da
matemática e sim uma habilidade da percepção que ajuda
o
homem comum a ver o mundo de maneira diferente.
–– Benoît
Mandelbrot (1924-2010).
Única
mulher na equipe de trabalho de Oscar Niemeyer para a construção de
Brasília, Marianne Peretti morreu aos 94 anos, no dia 25 de abril,
deixando um acervo grandioso de uma forma de arte pouco cultivada no
Brasil: os vitrais. As obras mais importantes do vitral no patrimônio
histórico e artístico brasileiro foram criadas por Marianne
Peretti, com destaque para os conjuntos de
vitrais do Plano Piloto da Capital Federal, nos prédios da
Catedral de Brasília,
da Câmara dos Deputados, do Panteão da Pátria, do Superior
Tribunal de Justiça, do Palácio do Jaburu e do Memorial JK, entre
outros, incluindo obras em capitais de outros estados do Brasil e no exterior.
Marianne Peretti também se dedicou à criação de centenas de murais e esculturas,
instalados no Brasil e em outros países, principalmente em cidades
da França e da Itália. Filha da modelo fotográfica francesa
Antoinette
Louise Clotilde Ruffier e do historiador pernambucano João de
Medeiros Peretti, Marie Anne Antoinette Hélène Peretti nasceu em
Paris,
onde teve sua formação técnica e acadêmica em artes plásticas.
Veio de
mudança definitiva para
o Brasil em 1953,
depois de seu casamento com Henry Albert Gilbert, um cidadão inglês que trabalhava em São Paulo e que conheceu em uma das várias
viagens de navio que fazia, nas idas e vindas entre o Brasil e a França, para visitar a família.
Fractais de Marianne Peretti: no alto da página, a Catedral de Brasília, com a estrutura dos vitrais da artista Marianne Peretti, considerada por pesquisadores internacionais uma obra-prima do vitral no século 20. Também acima, o interior da Catedral de Brasília; duas fotografias da artista, planejando os vitrais no interior da catedral e em fotografia de 1965, na época em que participou da Bienal de São Paulo; e em uma visita à catedral no ano de 2015.
Abaixo, Marianne Peretti na última visita que fez a Brasília, em dezembro de 2021, fotografada diante de sua obra "O lago dos peixes", no Museu do Senado, um painel em vidro criado e instalado em 1978
Um
ano antes da mudança para o Brasil, a artista fez sua primeira
exposição individual, apresentada na Galerie Mirador da Place Vendôme, em Paris, em 1952, e
contando na abertura com a presença ilustre de um de seus
admiradores, Salvador Dalí. Em
seus
depoimentos
para
o
estudo biográfico “A ousadia da invenção” (Edições SESC e
Editora B52, de 2015), o
primeiro livro dedicado à artista, organizado por Tactiana Braga e Laurindo Pontes, que
catalogou cerca de 600 trabalhos de sua autoria, Marianne
Peretti reconhece e destaca a importância da longa
parceria com Oscar Niemeyer, que
deu origem a mais de 20 trabalhos em Brasília, todos integrados de
forma harmoniosa
aos projetos arquitetônicos na estética e na funcionalidade.
Harmonia
e funcionalidade
A arte de Marianne Peretti também trouxe uma contribuição conceitual para o cânone da arquitetura: com
a
concepção inovadora de seus vitrais,
a força
criativa da artista
confronta os preceitos da arquitetura modernista que zelam pela
autonomia estética dos meios construtivos. Segundo tais preceitos, a
integração de esculturas, pinturas, murais e vitrais com a
estrutura concreta das
obras arquitetônicas nunca
alcança
resultados convincentes. Porém, a arte de Marianne Peretti comprova, na
prática, que
matérias-primas
inovadoras,
aliadas
à criatividade nas formas
e cores, podem conviver em harmonia e até
mesmo ampliar
a funcionalidade
na engenharia e na arquitetura dos projetos.
Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista com Salvador Dalí, em 1952, na abertura de sua primeira exposição individual em Paris. Abaixo, os rascunhos dos vitrais da Catedral de Brasilia, em tamanho natural, no piso do ginásio Nilson Nelson, em Brasília, e o painel "Alumbramento", formado por mais de 200 peças de vidro, instalado no Salão Branco do Congresso Nacional
Formada
a partir de uma variedade de materiais que inclui, além do vidro e
da fibra de vidro, resinas, tinturas, bronze e outros metais, a arte
do vitral de Marianne Peretti retoma a tradição que teve início a
partir do ano 1000, em culturas orientais, e que floresceu como
elemento do estilo gótico na ornamentação de igrejas e catedrais
da Europa durante a Idade Média. Na forma tradicional cultivada pelos europeus, os vitrais coloridos e seus efeitos refletidos pela luz do
sol quase sempre retratam personagens e cenas religiosas do cristianismo. Nas
obras criadas por Marianne Peretti, as cenas religiosas cedem lugar a
formas abstratas e geométricas que inovam e rompem com os paradigmas
medievais do vitral.
Ousadia
da invenção
As
inovações apresentadas na arte do vitral de Marianne Peretti, como
destaca Véronique David, em depoimento para o livro “A ousadia da invenção”,
estão presentes na forma e no conteúdo, bem como na relação que
se estabelece com a luz. Véronique
David, do Centro André Chastel – Sorbonne/INHA, defende
que o trabalho da
artista
na Catedral
de Brasília representa
uma
obra-prima mundial do vitral do século 20.Conforme
seu
argumento, na
maioria dos vitrais na tradição da Europa a relação com a luz se
dá como se houvesse uma “parede transparente” que pode reluzir e
iluminar um ambiente escuro, enquanto nos vitrais criados por
Marianne Peretti as formas translúcidas e
as sobreposições de vidro permitem
que a obra reflita e se prolongue no espaço, com os reflexos da
iluminação sendo projetados nos vãos e superfícies, como se a
obra não acabasse nos limites da moldura que está delineada pelos
arcos e ângulos do metal e do concreto.
Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista fotografada em 2014 por Breno Laprovitera. Abaixo, "Pasiphae", painel em cristal e vidro artesanal, instalado no Salão Nobre do Congresso Nacional; e o vitral instalado na Capela do Jaburu, em Brasília, com iluminação natural em horas diferentes do dia
São
exatamente os
vitrais mais conhecidos de Marianne Peretti, instalados na Catedral
de Brasília, que
exemplificam
à perfeição suas inovações em relação à tradição do vitral
gótico medieval, de inspiração restrita
às cenas
de passagens bíblicas. Na Catedral
de
Brasília,
os vitrais coloridos da artista, recobertos com camadas
de fibra
de vidro, rodeiam a construção em 360 graus, cobrindo todos os
intervalos das 16 colunas curvas, simetricamente opostas, que formam
diâmetros de 70 metros com altura de 40 metros e ampliam as
vibrações acústicas, o que dispensa microfones para a celebração
das missas. As bases muito afinadas das colunas, intercaladas pelo
posicionamento dos vitrais e pelos reflexos do espelho d'água ao redor da catedral, provocam no observador uma
certa sinestesia e a
impressão de que as estruturas de
concreto, de metal e de vidro mal
tocam o piso.
Gêneros
e suportes variados
Além
de sua maestria na construção e na instalação dos vitrais, Marianne
Peretti tem uma trajetória de premiações com artes plásticas em
gêneros e suportes tão variados como os murais, as esculturas,
trabalhos em design e em arquitetura, além do desenho puro em
técnicas mistas, incluindo ilustrações sobre encomenda para livros
e outras publicações. Entre as premiações no Brasil, a primeira
ocorreu em 1965, na Bienal de São Paulo, com o prêmio pela capa do
livro “As Palavras”, de Jean-Paul Sartre.
Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista em seu ateliê em Olinda, Pernambuco, em fotografia de Breno Laprovitera. Abaixo, dois vitrais da artista: "Araguaia", instalado em 1977 no Salão Verde do Congresso Nacional, em Brasília; e o mural no Memorial Teotônio Vilela, em Alagoas
As
obras concebidas
para Brasília
foram "pensadas" no Rio de Janeiro, onde Marianne morava.
