Mostrando postagens com marcador escultura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador escultura. Mostrar todas as postagens

29 de abril de 2023

Fractais de Marianne Peretti

    





 

A geometria fractal não é apenas mais um capítulo

da matemática e sim uma habilidade da percepção que ajuda

o homem comum a ver o mundo de maneira diferente.

–– Benoît Mandelbrot (1924-2010).   


Única mulher na equipe de trabalho de Oscar Niemeyer para a construção de Brasília, Marianne Peretti morreu aos 94 anos, no dia 25 de abril, deixando um acervo grandioso de uma forma de arte pouco cultivada no Brasil: os vitrais. As obras mais importantes do vitral no patrimônio histórico e artístico brasileiro foram criadas por Marianne Peretti, com destaque para os conjuntos de vitrais do Plano Piloto da Capital Federal, nos prédios da Catedral de Brasília, da Câmara dos Deputados, do Panteão da Pátria, do Superior Tribunal de Justiça, do Palácio do Jaburu e do Memorial JK, entre outros, incluindo obras em capitais de outros estados do Brasil e no exterior.

Marianne Peretti também se dedicou à criação de centenas de murais e esculturas, instalados no Brasil e em outros países, principalmente em cidades da França e da Itália. Filha da modelo fotográfica francesa Antoinette Louise Clotilde Ruffier e do historiador pernambucano João de Medeiros Peretti, Marie Anne Antoinette Hélène Peretti nasceu em Paris, onde teve sua formação técnica e acadêmica em artes plásticas. Veio de mudança definitiva para o Brasil em 1953, depois de seu casamento com Henry Albert Gilbert, um cidadão inglês que trabalhava em São Paulo e que conheceu em uma das várias viagens de navio que fazia, nas idas e vindas entre o Brasil e a França, para visitar a família.

 

 

             















      
    




Fractais de Marianne Peretti: no alto da página,
a Catedral de Brasília, com a estrutura dos vitrais da
artista Marianne Peretti, considerada por pesquisadores
internacionais uma obra-prima do vitral no século 20.
Também acima, o interior da Catedral de Brasília;
duas fotografias da artista, planejando os vitrais no
interior da catedral e em fotografia de 1965, na época
em que participou da Bienal de São Paulo; e em
uma visita à catedral no ano de 2015.

Abaixo, Marianne Peretti na última visita que fez a
Brasília, em dezembro de 2021, fotografada diante de
sua obra "O lago dos peixes", no Museu do Senado,
um painel em vidro criado e instalado em 1978








Um ano antes da mudança para o Brasil, a artista fez sua primeira exposição individual, apresentada na Galerie Mirador da Place Vendôme, em Paris, em 1952, e contando na abertura com a presença ilustre de um de seus admiradores, Salvador Dalí. Em seus depoimentos para o estudo biográfico “A ousadia da invenção” (Edições SESC e Editora B52, de 2015), o primeiro livro dedicado à artista, organizado por Tactiana Braga e Laurindo Pontes, que catalogou cerca de 600 trabalhos de sua autoria, Marianne Peretti reconhece e destaca a importância da longa parceria com Oscar Niemeyer, que deu origem a mais de 20 trabalhos em Brasília, todos integrados de forma harmoniosa aos projetos arquitetônicos na estética e na funcionalidade.



Harmonia e funcionalidade



A arte de Marianne Peretti também trouxe uma contribuição conceitual para o cânone da arquitetura: com a concepção inovadora de seus vitrais, a força criativa da artista confronta os preceitos da arquitetura modernista que zelam pela autonomia estética dos meios construtivos. Segundo tais preceitos, a integração de esculturas, pinturas, murais e vitrais com a estrutura concreta das obras arquitetônicas nunca alcança resultados convincentes. Porém, a arte de Marianne Peretti comprova, na prática, que matérias-primas inovadoras, aliadas à criatividade nas formas e cores, podem conviver em harmonia e até mesmo ampliar a funcionalidade na engenharia e na arquitetura dos projetos.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista
com Salvador Dalí, em 1952, na abertura de sua
primeira exposição individual em Paris. Abaixo,
os rascunhos dos vitrais da Catedral de Brasilia,
em tamanho natural, no piso do ginásio Nilson Nelson,
em Brasília, e o painel "Alumbramento", formado
por mais de 200 peças de vidro, instalado
no Salão Branco do Congresso Nacional












