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29 de abril de 2023

Fractais de Marianne Peretti

    





 

A geometria fractal não é apenas mais um capítulo

da matemática e sim uma habilidade da percepção que ajuda

o homem comum a ver o mundo de maneira diferente.

–– Benoît Mandelbrot (1924-2010).   


Única mulher na equipe de trabalho de Oscar Niemeyer para a construção de Brasília, Marianne Peretti morreu aos 94 anos, no dia 25 de abril, deixando um acervo grandioso de uma forma de arte pouco cultivada no Brasil: os vitrais. As obras mais importantes do vitral no patrimônio histórico e artístico brasileiro foram criadas por Marianne Peretti, com destaque para os conjuntos de vitrais do Plano Piloto da Capital Federal, nos prédios da Catedral de Brasília, da Câmara dos Deputados, do Panteão da Pátria, do Superior Tribunal de Justiça, do Palácio do Jaburu e do Memorial JK, entre outros, incluindo obras em capitais de outros estados do Brasil e no exterior.

Marianne Peretti também se dedicou à criação de centenas de murais e esculturas, instalados no Brasil e em outros países, principalmente em cidades da França e da Itália. Filha da modelo fotográfica francesa Antoinette Louise Clotilde Ruffier e do historiador pernambucano João de Medeiros Peretti, Marie Anne Antoinette Hélène Peretti nasceu em Paris, onde teve sua formação técnica e acadêmica em artes plásticas. Veio de mudança definitiva para o Brasil em 1953, depois de seu casamento com Henry Albert Gilbert, um cidadão inglês que trabalhava em São Paulo e que conheceu em uma das várias viagens de navio que fazia, nas idas e vindas entre o Brasil e a França, para visitar a família.

 

 

             















      
    




Fractais de Marianne Peretti: no alto da página,
a Catedral de Brasília, com a estrutura dos vitrais da
artista Marianne Peretti, considerada por pesquisadores
internacionais uma obra-prima do vitral no século 20.
Também acima, o interior da Catedral de Brasília;
duas fotografias da artista, planejando os vitrais no
interior da catedral e em fotografia de 1965, na época
em que participou da Bienal de São Paulo; e em
uma visita à catedral no ano de 2015.

Abaixo, Marianne Peretti na última visita que fez a
Brasília, em dezembro de 2021, fotografada diante de
sua obra "O lago dos peixes", no Museu do Senado,
um painel em vidro criado e instalado em 1978








Um ano antes da mudança para o Brasil, a artista fez sua primeira exposição individual, apresentada na Galerie Mirador da Place Vendôme, em Paris, em 1952, e contando na abertura com a presença ilustre de um de seus admiradores, Salvador Dalí. Em seus depoimentos para o estudo biográfico “A ousadia da invenção” (Edições SESC e Editora B52, de 2015), o primeiro livro dedicado à artista, organizado por Tactiana Braga e Laurindo Pontes, que catalogou cerca de 600 trabalhos de sua autoria, Marianne Peretti reconhece e destaca a importância da longa parceria com Oscar Niemeyer, que deu origem a mais de 20 trabalhos em Brasília, todos integrados de forma harmoniosa aos projetos arquitetônicos na estética e na funcionalidade.



Harmonia e funcionalidade



A arte de Marianne Peretti também trouxe uma contribuição conceitual para o cânone da arquitetura: com a concepção inovadora de seus vitrais, a força criativa da artista confronta os preceitos da arquitetura modernista que zelam pela autonomia estética dos meios construtivos. Segundo tais preceitos, a integração de esculturas, pinturas, murais e vitrais com a estrutura concreta das obras arquitetônicas nunca alcança resultados convincentes. Porém, a arte de Marianne Peretti comprova, na prática, que matérias-primas inovadoras, aliadas à criatividade nas formas e cores, podem conviver em harmonia e até mesmo ampliar a funcionalidade na engenharia e na arquitetura dos projetos.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista
com Salvador Dalí, em 1952, na abertura de sua
primeira exposição individual em Paris. Abaixo,
os rascunhos dos vitrais da Catedral de Brasilia,
em tamanho natural, no piso do ginásio Nilson Nelson,
em Brasília, e o painel "Alumbramento", formado
por mais de 200 peças de vidro, instalado
no Salão Branco do Congresso Nacional