Ela
viajava
para a nova capital a
cada 15 dias, para
desenvolver e acompanhar os trabalhos, mas
quando
pisou pela
primeira vez em
Brasília, a capital já havia sido inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek e,
no entanto, continuava
em construção. Em
abril de 2016, a artista foi homenageada com a maior retrospectiva já
feita sobre suas obras, no
Museu da República, em Brasília,
com a reunião de peças originais de escultura, objetos funcionais
como mesas e cadeiras, ilustrações, maquetes e projetos em tamanho
natural, com projeções multimídia reproduzindo o efeito de grandiosidade de
seus painéis, murais e vitrais.
Fractais de Marianne Peretti: acima, um anjo no vitral da artista instalado na câmara mortuária do ex-presidente Juscelino Kubitschek no Memorial JK, em Brasília.
Abaixo, a artista em fotografia de 1970 e fac-símiles de duas cartas manuscritas por dois parceiros de anos de trabalho com Marianne Peretti: Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Também abaixo, o documentário "Uma mulher e uma cidade", realizado em 2018 em homenagem à artista.
No final da página, os vitrais da artista instalados no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília; a escultura em bronze "O Pássaro" e "Uma Cadeira", objeto funcional com design de Marianne Peretti
Arte
monumental
A
exposição “A arte monumental de Marianne Peretti”, realizada no
Museu da República, teve como complemento seminários com
pesquisadores, técnicos e especialistas. Elogios
e o completo reconhecimento da importância do trabalho da artista
também vieram de Niemeyer e de Lúcio Costa, autores do Plano Piloto de Brasília. Niemeyer declarou em uma carta
manuscrita: “Me emocionava vê-la durante meses debruçada a desenhar os vitrais. Eram centenas de folhas de papel vegetal que coladas representavam um gomo da catedral. Marianne Peretti é uma artista de excepcional talento. Os vitrais
maravilhosos que criou para a Catedral de Brasília são comparáveis,
pelo seu valor e esforço físico, às monumentais obras da
Renascença. Sua preocupação invariável é inventar coisas novas,
influir com seu trabalho no campo das artes plásticas.”
Lúcio
Costa, parceiro
de Niemeyer,
também registrou em uma carta manuscrita,
datada de 6 de agosto de 1993, sua homenagem à
obra e
à maestria de
Marianne Peretti, a
artista dos vitrais: “Tive afinal o prazer, depois de tanto tempo,
de conhecer pessoalmente a artista que soube tão bem ‘dar à luz’
o interior da Catedral de Brasília, problema difícil que somente
uma alma como a sua e um saber como o seu seriam capazes de resolver.
Em nome da cidade, o inventor dela agradece a você.” Os elogios de Niemeyer e de Lúcio Costa, e também de todos os que passam pela experiência de estar dentro da Catedral de Brasília ou diante da variedade dos painéis transparentes de Marianne Peretti, têm total merecimento.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Fractais de Marianne Peretti. In:Blog Semióticas, 29 de abril de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/04/fractais-de-marianne-peretti.html(acessado em .../.../…).
Mas
a Quarta, com toda certeza, será com paus e pedras.
––Albert
Einstein em 1945.
A questão da arte moderna na
Ucrânia é uma questão política – assim como é política
qualquer questão sobre arte em qualquer circunstância. Na
Ucrânia, a evolução da arte foi especialmente marcante na década de
1920, época da entrada do país na União Soviética, com artistas que influenciaram de maneira definitiva a arte moderna no
Ocidente, em várias frentes, mas assim como toda a população ucraniana, muitas obras estão ameaçadas de destruição com a guerra iniciada em fevereiro de 2022 – um
conflito de grandes proporções que já matou milhares de civis e militares e já é considerado como o maior
confronto militar ocorrido na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Como
estratégia emergencial, uma seleção dos acervos da arte moderna da
Ucrânia foi reunida, com apoio de museus e de colecionadores, e
transportada até o Museu Thyssen-Bornemisza, da Espanha, para a
exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia,
1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia). Outras
ações de resgate e preservação de obras de arte em áreas de
bombardeios foram organizadas por historiadores e técnicos de museus
da Ucrânia e de outros países em um fórum on-line coordenado pelo historiador Kilian Heck, da Universidade de
Greifswald, da Alemanha, com apoio da Aliança Internacional
para Proteção de Patrimônio em Áreas de Conflito (Aliph), sediada
em Genebra, Suíça. Uma
das ações resgatou 16 peças de arte sacra
bizantina, com cerca de 1.500 anos, que estavam no
Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram levadas para o Museu do Louvre, em Paris.
