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25 de junho de 2024

Arte do cartaz em 1900

 



Belas artes são aquelas em que a mão,

a cabeça e o coração andam juntos.

–– John Ruskin, 1870. 
  


Uma revolução das técnicas de composição e de impressão gráfica aconteceu no final do século 19, dando origem a uma nova forma de arte que ficaria conhecida como arte do pôster ou do cartaz. Mais de 130 anos depois, um acervo original com cerca de 500 peças raríssimas e preservadas na íntegra, que fazem parte da Coleção Leonard A. Lauder, foi reunido pelo Metropolitan Museum de Nova York para a exposição “The Art of Literary Poster” (A arte do pôster literário). O acervo permanecia inédito desde o começo do século 20 e agora, com a exposição, também está publicado em um catálogo de capa dura, com 248 páginas e todas as imagens com reprodução colorida em alta definição. No recorte temático estão cartazes em litografia e outras técnicas de gravura, impressos em policromia, no suporte papel, produzidos na última década do século 19 e nos primeiros anos do século 20, para anunciar lançamentos e novas edições de revistas, jornais, folhetins e livros. Em muitos deles, as figuras mostram pessoas lendo.

Impresso para ter vida efêmera, colado em paredes e muros dos centros urbanos, o cartaz vem de uma longa história em vários países. Uma abordagem teórica e historiográfica sobre a trajetória do cartaz no final do século 19 foi apresentada por Marcus Verhagen, historiador e professor da Universidade da Califórnia, no ensaio “Aquela arte volúvel e degenerada” (publicado no livro “O cinema e a invenção da vida moderna”, pela Cosac & Naify, em 2001). Inicialmente o cartaz era considerado apenas um recorte de papel impresso sem valor agregado, produzido às pressas sem maiores preocupações estéticas – “uma ferramenta comercial tosca, um anúncio em preto-e-branco com uma imagem altamente esquemática ou sem nenhuma imagem”, como ressalta Verhagen. A partir das últimas décadas do Oitocentos, no entanto, com a incorporação da impressão em cores e de novas técnicas, os cartazes criados para anúncios publicitários tiveram um salto de qualidade, conquistando o interesse de colecionadores e, muitas vezes, o entusiasmo dos críticos de arte.

 


 




Arte do cartaz em 1900: no alto da página, um detalhe

do cartaz promocional para divulgar o lançamento
da revista The Quartier Latin em 1898-1899,
em criação de Louis John Rhead. Acima, capa

  do catálogo da exposição no Metropolitan Museum

e a íntegra do cartaz de The Quartier Latin.

Abaixo, cartaz de lançamento de Three Gringos

in Central America and Venezuela, livro de contos

de Richard Harding Davis, com ilustração de

Edward Penfield inspirada nas pinturas de

Paul Gauguin sobre o Haiti. Também abaixo,

cartaz de Penfield anunciando uma reportagem

sobre a guerra entre Estados Unidos e Espanha,
destaque em fevereiro de 1899 na Harper’s






A moda em Art Nouveau


Esta nova era transformou o cartaz publicitário em uma nova mídia em ascensão que ganhava destaque nas ruas. O cartaz também passava a ser identificado como um dos elementos principais de um novo estilo que ficaria conhecido pelo nome em francês Art Nouveau – o estilo da arte decorativa que teve seu centro irradiador em Paris, no fim do século 19. Rapidamente, o potencial de consumo que surgia com a nova moda espalhou-se por cidades da Europa e de outros continentes. Em Londres, o novo estilo tem seu equivalente com o movimento Arts and Crafts Exhibition Society, que teve o pintor e ilustrador de livros Walter Crane como primeiro líder e presidente.

A Arts and Crafts Exhibition Society montou a sua primeira exposição anual em 1888, mostrando exemplos de trabalhos que ajudassem a elevar o estatuto social e intelectual do artesanato, incluindo cerâmica, têxteis, metalurgia e mobiliário. Muitos dos artistas e artesãos que se envolveram com o movimento não só em Londres, mas também em Birmingham, Manchester, Edimburgo, Glasgow e outras grandes cidades do Reino Unido, foram influenciados pelo trabalho de um designer de sucesso na época, William Morris. Destacado também como ativista social e escritor, o próprio Morris reconhecia sua inspiração nas ideias do principal crítico de arte da Era Vitoriana, John Ruskin, elaborando novos padrões técnicos de artes gráficas e, assim como acontecia na França e outros países, novos modelos muito populares na arquitetura e como estilo intermediário entre a indústria e a arte, adotados na produção de máquinas, móveis, roupas, objetos funcionais e tudo o mais que o termo “design” passou a englobar e traduzir, provocando transformações radicais ou substituindo, gradativamente, as tradicionais oficinas de artes e ofícios.