Formada a partir de uma variedade de materiais que inclui, além do vidro e da fibra de vidro, resinas, tinturas, bronze e outros metais, a arte do vitral de Marianne Peretti retoma a tradição que teve início a partir do ano 1000, em culturas orientais, e que floresceu como elemento do estilo gótico na ornamentação de igrejas e catedrais da Europa durante a Idade Média. Na forma tradicional cultivada pelos europeus, os vitrais coloridos e seus efeitos refletidos pela luz do sol quase sempre retratam personagens e cenas religiosas do cristianismo. Nas obras criadas por Marianne Peretti, as cenas religiosas cedem lugar a formas abstratas e geométricas que inovam e rompem com os paradigmas medievais do vitral.



Ousadia da invenção



As inovações apresentadas na arte do vitral de Marianne Peretti, como destaca Véronique David, em depoimento para o livro “A ousadia da invenção”, estão presentes na forma e no conteúdo, bem como na relação que se estabelece com a luz. Véronique David, do Centro André Chastel – Sorbonne/INHA, defende que o trabalho da artista na Catedral de Brasília representa uma obra-prima mundial do vitral do século 20. Conforme seu argumento, na maioria dos vitrais na tradição da Europa a relação com a luz se dá como se houvesse uma “parede transparente” que pode reluzir e iluminar um ambiente escuro, enquanto nos vitrais criados por Marianne Peretti as formas translúcidas e as sobreposições de vidro permitem que a obra reflita e se prolongue no espaço, com os reflexos da iluminação sendo projetados nos vãos e superfícies, como se a obra não acabasse nos limites da moldura que está delineada pelos arcos e ângulos do metal e do concreto.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista
fotografada em 2014 por Breno Laprovitera. Abaixo,
"Pasiphae", painel em cristal e vidro artesanal,
instalado no Salão Nobre do Congresso Nacional;
e o vitral instalado na Capela do Jaburu, em Brasília,
com iluminação natural em horas diferentes do dia

















São exatamente os vitrais mais conhecidos de Marianne Peretti, instalados na Catedral de Brasília, que exemplificam à perfeição suas inovações em relação à tradição do vitral gótico medieval, de inspiração restrita às cenas de passagens bíblicas. Na Catedral de Brasília, os vitrais coloridos da artista, recobertos com camadas de fibra de vidro, rodeiam a construção em 360 graus, cobrindo todos os intervalos das 16 colunas curvas, simetricamente opostas, que formam diâmetros de 70 metros com altura de 40 metros e ampliam as vibrações acústicas, o que dispensa microfones para a celebração das missas. As bases muito afinadas das colunas, intercaladas pelo posicionamento dos vitrais e pelos reflexos do espelho d'água ao redor da catedral, provocam no observador uma certa sinestesia e a impressão de que as estruturas de concreto, de metal e de vidro mal tocam o piso.



Gêneros e suportes variados



Além de sua maestria na construção e na instalação dos vitrais, Marianne Peretti tem uma trajetória de premiações com artes plásticas em gêneros e suportes tão variados como os murais, as esculturas, trabalhos em design e em arquitetura, além do desenho puro em técnicas mistas, incluindo ilustrações sobre encomenda para livros e outras publicações. Entre as premiações no Brasil, a primeira ocorreu em 1965, na Bienal de São Paulo, com o prêmio pela capa do livro “As Palavras”, de Jean-Paul Sartre.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista em seu
ateliê em Olinda, Pernambuco, em fotografia de
Breno Laprovitera
. Abaixo, dois vitrais da artista:
"Araguaia", instalado em 1977 no Salão Verde
do Congresso Nacional, em Brasília; e o mural
no Memorial Teotônio Vilela, em Alagoas








As obras concebidas para Brasília foram "pensadas" no Rio de Janeiro, onde Marianne morava. Ela viajava para a nova capital a cada 15 dias, para desenvolver e acompanhar os trabalhos, mas quando pisou pela primeira vez em Brasília, a capital já havia sido inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek e, no entanto, continuava em construção. Em abril de 2016, a artista foi homenageada com a maior retrospectiva já feita sobre suas obras, no Museu da República, em Brasília, com a reunião de peças originais de escultura, objetos funcionais como mesas e cadeiras, ilustrações, maquetes e projetos em tamanho natural, com projeções multimídia reproduzindo o efeito de grandiosidade de seus painéis, murais e vitrais.