Formada a partir de uma variedade de materiais que inclui, além do vidro e da fibra de vidro, resinas, tinturas, bronze e outros metais, a arte do vitral de Marianne Peretti retoma a tradição que teve início a partir do ano 1000, em culturas orientais, e que floresceu como elemento do estilo gótico na ornamentação de igrejas e catedrais da Europa durante a Idade Média. Na forma tradicional cultivada pelos europeus, os vitrais coloridos e seus efeitos refletidos pela luz do sol quase sempre retratam personagens e cenas religiosas do cristianismo. Nas obras criadas por Marianne Peretti, as cenas religiosas cedem lugar a formas abstratas e geométricas que inovam e rompem com os paradigmas medievais do vitral.



Ousadia da invenção



As inovações apresentadas na arte do vitral de Marianne Peretti, como destaca Véronique David, em depoimento para o livro “A ousadia da invenção”, estão presentes na forma e no conteúdo, bem como na relação que se estabelece com a luz. Véronique David, do Centro André Chastel – Sorbonne/INHA, defende que o trabalho da artista na Catedral de Brasília representa uma obra-prima mundial do vitral do século 20. Conforme seu argumento, na maioria dos vitrais na tradição da Europa a relação com a luz se dá como se houvesse uma “parede transparente” que pode reluzir e iluminar um ambiente escuro, enquanto nos vitrais criados por Marianne Peretti as formas translúcidas e as sobreposições de vidro permitem que a obra reflita e se prolongue no espaço, com os reflexos da iluminação sendo projetados nos vãos e superfícies, como se a obra não acabasse nos limites da moldura que está delineada pelos arcos e ângulos do metal e do concreto.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista
fotografada em 2014 por Breno Laprovitera. Abaixo,
"Pasiphae", painel em cristal e vidro artesanal,
instalado no Salão Nobre do Congresso Nacional;
e o vitral instalado na Capela do Jaburu, em Brasília,
com iluminação natural em horas diferentes do dia

















São exatamente os vitrais mais conhecidos de Marianne Peretti, instalados na Catedral de Brasília, que exemplificam à perfeição suas inovações em relação à tradição do vitral gótico medieval, de inspiração restrita às cenas de passagens bíblicas. Na Catedral de Brasília, os vitrais coloridos da artista, recobertos com camadas de fibra de vidro, rodeiam a construção em 360 graus, cobrindo todos os intervalos das 16 colunas curvas, simetricamente opostas, que formam diâmetros de 70 metros com altura de 40 metros e ampliam as vibrações acústicas, o que dispensa microfones para a celebração das missas. As bases muito afinadas das colunas, intercaladas pelo posicionamento dos vitrais e pelos reflexos do espelho d'água ao redor da catedral, provocam no observador uma certa sinestesia e a impressão de que as estruturas de concreto, de metal e de vidro mal tocam o piso.



Gêneros e suportes variados



Além de sua maestria na construção e na instalação dos vitrais, Marianne Peretti tem uma trajetória de premiações com artes plásticas em gêneros e suportes tão variados como os murais, as esculturas, trabalhos em design e em arquitetura, além do desenho puro em técnicas mistas, incluindo ilustrações sobre encomenda para livros e outras publicações. Entre as premiações no Brasil, a primeira ocorreu em 1965, na Bienal de São Paulo, com o prêmio pela capa do livro “As Palavras”, de Jean-Paul Sartre.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista em seu
ateliê em Olinda, Pernambuco, em fotografia de
Breno Laprovitera
. Abaixo, dois vitrais da artista:
"Araguaia", instalado em 1977 no Salão Verde
do Congresso Nacional, em Brasília; e o mural
no Memorial Teotônio Vilela, em Alagoas








As obras concebidas para Brasília foram "pensadas" no Rio de Janeiro, onde Marianne morava. Ela viajava para a nova capital a cada 15 dias, para desenvolver e acompanhar os trabalhos, mas quando pisou pela primeira vez em Brasília, a capital já havia sido inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek e, no entanto, continuava em construção. Em abril de 2016, a artista foi homenageada com a maior retrospectiva já feita sobre suas obras, no Museu da República, em Brasília, com a reunião de peças originais de escultura, objetos funcionais como mesas e cadeiras, ilustrações, maquetes e projetos em tamanho natural, com projeções multimídia reproduzindo o efeito de grandiosidade de seus painéis, murais e vitrais.