Naquela época, o estilo Art Nouveau e a arte do cartaz se multiplicavam com velocidade, junto com o surgimento da eletricidade nos centros urbanos e a chegada dos automóveis que substituíam as antigas carroças, carruagens e bondes puxados a cavalo. O novo estilo era celebrado como a última moda, passando a contar com novos adeptos e novos consumidores. Evoluindo junto com as linhas de produção em massa da indústria mercantil e com a indústria do entretenimento, os cartazes se multiplicavam anunciando os espetáculos de ópera, de teatro, de vaudeville, os shows musicais em casas noturnas e a novidade do cinema. O projeto em comum aos artistas que adotavam o novo estilo combinava a tradição das belas artes com o artesanato em marchetaria e a produção de mercadorias utilitárias para consumo doméstico, alcançando também o mundo das artes, a pintura, a escultura e todas as técnicas de desenho e gravura.

 


 




Arte do cartaz em 1900: no alto, litografia de

Jules Chéret, o “inventor da arte do cartaz”,

anunciando, em 1889, a inauguração do

Moulin Rouge, casa de espetáculos que

marcou época em Paris. Acima, cartaz ousado

de 1896 de Henri de Toulouse-Lautrec,

com inspiração nos cartazes de Chéret,

criado para Troupe de Mlle. Églantine,

espetáculo musical parisiense que estreava

temporada em Londres, no Palace Theatre

of Vaeties, com a estrela Jane Avril,

uma das musas de Lautrec.


Abaixo, cartaz anunciando um ponto de vendas

da Bearings Magazine, voltada para ciclistas e

apreciadores de bicicletas, criado em 1896

por Charles Arthur Cox. Também abaixo, o marco

inaugural do estilo Art Nouveau no Brasil, na capa

da Revue du Brésil, criada em novembro de 1896

por Eliseu Visconti durante sua temporada

de estudos em Paris








Pioneiros do estilo


Art Nouveau também passou a ser o estilo adotado por nomes célebres da história da arte, cada um interpretando à sua maneira as novas técnicas decorativas, tais como o austríaco Gustav Klimt, o checo Alfons Mucha ou o espanhol Antoni Gaudí, entre outros. Verhagen destaca que, nas artes gráficas, o salto de qualidade na produção do cartaz teve um pioneiro que influenciou todos os outros e todo o estilo – o francês Jules Chéret, nomeado em 1890 pelo escritor Edmond de Goncourt como “o inventor da arte do cartaz”. Uma celebridade em sua época, Chéret passou a exercer forte influência sobre artistas como Toulouse-Lautrec e outros nomes do primeiro time das vanguardas europeias. Segundo Verhagen, o nome Chéret, na Paris de fim de século, passou a ser sinônimo para o cartaz mais elaborado, e a popularidade também alcançou a “chérette”, a dançarina estilizada com ares de ninfa sempre presente em seus desenhos e cartazes. Em um dos mais conhecidos, criado em 1889, a “chérette” em trajes e poses provocantes anunciava a inauguração do Moulin Rouge, a casa de espetáculos licensiosa que marcou época em Paris.

O pioneiro do estilo Art Nouveau no Brasil, Eliseu Visconti, também reconheceu a influência de Chéret durante sua temporada de estudos em Paris, entre 1894 e 1897. Historiadores como Frederico Morais (em “Aspectos da Arte Brasileira”, editado em 1980 pela Funarte) apontam a importância de Visconti não só como pintor e desenhista, mas também como pioneiro do design industrial e da arte do cartaz. Um dos trabalhos de importância histórica de Visconti, a capa do primeiro número da “Revue du Brésil”, editada em Paris em novembro de 1896, é considerado um marco que introduz o estilo Art Nouveau no Brasil. Em “Biblioteca Nacional – A história de uma coleção” (Editora Salamandra, 1996), Paulo Herkenhoff também destaca Visconti como precursor da arte modernista e como pai do desenho industrial brasileiro – com seus padrões para papéis de parede e objetos utilitários, além da criação de capas e ilustrações de livros e revistas, de selos, da decoração do Teatro Municipal de Rio de Janeiro e da Biblioteca Nacional, e de seus cartazes, os primeiros a terem valor artístico reconhecido no Brasil.









