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21 de abril de 2012

Tancredo virou ficção






Os homens fazem a sua própria História,
mas nunca a fazem como querem.

–– Karl Marx, “O 18 de Brumário
de Louis Bonaparte” (1852).

 
Atravessar o Rubicão” é uma expressão que remete a um dos mais famosos episódios de Roma na Antiguidade Clássica: o general e estadista Júlio César, no ano 49 antes de Cristo, tomou a decisão crucial de atravessar o rio Rubicão com seu exército, transgredindo a lei que determinava o licenciamento das tropas armadas toda vez que elas retornassem pelo norte de Roma. Com a máxima “alea jacta est” (a sorte está lançada), César assumiu todos os riscos, transpôs o rio com suas tropas e mudou os rumos da história.

O episódio de César, alegoria milenar sobre aqueles que tomam decisões radicais e arcam com as consequências de suas atitudes, perpassa o romance “O Dossiê Rubicão – Quando a morte assume o poder” (Editora Batel), terceiro livro publicado pelo jornalista Ramiro Batista. A proposta do romance não poderia ser mais corajosa: uma trama ficcional que reúne jornalistas às voltas com a cobertura política que alcança da emocionante, porém frustrada, campanha popular pelas eleições Diretas Já, até a posse malograda, porque não houve, do presidente eleito Tancredo Neves (1910-1985).

O título do livro, aliás, além de remeter ao drama e à redenção de César na história do Império Romano, também é uma citação a uma das mais famosas frases de Tancredo  uma frase que todos os jornalistas que cobriam as pautas de política na década de 1980 conhecem de cor e salteado: “Ninguém tira os sapatos antes de chegar ao rio, mas ninguém vai ao Rubicão só para pescar”.











Tancredo virou ficção: um encontro
histórico no início
de 1981 para tratar de uma campanha nacional
em defesa da democracia e das eleições diretas
para presidente da República reuniu
Tancredo Neves,
Leonel Brizola, Ulysses Guimarães
e o líder
sindical Luiz Inácio Lula da Silva.

A
s imagens que ilustram esta postagem
não estão publicadas no livro O Dossiê Rubicão.
Créditos de identificação das imagens e
fontes estão indicados quando houver













Meu livro, Dossiê Rubicão, é uma mistura de ficção e realidade para tentar desvendar segredos e bastidores de Tancredo Neves em sua campanha à Presidência da República”, destaca o autor, que naquele período histórico que fornece o pano de fundo ao romance fazia seu aprendizado como jornalista profissional em Belo Horizonte. Os personagens da política da época tiveram seus nomes reais mantidos no romance, mas os nomes dos profissionais de imprensa são todos fictícios, segundo o autor, que mistura experiências reais e literárias para contar aquele episódio que foi um dos momentos mais traumáticos da história recente do Brasil.



Ficção e jornalismo caminham juntos



No romance de Ramiro Batista, ficção e jornalismo caminham juntos, abarcando o breve período que vai do fim de janeiro 1984, quando é realizado o primeiro grande comício pelas Diretas, na Praça da Sé, em São Paulo, até o dia 15 de março de 1985, data da posse de Tancredo Neves como presidente da República. Não fossem as interfaces com os dramas da política brasileira da década de 1980, o livro também poderia ser descrito como um daqueles roteiros policiais de filmes “noir” que envolvem sexo, drogas e traições intrincadas.








Há um jovem repórter em busca do furo jornalístico, o desaparecimento de uma bela fotógrafa com um dossiê suspeito e a denúncia sobre os bastidores das armações de um grande jornal. Mas além da farsa, também há a tragédia: o fracasso do sonho de democracia da campanha das Diretas e as conspirações repletas de contradição, para abafar e conduzir a mobilização popular que tinha ganhado as ruas. Sem contar a pressão dos militares e os esquemas da corrupção eleitoral.

Tudo isso e mais a presença em cena do veterano Tancredo Neves, ex-ministro da Justiça de Getúlio Vargas (1982-1954) que atravessaria a história brasileira do século 20 e chegaria como protagonista à eleição indireta em janeiro de 1985. No Colégio Eleitoral, Tancredo enfrenta e vence Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo, sagrando-se como primeiro presidente civil depois de 20 anos de ditadura militar. Ironias do destino: Tancredo ganha, mas não leva. Em seu lugar assume o vice José Sarney, partidário do PDS, antiga Arena, partido que durante duas décadas havia dado sustentação política à ditadura militar. 