Fractais de Marianne Peretti: acima, um anjo no vitral
da artista instalado na câmara mortuária do ex-presidente
Juscelino Kubitschek no Memorial JK, em Brasília.

Abaixo, a artista em fotografia de 1970 e fac-símiles
de duas cartas manuscritas por dois parceiros
de anos de trabalho com Marianne Peretti:
Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Também abaixo,
o documentário "Uma mulher e uma cidade",
realizado em 2018 em homenagem à artista. 

No final da página, os vitrais da artista instalados
no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília;
a escultura em bronze "O Pássaro" e "Uma Cadeira",
objeto funcional com design de Marianne Peretti























Arte monumental


A exposição “A arte monumental de Marianne Peretti”, realizada no Museu da República, teve como complemento seminários com pesquisadores, técnicos e especialistas. Elogios e o completo reconhecimento da importância do trabalho da artista também vieram de Niemeyer e de Lúcio Costa, autores do Plano Piloto de Brasília. Niemeyer declarou em uma carta manuscrita: “Me emocionava vê-la durante meses debruçada a desenhar os vitrais. Eram centenas de folhas de papel vegetal que coladas representavam um gomo da catedral. Marianne Peretti é uma artista de excepcional talento. Os vitrais maravilhosos que criou para a Catedral de Brasília são comparáveis, pelo seu valor e esforço físico, às monumentais obras da Renascença. Sua preocupação invariável é inventar coisas novas, influir com seu trabalho no campo das artes plásticas.”

Lúcio Costa, parceiro de Niemeyer, também registrou em uma carta manuscrita, datada de 6 de agosto de 1993, sua homenagem à obra e à maestria de Marianne Peretti, a artista dos vitrais: “Tive afinal o prazer, depois de tanto tempo, de conhecer pessoalmente a artista que soube tão bem ‘dar à luz’ o interior da Catedral de Brasília, problema difícil que somente uma alma como a sua e um saber como o seu seriam capazes de resolver. Em nome da cidade, o inventor dela agradece a você.” Os elogios de Niemeyer e de Lúcio Costa, e também de todos os que passam pela experiência de estar dentro da Catedral de Brasília ou diante da variedade dos painéis transparentes de Marianne Peretti, têm total merecimento.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fractais de Marianne Peretti. In: Blog Semióticas, 29 de abril de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/04/fractais-de-marianne-peretti.html  (acessado em .../.../…).



Para comprar o livro "Marianne Peretti, A ousadia da invenção",  clique aqui.














8 de abril de 2017

Arte segundo Duchamp





A arte é a única forma de atividade por
meio da qual o homem se manifesta como
verdadeiro indivíduo. Mas pode alguém
fazer obras que não sejam de arte?

–– Marcel Duchamp  



Há exatamente 100 anos, o sempre surpreendente Marcel Duchamp (1887-1968) apresentava, em um salão anual de artistas independentes de Nova York, uma peça que foi recusada pelos membros do júri, mas que a partir daquela data conquistaria um lugar invejável como uma das mais desconcertantes e mais marcantes de todos os tempos, símbolo do poder questionador da Grande Arte e referência pioneira do que ficaria conhecido desde aquela época como “ready-made”, “arte conceitual” e “instalação”. No começo, a peça de Duchamp tinha contornos de um caso apenas divertido, contado entre amigos, como se fosse uma anedota, mas foi ganhando peso e uma importância singular na História da Arte.

Nascido na França e radicado nos Estados Unidos, Duchamp foi um exímio pintor, escultor, fotógrafo, cineasta, poeta, mestre do jogo de xadrez e ator performático, especialmente quando surgia travestido com a identidade secreta em seu alter-ego Rrose Sélavy, que alcançou o status de celebridade na cena artística de Nova York e chegou a assinar a autoria de vários “ready-made” – numa época em que a palavra “performance” sequer era usada no sentido teatral e espetacular do termo. Duchamp ficaria consagrado como um dos artistas mais influentes do século 20, mas é importante lembrar que o acontecimento de 1917 não foi um caso isolado em sua trajetória. 