A
guerra, que oficialmente teve início com a invasão da Ucrânia pelas tropas militares da Rússia, no final de fevereiro de 2022, na
verdade começou bem antes, com a ascensão ao poder político de
grupos de orientação fascista e armamentista na Ucrânia a partir do período entre 2013 e
2014, com a escalada de grandes e violentos protestos urbanos que na época foram chamados de Euromaidan ou Primavera Ucraniana. Segundo maior país da Europa em área territorial (atrás apenas da Rússia, seu país vizinho, com o qual compartilha extensas fronteiras ao leste e ao nordeste), a Ucrânia em 2016 completou 25 anos de independência em relação à União
Soviética, mas seu destaque entre as maiores economias
do planeta vem se degradando de forma acelerada desde a separação.
Arte moderna na Ucrânia: no alto, Carrossel, pintura em óleo sobre tela de 1921, obra do artista Davyd Burliuk. Acima, trabalhadores e equipe técnica do Museu Nacional de Arte da Ucrânia preparam obras do acervo para serem transportadas para a Espanha. Abaixo, um retrato pintado no final da década de 1920 por Kostiantyn Yeleva; e Uma camponesa, pintura de 1910 de Volodymyr Burliuk. Todas as obras reproduzidas abaixo fazem parte do acervo reunido na exposição do Museu Nacional Thyssen-Bornemysza, da Espanha, nomeada como En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930
De
11ª economia do mundo, no final do século 20, a Ucrânia começou a
decair em potencial no novo século, assistindo a sucessivas pioras
de seu parque industrial, que era complexo e desenvolvido quando o país fazia parte da União Soviética. Desde a separação, aconteceram perdas radicais
em sua pauta de exportação, baseada em máquinas e produção de
bens de alto valor agregado, além da grande produção agrícola, e houve uma progressiva
ampliação da dependência de importações. Também em 2016, o PIB
(Produto Interno Bruto) da Ucrânia já estava muito abaixo do nível
que tinha antes do país separar-se da União Soviética, de acordo
com Moniz Bandeira (no livro “A desordem mundial”, editora Civilização
Brasileira), e a concentração de riqueza em setores restritos da
elite ucraniana atingia níveis impressionantes.
O
caos na Ucrânia tem acontecimentos que antecedem em alguns
anos a guerra iniciada em fevereiro de 2022. A partir de 2013, o governo decidiu suspender um acordo com a União Europeia e retomar sua aproximação com a Rússia. Desde então, grupos
fascistas identificados com a sigla Pravy Sector conseguiram
incendiar o país com grandes protestos urbanos que levaram à
deposição do governo, dando início a um estado de
terror. A calamidade gerou conflitos de guerra civil em várias
regiões do país, com políticos fascistas tomando o poder e com a
liberação sem restrições para o comércio de armas de fogo. A
crise teria um novo capítulo em 2019, com a surpreendente eleição de um comediante, Volodymyr
Zelensky, para presidente do país.
