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14 de agosto de 2011

Onde moram os anjos








Os que viajam pelo oceano afora








mudam de céu, mas não de alma.













Quintus Horatius Flaccus (65 a.C. – 8 a.C.).


O que pode uma casinha tão simples e colorida? A pergunta há décadas intriga a fotógrafa e artista plástica Anna Mariani, que viajou pelo sertão fotografando e organizando as cenas que parecem saídas da ficção. Nascida em 1935 no Rio de Janeiro, passou a infância em Salvador e mais tarde estudou fotografia com Claude Kubrusly, Cristiano Mascaro e Maureen Bisilliat. Em 1969, começou a registrar o Recôncavo Baiano usando apenas filme em preto e branco e, uma década depois, em 1976, passou a fotografar em cores as fachadas e detalhes da arquitetura de habitações populares do sertão nordestino.

O primeiro livro com suas fotografias, "Pinturas e Platibandas", foi originalmente publicado em 1987, logo após a participação de impacto da artista plástica e fotógrafa na 19ª Bienal Internacional de São Paulo, com comentários assinados pelo escritor Ariano Suassuna e pela arquiteta Lina Bo Bardi. Aclamadas como grande arte no Brasil e no exterior, as fotografias de fachadas de pequenas casas de lugarejos do Nordeste brasileiro, sempre retratadas em ângulo frontal, sem a presença de pessoas e com enquadramento que com frequência exclui toda a paisagem ao redor, retornam às livrarias em nova edição do Instituto Moreira Salles para "Pinturas e Platibandas", revista e ampliada pela autora.
















Com belos textos, tão breves como inspirados, de Ariano Suassuna, de Caetano Veloso e do pensador francês Jean Baudrillard, as imagens registradas por Anna Mariani correram o mundo depois da Bienal de São Paulo. Desde 1987, a série de fotografias ganhou exposições de destaque na França, Alemanha e outros países, retornando agora às livrarias e a uma mostra no Centro Cultural do IMS em São Paulo, que depois segue para as sedes do IMS em outras cidades e nas capitais. 




Sete estados do Nordeste

 


A mostra do trabalho de Anna Mariani, com curadoria do crítico de arte Rodrigo Naves, reúne uma seleção de 24 imagens de fachadas multicoloridas - enquanto o livro reúne 200 das cerca de 2 mil imagens feitas pela fotógrafa de 1976 a 1995 em sete estados do Nordeste do Brasil: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. A trajetória surgiu após uma viagem da fotógrafa para registrar o percurso de Antônio Conselheiro, líder de Canudos. Foi a primeira experiência de Anna Mariani com filme colorido e a descoberta das cores e contrastes da fachadas a levou a repetir várias vezes as viagens pelas cidades do litoral e do sertão.













Em 1987, Anna Mariani decidiu reunir em um livro uma seleção de 220 imagens. O livro foi lançado na 19° Bienal Internacional de São Paulo, junto com uma exposição que apresentava 80 ampliações fotográficas que causaram impacto por sua beleza e originalidade no registro documental paisagem e manifestações culturais tradicionais. Como é destacado no texto de apresentação ao catálogo, a busca da beleza em meio a condições adversas, mas sem estetizar a pobreza, é uma das características centrais do trabalho de Anna Mariani.

Outra publicação da fotógrafa sobre o mesmo universo da imagens do Nordeste brasileiro surgiu em 1992, quando lançou o livro "Paisagens, Impressões - O Semi-Árido Brasileiro", no qual apresentava fotografias de paisagens do sertão nordestino que registravam a escassez de recursos e também a diversidade de formas da vegetação daquela região. Ingênuas, caprichadas e extremamente simples, as fachadas e platibandas nordestinas nos registros de Anna Mariani expressam também um modo de vida que comove o observador por sua delicadeza.
















"O que dizem essas casas?", interroga Caetano Veloso, em texto que faz parte da edição e que foi escrito para a exposição de Anna Mariani no Centre Georges Pompidou, em Paris, em 1988. "Sob o sol-a-sol do Nordeste Brasileiro, em meio à dura vida humana, o que insinua sua lírica geometria?", prossegue Caetano, descrevendo suas lembranças e emoções que os cenários tão familiares despertaram. "Para mim, são coisas íntimas. Casas que conheço por dentro. Em Santo Amaro, onde nasci, no Recôncavo baiano, as pessoas pintam suas casas a cada fevereiro para as festas da padroeira: é como comprar um vestido novo. A cidade fica endomingada, como se fosse um cenário de teatro ingênuo, com todas as casas recém-pintadas".

No mesmo texto, abordando uma determinada sequência de fachadas, e comparando as imagens com suas memórias afetivas da infância, Caetano constrói uma metáfora com as célebres bandeirinhas e os casarios do pintor modernista Alfredo Volpi. "De frente para a câmera de Anna Mariani, elas parecem esboçar um sorriso silencioso. A câmera não pretende interpretar os seus signos", destaca Caetano, "mas entrar numa espécie de estado amoroso com a delicadeza de sua poesia. As fotografias são como monalisas pintadas por Volpi".






























 
 

As pinturas à base de cal de cada casinha, elaboradas sobre fachadas e platibandas irregulares, com motivos que lembram aspectos das culturas africanas e árabes, são resultado de práticas artesanais seculares de caiação – técnica que aos poucos, conforme os textos do livro ressaltam, tem sido cada vez mais esquecida e substituída por novos materiais e processos sem as mesmas características. De tão marcantes na arquitetura nordestina, as imagens resultantes da pesquisa de Anna Mariani são tomadas como obras de referência para a cenografia de filmes e de minisséries para a TV, a exemplo de “O Auto da Compadecida” (2000) e “A Pedra do Reino” (2007), entre outras produções, além de reforçar o interesse popular e acadêmico por esse marco na arquitetura nordestina do Brasil.
















"São fotografias", aponta Jean Baudrillard (1929-2007), no breve artigo que escreveu para apresentar a exposição de Anna Mariani em Paris, no Centre Georges Pompidou, com sucesso de público e destaque de elogios na imprensa por conceituados críticos de arte e historiadores – "mas são fotografias que apareciam como verdadeiras pinturas ou baixo-relevos, surgidos não se sabe de qual friso geométrico de um palácio de Minos subequatorial", argumenta o pensador francês, aproximando as casinhas singelas do sertão, registradas por Anna Mariani, da grandiosidade enigmática de Knossos, uma das moradas lendárias e mitológicas mais célebres da Antiguidade Clássica, conectada às origens do labirinto e da qual só restaram ruínas e sítios arqueológicos.

Baudrillard, poeta, fotógrafo, sempre citado entre os mais respeitados e influentes sociólogos e filósofos de nossa época, referência tanto em teses acadêmicas como na cultura pop (entre outros feitos, é inspiração confessa para os irmãos Wachowski da trilogia “Matrix”), também destaca a poesia estranha e sutil que emana das imagens registradas por Anna Mariani. A poesia que sobrevive e, nas palavras de Baudrillard, emana de uma "miséria que não se expressa como miséria, mas como riqueza de linhas e aparências de uma fotografia que consegue, ela também, não ser mais fotografia". Sem nenhuma dúvida, observar com atenção as fachadas ingênuas e coloridas fotografadas pelo olhar afetuoso de Anna Mariani ajuda a entender algo mais sobre a sensibilidade e o mundo do sertão nordestino, tão longe e tão perto de nós mesmos.



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Onde moram os anjos. In: Blog Semióticas, 14 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/onde-moram-os-anjos.html (acessado em .../.../...).







 







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