Fractais de Marianne Peretti: acima, um anjo no vitral
da artista instalado na câmara mortuária do ex-presidente
Juscelino Kubitschek no Memorial JK, em Brasília.

Abaixo, a artista em fotografia de 1970 e fac-símiles
de duas cartas manuscritas por dois parceiros
de anos de trabalho com Marianne Peretti:
Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Também abaixo,
o documentário "Uma mulher e uma cidade",
realizado em 2018 em homenagem à artista. 

No final da página, os vitrais da artista instalados
no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília;
a escultura em bronze "O Pássaro" e "Uma Cadeira",
objeto funcional com design de Marianne Peretti























Arte monumental


A exposição “A arte monumental de Marianne Peretti”, realizada no Museu da República, teve como complemento seminários com pesquisadores, técnicos e especialistas. Elogios e o completo reconhecimento da importância do trabalho da artista também vieram de Niemeyer e de Lúcio Costa, autores do Plano Piloto de Brasília. Niemeyer declarou em uma carta manuscrita: “Me emocionava vê-la durante meses debruçada a desenhar os vitrais. Eram centenas de folhas de papel vegetal que coladas representavam um gomo da catedral. Marianne Peretti é uma artista de excepcional talento. Os vitrais maravilhosos que criou para a Catedral de Brasília são comparáveis, pelo seu valor e esforço físico, às monumentais obras da Renascença. Sua preocupação invariável é inventar coisas novas, influir com seu trabalho no campo das artes plásticas.”

Lúcio Costa, parceiro de Niemeyer, também registrou em uma carta manuscrita, datada de 6 de agosto de 1993, sua homenagem à obra e à maestria de Marianne Peretti, a artista dos vitrais: “Tive afinal o prazer, depois de tanto tempo, de conhecer pessoalmente a artista que soube tão bem ‘dar à luz’ o interior da Catedral de Brasília, problema difícil que somente uma alma como a sua e um saber como o seu seriam capazes de resolver. Em nome da cidade, o inventor dela agradece a você.” Os elogios de Niemeyer e de Lúcio Costa, e também de todos os que passam pela experiência de estar dentro da Catedral de Brasília ou diante da variedade dos painéis transparentes de Marianne Peretti, têm total merecimento.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fractais de Marianne Peretti. In: Blog Semióticas, 29 de abril de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/04/fractais-de-marianne-peretti.html  (acessado em .../.../…).



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27 de fevereiro de 2023

Arte moderna na Ucrânia

 




Não sei como será a Terceira Guerra Mundial.

Mas a Quarta, com toda certeza, será com paus e pedras.

–– Albert Einstein em 1945. 



A questão da arte moderna na Ucrânia é uma questão política – assim como é política qualquer questão sobre arte em qualquer circunstância. Na Ucrânia, a evolução da arte foi especialmente marcante na década de 1920, época da entrada do país na União Soviética, com artistas que influenciaram de maneira definitiva a arte moderna no Ocidente, em várias frentes, mas assim como toda a população ucraniana, muitas obras estão ameaçadas de destruição com a guerra iniciada em fevereiro de 2022 – um conflito de grandes proporções que já matou milhares de civis e militares e já é considerado como o maior confronto militar ocorrido na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Como estratégia emergencial, uma seleção dos acervos da arte moderna da Ucrânia foi reunida, com apoio de museus e de colecionadores, e transportada até o Museu Thyssen-Bornemisza, da Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia). Outras ações de resgate e preservação de obras de arte em áreas de bombardeios foram organizadas por historiadores e técnicos de museus da Ucrânia e de outros países em um fórum on-line coordenado pelo historiador Kilian Heck, da Universidade de Greifswald, da Alemanha, com apoio da Aliança Internacional para Proteção de Patrimônio em Áreas de Conflito (Aliph), sediada em Genebra, Suíça. Uma das ações resgatou 16 peças de arte sacra bizantina, com cerca de 1.500 anos, que estavam no Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram levadas para o Museu do Louvre, em Paris.