Duchamp vinha de experiências anteriores que investiam no limite das fronteiras da arte – entre elas sua célebre pintura de 1912 “Le nu descendant l'escalier n° 2” (Nu descendo escadas número 2), que sugere abstrações sobre uma figura humana em movimentos de linha descendente da esquerda para a direita; e a escultura “La jeune mariée mise à nue par ses célibataires, même” (A noiva despida por seus celibatários, mesmo), uma sobreposição de objetos, cabides e tecidos aparentemente aleatórios, de formas geométricas, iniciada em 1915 e concluída somente em 1923. Muitas outras de suas experiências radicais de criação e ruptura vieram antes e viriam depois, nos anos e décadas seguintes, mas o que se passou em 1917 foi, por certo, um divisor de águas para o próprio Duchamp e para a História da Arte.











Arte segundo Duchamp: no alto, Marcel Duchamp
fotografado por Man Ray em casa, em Paris, em
fevereiro de 1968. Acima, Duchamp em cena com
o célebre experimentalismo de Five-Way Portrait,
atribuído por ele como Self-portrait, criação do ano
de 1917; e Duchamp vestido a caráter como
seu alter-ego mais famoso, Rrose Sélavy, em 1921,
fotografado por Man Ray. Abaixo, uma das réplicas
de Fountain no acervo do MoMA de Nova York







Sobre aquela manhã, no mês de abril de 1917, contam os biógrafos, e ele próprio confirmou em depoimentos e em diversas entrevistas tempos depois: Duchamp leu uma nota publicada no jornal sobre a seleção organizada pela Society of Independent Artists e teve imediatamente a inspiração mirabolante – a concretização de uma ideia que ele vinha ruminando por dias e dias depois de algumas conversas com dois amigos, Walter Arensberg e Joseph Stella, artistas e colecionadores de arte.


Inspiração performática




Segundo relata o próprio Duchamp, naquela manhã ele foi à loja JL Mott Iron Works, que comercializava louças sanitárias e artigos para encanadores, na 118 Fifth Avenue, em Nova York, e comprou um mictório da marca Bedforshire, modelo padrão masculino, de porcelana cor branca. Chegando em sua oficina, ele decidiu escrever na lateral da peça, usando um pincel e tinta preta, “R. Mutt 1917”, que seriam seu pseudônimo e a data da criação da obra. Depois fez um embrulho com papel e corda e despachou, sob o título “Fountain” (Fonte), para o endereço indicado pelo salão.









Arte segundo Duchamp
: o artista surpreendente
em dois momentos –– em 1917, fotografado
em Nova York por Edward Steichen, e em
1967, no MoMA, ao lado de uma réplica de
sua lendária criação. Abaixo, uma relíquia do
álbum de família: os irmãos Marcel Duchamp
Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon
em fotografia de 1913. Assim como Marcel,
seus irmãos também tiveram destaque como
artistas: Jacques na pintura e na gravura, 
Raymond no desenho e na escultura






.




O júri, do qual Duchamp e Arensberg também faziam parte (uma vez que eram do grupo de fundadores e membros do Conselho de Administração da Sociedade), recebeu a peça e, depois do espanto inicial e de muito confabular, decidiu rejeitar a obra, sob o argumento da dúvida: não conseguiram chegar a um acordo para definir se era ou não uma obra de arte. Vencidos em sua argumentação a favor da aceitação da obra, Duchamp e Arensberg decidiram renunciar de imediato à presença no júri e ao Conselho de Administração, para surpresa dos demais integrantes, que na época não sabiam que o próprio Duchamp era o artista que assinava por pseudônimo.

Presente naquela sessão do júri e nos dias seguintes, no período de montagem da exposição, que seria aberta ao público no dia 10 de abril de 1917, o fotógrafo Alfred Stieglitz, a pedido de Duchamp, que era seu amigo, tentou e conseguiu fazer um registro da peça recusada. A fotografia de Stieglitz acabou sendo fundamental quando, semanas depois, Marcel Duchamp decidiu retomar a história inaugural de sua obra performática. A retomada aconteceu em grande estilo e ganhou repercussão ainda maior que o primeiro gesto iconoclasta que culminou na recusa da peça pelo júri.

Ao conseguir a fotografia de Stieglitz, o próprio Duchamp partiu para a mistificação: publicou a foto e um artigo anônimo, escrito por ele, com retórica entusiasmada, em defesa da obra ousada e verdadeiramente moderna do senhor Richard Mutt, no segundo número de “The Blind Man” (O homem cego), jornal produzido por Duchamp e seus amigos do círculo Dadaísta de Nova York, entre eles Henri-Pierre Roche, Beatrice Wood, Francis Picabia e Mina Loy. O artigo anônimo de Duchamp, metamorfoseado em ardoroso defensor do trabalho inovador de Richard Mutt, imortalizou a “Fonte” e conseguiu sacudir os alicerces da criação artística com um questionamento: o valor de uma obra estava realmente na criação original ou estava no contexto em que aquela determinada obra fosse inserida? Em outras palavras: Duchamp instituiu que, rigorosamente, tudo pode vir a ser arte.







