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4 de julho de 2012

Alice volta ao futuro






Preciso dizer que, quando acordei hoje de 
manhã, eu sabia quem eu era, mas acho 
que já mudei muitas vezes desde então. 

(Alice no País das Maravilhas)   



Os inúmeros trocadilhos e enigmas de matemática, de lógica, de gramática e de ocultismo cifrados nas viagens de “Alice no País das Maravilhas” (1865) e “Alice Através do Espelho” (1872) encantaram a pequena Alice Pleasance Liddell (1852–1934) desde que ela ouviu pela primeira vez os relatos da imaginação de seu professor, o matemático, poeta e pioneiro da fotografia Charles Lutwidge Dodgson (1832–1898). As aventuras da garotinha que cai no buraco do coelho e descobre um estranho mundo de simetrias e disparates também passaram a encantar uma legião infinita de leitores quando foram publicadas por Dodgson sob o pseudônimo “Lewis Carroll” – na verdade, um anagrama em analogia para “Alice Liddell”.

O pseudônimo adotado pelo professor Dodgson ganhou lugar cativo entre os grandes mestres da literatura universal e as aventuras cifradas de Alice, que causaram espanto e admiração entre seus conterrâneos e contemporâneos, resistem incólumes. Transformada em clássico dos clássicos da fantasia e das heterotopias, “Alice” atravessou as décadas e os séculos ganhando novas edições e incontáveis versões, incluindo variações e paródias em livros, histórias em quadrinhos, peças de teatro, músicas, balés, filmes, séries de TV e até videogames (como "Alice: Madness Returns", game criado para várias plataformas pelo designer American James McGee, que transformou a história em uma saga de horror). As aventuras de Alice, seja no original de Lewis Carroll ou em suas variantes em outros formatos e mídias, há tempos vêm influenciando e seduzindo listas intermináveis de artistas, entre eles nomes díspares e mestres consagrados como Walt Disney (1901–1966) e Salvador Dalí (1904–1989).









Alice Pleasance Liddell fotografada
por Lewis Carroll aos 8 anos de idade e aos
18. No alto, Alice fotografada aos 20 anos,
em 1872, por Julia Margaret Cameron.

Abaixo, as irmãs Edith, Lorina e Alice
fotografadas em 1860 por Lewis Carroll;
Também abaixo, Alice, Dodgson e uma
das ilustrações criadas por John Tenniell
para a primeira edição de
Alice no País das Maravilhas






.


O mestre dos desenhos animados, que sempre reconheceu a literatura de Lewis Carroll como influência marcante, elegeu “Alice” para seu primeiro projeto de longa-metragem nos cinemas desde que foi para Hollywood, em 1923, mas sua produção seria atropelada diversas vezes por lançamentos dos concorrentes. “Alice”, na versão dos Estúdios Disney, só seria concluído em 1951, contando com a luxuosa supervisão de Salvador Dalí. O lançamento do filme, contudo, seria precedido por desentendimentos que interromperam a promissora parceria entre o mestre dos desenhos animados e o mestre surrealista.

Disney e Dalí romperam relações antes de “Alice” chegar aos cinemas: o nome de Dalí seria eliminado dos créditos e um outro projeto ambicioso da parceria, batizado de “Destino”, que começou a ser produzido em 1945 e que tentaria recriar a obra original do professor Dodgson, ficaria inacabado. Na autobiografia “Diário de um Gênio” (Tusquets Editores), Dalí lamenta o rompimento e afirma que sua parceria com Disney poderia ter dado origem a um filme diferente de tudo o que tinha sido visto no cinema. Anos depois, no final da década de 1950, Dalí e Disney voltaram a se entender e conviveram como amigos, mas os antigos projetos não foram retomados.












Dodgson, Disney, Dalí: D'Alice



A ideia de Dalí, a princípio endossada por Disney, era apresentar sequências que lembrariam sonhos, desenvolvendo uma técnica de projeção em que a imagem seria reconhecida como algo familiar e, lentamente, forçaria a visualização de formas cada vez mais estranhas, que poderiam revelar algo novo. O projeto foi conduzido por Dalí e por John Hench, veterano roteirista e artista de confiança de Disney para a criação em storyboard, durante meses, de 1945 até o final de 1946, mas dificuldades financeiras interromperam definitivamente a produção. Depois da morte de Disney e de Dalí, o projeto “Destino” foi retomado para fazer parte de “Fantasia 2000”, mas as controvérsias não demoraram a surgir.

Quando as equipes começaram, depois de meio século, a trabalhar nos arquivos e storyboards de “Destino”, descobriram que Disney planejava com o filme retomar a literatura de Lewis Carroll com uma Alice levada à vida adulta e envolvida em sonhos sobre as emoções do primeiro amor – enquanto Dalí tinha em mente um argumento em que o deus Chronos, personificação do tempo na mitologia grega, se apaixonava radicalmente por uma mortal.