Arte do cartaz em 1900: no alto, cartaz criado por

Louis John Rhead em 1894 para anunciar a edição

de Natal da Century Magazine. Acima, o beijo estilizado

da figura andrógina no encontro com o pavão, emoldurados

por ícones de iluminuras de antigos manuscritos, no cartaz

criado pelo artista e ilustrador William Henry Bradley

para o lançamento de His Book, revista literária de

Nova York que teve apenas seis números entre 1896 e 1897.


Abaixo, dois cartazes criados por mulheres: o primeiro,

de Florence Lundbourg para o lançamento da revista

The Lark, edição de fevereiro de 1897; o segundo,

criação de Ethel Reed em 1895 para o lançamento do

livro Folly or Saintiliness, do escritor José Echegaray,

Prêmio Nobel de Literatura em 1904








A novidade do cartaz literário


A exposição que resgata o “boom” do cartaz em Art Nouveau, apresentada no Metropolitan de Nova York, tem curadoria e apresentação a cargo de quatro especialistas, que também assinam a edição do catálogo e os ensaios teóricos e historiográficos: Alisson Rudnick, Shannon Vittoria e Rachel Mustalish, diretoras dos departamentos de Papeis, Desenhos e Gravuras do museu, e Jennifer Greenhil, professora de História da Arte na Universidade de Arkansas. Diante do acervo selecionado, o que mais ganha destaque para o olhar do observador do século 21 é certamente o contraste entre a sofisticação estética e a aparente simplicidade das figuras, além do apuro estético na integração de texto e imagens para a composição dos cartazes – cada um deles surgindo mais próximos de uma obra de arte do que de um anúncio publicitário.









Arte do cartaz em 1900: no alto, página standart

(o formato padrão da página de jornal impresso, com

cerca de 55 cm) criada por E. Pickert, simulando o efeito

de pastilhas de acrílico, para a edição de 6 de fevereiro de

1895 do jornal The New York Times. Acima, o cartaz de

Bertha Margaret Boyé vencedor do concurso do

Movimento Sufragista para uma campanha pela

legalização do voto feminino em 1911.


Abaixo, cartaz de Joseph J. Gould Jr. para o

lançamento da edição de julho de 1896 da

revista Lippincott’s; e a nudez no cartaz criado

por Maxfield Parrish para o lançamento da

edição de agosto de 1897 da revista The Century










Mesmo sendo, em sua época, peças apenas funcionais para divulgação e publicidade, cada um dos cartazes em estilo Art Nouveau pode ser considerado uma obra de valor específico, com detalhes que revelam tanto questões culturais do tempo em que foram produzidos, como avanços nas técnicas das artes gráficas ou da linguagem que representa e traduz informações cifradas sobre códigos de comportamento. O cartaz criado por Edward Penfield que anuncia a edição de fevereiro de 1897 da revista Harper's, escolhido para anúncio principal da exposição no Metropolitan e também reproduzido na capa do catálogo, representa um caso emblemático para o recorte do acervo.

No cartaz de Penfield, quatro figuras elegantes da burguesia,
três mulheres e um homem, todos eles com seus chapéus da moda, viajam de bonde e estão lendo a revista. Ao fundo, ao lado dos quatro personagens das elites, um representante da classe trabalhadora: o cobrador do bonde, que também está mergulhado na leitura. Penfield criou cartazes sempre instigantes para cada nova edição da Harper's durante mais de sete anos. Em outro anúncio, criado em 1996 por Joseph J. Gould Jr. para a edição de julho da revista Lippincott's, estão ousadias gráficas e de costumes: a jovem elegante, vestida a rigor, está em sua bicicleta e tem a revista nas mãos. Como inovação gráfica, o chapéu amarelo da jovem cobre algumas letras do nome da revista, mas sem impedir a leitura.









Arte do cartaz em 1900: no alto, cartaz anunciando

o lançamento da edição de março de 1895 de

The Boston Sunday Herald, dedicada à moda de

primavera, com sobreposições de vermelho e preto,

criação de William McGregor Paxton. Acima, cartaz

de
William Henry Bradley para o lançamento em 1894

do livro When hearts are trumps, de Tom Hall.


