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14 de novembro de 2014

Segredos de Mafalda






Nós podemos realizar coisas agradáveis, 
inteligentes, que façam refletir os adultos 
e também as crianças. É preciso respeitar 
as crianças. Os adultos falam com elas 
como se fossem todas retardadas... 

––  Quino, criador de Mafalda.    
 

Mafalda, muito esperta e questionadora, conquista a maioria à primeira vista: tem paixão pela primavera e pelos Beatles e horror a sopa, a moscas e a guerras. Com seu humor pitoresco e observações tão breves quanto surpreendentes sobre o mundo, as pessoas, as coisas do dia a dia, as notícias delirantes da imprensa e da TV, que permanecem atualíssimas, Mafalda surgiu para o grande público em 1964, mas permanece muito popular e fazendo as perguntas que os adultos não se atrevem a fazer em voz alta. O sucesso de Mafalda começou em sua terra natal, a Argentina, mas rapidamente ultrapassou as fronteiras e conquistou fãs e leitores de vários países.

Em mais de meio século de vida, Mafalda foi traduzida em várias línguas e publicada oficialmente em mais de 30 países – com um detalhe bastante revelador no fato de ainda permanecer inédita nos Estados Unidos. No Brasil, faz sucesso desde os anos 1970 e tem tanto prestígio que disputa, há mais de uma década, com ninguém menos que Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, o título de recordista em citações nas questões apresentadas pelo ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio.

Na trajetória de Mafalda há, também, as lendas, as crises, as idas e vindas, os altos e baixos. Para começar, teve duas datas de nascimento: a princípio, ela foi criada em 1962, para compor um anúncio publicitário de eletrodomésticos, e seu nome tem a ver com as iniciais da marca do produto, com as tirinhas sendo publicadas a partir de 1964, mas até sobre a data verdadeira de seu aniversário pairam certas controvérsias que permanecem sem solução. 














Segredos de Mafalda: no alto,
Mafalda e Quino em fotografia de
setembro de 2014, em Buenos Aires,
fotografados por Natacha Pisarenko
na abertura da exposição El Mundo
Según Mafalda, em comemoração
aos 50 anos da personagem. Acima,
Quino em sessão de autógrafos em
Paris, 2004, e Mafalda com a família
e os amigos: a partir da esquerda,
Felipe, Manolito, Susanita, Liberdade,
Mamãe (Raquel), Papai (Pelicarpo),
Guilherme (seu irmão caçula, também
chamado de Guille ou Gui) e Miguelito.

Abaixo, dois dos primeiros cartuns da
Mafalda, no traço original, e amostras da
arte de Quino, muito além da Mafalda, sem
nenhuma palavra no álbum de 1980
com o título Qui est le Chef?





























O criador da Mafalda, o argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino, desenhou, em 15 de março de 1962, as primeiras charges e algumas tiras de histórias em quadrinhos sobre Mafalda para uma agência publicitária. A personagem deveria ser publicada em anúncios da empresa de eletrodomésticos Mansfield no jornal Clarín. Mas, por ironia do destino, a empresa acabou recusando os desenhos, o Clarín rompeu o contrato e Quino, contrariado, decidiu arquivar suas tiras.



Mafalda pelo mundo inteiro



Em 1964, a ideia das tiras e charges da "enfant terrible" é retomada por Quino, que consegue finalmente publicar sua criação em uma revista semanal da Argentina, a Primera Plana. A primeira vez da Mafalda impressa aconteceu em 29 de setembro daquele ano. A popularidade da personagem, no entanto, só passaria a crescer no ano seguinte, quando os desenhos chegaram às páginas do jornal diário El Mundo, na época um dos mais lidos do país. De novo, vem a ironia do destino nos caminhos de Mafalda: apesar do sucesso das tirinhas da personagem criada por Quino, o jornal foi à falência em dezembro de 1967. 










