uma real intervenção diante das guerras e da violência do presente. Pelo que se anuncia, é a temática da guerra que conduz a curadoria, com imagens de confrontos armados e massacres ganhando destaque na condição de obra de arte, incluindo retrospectivas históricas e experiências inéditas e imprevisíveis da arte viva contemporânea, como as instalações de Zehra Dogän, artista e jornalista curda nascida na Turquia, que lançam o visitante em barricadas e simulações de confrontos diante de tanques e tropas invasoras.









                   



Bienal das imagens de guerra: no alto e acima,

Etelastik”, instalação multimídia de Zehra Dogän

que lança o visitante no confronto diante dos tanques.

Também acima, os curadores da Bienal de Pontevedra

na cerimônia de abertura da edição 2025 do evento.


Abaixo, "Resiliência", escultura da artista do

Paquistão, 
Wardha Shabbir, com um imenso coração

de onde brotam folhas e flores, tudo revestido por resina

com tonalidade vermelho sangue. Também abaixo,

fotografia de cena de 
“Fora de Si”, performance de

dança e artes cênicas de Nuria Sotelo e Luz Arcas;

e “Labola”espetáculo de O Ribot, premiado em 2021

com o Leão de Ouro na Bienal de
Dança de Veneza.


Todas as imagens
reproduzidas abaixo fazem

parte do catálogo on-line da Bienal de Pontevedra,

exceto quando indicado nas respectivas legendas






                        
 






O imprevisível presencial


Entre as diversas instalações com suportes audiovisuais e multimídia, o imprevisível também é marcante nas obras de Rosalind Nashashibi, artista da diáspora Palestina, que resgata cenas da Faixa de Gaza que desapareceram com o massacre genocida praticado pelas forças invasoras e terroristas de Israel contra tudo e contra todos: crianças que brincam, pessoas e cavalos que se banham nas águas do mar, jardins e bosques de oliveiras que o bombardeio incessante das tropas israelenses transformam em ruínas e corpos destroçados. São imagens que gritam, em sua aparente simplicidade e sua beleza tão vulnerável. Visitantes também têm a experiência presencial de olhar as fotografias que o lendário Robert Capa registrou na Guerra Civil – e por coincidência algumas das ampliações estão em exposição em locais realmente próximos de onde foram fotografadas pelo mais célebre dos fotógrafos de guerras e por outros fotojornalistas que fizeram história.

Sobre todas as obras e artistas da bienal está indicado um consenso inequívoco sobre o genocídio praticado por Israel contra o povo palestino, talvez por isso o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás” faz referência, com propriedade, ao paradoxo de uma emblemática citação do alemão Theodor Adorno, que sempre retorna quando o debate aborda a guerra em interface com arte e literatura. Adorno defendeu, em 1949, um pressuposto radical ao argumentar que “escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro” – no ensaio “Crítica da Cultura e Sociedade” (publicado no Brasil em 2002 no livro “Indústria cultural e sociedade”, pela editora Paz e Terra).

A afirmação, que provocou e ainda provoca polêmicas, retornaria em outros textos em que o filósofo contextualiza sua máxima com a advertência de que ele não pretendia que se deixasse de escrever poesia, mas sim alertar que a arte e a literatura, após o Holocausto, não poderiam mais ser ingênuas ou indiferentes à barbárie ocorrida, sendo necessário que tanto a arte como a literatura refletissem sobre a catástrofe. A ironia do destino é que agora, décadas depois do Holocausto e da máxima de Adorno, são os judeus no comando do Estado de Israel que usam do imenso poderio militar para cometer diariamente o horror dos massacres e do genocídio contra milhares de palestinos, um povo que não tem exércitos.



          


Bienal das imagens de guerra: acima,
um selo postal da Alemanha em homenagem
ao centenário de Theodor Adorno, onde se lê
o rascunho com a célebre e melancólica citação:
“escrever um poema depois de Auschwitz
é um ato bárbaro”
.

Abaixo, extratos de Gaza Elétrica, fotografias
e instalação multimídia de Rosalind Nashashib
que mostram cenas do território de Gaza, belas e
vulneráveis,
registradas em 2014 e 2015, antes da
completa destruição e do massacre nos últimos anos
praticado pelos ataques e bombardeios de Israel
















História de transformações


A Bienal de Pontevedra tem uma história de transformações. No início, desde sua criação em 1969, foi uma exposição competitiva destinada essencialmente à promoção de artistas locais, como se pode ler na retrospectiva do site oficial (veja o link no final desta página). A partir de 1974, a bienal ganhou abertura para artistas internacionais e, em 1982, abandonou o seu caráter competitivo. Por questões internas de gestão e dificuldades financeiras, o evento foi interrompido em 2010, retornando agora com a força inquestionável que a extensa programação vem demonstrar. Sob a curadoria de Antón Castro, historiador da arte e professor da Universidade de Vigo, com a curadoria adjunta de Agar Ledo e Iñaki Martínez Antelo, a bienal abriu formalmente no final de junho e se estenderá até 30 de setembro, ocupando diversos espaços da Galiza, com algumas exposições e instalações seguindo depois para outros espaços da Espanha e outros países da Europa.