Abaixo, cartaz de George Reiter Brill para o

Philadelphia Sunday Press, edição de 3 de fevereiro

de 1896. Também abaixo, cartaz de Louis John Rhead

anunciando a edição
de Natal do The New York Herald,

em 1896, com o toque pioneiro de um

Papai Noel em vermelho.

No final da página, cartaz para o lançamento

da revista Self Culture de outubro de 1897, criação

de Joseph Christian Leyendecker; e um autorretrato

estilizado de Edward Penfield para a capa do

calendário de 1897 publicado pela

editora R.H. Russel & Son, de Nova York










Arte e documento histórico


Há uma grande diversidade de nomes identificados como criadores dos cartazes, no acervo reunido pelo museu, com destaque em número de obras para os norte-americanos Edward Penfield, Joseph Christian Leyendecker, Louis John Rhead e William Henry Bradley, além da surpreendente presença de mulheres no grupo de artistas, entre elas Florence Lundborg, Ethel Reed e Bertha Margaret Boyé, que era uma professora e militante política muito conhecida na época, e que venceu em 1911 o primeiro concurso de cartazes para o Movimento Sufragista de San Francisco, Califórnia, em defesa da legalização do direito do voto para mulheres. No cartaz, que faz parte do acervo, uma figura feminina com uma túnica amarela, lembrando o arquétipo de uma sacerdotisa, abre os braços para mostrar uma faixa onde se lê “Votes for Women” (Voto para mulheres). Atrás dela, o sol que está na linha do horizonte forma uma auréola sobre sua cabeça, como se indicasse simultaneamente um símbolo de beatitude e santidade e o alvorecer de novas oportunidades.

Mais de um século depois da criação da maioria das peças reunidas no acervo, ainda é possível identificar e reconhecer o impacto duradouro que os cartazes em estilo Art Nouveau continuam a exercer sobre as linguagens da ilustração, sobre o design gráfico e até sobre a forma e o conteúdo dos anúncios publicitários da atualidade. O acervo também confirma a importância do cartaz como documento histórico – um documento que registra e preserva informações preciosas, ocupando um lugar especial na interseção entre literatura, imprensa, design gráfico, sociologia, questões políticas, culturais e comportamentais da época em que foram produzidos. No ensaio que abre a apresentação das imagens do catálogo, a curadora Alisson Rudnick ressalta que, em cada um dos cartazes selecionados, está representado algo novo: são anúncios publicitários produzidos para terem duração efêmera, mas, estranhamente, mudaram de função com o passar do tempo e agora têm seu valor preservado e reconhecido como autênticas obras de arte.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 25 de junho de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/06/arte-do-cartaz-em-1900.html (acessado em .../.../…).



Para uma visita virtual à exposição do Metropolitan Museum, clique aqui.


Para comprar o catálogo The Art of Literary Poster,  clique aqui.







 

20 de abril de 2016

Fetiches à mostra









O que leva à substituição do objeto pelo fetiche é
uma conexão simbólica de pensamentos que, na
maioria das vezes, não é consciente para a pessoa.

–– Sigmund Freud, 1905.   



A história do erotismo talvez seja inseparável de um certo fetiche para despir até a intimidade do corpo nu. Com suas regras fluidas e cada vez mais instáveis com o passar do tempo, na intimidade ou em público, a história e o jogo social do erotismo em vestir e despir, a partir dos últimos três séculos, recebem agora uma retrospectiva provocante que transfere as “roupas de baixo” à categoria de obras de arte. Batizada de “Undressed: A Brief History of Underwear” (Desvestidos: uma breve história da roupa íntima), uma exposição em Londres, aberta no Victoria & Albert Museum, resgata as relações entre o corpo, a moda e a roupa íntima desde 1750 até a atualidade.

Trata-se de um acervo nunca antes reunido com mais de 250 objetos e imagens que são puro fetiche (veja o link para uma visita virtual à exposição no final deste artigo) – incluindo fotografias, cenas de filmes, pinturas e desenhos, embalagens e anúncios publicitários que fizeram História. Entre tantos apelos de sedução, o grande destaque são as peças originais de roupas íntimas de várias épocas, tanto femininas quanto masculinas, criadas para envolver órgãos genitais, seios, cinturas, coxas, pernas, nádegas – peças que somente há poucas décadas a publicidade passou a expor em público sem bloqueios de recatos e pudores.