Segredos de Mafalda: acima,
a trajetória de evolução dos traços da
personagem desde 1964 e Mafalda e
Quino em maio de 2014, fotografados
para a agência EFE. Abaixo, o retrato de
Mafalda em tempos de autoritarismo
e ditadura militar em sua terra natal,
Argentina, com os cidadãos proibidos
em sua liberdade de falar, de ouvir,
de ver, e Mafalda no Brasil, nas capas
da revista Patota, publicada na década
de 1970 pela Editora Artenova, e nas
primeiras versões em livro, em 1982,
publicadas pela Global Editora





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Mafalda retornaria firme e forte seis meses depois, em outro jornal, o Siete Días Illustrados. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros. O primeiro deles, editado por Quino, teve uma marca impressionante: toda a tiragem de 5 mil exemplares foi vendida em Buenos Aires em apenas dois dias. Com o sucesso, a tirinha e os livros com coleções de tirinhas logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos em outros países da América Latina e também na Europa, onde Mafalda teve popularidade imediata na Itália, França, Espanha, Grécia, Portugal e outros países com culturas distintas, como China e Coreia.

Na Europa, Mafalda desde o início foi publicada com a tarja indicando que se tratava de “história em quadrinhos para adultos” – e não demorou a conquistar a simpatia dos intelectuais ligados aos movimentos sociais e aos partidos de Esquerda. Um dos primeiros a saudar a personagem como heroína rebelde foi o italiano Umberto Eco, mestre da Semiótica, que dedicou à criação de Quino um célebre ensaio, publicado pela primeira vez em 1969, em que destacava: “Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara...”







Mafalda em terras brasileiras



No Brasil, Mafalda apareceu primeiro sem periodicidade, como presença ocasional em charges reproduzidas no final da década de 1960 nas páginas do lendário Pasquim. Em 1972, também no Pasquim, foi saudada por Ziraldo: “Mafalda é uma personagem criada na América Latina que logrou obter uma fama universal; acho incrível que uma menina da classe média da Argentina tenha podido ter sucesso na Finlândia”.

A estreia oficial, sob contrato, aconteceria por aqui somente em 1972, nas páginas de uma revista infantil chamada Patota, publicada pela Editora Artenova em 27 edições mensais, entre 1972 e 1975, em coletâneas que incluíam outros personagens de autores na maioria norte-americanos, entre eles o guerreiro viking trapalhão Hagar, o Horrível (criado por Dik Browne), a dupla Frank e Ernest (de Bob Thaves), Snoopy e a turma do Charlie Brown (de Charles Schulz), além da presença ocasional de personagens brasileiros como o psiquiatra Doutor Fraud, criado por Renato Canini. Nos anos seguintes, Mafalda apareceria ocasionalmente em outros jornais e revistas brasileiros, por conta da comercialização de séries limitadas de charges e tirinhas, também por intermédio da Editora Artenova.




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Em 1982, a presença de Mafalda no Brasil ganharia um capítulo importante: com os direitos de publicação transferidos da Artenova para a Global Editora, os cartuns originais de Quino passaram a contar com uma parceria especialíssima na tradução e adaptação por um dos grandes nomes do humor e do cartum brasileiro, Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988), célebre por seu trabalho de resistência à ditadura militar e de apoio aos movimentos sociais com a Graúna, os Fradinhos, a Mãe e outras criações geniais que marcaram época.

A aventura de Mafalda em tradução de Mouzar Benedito e edição final de Henfil foi publicada em cinco livretos pela Global Editora, em preto e branco, exceto na capa, com formato de brochura horizontal em dimensões de em 14cm por 21cm. Os livretos, que alcançaram uma surpreendente vendagem de 30 mil exemplares na primeira edição, tiveram cinco números consecutivos, de fevereiro a julho de 1982, com 76 páginas e duas tirinhas por página. Em 1988, a trajetória de Mafalda em terras brasileiras passaria por outra transferência de editora e de tradução, desta vez com versões para o português por Monica Stahel para a Martins Fontes. A nova editora reeditou, em formato de livretos, todos os cartuns, até 1991, quando toda a saga da personagem lendária de Quino foi finalmente reunida no livro de capa dura “Toda Mafalda”.









Segredos de Mafalda: acima,
Quino em Buenos Aires, em

visita à exposição El Mundo Según
Mafalda, e na prancheta de trabalho,
em autorretrato dos anos 1970.

