Mostrando postagens com marcador Arte feita de pedras. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Arte feita de pedras. Mostrar todas as postagens

29 de agosto de 2023

Arte feita de pedras

 





O mar, que só preza a pedra,
que faz de coral suas árvores,
luta por curar os ossos
da doença de possuir carne.

–– João Cabral de Melo Neto,  
"A educação pela pedra" (1966).  
 

 




Pedras comuns – o material mais simples e em maior abundância em qualquer lugar deste planeta Terra, é a matéria-prima usada por Nizar Ali Badr, artista da Síria, para expressar sua visão de mundo. São arranjos que representam mulheres e crianças, homens, árvores, famílias inteiras, seus pertences, até um beijo apaixonado: a arte de Nizar Ali Badr é feita somente de pedras. Nem tintas, nem traços, nenhum outro material. Apenas pedras. Alinhadas, organizadas sobre superfícies neutras, formam imagens que traduzem pessoas, cenas cotidianas, celebrações, denúncias. No olhar e na imaginação do observador, os mosaicos de pedras montados pelo artista traduzem a Síria, país onde Nizar Ali Badr nasceu e onde sobrevive à barbárie da Guerra Civil.

Encontrei uma seleção da arte de Nizar Ali Badr em uma página do Facebook sem nenhum texto de orientação. Apenas o nome do artista e sua terra natal. Por curiosidade, fui pesquisar sobre o artista e sobre seu país. Descobri pouco sobre Nizar, mas fiquei surpreso ao saber que a Síria é um dos territórios mais antigos da ocupação humana, habitado há milhares de anos, desde a mais remota Antiguidade, mas com a explosão da Guerra Civil, que começou em 2011, a capital Damasco e outras grandes cidades do país, Aleppo, Homs, Palmira, Latakia, Hama, surgem sempre, nas imagens dos noticiários, em escombros de explosões e bombardeiros que nunca terminam.











Arte feita de pedras por Nizar Ali Badr:
no alto e acima, o artista em ação na região
em que mora, à beira-mar, nas proximidades
do Monte Jablon, na Síria. Abaixo, amostras
da arte de Nizar: beijos feitos de pedra
e a jornada dramática dos refugiados,
tradução do sofrimento e da revolta pela
Guerra Civil que desde 2011 destrói a Síria


 











Sanções econômicas, que têm sido impostas desde 2011 por Estados Unidos, União Europeia e Liga Árabe, só aumentam o impacto da destruição e da fome sobre mais de 23 milhões de sírios (estimativa de 2023) – uma população em descréscimo acelerado na última década, por conta do número de mortos na guerra e pelas levas de migrantes que abandonam o país. A tragédia recente impressiona, mas a história tem antecedentes violentos há muito tempo. Assim como acontece na maioria dos países do Oriente Médio, a Síria não teve uma trajetória pacífica no decorrer do século 20.


História de conflitos


Estabelecida como território próspero de produção de frutas e cereais desde o imemorial Reino de Eblas, mais de 4 mil anos Antes de Cristo, a Síria ao longo de milênios conquistou muitos povos nas vizinhanças do seu território e também foi dominada, em períodos cíclicos e sucessivos, sendo palco da ascensão e queda dos impérios do Egito, da Suméria, da Mesopotâmia, de Acádios, de Ur, de Arameus, de Assírios, de Neobabilônicos, de Gregos, de Romanos, de Bizantinos, de Mongóis e de Otomanos. Cada império incorporou elementos das tradições ancestrais da Síria e também imprimiu sua marca em períodos de dominação que, em alguns casos, se estenderam por séculos.













Arte feita de pedras: acima, vista do conjunto
arquitetônico da cidade antiga de Palmira, na
Síria
, que era preservado há mais de 2 mil anos
e foi destruído nas explosões da Guerra Civil;
um homem que chora sobre os escombros,
depois de um bombardeio na região; e os corpos
levados pela água depois de um ataque aéreo
na cidade síria de Aleppo, em fotos de 2010
2016 e 2013 de Baraa Al-Halabi, fotojornalista
sírio da Agência France Presse (AFP).

Abaixo, cenas da guerra na arte de Nizar Ali Badr













A origem de diversas formas de arte também se confunde com a história da Síria – dos entalhes em pedras de relevos e esculturas às grandes construções arquitetônicas que foram assimiladas e adaptadas por culturas diversas com o passar do tempo. Os sírios também foram os primeiros a dominar a arte de produção do vidro, e seus mais antigos artefatos de vidros coloridos que sobreviveram até nossos dias têm mais de 3 mil anos. São raros, entretanto, os registros da literatura e da História Antiga da Síria, porque o país enfrentou muitos períodos de apagamentos, de violentas perseguições étnicas e religiosas, de censura que remonta à Antiguidade e vem até os dias atuais.

Ainda hoje, expoentes da literatura e das artes da Síria sobrevivem apenas no exílio, entre eles Zakariya Tamir (nascido em 1932), um dos principais escritores do mundo árabe, radicado em Londres, ou Fateh al-Moudarres (1922-1999), expoente do surrealismo e da arte moderna das Arábias, que viveu muitos anos exilado em Roma. A principal homenagem à arte da Síria, e em protesto pela Guerra Civil instalada no país, foi realizada em Paris pelo Institut des Cultures d'Islam (Instituto de Culturas do Islã), reunido obras em diversos suportes de autores sírios nas artes plásticas, fotografia, cinema e arte digital. A exposição foi aberta em 2014 e segue um roteiro itinerante em diversos países. Entre os artistas convidados estão Fadi Yazigi, Akram al Halabi, Mohammed Omran, Khaled Takreti, Muzaffar Salman e Tammam Azzam, todos com obras que fazem referência à Guerra Civil e à resistência dos sírios diante da trajetória de violência e de conflitos históricos.

