 



A parceria interrompida de dois artistas geniais:
Salvador Dalí e Walt Disney fotografados na
Espanha, na década de 1950, e trabalhando
na criação e na montagem de protótipos nos
Estúdios Disneyem Hollywood, 1948 (abaixo)








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Ou seja: eram dois filmes diferentes. Um, descrito por Dalí como "a exibição mágica do problema da vida no labirinto do tempo"; outro, descrito por Disney como "a história simples sobre uma jovem em busca do verdadeiro amor". “Destino” seria finalmente simplificado e concluído em 2003 por Baker Bloodworth e por Roy Edward Disney, sobrinho de Walt Disney, mobilizando uma grande equipe, com o francês Dominique Monféry assinando a direção e tendo na trilha sonora a composições do mexicano Armando Dominguez criadas sob encomenda para o projeto original, em performance da cantora Dora Luz. John Hech, já aposentado e com mais de 90 anos, foi convidado a acompanhar a produção e é creditado como co-autor do roteiro, junto com Dalí e com o editor e animador Donald W. Ernst. 

A versão final de "Destino", entretanto, dividiu opiniões. Para alguns, trata-se de uma preciosidade que deixa transparecer nuances adultos presentes tanto em “Alice” quantos nas obras-primas atribuídas a Salvador Dalí e a Walt Disney; para outros, uma versão convencional e melancólica sobre um projeto que poderia ter atingido outras dimensões. Na forma de uma animação de seis minutos e apresentando apenas 18 segundos do projeto original (a sequência das tartarugas), o enredo onírico apresenta a protagonista entre imagens abstratas e estranhas figuras suspensas pelo ar. “Destino” foi exibido em festivais e chegou a ser indicado ao Oscar de Melhor Curta de Animação em 2003, mas não foi lançado nos cinemas nem em DVD.



      




Dois gênios: acima, "Five O'Clock Shadows in
Disney-Dalí Land" (Sombras de cinco horas da
tarde na terra de Disney e Dalí
), pintura em óleo
sobre tela de 1996 de Todd Schorr, um retrato
irônico sobre os desentendimentos durante
a polêmica parceria entre Disney e Dalí.

Abaixo, uma imagem 
em que o encontro de
Disney e Dalí, metamorfoseados 
em tartarugas,
forma ao centro uma figura feminina, n
a
sequência final de Destino
Também abaixo,
a íntegra do filme que foi 
concluído e
lançado em DVD em 2003




      






Apaixonados pela literatura de Lewis Carroll desde a infância, Disney e Dalí se aproximaram depois de um jantar em 1945 na casa de Jack Warner, o todo-poderoso chefão da Warner Brothers. Dalí, que naquela época estava contratado para criar a sequência do pesadelo do personagem de Gregory Peck em “Spellbound” (1945), de Alfred Hitchcock, chegou a Hollywood precedido pelo sucesso como artista plástico e como criador de duas obras-primas do cinema e do Surrealismo: “Um Cão Andaluz” (1928) e “A Idade do Ouro” (1930), realizados em parceria com Luis Buñuel.



Política da Boa Vizinhança



A parceria com Salvador Dalí aconteceu em um período especialmente difícil para Walt Disney. O projeto de “Fantasia” (1940), que consumiu anos de produção e teve altos custos, não alcançou sucesso comercial. A situação piorou mais ainda com a drástica redução do mercado de exibição na Europa, em decorrência da Segunda Guerra. Disney perdeu as linhas de crédito do Bank of America e, para não perder os estúdios, passou a fazer todo tipo de concessão comercial e a colaborar com o FBI e as forças armadas.

É nesta época – no intervalo entre as produções de “Bambi” (1942) e “Cinderela” (1950), considerado o período mais fraco de sua trajetória na arte da animação – que Disney é forçado por seus credores a se envolver com a produção de filmes para treinamento militar e propaganda, incluindo “Alô, Amigos” (“Saludos Amigos, 1943) e “Você Já Foi à Bahia?” (“The Three Caballeros”, 1945), projetos sob encomenda para a “política da boa vizinhança” do governo dos EUA com o objetivo de aproximação com o Brasil e demais países da América Latina.







Terminada a Segunda Guerra, Disney participa da Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Estadunidenses, com a meta de combater o comunismo no meio artístico, e presta voluntariamente diversos depoimentos na Comissão de Atividades Antiamericanas, um "comitê de caça aos comunistas" comandado pelo senador republicano Joseph McCarthy. Do primeiro encontro, em 1945, até o rompimento da parceria, em 1950, Disney e Dalí mantiveram sigilo sobre os projetos de “Alice” e “Destino”, que envolveram um grande número de contratados nas equipes técnicas, substituídas continuamente.

Para ensinar a Dalí as técnicas de animação do estúdio foi convocado John Hench, artista que tinha trabalhado com Disney em “Fantasia” (1940), “Dumbo” (1941) e “Bambi” (1942). Para protagonista de “Alice”, Disney queria Ginger Rogers, estrela dos musicais, contracenando com os desenhos animados, que por sua vez seriam baseados nas ilustrações de John Tenniel publicadas na primeira edição do livro de Lewis Carroll. A meta de Disney era aprimorar com “Alice” a tecnologia inaugurada por seus estúdios em “Você Já Foi à Bahia”, que trouxe Aurora Miranda, irmã de Carmen Miranda, cantando e dançando em cena com os desenhos do Pato Donald e do Zé Carioca.