Abaixo, 
uma seleção das tirinhas
da Mafalda
em versão nacional,
em tradução e adaptação de
Mouzar Benedito e de Henfil; e uma
sequência de Quino em Buenos 
Aires,
fotografado por
Dario Lopez-Mills em 2014
na praça batizada em homenagem a Mafalda,
na abertura da exposição que celebrava
os 50 anos de criação da personagem,
nomeada El Mundo Según Mafalda 





                 

  
 
As versões de Quino



Mafalda também foi uma pioneira na abordagem de temas que não estavam em histórias em quadrinhos, tais como a repressão policial, as revoltas estudantis e as ditaduras que se multiplicavam na América Latina a partir da década de 1960. Também foi pioneira na temática do pacifismo, das questões de gênero, do feminismo e da novidade da ecologia. As grandes questões que a pequena Mafalda apresenta permanecem como perguntas sem resposta nos dias de hoje, assim como deixavam sem resposta sua mãe, Raquel, e seu pai, cujo nome nunca foi dito em nenhuma tirinha.

E há também a turma da Mafalda, com seus amigos que aparecem na sala de aula ou em sua vizinhança, estabelecendo um contraponto de diversidade que ressalta a singularidade e os questionamentos da protagonista. Na turma, os mais presentes são Suzanita, que sonha em ser mãe e esposa e nada mais, desdenhando qualquer avanço social ou os sonhos de liberdade desenhados pelas ousadias de Mafalda; Felipe, o sonhador que não consegue entender a realidade que Mafalda apresenta; Manolito, que tem a índole descontrolada de tubarão capitalista que quer devorar tudo; e Miguelito, que representa a ingenuidade mais infantil. Os caçulas são Liberdade, que sempre desafia os limites das autoridades, e Guille, o irmão mais novo de Mafalda, que surge como um bebê e depois vai crescendo no desenvolvimento das tirinhas, imitando alguns questionamentos da irmã e confessando sua paixão por Brigitte Bardot.

Mesmo com todo sucesso na Argentina e em outros países, Quino, o criador, decidiu acabar com a publicação das histórias da Mafalda em 1973, depois de publicar mais de 2 mil tirinhas e cartuns de apenas um quadro. Desde então, Quino ainda voltaria a desenhar Mafalda algumas poucas vezes, principalmente para promover campanhas sobre os Direitos Humanos – como aconteceu em 1976, quando Quino aceitou o convite para fazer um pôster para a UNICEF ilustrando a Declaração Universal dos Direitos da Criança.

Filho de imigrantes espanhóis, Quino nasceu em Mendoza, Argentina, em 1932, e mantém uma rotina discreta em Madri, Espanha, onde mora há duas décadas. Sempre avesso à curiosidade dos fãs de Mafalda e aos convites para participar de programas de TV, Quino abriu uma exceção no começo deste ano, quando foi anunciado vencedor do prestigiado Prêmio Príncipe das Astúrias, na Espanha, e concedeu uma longa entrevista à agência de notícias EFE.
















Na entrevista, Quino afirmou que permanece marxista e pessimista em relação à política, lembrou as situações que levaram à criação e ao sucesso de Mafalda, reconheceu que, para ele, a célebre e insolente garotinha é um "mais um desenho" e se autodefiniu como um carpinteiro que projetou um "móvel lindo".

"Eu sou como um carpinteiro que fabrica um móvel, e Mafalda é um móvel que fez sucesso, lindo, mas para mim continua sendo um móvel, e faço isto por amor à madeira em que trabalho", minimizou Quino, explicando que há décadas sofre de um problema de visão que o faz viver em um "mundo um pouco desfocado". Para surpresa do entrevistador, Quino também declarou que Mafalda não foi sua "melhor aliada" para dizer "o que queria e quando queria".















O futuro de Mafalda



"Meu melhor aliado fui eu mesmo, porque deixei de dizer muitas coisas que gostaria e não se podia dizer. Desde que cheguei a Buenos Aires com minha pastinha (em 1954), me disseram que não podia fazer desenhos sobre militares, sobre a igreja, o divórcio, a moral. Então me acostumei a desenhar as coisas que me permitiam", lembrou. Quino também reconheceu que a primeira encomenda para criar Mafalda pedia algo no estilo de Charlie Brown e a turma de Peanuts, a mais famosa criação de Charles Schulz (1922–2000).