Diante da variedade tão sugestiva da coleção de calcinhas, sutiãs, cuecas, calções, espartilhos, corseletes, anáguas, meias transparentes, cintas-liga, camisolas e pijamas apresentados na exposição, em marcações cronológicas por vezes surpreendentes, o observador pode ter o prazer de cruzar as fronteiras fluidas e instáveis do erotismo e da sexualidade que a arte e a literatura descobriram bem antes de 1750 – data inicial da trajetória que o recorte temático da mostra reconstitui. São estas fronteiras de regras fluidas e instáveis que tiveram nos escritos do século 19 do francês Charles Baudelaire sobre a Modernidade seu marco inaugural como questão fundamental da vida em sociedade.









Fetiches à mostra: no alto, espartilho
em seda e metal fabricado em 1890
e usado para reduzir a cintura, manter
o tronco ereto e conferir mais elegância
ao corpo – uma das raridades reunidas
na exposição do Victoria & Albert
Museum. Acima, dioramas de
1900 registram damas da
nobreza vestindo espartilhos
e armações para saias e
vestidos. Abaixo, desfile
da primeira coleção de lingerie
de luxo lançada em 1998, em
Paris, pela estilista australiana 
Collette Dinnigan; e vitrine da
Corsetiere, última loja especializada
em corsetes, corseletes, espartilhos e
roupas íntimas sob encomenda, no East
End de Londres, que fechou as portas em
maio de 1968, fotografada em 1961 por
John Claridge. Todas as imagens
reproduzidas nesta página estão no
catálogo da exposição Undressed










O jogo social do erotismo gira hoje em torno da seguinte questão: até onde pode ir uma mulher digna sem se perder?” – interrogava Walter Benjamin, na década de 1930, em uma das passagens de “Jogo e Prostituição”, um dos ensaios inspirados, instigantes, que o pensador alemão dedicou aos escritos de Baudelaire. É verdade que tanto Baudelaire quanto Benjamin tinham em mente as figuras femininas das ruas e salões do Oitocentos, cenários das transformações sociais que surgiram e se desenvolveram na Paris do Segundo Império, mas suas reflexões cabem, como uma luva, também para as mitologias de valor efêmero que a publicidade e a cultura pop disseminam em nosso tempo presente.



Contraponto histórico



A questão filosófica e sociológica, profundamente semiótica, que Walter Benjamin apresenta, espelhado em Charles Baudelaire, poderia constar em destaque, como epígrafe, na mostra do museu britânico, indicando um sem número de aspectos transdisciplinares que sobrepõem variáveis: das amarras da tradição aos hábitos de higiene, das normas da elegância aos impedimentos do poder econômico, dos hábitos cotidianos de consumo e comportamento condicionados em segmentos de classes sociais.









Fetiches à mostra: no alto, amostras
raras das roupas íntimas usadas pela
nobreza da Europa no século 18.
Acima, espartilhos com cordas
e metal usados no século 19.
Abaixo, corsete em seda
e algodão de 1890 com
detalhes bordados em ouro;
uma rara peça unissex: a cinta
usada por homens e mulheres
no Oitocentos para moldar a
cintura e reduzir a barriga; e uma
peça que fez história na década de
1990: o sutiã cônico em modelo corsete
criado por Jean-Paul Gaultier para a
turnê "Blonde Ambition"
de Madonna


 








.









"Dos mestres de ofício dos séculos 18 e 19 aos designers e estilistas mais famosos de nossa época, permanece o apelo das relações fascinantes entre a roupa interior e a roupa exterior, entre a roupa íntima e o corpo", destaca Edwina Ehrman, diretora do acervo de moda e materiais têxteis do Victoria & Albert Museum e curadora da mostra. No dossiê de imprensa sobre a exposição, a curadora também destaca uma série de contrapontos históricos que distinguem a trajetória das roupas íntimas feitas para mulheres e para homens.

Um destes contrapontos: as roupas íntimas femininas sempre tiveram como objetivo o apelo sexy, a sedução, que não raro traziam junto o desconforto e até mesmo a exigência de um certo grau de sacrifício. Por outro lado, a roupa íntima masculina tem por princípios, desde outras épocas, o conforto e a simplicidade, das antigas faixas de recortes de linho, que eram fáceis de lavar e serviam para proteger os genitais do contato com as armaduras de metal e com os ásperos tecidos dos uniformes militares, aos mais modernos modelos contemporâneos feitos de tecidos sintéticos ou de algodão com costuras invisíveis.