Arte segundo Duchamp: a fotografia de
Alfred Stieglitz, única imagem conhecida
da obra original de Duchamp de 1917, em
fac-símile do artigo “anônimo” publicado
por Duchamp na revista The Blind Man















Iconoclastia inaugural



Hoje, um século depois, a iconoclastia inaugural de Marcel Duchamp ainda rende inúmeras controvérsias e polêmicas que vão de algumas dúvidas sobre a real paternidade da ideia original da “Fonte”, que teria sido apropriada por ele de outras iniciativas menos célebres de seus contemporâneos, às discussões historiográficas sobre a origem daquele objeto, que era raro na época e que, desde então, adquiriu uma aura mítica e mística. Há, inclusive, argumentações de pesquisadores que negam a veracidade da informação de que aquela peça industrial era comercializada em Nova York pela citada loja da 118 Fifth Avenue em 1917.

As polêmicas, variadas, vêm, enfim, perpetuar o esforço de mistificação para o qual o próprio Duchamp investiu, com apoio e cumplicidade de seu círculo de amigos na época e nas décadas seguintes, nos movimentos de vanguarda que estavam por vir. Por ironia do destino, com o passar do tempo a obra mais radical e mais provocativa de Duchamp seria totalmente e definitivamente assimilada como totem sagrado dos mais disputados pelos grandes museus. Entre outras informações intrigantes que ainda permanecem pairando sobre a obra iconoclasta de Duchamp, há também um mistério insolúvel: o destino que teve a peça original –– que nunca mais foi localizada depois da recusa pelo júri do salão de 1917 da Sociedade de Artistas Independentes de Nova York.













No ano de 1964, depois de recusar muitas propostas, Duchamp concordou em assinar uma autorização para que o historiador de arte Arturo Schwarz produzisse, com uma equipe de designers de Milão, algumas réplicas para serem apresentadas em Nova York quando houvesse a efeméride dos 50 anos do caso “Fountain”. As réplicas trouxeram à tona novamente a polêmica e, passada a efeméride, foram adquiridas por valores milionários, mantidos em sigilo, por grandes museus –– o MoMA de San Francisco, o Tate Modern de Londres e o Centro Pompidou de Paris. Uma das obras mais iconoclastas da história da arte, acusada durante anos de ter insultado instituições da arte, foi absolvida e absorvida com suas réplicas pelo sistema e com o consentimento do próprio Duchamp. 


Castelo da Pureza



Nas entrevistas que concedeu mais tarde, Duchamp apresentou suas versões para as estratégias de 1917 e sobre outras experiências de antes e depois da “Fonte”, sobre as relações com a família, com os amigos e com os parceiros de criação, sobre os casamentos e os casos de amor que teve – um deles, talvez o mais intenso, mais controverso e duradouro, com a brasileira Maria Martins, uma personalidade à frente de seu tempo, com talentos diversos bem ao estilo múltiplo e radical de Duchamp, com quem colaborou em diversas ocasiões e dividiu a autoria de trabalhos importantes que em sua época provocaram escândalo. Ainda hoje pouco conhecida no Brasil, Maria Martins desenvolveu grande parte de sua carreira no exterior, acompanhando o marido (o embaixador Carlos Martins) e angariando prestígio entre artistas, críticos e pesquisadores da história da arte como escultora, gravurista, pintora, desenhista, escritora, musicista e única mulher presente e atuante no círculo fechado dos Dadaístas e dos Surrealistas na França e nos Estados Unidos.

A aproximação intelectual e as relações amorosas entre os dois é tema do livro “Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos”, de Raul Antelo, publicado pela Editora UFMG. O autor parte da permanência de Duchamp em Buenos Aires, entre 1918 e 1919, para traçar o percurso da aproximação de Maria com Marcel naquele ano e nos anos e décadas seguintes, além de questionar a presença e a importância dos avatares latino-americanos na trajetória de Duchamp e em suas aproximações, oposições e diferenças com as noções de arte e política em relação a seus contemporâneos surrealistas André Breton e Georges Bataille. Algumas das célebres entrevistas com Duchamp são dados preciosos na argumentação de Raul Antelo, da mesma forma que elas também deram origem a outros livros que se tornaram obras de referência, como no caso das entrevistas que concedeu em 1955 para o diretor do Guggenhein Museum de Nova York, James Johnson Sweeney, publicadas em 1958 no emblemático livro “Wisdom: Conversation with the elder wise men of our day” (W.W. Norton Editors), organizado por James Nelson.