"Copiei as cenas de minha rotina e de minha casa, e as pessoas gostaram, porque poucos desenhistas faziam isso. Charlie Brown me agrada muito, mas me parece um horror que não haja adultos. Em meu trabalho, apelava para as notícias do dia a dia, e escrevia sobre o que saía nos jornais. O mundo era assim. Eu não decidi e disse 'vou a fazer uma menina contestadora'. Não. Simplesmente saiu assim".





















Quino também declarou na entrevista à agência EFE que está consciente sobre o sucesso de Mafalda, que continua sendo uma personagem muito popular e muito querida no mundo todo, por leitores de todas as idades. Contudo, na conclusão da entrevista ele faz questão de dizer que não tem nenhuma ilusão sobre o que poderá acontecer com Mafalda no futuro.

"Não acredito que Mafalda ultrapasse as fronteiras da História e se transforme em algo parecido com a música de Mozart”, destacou Quino. “Haverá no futuro outras temáticas muito mais importantes do que as coisas que Mafalda disse há tanto tempo. Além disso, aparecerão muitos outros suportes de mídia que ainda não se conhece, outras muitas personagens, talvez mais interessantes. Hoje, olhando para o passado, penso que ou o mundo não evoluiu ou então a Mafalda é que sempre foi muito evoluída".


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Segredos de Mafalda. In: Blog Semióticas, 14 de novembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/11/segredos-de-mafalda_14.html (acessado em .../.../…).










Para visitar o site oficial de Quino e Mafalda, clique aqui.









30 de outubro de 2012

Fotorreportagem desde 1839







Dizer que “a câmera não pode mentir” é simplesmente 
enfatizar as inúmeras fraudes realizadas em seu nome. 

–– Marshall McLuhan.   



Os primórdios da fotografia e da imprensa no Brasil – e mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, sede da Corte no Império e primeira capital da República, entre 1839, ano da primeira patente da invenção do daguerreótipo na França, até o ano de 1900, quando a disseminação e a popularização dos processos fotográficos se firmavam como negócio altamente rentável nos centros mais desenvolvidos do território nacional – têm um documento importante com a publicação de um livro de Joaquim Marçal Ferreira de Andrade que tem como título “História da Fotorreportagem no Brasil: A fotografia na imprensa do Rio de de Janeiro de 1839 a 1900”. 

Menos que uma celebração ao processo técnico que provocou revoluções na história da imprensa e na vida social e cotidiana dos indivíduos e das populações desde seu surgimento, e muito mais que um mero relatório de pesquisas sobre eventos, imagens, nomes e datas do Oitocentos relacionadas à fotografia e à invenção da fotorreportagem, o livro de Joaquim Marçal, em publicação conjunta das editoras Elsevier, Campus e Biblioteca Nacional, alcança relações historiográficas que vão além do que outras pesquisas e publicações sobre o tema já revelaram. O autor acompanha a trajetória do jornalismo, da publicidade, das artes gráficas e dos diversos processos do design que envolvem a criação e impressão de imagens, apontando o descompasso de longa data entre a imprensa no Brasil em comparação com países mais avançados.

A edição do livro coincidiu com o reconhecimento do trabalho do pesquisador, com o título de Patrimônio da Humanidade concedido pela Unesco, através do programa Memória do Mundo, ao objeto de pesquisa a que Marçal há décadas tem dedicação: a Coleção Teresa Cristina Maria, um espólio reunindo um acervo valioso de mais de 2.500 imagens dos maiores fotógrafos que atuavam no Brasil no século 19 – como Marc Ferrez, Revert Henry Klumb, Augusto Stahl, Alberto Henschel, Georges Leuzinger, Juan Gutiérrez e Augusto Malta, entre outros. A coleção foi doada pelo imperador Dom Pedro 2° à Biblioteca Nacional antes de embarcar para a Europa, em 1889, forçado pela instauração da República pelos militares.