Henfil (1944-1988)




Glauco (1957-2010)       




Entre a farsa e a tragédia



Nas páginas do romance, farsa e tragédia estão na zona de fronteira que divide, e às vezes confunde, a ficção e o jornalismo: os personagens do romance investigam e Tancredo chega a montar um escritório secreto no Rio de Janeiro para se encontrar às escondidas com sinistras figuras do regime militar; também esconde até o limite sua doença, com medo de que a notícia possa interferir no processo. A posse, afinal, é malograda e o que seria a grande manchete da imprensa ninguém deu, para não colocar em risco a transição – ameaçada pela truculência dos baluartes da direita e dos setores mais reacionários, mal acostumados às benesses espúrias que a ditadura militar proporcionava.

A trama ficcional também lança mão do contexto jornalístico para situar o leitor sobre o que ocorria no mundo naquele momento histórico: o governo belicista do norte-americano Ronald Reagan planejava invadir a Nicarágua, o cardeal alemão e futuro Papa Joseph Ratzinger comandava no Vaticano uma perseguição implacável contra as lideranças da Teologia da Libertação no Brasil e na América Latina – e uma doença até então desconhecida, tida como uma “peste gay”, começava a dar seus primeiros sinais. Tudo isso num cenário cultural em que despontavam como novidades o teatro besteirol, as rádios FM e uma profusão de bandas de rock “made in Brazil”.







O Dossiê Rubicão”, que teve a primeira edição lançada no começo de 2010, é o terceiro livro publicado por Ramiro. A estreia na ficção foi em 1983 com “A Pintinha Negra”, coletânea de sátiras políticas sobre sua terra natal, Muriaé, na Zona da Mata de Minas Gerais, onde Ramiro trabalhou em jornais locais. Em 1986 ele lançaria seu primeiro romance, “O Camaleão no Abismo”, em que descreve a educação sentimental de seu protagonista.

Além de jornalista, Ramiro também se formou em Literatura e trabalhou em assessorias de imprensa. Da sua trajetória profissional constam ainda uma temporada como repórter no jornal “Estado de Minas” e um período como funcionário da Assembleia Legislativa de MG. Muito desta trajetória transparece em “O Dossiê Rubicão” na história de seu alter-ego Gustavo Guerra, jornalista inexperiente, mas cheio de ideais, que chega à redação de um jornal de São Paulo e se apaixona por uma bela fotógrafa.







É a fotógrafa, na trama do romance, que guarda o grande segredo: a cópia de um dossiê comprometedor, batizado Projeto FR ou Folha Rubicão. O dossiê parece ser uma seleção de documentos sobre uma possível reformulação do jornal, mas na verdade também inclui uma análise das artimanhas de certos bastidores da sucessão presidencial que poderia levar Tancredo Neves à Presidência da República.



Ameaças de retrocesso



No meio das falcatruas, o caso de amor entre Gustavo e Camila e a sucessão de pautas da cobertura jornalística, com uma série de ações militares que na verdade são ameaças de retrocesso frente à tentativa de abertura política. Há ainda a presença de alguns dos mais emblemáticos personagens do nosso passado recente: Ulysses Guimarães, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e muitos outros. A certa altura, o jornalista e protagonista do romance descobre que Tancredo está doente. É assim em “O Dossiê Rubicão”: a cada lance, os acontecimentos reais servem de alavanca para a trama.





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Tancredo virou ficção: a partir do alto, Lula
em assembleia em 13 de março de 1979, quando
os metalúrgicos de São Bernardo do Campo,
Diadema, Santo André e São Caetano deflagraram
a primeira grande greve do ABC paulista. Acima,
a partir do alto, Vinicius de Moraes em comício
com Lula, em 1979, no Dia do Trabalho, no
Paço Municipal, em São Bernardo do Campo (SP);
com Elis Regina no show em 1979, também em
São Bernardo; com o arcebispo de Olinda e
Recife, Dom Hélder Câmarareferência na
defesa dos mais pobres e dos Direitos Humanos,
no encontro em 1979 na entrada da sacristia
da Igreja das Fronteiras, no Recife, com Lula,
na época líder sindical, o filho Sandro e sua
esposa Marisa, fotografados por
Natanael Guedes para Jornal do Brasil.