Arte segundo Duchamp: o artista fotografado
na intimidade e entre amigos – no alto, com
Francis Picabia e Béatrice Wood , seus
parceiros em Nova York, em 1917. Acima,
com Lydie Sarazin-Levassor, com quem
Duchamp se casou em 1927.

Abaixo, em raras imagens com a
brasileira Maria Martins, sua musa, caso
amoroso e parceira em diversos trabalhos,
em 1947 (a partir da esquerda, Yves Tanguy,
Kay Sage, Duchamp, Maria Martins, Frederick
Kiesler, Enrico Donati) e em 1948 (a partir da
esquerda, Kay Sage, Duchamp, Maria Martins,
Arshile Gorky, Frederick Kiesler). Também
abaixo, Maria Martins em 1941, com uma de
suas esculturas, fotografada por Herbert Gehr,
e Maria em 1944, homenageada em
fotografia e intervenção com
sobreposições de John Rawlings


    


 










Outra série memorável de entrevistas de Duchamp foi concedida para Richard Hamilton, a convite da BBC de Londres, em 1961, somente publicadas em livro em 2009, com o título “Le Grand Dechiffreur: Richard Hamilton on Marcel Duchamp” (editora JRP Ringier). Hamilton, também artista plástico, autor da célebre colagem de 1956 “Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?” (O que é mesmo que faz as casas de hoje em dia serem tão diferentes, tão atraentes?), que rendeu a ele o codinome “pai da Pop Art”, também reconstruiu em parceria com Duchamp, nos anos 1960, obras-primas como “La Boîte verte” (de 1934) e “La jeune mariée...”, que estavam com paradeiro desconhecido, depois de décadas, assim como a “Fonte”, e apenas permaneciam registradas em fotografias.

Entre outros capítulos fundamentais para a compreensão da obra e do pensamento de Duchamp também estão a primeira publicação em livro de seus textos teóricos, “Marchand du Sel: Écrits de Marcel Duchamp”, em edição organizada em 1959 por Michel Snouillet; e “Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza”, livro de 1968 de Octavio Paz, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva. Poeta, ensaísta, tradutor e diplomata do México, Prêmio Nobel de 1990, Octavio Paz conviveu nos anos 1940 em Paris com os principais artistas e mentores dos movimentos de vanguarda, como o surrealista André Breton, além de Pablo Picasso e do próprio Duchamp.










Arte segundo Duchamp: a escultura/instalação
Étant Donnés (Sendo dada), de 1946, que teve
Maria Martins como modelo, atualmente no acervo
do Philadelphia Museum of Art. Abaixo, performance
entre amigos: a partir da esquerda, uma manequim,
André Breton, Marcel Duchamp, Max Ernst e
Leonora Carrington com "Nude at the window",
pintura de 1941 de Morris Hirshfield, fotografados
em 1942 em Nova York por Hermann Landshoff.
Também abaixo, a obra criada entre 1915-1923,
La jeune mariée mise à nue par ses
célibataires, même, reconstruída por Duchamp
em parceria com Richard Hamilton em 1965











Na década de 1960, Octavio Paz retomou os contatos e a amizade com Duchamp, realizando uma série de entrevistas que se tornariam antológicas e que, depois de transformadas em belos ensaios sobre forma e linguagem, deram origem ao livro de 1968. Identificando a cronologia e o contexto da sucessão de rupturas que Duchamp provocou desde o começo do século 20, Paz apresenta nos ensaios índices para comparações entre as criações de Duchamp e obras de Picasso e outros mestres da Arte Moderna. 

Segundo a análise comparativa de Paz, os quadros de Picasso são imagens, enquanto os de Duchamp são uma reflexão sobre a imagem. A intenção de Duchamp, na interpretação conceitual e poética de Paz, procura substituir a pintura-pintura pela pintura-ideia, por isso aplica “elementos estranhos” em suas obras. Duchamp, em cada peça, alerta Paz, pretende construir tão somente auto-questionamentos. “Na arte o único valor que conta é a forma. Ou mais exatamente: as formas são as emissoras de significados. A forma projeta sentido, é um aparelho de significar”, completa. Diante da constatação sobre a supremacia da forma, Duchamp assume, desde a primeira década do século 20, o papel de pioneiro que vem instalar o “ready-made”, a neutralidade, a significação que surge exatamente da não-significação.