   



Como não conseguiu contratar Ginger Rogers, que estava envolvida em outros projetos simultâneos, Disney passou dois anos fazendo testes e audições com mais de 200 atrizes. Por fim, escolheu Kathryn Beaumont como modelo de referência para o trabalho das equipes de desenhistas e dos técnicos de animação. Kathryn estava com 10 anos na época dos testes de seleção, no final de 1948. Ela havia participado de filmes da série “Lassie” e teve pequenos papeis em musicais. Após atuar na produção de “Alice”, também participou como modelo e dubladora de Wendy Darling, a garotinha de Peter Pan, filme de 1953 dos estúdios de Walt Disney.



Alice em heliogravura



Acontece que mesmo depois de todo o investimento, Disney não ficou satisfeito com as sequências misturando atores aos cenários em desenho animado para “Alice” e alterou os rumos do projeto, retornando ao roteiro com 100% de desenhos em animação. Quando o filme chegou aos cinemas, não foi um fracasso, mas também não alcançou o sucesso de público e crítica que era esperado. Entretanto, mesmo não estando entre seus maiores sucessos comerciais, a versão de “Alice” por Disney marcou o imaginário coletivo com qualidades que sobreviveram ao tempo e continua encantando crianças e adultos. Tal e qual o estranho livro escrito com exatas 36 mil palavras pelo professor Charles Lutwidge Dodgson.













Salvador Dalí com Alfred Hitchcock
em Hollywood, em 1944, na época em
que a parceria com Dalí rendeu ao Mestre
do Suspense ideias e sequências muito
especiais, entre elas as belas cenas do
pesadelo surrealista no filme de 1945
"Spellbound" (Quando Fala o Coração).
 
Abaixo, um flagrante de Dalí brincando com
crianças em 1952, em Paris, em foto de
Francesc Català-Roca; e no célebre estudo
"Dalí Atômico", que foi arquitetado e
produzido por Dalí em parceria com
Philippe Halsman em 1948













Depois da experiência interrompida com Disney, Dalí retornaria ao universo de “Alice” em vários outros projetos, incluindo o documentário “Impressões de Alta Mongólia” (1975), no qual apresenta a história sobre uma expedição em busca de cogumelos alucinógenos gigantes. Alusões a “Alice” também surgem em produções do mestre surrealista para estilistas de moda como Elsa Schiaparelli e Christian Dior, além de seus trabalhos em parceria com os fotógrafos Man Ray, Brassaï, Beaton e Philippe Halsman. Mas a tradução mais completa de Dalí para a obra de Lewis Carroll só seria conhecida em 2009, uma década após a morte do mestre surrealista.

Trata-se de uma série de ilustrações que Dalí produziu em policromia no processo conhecido como heliogravura, em que a impressão das imagens é feita através de placas gravadas em baixo-relevo. Identificada com a data de 1969, a série, que teria sido idealizada para uma edição especial de “Alice no País das Maravilhas”, foi descoberta nos arquivos que Dalí deixou na Catalunha, Espanha, e apresenta 13 ilustrações: uma capa e uma imagem para cada um dos capítulos do livro de Lewis Carroll.













"Alice" na versão de Dalí: acima,
imagem da capa e ilustrações
dos capítulos "Para baixo na toca
do coelho" e "A lagoa de lágrimas"




A série de ilustrações sobre “Alice” e outros trabalhos de Dalí, depois de uma negociação com os herdeiros, foram liberados para uma exposição permanente instalada na William Bennett Gallery, em Manhattan, Nova York, intitulada “O Universo Surreal de Salvador Dalí”. Os títulos de cada capítulo e as ilustrações do mestre surrealista resumem o itinerário da viagem de Alice:

"Para baixo na toca do coelho", "A lagoa de lágrimas", "Uma corrida de comitê e uma longa história", "O coelho manda Bill O Lagarto", "Conselho de uma lagarta", "Porco e pimenta", "Um chá maluco", "O jogo de críquete no campo da rainha", "A história da falsa tartaruga", "A dança da lagosta", "Quem roubou as tortas?" e "O depoimento de Alice", por certo, continuarão sua viagem rumo ao futuro, como tem sido nos últimos 150 anos da história – conforme previsto naquelas situações enigmáticas e nos diálogos fantásticos imaginados por um certo Lewis Carroll:

Alice: Quanto tempo dura o eterno?
Coelho: Às vezes apenas um segundo...



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Alice volta ao futuro. In: Blog Semióticas, 14 de julho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/07/alice-volta-ao-futuro.html (acessado em .../.../...).


 





















"Alice no País das Maravilhas" na versão
de Salvador Dalí: a partir do alto, ilustrações
para os capítulos "Uma corrida de comitê e uma
longa história", "O coelho manda Bill O Lagarto",
"Conselho de uma lagarta", "Porco e pimenta",
"Um chá maluco". Abaixo, "O jogo de críquete
no campo da rainha", "A história da falsa
tartaruga", "A dança da lagosta", "Quem roubou
as tortas?" e "O depoimento de Alice"















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