Fotorreportagem desde 1839: no alto
e acima, tropas armadas do Brasil no
campo de batalha e nas trincheiras, depois
da tomada da cidade de Paysandú, no
Uruguai, durante a Guerra do Paraguai,
em algumas das primeiras fotografias transcritas
em xilogravuras e publicadas na revista
Semana Illustrada. Abaixo, uma gravura de
Heinrich Fleiuss retrata brasileiros e uruguaios
invadindo a cidade de Paysandú; e o imperador
Dom Pedro 2° em Uruguaiana, no
Rio Grande do Sul, em fotografia de 1865
de Luiz Terragno. Sobre os registros
publicados na imprensa brasileira durante
a Guerra do Paraguai, veja também 
Semióticas: A batalha de papel 















A honraria de Memória do Mundo, antes concedida pela Unesco apenas a relíquias como a Bíblia de Johann Gutenberg, surpreendeu Joaquim Marçal, que soube da notícia pela TV, enquanto assistia ao Jornal Nacional da TV Globo. Fiz uma longa entrevista com ele para um jornal de Belo Horizonte, pelo telefone, à época do lançamento do livro. A notícia de que temos em comum a mesma dedicação de pesquisa estabeleceu de imediato entusiasmo e empatia em nossa conversa sobre a história da fotografia no Brasil e o estado atual da pesquisa e conservação dos acervos.

Marçal destaca, na entrevista, que além do status de valorização internacional pelo tombamento pela Unesco do conjunto documental da coleção do imperador, sua expectativa é que o título de Memória do Mundo possa garantir recursos para a pesquisa e digitalização do grande volume de material iconográfico da Biblioteca Nacional e, por extensão, de outros acervos fotográficos importantes do Brasil que ainda permanecem pouco conhecidos. “A fotografia brasileira do século 19 é tão rica quanto desconhecida”, avalia. 









Imagens de guerra: ilustração publicada em
1867 na Semana Illustrada e daguerreótipo
anônimo que registra vários corpos de
soldados paraguaios amontoados
depois da batalha de Humaitá. Abaixo,
uma tropa brasileira com o Conde D'Eu
e seu estado maior, nas proximidades da
cidade de Lambaré, no Paraguai, em
registro de um fotógrafo anônimo em 1868









Acervo de raridades



Joaquim Marçal é o que se pode chamar, de fato, de especialista na trajetória da fotografia no Brasil, reunindo um currículo profissional que inclui atividades como fotógrafo, designer, chefia da divisão de iconografia da Fundação Biblioteca Nacional, título de mestrado em Design, doutorado em História Social e docência na PUC do Rio de Janeiro. “História da Fotorreportagem no Brasil” reúne, na verdade, a quase totalidade da dissertação de mestrado que Marçal apresentou na PUC-Rio, em 2002. Já no trabalho de doutorado, retorna ao Oitocentos com uma investigação sobre imagens fotográficas da Guerra do Paraguai, tendo como orientadores dois intelectuais destacados: Celeste Zenha e José Murilo de Carvalho.

Um dos grandes destaques do livro de Joaquim Marçal é exatamente seu fôlego exploratório para localizar as primeiras imagens, tanto as ilustrações como as fotografias, registradas na imprensa brasileira. O autor destaca que o grande marco, na trajetória das artes gráficas e da imprensa no Brasil, é o aparecimento e o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução de ilustrações e fotografias em jornais e revistas que acontece durante a Guerra do Paraguai, o maior e mais sangrento conflito armado da América do Sul.






Ilustrações e fotografias que retratavam o confronto e a união de Brasil, Argentina e Uruguai (cujas tropas militares, em ação conjunta, marcharam contra o vizinho Paraguai, tornando aquele país terra arrasada), eram artigo muito popular e disputado como fetiche no período da guerra, que se estendeu de dezembro de 1864 a março de 1870, e também nos anos e décadas seguintes.

A derrota também marcaria uma reviravolta decisiva na história do Paraguai, transformando completamente o país, que passou de única República das Américas sem nenhum analfabeto para um dos países mais atrasados do continente. O Paraguai também sofreria decréscimo populacional, ocupação militar por mais de dez anos, pagamento de pesada indenização de guerra (que, no caso do Brasil, teve o pagamento estendido até a Segunda Guerra Mundial) e perda de 40% de seu território para Brasil e Argentina.