Também acima, Lula apoiado por sindicalistas,
entre eles Clara Ant, Osvaldo Cruz Jr., Expedito
Soares Batista e José Cicote, durante uma
mobilização na cidade de São Bernardo do
Campo, no 1º de maio de 1981, em foto de
Jesus Carlos. E dois encontros históricos
para discutir proposta de uma campanha nacional
pelas eleições diretas para presidente da República:
no primeiro, Tancredo Neves, Leonel Brizola,
Ulysses Guimarães e Lula, em fevereiro de 1981,
em fotografia de Moacir Moreno; no segundo, em
julho de 1981, estão, entre outros, Ulysses Guimarães,
Lula e Tancredo, fotografados por Paulo Cerciari.
Também acima, Lula com Fernando Henrique
em 1984, no ABC paulista, em passeata e
distribuindo panfletos pela redemocratização
do Brasil; e Lula no comício pelas Diretas Já! no
Vale da Anhangabaú, São Paulo, no dia 25 de
janeiro de 1984, com o jornalista Osmar Santos
os atores Lídia Brondi José Wilker.

Abaixo, mais imagens emblemáticas de 1984:
1) Lula e Henfil no comitê de organização das
Diretas Já!; 2) Darcy RibeiroLulaFranco Montoro,
o português Mário Soares e Leonel Brizola nos
jardins do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro,
durante Congresso da Internacional Socialista
(evento que reuniu participantes de 50 países e
teve como presidente o ex-chanceler da Alemanha
Ocidental, Willy Brandt); 3) Miguel Arraes,
Chico Buarque e Eduardo Suplicy
4) Ulisses Guimarães, Brizola, Lula,
Osmar Santos Franco Montoro no comício
de 16 de abril, no Vale do Anhangabaú,
região central de São Paulo, que reuniu
público recorde de 1,5 milhão de pessoas;
e 5) Lula no discurso que encerrou
o comício no Anhangabaú

















O Dossiê Rubicão” consumiu três anos de trabalho, segundo o autor. “Há muitos anos que venho maquinando este livro, mas o começo da redação, de fato, foi há cerca de três anos, quando li 'O Código Da Vinci'. Foi o best-seller do norte-americano Dan Brown que deflagrou a escrita do livro, mas acho que o modelo para a narrativa está mais para 'Agosto', do Rubem Fonseca”, aponta. Publicado em 1990, o romance policial de Rubem Fonseca também funde ficção e história do Brasil, culminando com o suicídio do presidente Vargas. Na versão da história oficial, Tancredo Neves teria recebido das mãos do próprio Getúlio Vargas a carta-testamento que seria divulgada por ocasião da morte do presidente.

O título inicial era para ser ‘Pequenas Vilanias’, para remeter às imposturas do dia a dia, tanto na imprensa e na política como na vida das pessoas comuns. Também cheguei a trabalhar com o título ‘O Código Tancredo’, mas gostei muito da sugestão do editor para o título definitivo. Ficou mais abrangente e mais literário”, avalia. Na época descrita no romance, o autor também trabalhava em jornal de BH, mas preferiu situar seus personagens em uma redação fictícia em São Paulo, por ele batizada de “Folha do Povo”.








A imprensa brasileira naquele período vivia muitos dilemas e transformações”, recorda o autor de “O Dossiê Rubicão”. “Era a transição da censura da ditadura militar para as liberdades democráticas e era o começo das mudanças na tecnologia para a produção industrial da notícia, das laudas de papel nas barulhentas máquinas de escrever para as primeiras telas silenciosas de computador”. 



Dan Brown e Rubem Fonseca 



O processo técnico do jornalismo, descrito em várias passagens do romance, fornece as imagens da primeira página do livro, que reproduz uma antiga lauda datilografada com a manchete que traz o “furo” de reportagem que mudaria a história do Brasil e que movimenta as intrigas criadas pelo “O Dossiê Rubicão”. Ao final do romance, mesmo para o leitor que não é jornalista paira uma certeza, ou antes uma suspeita: a farsa e a tragédia daquele momento resultaram das armações dos setores corruptos e conservadores da sociedade brasileira, mas também foram decorrência das limitações do trabalho jornalístico dos profissionais que cobriram a eleição e o fim de Tancredo.