A guerra, que oficialmente teve início com a invasão da Ucrânia pelas tropas militares da Rússia, no final de fevereiro de 2022, na verdade começou bem antes, com a ascensão ao poder político de grupos de orientação fascista e armamentista na Ucrânia a partir do período entre 2013 e 2014, com a escalada de grandes e violentos protestos urbanos que na época foram chamados de Euromaidan ou Primavera Ucraniana. Segundo maior país da Europa em área territorial (atrás apenas da Rússia, seu país vizinho, com o qual compartilha extensas fronteiras ao leste e ao nordeste), a Ucrânia em 2016 completou 25 anos de independência em relação à União Soviética, mas seu destaque entre as maiores economias do planeta vem se degradando de forma acelerada desde a separação.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Carrossel,
pintura em óleo sobre tela de 1921, obra do
artista Davyd Burliuk. Acima, trabalhadores
e equipe técnica do Museu Nacional de Arte
da Ucrânia preparam obras do acervo para
serem transportadas para a Espanha. Abaixo,
um retrato pintado no final da década de 1920
por Kostiantyn Yeleva; e Uma camponesa,
pintura de 1910 de Volodymyr Burliuk.
Todas as obras reproduzidas abaixo fazem
parte do acervo reunido na exposição do
Museu Nacional Thyssen-Bornemysza, da
Espanha, nomeada como En el ojo del huracán:
vanguardia en Ucrânia, 1900-1930

 










De 11ª economia do mundo, no final do século 20, a Ucrânia começou a decair em potencial no novo século, assistindo a sucessivas pioras de seu parque industrial, que era complexo e desenvolvido quando o país fazia parte da União Soviética. Desde a separação, aconteceram perdas radicais em sua pauta de exportação, baseada em máquinas e produção de bens de alto valor agregado, além da grande produção agrícola, e houve uma progressiva ampliação da dependência de importações. Também em 2016, o PIB (Produto Interno Bruto) da Ucrânia já estava muito abaixo do nível que tinha antes do país separar-se da União Soviética, de acordo com Moniz Bandeira (no livro “A desordem mundial”, editora Civilização Brasileira), e a concentração de riqueza em setores restritos da elite ucraniana atingia níveis impressionantes.

O caos na Ucrânia tem acontecimentos que antecedem em alguns anos a guerra iniciada em fevereiro de 2022. A partir de 2013, o governo decidiu suspender um acordo com a União Europeia e retomar sua aproximação com a Rússia. Desde então, grupos fascistas identificados com a sigla Pravy Sector conseguiram incendiar o país com grandes protestos urbanos que levaram à deposição do governo, dando início a um estado de terror. A calamidade gerou conflitos de guerra civil em várias regiões do país, com políticos fascistas tomando o poder e com a liberação sem restrições para o comércio de armas de fogo. A crise teria um novo capítulo em 2019, com a surpreendente eleição de um comediante, Volodymyr Zelensky, para presidente do país.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Adão e Eva,
pintura em óleo sobre tela de 1912, obra do
artista Wladimir Baranoff-Rossiné, e um esboço
em aquarela sobre papel para um movimento
coreográfico de Masks, da Escola de Dança
Bronislava Nijinska, de Kiev, obra de 1919
de Vadym Meller. Abaixo, 1º de maio, pintura
em óleo sobre tela de 1929 de Viktor Palmov;
e Composição, pintura de 1919 de El Lissitzky





   




A guerra premeditada


Muito popular na Ucrânia por sua carreira de ator e comediante antes de entrar na política para concorrer ao cargo de presidente, Zelensky teve uma trajetória com atuações em várias frentes, incluindo espetáculos cômicos em teatro em que simulava tocar piano com o pênis, e também programas de TV, em especial a série “Servo do povo”, exibida em rede nacional de 2015 a 2018 como campeã de audiência. Na série de ficção, Zelensky fazia o papel principal de presidente da Ucrânia. Com o sucesso na TV, o grupo de Zelensky registrou um partido político com o mesmo nome da série. Nas eleições seguintes, em 2019, Zelensky despontou nas pesquisas como favorito e foi eleito presidente.