Na apresentação da bienal, os curadores ressaltam que as duas guerras mundiais, em sua época, não foram temas marcantes das artes tradicionais da pintura e da escultura, mesmo tendo influenciado radicalmente os movimentos de vanguarda e os rumos da Arte Moderna. As experiências de representar a morte e a violência provocadas pelas máquinas de guerra tiveram mais força na fotografia e no cinema, aparecendo implícitas, ou quase não ditas, de forma metafórica ou alegórica, na literatura e nas formas da arte em geral. Houve, contudo, uma forte alteração de perspectiva, porque a guerra não mais aparecia de forma gloriosa e heroica, como tinha sido representada por muitos artistas nos séculos anteriores.








Bienal das imagens de guerra: arquivo
histórico de registros da Guerra Civil Espanhola,
a partir d
o alto, uma tropa da resistência em
Cerro Muriano, uma vila da Andaluzia, Espanha,
em 5 de setembro de 1936, em fotografia de
Robert Capa. Acima, um morto é transportado
na frente da resistência em Segóvia, em
fotografia de junho de 1937 de
Gerda Taro.

Abaixo, os soldados em uma pausa para uma
fotografia na rua, em Granada, 1937, uma cena
fotografada por 
Martín Santos Yubero;
o fotojornalista uruguaio Pau Lluis Torrents,
com a câmera apoiada nos joelhos, conversa com
militantes da resistência na frente de Aragão, em
agosto de 1937, em fotografia de
Agostí Centelles;
um grupo de republicanos de esquerda assassinados
pelos
nacionalistas conservadores, liderados pelo
general Francisco Franco,
em Carabanchel Bajo (Madri),
em fotografia de dezembro de 1936 de Erich Andres;

e as covas vazias, à espera dos mortos, no cemitério
de Huesca, na província de Aragão, em fotografia
de abril de 1938 de
Albert-Louis Deschamps

















Os desastres da guerra


Uma importante exceção na representação da guerra surge de forma marcante na obra de Pablo Picasso – em 1937 ele pintou “Guernica”, sob o impacto de um dos massacres na Guerra Civil Espanhola, que foi a completa destruição da cidade de Guernica por bombardeios dos nazistas da Alemanha, a pedido de Francisco Franco, na época general e ditador da Espanha. A obra monumental de Picasso, que  tornou-se uma referência como o manifesto de maior impacto contra a violência do século 20, foi pintada sobre uma tela de 8 metros de cumprimento por 3,5 metros de largura, mostrando a dor e o horror de figuras mutiladas que representam milhares de mortos na cidade destruída.

Contudo, “Guernica” não foi cedida à Bienal de Pontevedra. Celebrada, logo após a Segunda Guerra, como símbolo do antimilitarismo e da luta contra o fascismo, por decisão do próprio Picasso ela passou a ser mantida sob custódia do MoMa, Museu de Arte Moderna de Nova York, até que as liberdades democráticas fossem restauradas na Espanha. Em 1981, ela foi finalmente transferida de Nova York para Madri, onde permanece no Museu Rainha Sofia. Na bienal, a obra somente está presente na forma de homenagem, com uma recriação feita por uma artista do México, Fritzia Irizar, que produziu uma réplica da pintura original, feita em escala 1:1, sobre a qual foi apresentada uma performance de arte viva.

Na abertura da bienal, Fritzia Irizar disparou em direção à réplica de "Guernica" milhares de recortes com retratos das vítimas de massacres recentes em cidades da Palestina, da Síria, da Ucrânia, e os retratos terminaram afixados à tela que havia sido recoberta com cola de secagem rápida, gerando um efeito que oscila entre o festivo e o trágico. A homenagem a "Guernica" destaca a urgência para não esquecermos as lições do passado, provocando reflexões tanto sobre o sofrimento e o desespero de populações inteiras como sobre a banalização cotidiana da violência na cultura contemporânea. Em meio aos debates recentes que "Guernica" gerou na bienal e na imprensa internacional, o Museu Reina Sofia começou uma campanha para transformar a obra em um símbolo contra o genocídio e a limpeza étnica que os judeus de Israel estão fazendo impunemente em Gaza. Para além das exposições e instalações nos espaços da Bienal de Pontevedra, "Guernica" confirma que a arte se mantém como força de resistência aos massacres e à violência das guerras.