Guerra do Paraguai e os primeiros registros
em fotojornalismo no Brasil: na imagem do
alto, Rendição de Uruguaiana, recriação
patriótica do campo de batalha em litografia
de Pedro Américo. Acima, os prisioneiros
paraguaios, a maioria formada por índios
muito jovens, descalços e maltrapilhos que
foram transformada em escravos depois
do fim das batalhas. Abaixo, a igreja central
de Paysandú, no Paraguai, completamente
destruída depois da batalha, em fotografia
anônima de 1865. Também abaixo, cenas do
campo de batalha: o Conde D'Eu (com
a mão na cintura) visita as tropas durante
a guerra, e um raro momento de
descontração dos soldados aliados
em foto no acampamento militar










Uma das primeiras fotografias transcritas em xilogravura aparece nas páginas da “Semana Illustrada”, publicada no Rio de Janeiro, sede do Império e posteriormente capital da República. A legenda identifica a imagem, que retrata tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai: “Vistas de Paissandú depois da tomada da praça, fotografadas ao natural e obsequiosamente oferecidas à Semana Illustrada pelo Ilm. e Exm. Srn. Vianna de Lima”.

Outro dos muitos destaques pelo que trazem de avanços para a historiografia, com importância especial para a história de Minas Gerais, é a identificação pelo autor do livro "História da Fotorreportagem no Brasil" da primeira fotografia produzida em território mineiro, realizada por um fotógrafo anônimo em Ouro Preto, então Vila Rica, possivelmente no começo de 1865, e ofertada como presente ao imperador Dom Pedro 2°.

Trata-se de uma vista panorâmica, como se dizia na época, da atual Praça Tiradentes, enquadrando as tropas em alinhamento militar que ocupavam o largo da praça antes de seguir viagem para os campos de batalha na Guerra do Paraguai. A legenda: “Vista da Praça de Vila Rica no dia da partida da 1ª expedição de Minas para Mato Grosso. Oferecida a Sua Majestade Imperial e Senhor Dom Pedro por seu súdito Antônio de Assis Martins”. 







 
Como identificar, entretanto, data e autoria, quando não há registro verbal? No caso da foto das tropas em Ouro Preto, o enigma se desfaz com a comparação da publicação de uma minuciosa recriação em cópia litográfica quase literal da mesma fotografia pela “Semana Illustrada” em julho de 1865, creditada a Henrique Fleiuss, mestre de ofício e entusiasta da novidade da “fotorreportagem” que ele ajudava a instaurar na imprensa brasileira.



Coleção do Imperador



Outros casos de razoável fidelidade das cópias litografias ou em xilogravura, em relação ao original fotográfico, que surgem em diversas publicações do período, são destacadas por Joaquim Marçal, que enumera análises, registros e uma profusão de gravuras, cartuns, mapas e fotografias que surgem em periódicos como “Ilustração do Brasil”, “O Besouro”, “A Cigarra”, “O Mercúrio”, “O Mosquito”, “A Comédia Social”, “A Vida Fluminense”, “O Torniquete” e “O Mequetrefe”, entre muitos outros – com o mérito adicional de abordar não apenas o Rio de Janeiro, estendendo a abrangência a questões nacionais e internacionais do período, no que se refere à reprodução técnica, à economia e à socialibidade em geral.

Tenho a pesquisa como missão”, reconhece Joaquim Marçal. A vocação ele atribui a questões de família, especialmente a influência do trabalho de seu pai, o escritor Olímpio de Souza Andrade. Pesquisador destacado em seu tempo e especialista na vida e obra de Euclides da Cunha, o pai de Joaquim Marçal também recebeu um prêmio importante da Unesco, no final da década de 1950, e chegou a ter seu trabalho publicado na célebre Coleção Brasiliana.