Arte segundo Duchamp: no alto, outra peça
de escândalo com a reprodução adulterada
de 1919 da Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci,
com detalhes masculinos e o título L.H.O.O.Q.
que é um trocadilho infame para a expressão
“Elle a chaud au cul” (Ela tem fogo no rabo).
Acima, Nu descendant un escalier n° 2,
pintura em óleo sobre tela d1912.

Abaixo, o estudo fotográfico de 1887 de
Eadweard Muybridge, Woman walking
downstairscitado como inspiração
por Duchamp, e também Duchamp
descendant un escalierfotografia de
1952 de Eliot Elisofon com efeitos de
sobreposição realizada em homenagem
à célebre pintura de Duchamp de 1912.
Também abaixo, na sequência,
Marcel Duchamp e Man Ray
na disputa em uma partida de Xadrez,
em cena de Entre’Acte, filme de 1924
de René Claire Duchamp fotografado
para a capa do livro Marchand du Sel:
Ecrits de Marcel Duchamp (Mercador
de sal: escritos de Marcel Duchamp),
publicado pela primeira vez em 1959


















Engenheiro do Tempo Perdido


Outras entrevistas célebres de Marcel Duchamp, concedidas a Pierre Cabanne, foram publicadas na imprensa e em revistas acadêmicas da França e de outros países, na década de 1960, e depois editadas em livro, também lançado no Brasil pela Editora Perspectiva com o título “Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido”. Décadas depois do acontecimento que foi a “Fonte”, Duchamp revela alguns motivos que o levaram às criações de vanguarda e a manter em segredo, por muitos anos, sua autoria sobre a obra surpreendente e polêmica de 1917.

Assinando seu trabalho radical com o anonimato do pseudônimo “R. Mutt”, explicou Duchamp, ele poderia testar a abertura dos seus pares da Sociedade dos Artistas Independentes de Nova York, poderia confirmar ou não o senso de liberdade e de modernidade que os orientava e poderia observar a recepção a uma obra realmente inovadora, porque não se ajustava a padrões estéticos e morais convencionados na época. Para não comprometer o resultado, por conta de suas relações pessoais com os membros do conselho, precisava omitir que era um trabalho de sua autoria. E por qual motivo escolheu assinar como “R. Mutt”? Foi um trocadilho sobre a palavra alemã “armut”, que tem o significado irônico de “pobreza”, conforme foi cogitado por alguns historiadores e críticos de arte?

Não, não foi intencional esse trocadilho, segundo Duchamp. “Mutt” vem de Mott Works, marca registrada daquela loja de um grande fabricante de equipamentos sanitários no começo do século 20. Para não ficar muito evidente a relação com o nome da loja, Duchamp alterou a grafia de Mott para Mutt, também porque lembrou, naquela manhã de abril de 1917, dos personagens da história em quadrinhos de humor que fazia sucesso na época, nos jornais e revistas, “Mutt and Jeff”, criação de Bud Fisher, acrescentando o prenome “Richard”, que soava como uma gíria francesa para quem tinha o hábito de guardar “sacos de dinheiro”. E assim surgiu o estranho e lendário caso da arte de “R. Mutt”.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte segundo Duchamp. In: Blog Semióticas, 8 de abril de 2017. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2017/04/arte-segundo-ducamp.html (acessado em .../.../...). 



Alguns livros sobre Marcel Duchamp:


Para comprar Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido,  clique aqui.


Para comprar Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza,  clique aqui.


Para comprar Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos,  clique aqui.


Para comprar Duchamp: Uma biografia,  clique aqui.


Para acessar a entrevista de Duchamp publicada no livro Wisdom: Conversation with the elder wise men of our day, clique aqui. 


Para acessar o catálogo da exposição da National Gallery sobre as parcerias entre Duchamp e Richard Hamilton, clique aqui.








Arte segundo Duchampacima, o artista
em 1967 fotografado por Richard Hamilton.
Abaixo, Duchamp e Man Ray em 1968,
no apartamento de Duchamp, em Paris,
em fotografia de Henri Cartier-Bresson








Outras páginas de Semióticas