O capítulo de Zelensky na Presidência da República da Ucrânia não foi tão imprevisível como pode parecer. Com interesses muito próximos a autoridades do Ocidente e a grandes conglomerados multinacionais, o novo presidente e seu partido Servo do Povo deram início a mudanças na legislação e aceleraram um completo rompimento com o governo russo, ao mesmo tempo que buscaram maior aproximação do país com a União Europeia e com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), promovendo exercícios militares conjuntos com os norte-americanos no Mar Negro e nas fronteiras com a Rússia, o que na prática sinalizava uma declaração de guerra.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, A leiteira,
pintura em têmpera sobre tela de 1922, obra do
artista Mykhailo Boichuk; e Os inválidos, pintura
em óleo sobre tela de 1924 de Anatol Petrytskyi.
Abaixo, Afiando as serras, pintura de 1927 de
Oleksandr Bohomazov; e o cineasta e teórico
do cinema Dziga Vertov em ação, nas filmagens
de O homem com a câmera, de 1929, com
imagens captadas nas cidades ucranianas
de Kiev, Odessa e Kharkiv. Também abaixo,
um trailer do filme em cópia restaurada de 2014

















O passo seguinte de Zelensky no poder foi dar início à guerra premeditada: como resposta aos sucessivos exercícios militares conjuntos de Ucrânia e norte-americanos nas fronteiras, e diante da deliberação de Zelensky para que o país passasse a ser um território da OTAN, as tropas russas começaram a ocupação da Ucrânia. A ocupação dava continuidade a um processo que teve início em 2014, quando os russos ocuparam a Crimeia, logo após o golpe que levou à deposição do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich, que tinha posição favorável à Rússia. A Crimeia havia sido anexada à Ucrânia em 1952. Quatro décadas depois, em 1991, quando a Ucrânia se separou da União Soviética, a Crimeia conquistou a posição de República Autônoma. Desde o final de fevereiro de 2022 a guerra na Ucrânia veio se agravando e gerou uma enorme onda migratória de ucranianos para a Rússia, enquanto Estados Unidos e OTAN seguem fornecendo um grande arsenal de armamentos pesados para que tropas da Ucrânia, sob o comando do inexperiente Zelensky, elevado ao posto de comandante, enfrentem as tropas russas.

Segundo analistas internacionais, o conflito armado está longe de um desfecho (enquanto escrevo a versão final deste artigo, a revista Time destaca que o presidente Lula, do Brasil, surge como um mediador para o fim da guerra na Ucrânia. A reportagem da Time relata que tanto o presidente Zelensky da Ucrânia, como o presidente Vladimir Putin, da Rússia, já estariam avaliando a proposta de Lula para encerrar a guerra, mas nenhuma ação indica uma vontade política para estabelecer a paz. Além da Time, analistas de outros importantes veículos da imprensa internacional também informam que a proposta de Lula pode criar caminhos para a paz na Ucrânia).










Arte moderna na Ucrânia: no alto, O fotógrafo,
pintura em têmpera sobre papel de 1927, obra de
Ivan Padalka; acima, Gopak (dança ucraniana),
pintura de 1926-30 de Ilya Repin. Abaixo, obra de
Sonia Delaunay de 1925, Vestidos simultâneos
(três mulheres, formas, cores)
; e uma colagem
com pintura em óleo sobre tela em técnica mista,
Natureza morta, obra de 1926 de Aleksandra Ekster











Genocídio e independência


O percurso histórico da Ucrânia não foi menos violento no decorrer do último século. Além das batalhas no território ucraniano durante a Primeira Guerra Mundial, no período de 1914-1917, e na época da Revolução Russa de 1917, houve diversos conflitos armados pela independência do país no período de 1917 a 1921, até a entrada definitiva da Ucrânia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1922. Com os expurgos de Josef Stalin na União Soviética, na década de 1930, muitos líderes ucranianos foram presos ou mortos, o que gerou nova onda de protestos violentos. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o país teve posições contraditórias, com seus movimentos nacionalistas lutando simultaneamente contra os nazistas e contra os soviéticos.