Viagens da Família Imperial do Brasil:
no alto, Dom Pedro 2° e família fotografados
no Vale das Pirâmides, Egito, em 1871.
Acima, Ouro Preto, antiga Vila Rica, em
daguerreótipo datado de 1881 de autoria
atribuída ao Imperador Pedro 2°. Abaixo,
capas de duas publicações pioneiras na
imprensa brasileira: a revista Semana Illustrada,
de Henrique Fleuiss, que circulou de 1860 a 1876;
e a Revista Illustrada, de Angelo Agostini, que
circulou de 1876 a 1898. Também abaixo, 
um marco historiográfico registrado pelo
autor do livro, Joaquim Marçal, com a
identificação da primeira fotografia feita
em território das Minas Gerais: uma vista
panorâmica por um fotógrafo anônimo da
praça central (atualmente Praça Tiradentes)
em Ouro Preto, então Vila Rica, registrada
possivelmente em 1865, com uma
legenda em dedicatória para
o imperador Dom Pedro 2°









Nos últimos anos, Joaquim Marçal também foi destaque na mídia por conta da curadoria que realizou em diversas exposições sobre fotografias do século 19, entre elas “De Volta à Luz”, “A Coleção do Imperador Dom Pedro 2°” e “Fotografia Brasileira e Estrangeira no Século 19”, apresentadas em São Paulo e no Rio de Janeiro e no exterior, em Buenos Aires, na Argentina, no Porto e em Lisboa, em Portugal. Uma amostra da qualidade de seu trabalho está refletida na publicação sobre a história da fotorreportagem no Brasil.

Registro de pesquisas que alcança dos primórdios da imprensa e das artes gráficas no Brasil aos avanços alavancados pelas nos técnicas da fotografia, nas décadas de 1880 e 1890, no livro Marçal enumera eventos e periódicos para destacar pioneiros esquecidos, reconhecendo o mérito de profissionais que fizeram nossos primeiros jornais e revistas ilustradas. Entre tantos pioneiros, alguns poucos surgem como exceção pelo reconhecimento que tiveram em seu tempo e no século seguinte.

Uma destas poucas exceções é Marc Ferrez, nome fundamental da fotografia, que obteve as mais importantes condecorações pela excelência de seu trabalho, no Brasil e em outros países, especialmente nos EUA e na França, onde suas fotos foram exibidas com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris. Ferrez fotografou famosos e anônimos, o trabalho escravo, os primeiros contatos com povos indígenas, festas religiosas, acontecimentos políticos e diversas paisagens, nas cidades e nos confins do Brasil, em ângulos e perspectivas que depois dele ganharam a condição de cenários de cartões postais.









As imagens, registradas em daguerreótipos e outras técnicas fotográficas por pioneiros como Marc Ferrez, eram posteriormente retocadas e redesenhadas por ilustradores para publicação nos principais jornais e revistas. Para o leitor significava um novo mundo aquela possibilidade, até então inédita, de visualizar as imagens impressas e relacionadas aos fatos narrados – ainda que, na realidade brasileira, somente a partir do começo do século 20 as técnicas de impressão, com o uso do clichê como matriz, garantiriam uma impressão de melhor qualidade e em cores.

Diante das lacunas intermináveis de nossa história cultural – e considerando o novo perigo virtual que representa, em sites e blogs, uma impressionante profusão repetida de plágios para informações equivocadas e atribuições errôneas – o autor permite, através deste “História da Fotorreportagem no Brasil”, o acesso e livre trânsito a lições preciosas e trajetórias contextualizadas para professores, estudantes, pesquisadores e profissionais de diversas áreas, considerando o complexo e ainda nebuloso universo que as possibilidades da fotografia e da imprensa ilustrada vêm inaugurar em território brasileiro, a partir de meados de 1800.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fotorreportagem desde 1839. In: Blog Semióticas, 30 de outubro de 2012. Disponível em http://semioticas1.blogspot.com/2012/10/fotorreportagem-desde-1839.html (acessado em .../.../...).



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Cenas do Brasil Antigo: Augusto Riedel 
registrou, em 1865, a reunião quinzenal dos
escravos e funcionários nas minas de ouro
em Morro Velho, região de Nova Lima,
Minas Gerais (no alto). Acima, fotografia
de Marc Ferrez registra escravos em uma
fazenda de café na Serra da Mantiqueira,
Minas Gerais, em 1885; e a sessão de votação
da Lei Áurea, em maio de 1888, que
extinguiu a escravidão no Brasil








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