Cenas que fizeram a História no ano de 1984:
acima, a multidão no comício pelas Diretas Já!
na Praça da Sé, em São Paulo, no aniversário da
cidade, em 25 de janeiro de 1984. Abaixo,
personalidades de referência do teatro, do
cinema, da TV e da MPB na luta contra
a ditadura militar e pela redemocratização:
Beth Carvalho com Brizola e Lula;
Dina Sfat, Raul Cortez e Ruth Escobar,
Belchior e Sonia Braga; Chico Buarque
no palanque durante o grande comício
pelas Diretas Já! no Vale do Anhangabaú,
em São Paulo, em 16 de abril de 1984; e um
registro histórico do comício realizado na
mesma época, em 10 de abril de 1984, que
reuniu um milhão de pessoas no Rio de Janeiro,
em frente à Igreja da Candelária.

Também abaixo, a última participação de
Tancredo no comício da Candelária; e duas
fotografias históricas e simbólicas de Orlando Brito,
um dos principais fotojornalistas da cena política do
Brasil nos últimos 50 anos: 1) flagrante em Brasília
durante a votação da emenda das Diretas Já pela
Câmara dos Deputados, no dia 25 de abril de 1984,
quando a emenda obteve 298 votos a favor,
65 votos contra e três abstenções; mas por uma
manobra política dos aliados do regime militar,
112 deputados não compareceram à votação e
a emenda foi rejeitada porque não alcançou o
número mínimo de votos para sua aprovação;
e 2) uma cena do último dia da ditadura militar,
minutos antes da posse de José Sarney, o vice
que foi empossado como presidente da República,
em 15 de março de 1985, porque na véspera da
posse Tancredo foi hospitalizado às pressas
para fazer uma cirurgia; e a primeira página
histórica do Jornal do Brasil anunciando a
morte de Tancredo em 21 de abril de 1985

















Antes do drama de Tancredo, a campanha pelo voto direto para presidente mobilizou multidões em grandes comícios nas capitais que juntavam políticos a artistas e intelectuais. A campanha começou ignorada sistematicamente pelos maiores veículos de imprensa, mas o gigantismo das manifestações nos primeiros meses de 1984, nas ruas em várias capitais, rompeu o silêncio. Na Praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro, data do aniversário da cidade, 300 mil pessoas participaram do comício. Em Belo Horizonte, cerca de 400 mil pessoas estavam presentes no comício da Praça da Rodoviária, em 24 de fevereiro. Na Candelária, no Rio de Janeiro, um comício reuniu um milhão de pessoas em 10 de abril. Em São Paulo, em 16 de abril, no último comício uma multidão se reuniu na concentração da Praça da Sé e seguiu em passeata até o Vale do Anhangabaú, com cerca de 1,5 milhão de pessoas.

Este distanciamento de quase três décadas nos ajuda a compreender melhor os boicotes, as traições e as ameaças de golpe que o Tancredo enfrentou. Tanto que, no livro, ele aparece mais humanizado, cercado por toda aquela teia complexa de acontecimentos que fizeram história”, explica o autor, reconhecendo que transcreveu frases históricas dos políticos envolvidos no processo e interligados à extensa galeria de eventos que incluem o primeiro Rock’n Rio e o que mais fosse notícia no Brasil e no mundo.







O ritmo de trabalho para o livro foi intenso, confessa Ramiro Batista. “Li muito, pesquisei jornais e revistas, e tentei ser metódico na redação de pelo menos três páginas por dia”, recorda. Dos primeiros comícios pelas Diretas Já, até as vésperas da posse do presidente Tancredo Neves, em abril de 1985, o romance percorre as tramas imaginadas pela ficção e segue os passos imprevistos e imprevisíveis da história. 

Conduzidos pela farsa e pela tragédia, a sequência dos capítulos de "O Dossiê Rubicão" persegue os registros oficiais e os acontecimentos que se tornaram notícia naquela época de expectativas e de incertezas. Enquanto Tancredo investe nos acordos de toda ordem para tomar posição de frente na cena política, as tramas da ficção descrevem o triângulo amoroso entre o jovem repórter, uma editora do “Folha do Povo” e Leão Machado, personagem emblemático que, não por acaso, redige a carta-testamento que encerra o romance. Trata-se, afinal, de um daqueles casos declarados da ficção em que qualquer semelhança com os fatos reais não terá sido apenas uma mera coincidência.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Tancredo virou ficção. In: Blog Semióticas, 21 de abril de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/tancredo-virou-ficcao.html (acessado em .../.../...).


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