 










                                     




Fetiches à mostra – no alto, uma relíquia

original e valiosa: uma cueca de algodão

produzida na Inglaterra em 1890. Acima,

modelos anônimos fazem pose em 1915,

vestindo roupas íntimas longas, para um

catálogo de vendas das lojas Sears de Chicago;

a caixa de cuecas de papel descartáveis

lançada em Londres pela L.R. Industries

em 1970; um anúncio publicitário de calções

de banho de 1955 da grife Catalina, uma das

mais antigas fabricantes de roupas ainda

em atividade, criada em 1907 na Califórnia;

Sean Connery antes da fama, ao lado de

Chopper Hawlett, em um concurso de

fisioculturismo em 1953, usando um

ousado modelo de sunga de algodão.

Também acima, Clint Eastwood, outro

astro do cinema antes da fama,

posando de modelo fotográfico em 1955;

e o anúncio de lançamento de cuecas no

novo formato “sleep” que iria revolucionar o

mercado, aposentar o formato da tradicional

das cueca samba-canção e se tornar uma

peça de escândalo pela ousadia nunca vista

em um catálogo industrial, criação da grife

inglesa Dean Rogers Menswear. Abaixo, os

Brixton Boys fotografados para um anúncio

da Calvin Klein, em 2001; o anúncio de 2012

com David Beckham exibindo a coleção de

cuecas da grife H&M; um anúncio de 2015

das cuecas de seda da grife AussieBum;

Claudia Schiffer vestindo Chanel 

nas passarelas em 1993

















A exposição, com sua meta de traçar um painel técnico e comportamental sobre a evolução no design de roupas íntimas, revela que o uso de materiais como metal, cordas e cordões vem, gradativamente, cedendo lugar a tecidos como linho, seda, algodão, rendas, cada vez mais suaves e em cortes e formatos progressivamente mais encurtados e simplificados nos adereços. A evolução das primeiras peças, exclusivas e artesanais, chega aos processos técnicos da fabricação em série, depois em escala industrial, mas sempre moldando os ajustes das silhuetas às formas de um almejado corpo ideal, seguindo os padrões de cada época e atendendo aos apelos libertários em detrimento do recato e das vigilâncias da moral.



O jogo: exibir e esconder



No jogo social do erotismo, o equilíbrio entre exibir e esconder vem, quase sempre, pontuado por determinados paradoxos e contradições: para mulheres da burguesia, desde o final do século 19, era comum mostrar parcialmente, em público, um ou outro detalhe das novas formas de lingerie como indicativo de poder e riqueza; para os homens, as novidades são menos numerosas e quase sempre restritas a mudanças mínimas na modelagem de ceroulas e calções.












Fetiches à mostra: no alto e acima,
peças da coleção de lingerie de 2015
da grife Stella McCartney; e a coleção
de calcinhas da Cheekfrills, criação
de Lily Fortescue e Katie Canvin.
Abaixo, dois anúncios da
coleção “pornô-chic”
batizada de Tamila, lançamento
de 2015 da grife Agent Provocateur,
fotografados por Sebastian Faena;
e o espartilho com cristais e pérolas
criado em 2011 por Mr. Pearl
para a atriz Dita Von Teese











Nas roupas íntimas masculinas, uma das poucas mudanças perceptíveis nas últimas décadas talvez sejam as calças mais folgadas na cintura, para deixar à vista as barras superiores de sungas e cuecas. A tendência, que primeiro causava um certo estranhamento, desde os célebres e pioneiros anúncios publicitários das grifes Calvin Klein e Empório Armani, nas décadas de 1980 e 1990, acabaria se tornando comportamento coletivo. A exposição também confirma que a roupa íntima, como a própria sexualidade e a intimidade de famosos e de anônimos, provoca muito interesse, debate e, quase sempre, controvérsias – mais pelas peças de escândalo do que pelas preciosidades resgatadas de outras épocas.