Outra exceção importante na representação dos cenários e das consequências da guerra, mas no século 19, vem de outro artista espanhol, Francisco de Goya, cujas obras estão presentes na bienal. Entre 1810 e 1815, Goya criou “Los Desastres de la Guerra”, série de 82 desenhos e gravuras que são referenciais pelo que retratam brutalmente tanto em evidências realistas como em metáforas sobre a violência das guerras, tendo como tema e cenário a resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão. A série de Goya, não por acaso, fornece argumentos para Susan Sontag em “Diante da dor dos outros” e surge como um fio condutor dos múltiplos recortes que guiaram a curadoria da bienal na seleção dos 60 artistas e das 400 obras em exposição.





















                     



Bienal das imagens de guerra: no alto, "Guernica",
a obra monumental de Pablo Picasso, fotografada
por 
Francisco Seco em 2017 no Museu Rainha Sofia,
em Madri; e 
a recriação da obra pela artista do México,
Fritzia Irizar, na tela inteira e no detalhe, com as
fotografias recortadas e afixadas de milhares de
vítimas de massacres contemporâneos. Acima,
uma das gravuras originais da série
Os desastres da guerra, do mestre espanhol
Francisco de Goya (1746-1828).


Abaixo, “Naves Espaciais” (Astronauta), pintura
em técnica mista de 2024 de artista da Rússia,
Taisia Korotkova, peça da série Reconstrução;
uma imagem da série de projeções em técnica
mista "Ecologia invisível", do artista indígena
brasileiro Denilson Baniwa, uma alegoria sobre
o equilíbrio natural que tem sido violado pela
guerra cotidiana de humanos contra animais e
plantas; e “Medo”, instalação multimídia criada
a partir de uma histórias em quadrinhos de 1948,
obra do artista espanhol Antoni Muntadas
que denuncia a normalização das guerras
na imprensa e na cultura popular.

No final da página, "Casa" e "Tanque russo",
intervenções em slides de “ativismo poético”
do artista de Cuba, Dagoberto Rodriguez, um
dos fundadores de Los Carpinteros, coletivo de
artistas cubanos que usa humor e ironia para
abordar questões políticas sobre as guerras,
as migrações humanas e as mudanças climáticas












É quase inevitável associar os cenários violentos da série de Goya ao olhar de fotógrafos presentes na bienal com registros de guerras desde o começo do século 20, seja na Segunda República, na Primeira Guerra Mundial, na Guerra Civil ou na Ditadura Franquista, na Segunda Guerra ou nos conflitos intermináveis da segunda metade do século 20 até o presente em diversas nacionalidades. Há alguns nomes célebres, especialmente na cobertura dos combates durante a Guerra Civil na Espanha, na década de 1930, com destaque para o húngaro Endre Ernő Friedmann (1913-1954), que se tornou figura lendária sob o pseudônimo de Robert Capa; os alemães Erich Andres (1905-1992), Walter Reuter (1906-2005) e Gerda Taro (1910-1937); a húngara Kati Horna (1912-2000); o uruguaio Pau Lluis Torrents (1891-1966); os espanhóis Martín Santos Yubero (1903-1994) e Agustí Centelles (1909-1985); o francês Albert-Louis Deschamps (1889-1972) e o polonês Emil Vedin (1912-2001), entre outros que viveram situações extremas atuando no fotojornalismo de guerra ou que morreram enquanto registravam imagens nos campos de batalha.

Há também os fotógrafos presentes nos cenários contemporâneos de guerras ocasionais ou permanentes que atravessam o Leste Europeu, os países da África, o Oriente Médio, a Ásia ou as Américas, neste nosso tempo presente em que os espectadores estão diante da dor dos outros observando-a como um espetáculo, muitas vezes em tempo real e simultâneo, acompanhando o horror pela TV ou pelas redes sociais nas telas do computador ou em celulares – com massacres de populações inteiras, incluindo muitas crianças, em atrocidades que dispensam mediação de jornalistas ou historiadores e acontecem ao vivo, diante dos olhos de milhões de espectadores. Seja por meio de fotografias, do cinema documental, dos fragmentos de transmissões on-line, seja em instalações presenciais, em pinturas, em ilustrações, em esculturas, em performances ou em técnicas mistas e imprevisíveis, as imagens de guerra reunidas pela Bienal de Pontevedra são amostras de registros incômodos e extremamente atuais da arte produzida em situações extremas – cada trabalho e todos, em conjunto, soando como alertas inquietantes e brutais.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bienal das imagens de guerra. In: Blog Semióticas, 23 de agosto de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/08/bienal-das-imagens-de-guerra.html (acesso em .../.../…).



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