Como saldo, os conflitos em decorrência da Segunda Guerra levaram à morte de cinco a oito milhões de ucranianos, na maior parte civis. Nas décadas seguintes não houve paz: as fronteiras da Ucrânia foram diversas vezes alteradas, quase sempre deflagrando mais violência e novos conflitos armados, até o fim da União Soviética, em 1991, com um referendo popular para a população ucraniana que aprovou a independência do país. No último século, a Ucrânia ainda foi palco do acidente na usina nuclear de Chernobil, em abril de 1986, que deixou milhares de mortos e consequências permanentes de contaminação e envenenamento.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Funeral,
pintura em óleo sobre papel de 1920, obra de
Oleksandr Bohomazov
. Abaixo, Retrato
de Mykhailo Semenko
, técnica mista de
aquarela, grafite e nanquim sobre papel,
obra de 1929 de Anatol Petrytskyi;
e Nova arte, desenho em técnica sobre papel,
obra em 1927 de Vasyl Yermilov para a capa
da edição nº 23 da revista Nove Mystetstvo
(Nova Arte), identificada como um marco inicial
do movimento construtivista









Um raro período de paz e prosperidade aconteceu na década de 1920, com a entrada da Ucrânia na União Soviética. Na cultura, a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema prosperavam de forma surpreendente. Sobre a literatura, o Brasil tem um vínculo importante com a Ucrânia: Clarice Lispector, uma das grandes referências da literatura brasileira, nasceu na cidade ucraniana de Tchetchelnik, enquanto seus pais percorriam as aldeias para fugir da perseguição aos judeus, durante a guerra civil na Rússia de 1920-1922. Contudo, como a própria Clarice declarou, a Ucrânia foi uma terra em que nunca pisou, pois veio para o Brasil com um ano e dois meses de idade, quando sua família de imigrantes chegou ao Recife, capital de Pernambuco. Clarice não é a única referência da Ucrânia na cultura brasileira. Outro nome importante é Gregori Warchavchik, arquiteto e artista plástico que nasceu na cidade ucraniana de Odessa e chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista, tornando-se um dos destaques da arquitetura moderna brasileira.

Depois de muitas idas e vindas, muitas perseguições e destruições, vários expoentes da arte moderna da Ucrânia permanecem na posição privilegiada de cânones da arte mundial, pelo que representaram de inovação e ruptura em seu tempo e pela influência que exercem até a atualidade como mestres do cubismo, do suprematismo, do futurismo, do expressionismo e da arte abstrata. Um grupo destes mestres tem em comum uma trajetória de formação acadêmica no início do século 20, na Ucrânia, e posterior destaque entre os modernos para além das fronteiras do país, especialmente em Moscou, na União Soviética, e em Paris, na França, onde vários deles viveram na célebre colônia de arte La Ruche (A Colmeia): neste grupo estão, entre outros, Sonia Delaunay, Olexandr Archipenko, Olexandr Bohomazov, Nathan Alman e Wladimir Baranoff-Rossiné.

Os artistas que deixaram a Ucrânia desde o começo do século 20, e que por longos períodos viveram ou em Moscou, ou na Alemanha, ou na colônia parisiense La Ruche, são conhecidos na história da arte como expoentes do Renascimento Ucraniano – entre eles nomes como Arkhip Kuindzhi, mestre da cor e dos efeitos de luz na pintura, que exerceu forte influência em seus contemporâneos e no surgimento da Arte Moderna, apontado como referência por nomes do primeiro time das vanguardas como Wassily Kandinsky e Marc Chagall, e também Dziga Vertov, de importância fundamental na história do cinema. Vertov, na verdade, nasceu na Polônia, mas teve sua formação acadêmica e técnica na Ucrânia, país onde realizou seus filmes mais importantes, mesmo depois de fixar residência em Moscou. Nascido Denis Arkadievitch Kaufman, ele mudou seu nome para Dziga Vertov – a palavra “dziga” em ucraniano significa moto-contínuo ou máquina de movimento perpétuo, e “vertov”, em russo (“vertet”), significa mover, rodar, girar.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Depois da Chuva,
pintura de 1881 de Arkhip Kuindzhi, nascido em Mariupol,
Ucrânia, na época uma província do Império da Rússia.