As peças mais valiosas, no acervo reunido pelo Victoria & Albert Museum, são também as mais antigas – da segunda metade do século 18 e do começo do século 19. Entre outras raridades de exotismo que sobreviveram por séculos até nossos dias, há as “roupas de baixo” e as calçolas majestosas com rendas, armações de metal e madeira e adornos infinitos criados sob encomenda da realeza e da nobreza. E há as formas de ampulheta distorcida em espartilhos, corpetes e corseletes de barbatanas em ouro e pedrarias, com dezenas de fios e hastes metálicas reforçando a amarração – peças usadas pela maioria das mulheres da nobreza e de posição social destacada até as duas primeiras décadas do século 20, quando foram enfim inventados os sutiãs – oficialmente patenteados nos EUA, em 1914, pela costureira Mary Phelps Jacob.















Fetiches à mostra: no alto, meia-calça
transparente com cinta-liga, criação de
artesãos franceses na década de 1870
que voltou à moda com o sucesso de
Marlene Dietrich no filme alemão de
Joseph von Sternberg O Anjo Azul
(Der Blaue Engel, 1930). Acima,
duas criações de Christian Dior:
colete em corsete com cinta-liga,
em releitura de 1950 para
as peças tradicionais do
século 19, e a camisola com
robe de chambre em fotografia
de 1953 de Irving Penn para
a revista Vanity Fair. Abaixo,
a camisola de luxo com saia curta,
criação de Cristobal Balenciaga de
1958; o corpete de nylon, novidade
da década de 1960 em criação de
Mary Quant; o vestido com espartilho
aparente criado por Antonio Berardi
em 2008 para a atriz Gwyneth Paltrow;
Kate Moss, com Naomi Campbell em
uma festa da Elite Models em 1993,
em Nova York, com um vestido de
seda transparente que deixava
à mostra a calcinha e
os seios nus













 
Contudo, não são estas peças raras de outros séculos, das eras vitoriana e eduardiana, que mobilizam a atenção da grande maioria do público, e sim as peças de roupas íntimas que ganharam fama graças a celebridades do mundo fashion e da cultura pop às quais elas estão por algum motivo associadas. Nesta seção da mostra estão também os modelos de trajes transparentes de 1911 de Paul Poiret, as criações das décadas de 1920, 1930 e 1940 de Coco Chanel, as peças históricas de Dior, Givenchy, Balenciaga e Mary Quant dos anos 1950 e 1960 e, entre vários outros, sucessos recentes das passarelas e das linhas de lingeries de luxo de Vivianne Westwood, Gianni Versace, Jean Paul Gaultier, Alexander McQueen, John Galliano, Dolce & Gabbana e Stella McCartney.

A retrospectiva equivale a uma boa aula de História – em suas interfaces com a moda, a sexualidade, a moralidade e a tecnologia industrial. Porém, para além do sucesso de público, dos holofotes e das referências a celebridades muitas vezes tão instantâneas quanto efêmeras, o sentido de uma mostra dedicada a roupas íntimas, em um museu conceituado, por certo permite muitas leituras e polêmicas. Também permite críticas negativas argumentando sobre a falência da alta cultura, sobre os sintomas da obra de arte inexistente na pós-modernidade, do culto à futilidade, à submissão feminina, ao fetichismo da mercadoria. Ou, talvez, exposições como esta do Victoria & Albert Museum sejam apenas sinais bem característicos do tempo enigmático em que vivemos.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Fetiches à mostra. In: _____. Blog Semióticas, 20 de abril de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/04/fetiches-mostra.html (acessado em .../.../...).


Para uma visita à exposição do Victoria & Albert Museum,  clique aqui.














Fetiches à mostra: Sophia Loren na capa
da revista Life em setembro de 1966,
fotografada por Alfred Eisenstaedt
durante as filmagens de
Matrimonio all'Italiana, filme
de Vittorio De Sica, e vestindo peças
de lingerie criadas exclusivamente para ela
por Pierre Balmain em Les Millionaires,
comédia com direção de Anthony Asquith e com
Petter SellersVittorio De Sica no elenco, um dos
maiores sucessos de bilheteria de 1960. A canção tema
do filme, Goodness Gracious Me” (Zoo Be Zoo Be Zoo)
que permaneceu mais de um ano como Top 5 na Inglaterra,
nos Estados Unidos e em outros países, foi o primeiro grande
sucesso de George Martin, que depois seria o produtor musical
dos Beatles. Também acima, pôster publicitário criado por
Hans Schleger para Charnaux Patent Corset Co. Ltd
em 1936. Abaixo, uma seleção das galerias da exposição
no Victoria & Albert Museum em Londres













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