Arte feita de pedras: acima, três obras do
artista sírio Tammam Azzam que apresentam
releituras de obras célebres da história da arte
no contexto da Guerra Civil em seu país,
"A Dança" (de Henri Matisse), "Noite Estrelada"
(de Van Gogh) e "O Grito" (de Edvard Munch).

Abaixo, 
uma cena da guerra por Nizar Ali Badr






No século 20, a Síria conseguiu restabelecer sua soberania como nação, logo depois da Primeira Guerra Mundial, tornando-se o maior Estado árabe e, em 1945, ao final da Segunda Guerra, foi um dos membros fundadores da ONU, Organização das Nações Unidas, e da Liga Árabe. Ainda na década de 1940, os sírios elegeram o primeiro presidente do país, Shukri al-Quwati, e conquistaram sua independência definitiva, após um longo período do domínio francês. Nas décadas seguintes, a Síria se alinhou à União Soviética, depois ao Egito, só retornando à independência em 1970, quando houve um golpe de estado liderado pelo general Hafez al-Assad. Depois do golpe o país conquistou novamente a independência, mas permaneceu sob um governo autoritário.


Primavera árabe


Hafez al-Assad ficaria no poder durante 30 anos, até sua morte, no ano 2000, quando seu filho Bashar al-Assad assumiu o poder e o cargo de presidente da Síria. Em 2010, a permanência de Bashar al-Assad no poder foi ameaçada pela onda de protestos nas ruas das maiores cidades da Síria, no contexto da Primavera Árabe – como ficaram conhecidas as manifestações organizadas pelas redes sociais da internet (Facebook, Twitter e YouTube) que agitaram países do Oriente Médio e do Norte da África, a maioria deles, não por acaso, sendo grandes produtores de petróleo. Os protestos, que muitos analistas veem como movimentos atrelados e financiados por interesses de países do Ocidente, provocaram repressão violenta e revoluções, prisões, mortes e guerras civis no Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Argélia, Kuwait, Líbano, Jordânia e outros países. No caso da Síria, a Guerra Civil que teve início com os protestos daquele período já tem duração de mais de uma década (sobre as questões da Primavera Árabe, veja também Semióticas – Das Arábias).














Arte feita de pedras: acima, homens carregam
bebês depois de um bombardeio na cidade de
Aleppo, em fotografia de 2016 de Ameer al-Halbi
para a Agência France Presse; crianças da Síria
em área destruída na cidade de Kobane e um
acampamento de refugiados sírios na fronteira
com a Turquia, em fotografias de 2015 e 2016
de Yasin Akgul, fotojornalista da Síria para a
Agência France Presse. Abaixo, refugiados da
Guerra Civil na Síria na arte de 
Nizar Ali Badr










Na Síria, a repressão aos protestos da Primavera Árabe coincidiu com a ascensão de diversos grupos armados e sectários, alguns deles com histórico de atuação violenta nas décadas anteriores. Os conflitos internos, com apoio bélico intensivo e permanente de forças estrangeiras, já deixaram um número incontável de milhares de mortos e provocaram movimentos de migração que, segundo estimativas não oficiais, atingiram mais de 13 milhões de pessoas. O que começou como protestos pacíficos passou a enfrentar uma violência crescente que se espalhou, à medida que milhares deixavam o país na condição de refugiados e que os combatentes estrangeiros e armamento pesado entravam, fortalecendo o Estado Islâmico. Desde 2011, a paz parece um sonho cada vez mais distante para os sírios.

Este sonho distante ainda move a arte de Nizar Ali Badr que, quando começaram os confrontos violentos, passou a recolher suas pedras à beira-mar na localidade onde mora, entre as cidades de Latakia e Jebel, na região do Monte Zaphon, próxima à fronteira com a Turquia. As pedras se transformaram em passatempo e em registro de cenas que o artista acompanha no dia a dia: famílias em fuga, perseguições, violência, destruição. Também em 2011 ele conseguiu sua primeira câmera fotográfica e passou a registrar as cenas da arte efêmera que constrói diariamente com os arranjos de pedras.

Uma das poucas vezes que Nizar comercializou suas obras foi em 2016, quando a escritora e jornalista canadense Margriet Ruurs pagou pelo uso das ilustrações em seu livro infantil “Caminho de Pedras – A jornada de uma família de refugiados”, que conta a história de uma família de imigrantes, sucesso de vendas em vários países, inclusive no Brasil, onde foi lançado em 2018 pela Editora Moderna em versão ilustrada e bilíngue, em português e árabe. No livro de Margriet Ruurs, a protagonista Rama e sua mãe, pai, avô e irmão, Sami, são forçados a fugir da guerra na Síria, deixando tudo para trás, e partem em busca de refúgio na Europa, levando apenas o que podem carregar nas mochilas. A história, comovente e verdadeira, é contada pelas pedras de Nizar Ali Badr.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte feita de pedras. In: Blog Semióticas, 29 de agosto de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/08/arte-feita-de-pedras.html (acessado em .../.../…).



Para comprar o livro Caminho de Pedras, edição bilíngue,  clique aqui.












Outras páginas de Semióticas