A
cima, a capa do catálogo da exposição realizada
no museu da Espanha. Abaixo, Composição,
pintura em óleo sobre tela 
de 1920 de Vadym Meller;
e Composição em suprematismo, colagem em técnica
mista sobre cartão, obra de 1921 de Boris Kosarev













Vanguardas ucranianas


Outro expoente do Renascimento Ucraniano é Kazimir Malevich, nascido em Kiev, mentor do movimento pioneiro da arte abstrata conhecido como suprematismo, e muitas vezes identificado erroneamente como russo, talvez por seu papel como artista central das vanguardas na União Soviética. Há outras situações semelhantes de erro de atribuição de nacionalidade de artistas ucranianos: uma delas é a trajetória de Aleksandra Ekster, uma das mulheres mais influentes das vanguardas da Europa e muitas vezes identificada como artista da Rússia, apesar de ter nascido na Polônia, ter vivido e trabalhado a vida toda na Ucrânia e ter residido apenas quatro anos em Moscou, antes de passar um longo período de exílio em Paris.

Há, também, casos de grandes artistas da Ucrânia que vêm de antes da arte moderna e que são erroneamente identificados como russos: um deles é Ilya Repin, nascido na província ucraniana de Chuguev e um dos nomes mais celebrados na Rússia na segunda metade do século 19. Depois de décadas atuando como professor na Academia Russa de Artes em São Petesburgo, Repin deixou o cargo em 1905 e foi morar na Finlândia. Quando a Finlândia se separou da Rússia, em 1917, Repin se tornaria um dos entusiastas da revolução, mas nunca mais foi autorizado a retornar a São Petesburgo ou a Moscou, nem quando houve exposições com retrospectivas de suas obras.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Três figuras de mulheres,
pintura em óleo sobre tela de 1909 de Oleksandra Ekster.
Abaixo, Anunciação, pintura em óleo sobre tela de
1908 de Oleksandr Murashko. No final da página,
Cidade, pintura de 1917 de 
Issakhar Ber Ryback;
e uma das curadoras da mostra, a ucraniana
Katia Denysova, durante uma entrevista coletiva
na abertura da exposição em Madri

  








Um século depois de seu surgimento, uma amostragem realmente importante do Renascimento Ucraniano e dos artistas de vanguarda da Ucrânia foi finalmente reunida – contraditoriamente como consequência da guerra. Tudo começou com uma viagem que parece enredo de um filme de ficção: quando teve início o bombardeamento em Kiev, em 2022, obras de arte muito valiosas que estavam no Museu Nacional da Ucrânia e em outros acervos e coleções particulares foram transportadas, secretamente, em dois caminhões que partiram da Ucrânia em direção à Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia), aberta ao público no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza. 

Depois da viagem arriscada de mais de 3 mil quilômetros atravessando a Europa, de Kiev a Madri, passando pela Polônia, as obras-primas da arte moderna da Ucrânia, talvez o patrimônio cultural móvel mais valioso do país, estarão em exposição de gala na Espanha até o final de abril. Depois da temporada na Espanha, o acervo segue para mostras em outros grandes museus, em itinerário que começa no Museum Ludwig, na Alemanha. As 70 obras reunidas para a exposição destacam, em primeiro lugar, o absurdo da guerra, de todas as guerras, mas também traduzem a importância de artistas célebres que nasceram ou trabalharam durante muitos anos na Ucrânia. São obras e artistas que deixaram marcas definitivas tanto na cultura ucraniana como no estabelecimento das revoluções radicais de sentido, de forma e de conteúdo, que convencionamos nomear no mundo inteiro como Arte Moderna.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte moderna na Ucrânia. In: Blog Semióticas, 27 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/02/arte-moderna-na-ucrania.html (acessado em .../.../…).

































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