Arte moderna na Ucrânia: no alto, Adão e Eva, pintura em óleo sobre tela de 1912, obra do artista Wladimir Baranoff-Rossiné, e um esboço em aquarela sobre papel para um movimento coreográfico de Masks, da Escola de Dança Bronislava Nijinska, de Kiev, obra de 1919 de Vadym Meller. Abaixo, 1º de maio, pintura em óleo sobre tela de 1929 de Viktor Palmov; e Composição, pintura de 1919 de El Lissitzky
A
guerra premeditada
Muito
popular na Ucrânia por sua carreira de ator e comediante antes de entrar na política para concorrer ao cargo de presidente, Zelensky teve
uma trajetória com atuações em várias frentes, incluindo
espetáculos cômicos em teatro em que simulava tocar piano com o pênis, e
também programas de TV, em especial a série “Servo do povo”,
exibida em rede nacional de 2015 a 2018 como campeã de audiência. Na série de
ficção, Zelensky fazia o papel principal de presidente da
Ucrânia. Com o sucesso na TV, o grupo de Zelensky registrou um
partido político com o mesmo nome da série. Nas eleições
seguintes, em 2019, Zelensky despontou nas pesquisas como favorito e foi eleito presidente.
O
capítulo de Zelensky na Presidência da República da Ucrânia não foi tão imprevisível
como pode parecer. Com interesses muito próximos a
autoridades do Ocidente e a grandes conglomerados multinacionais, o novo presidente e seu partido Servo do Povo deram início a mudanças na legislação e aceleraram um completo rompimento com o governo russo, ao mesmo tempo que buscaram maior aproximação do país com a União Europeia e com a OTAN (Organização do Tratado do
Atlântico Norte), promovendo exercícios militares conjuntos com os norte-americanos no Mar Negro e nas fronteiras com a Rússia, o que na
prática sinalizava uma declaração de guerra.
Arte moderna na Ucrânia: no alto, A leiteira, pintura em têmpera sobre tela de 1922, obra do artista Mykhailo Boichuk; e Os inválidos, pintura em óleo sobre tela de 1924 de Anatol Petrytskyi. Abaixo, Afiando as serras, pintura de 1927 de Oleksandr Bohomazov; e o cineasta e teórico do cinema Dziga Vertov em ação, nas filmagens de O homem com a câmera, de 1929, com imagens captadas nas cidades ucranianas de Kiev, Odessa e Kharkiv. Também abaixo, um trailer do filme em cópia restaurada de 2014
O
passo seguinte de Zelensky no poder foi dar início à guerra
premeditada: como resposta aos sucessivos exercícios militares
conjuntos de Ucrânia e norte-americanos nas fronteiras, e diante da deliberação
de Zelensky para que o país passasse a ser um território da
OTAN, as tropas russas começaram a ocupação da Ucrânia. A ocupação dava continuidade a um processo que teve início em 2014, quando os russos ocuparam a Crimeia, logo após o golpe que levou à deposição do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich, que tinha posição favorável à Rússia. A Crimeia havia sido anexada à Ucrânia em 1952. Quatro décadas depois, em 1991, quando a Ucrânia se separou da União Soviética, a Crimeia conquistou a posição de República Autônoma. Desde
o final de fevereiro de 2022 a guerra na Ucrânia veio se agravando e gerou uma
enorme onda migratória de ucranianos para a Rússia, enquanto Estados
Unidos e OTAN seguem fornecendo um grande arsenal de armamentos pesados para
que tropas da Ucrânia, sob o comando do inexperiente Zelensky, elevado ao posto de comandante, enfrentem as tropas russas.
Segundo
analistas internacionais, o conflito armado está longe de um
desfecho (enquanto escrevo a versão final deste artigo, a revista Time destaca que o presidente Lula, do Brasil, surge como um
mediador para o fim da guerra na Ucrânia. A reportagem da Time
relata que tanto o presidente Zelensky da Ucrânia, como o presidente
Vladimir Putin, da Rússia, já estariam avaliando a proposta de Lula
para encerrar a guerra, mas nenhuma ação indica uma vontade política para estabelecer a paz. Além da Time, analistas de outros importantes veículos da imprensa
internacional também informam que a proposta de Lula pode criar
caminhos para a paz na Ucrânia).
Arte moderna na Ucrânia: no alto, O fotógrafo, pintura em têmpera sobre papel de 1927, obra de Ivan Padalka; acima, Gopak (dança ucraniana), pintura de 1926-30 de Ilya Repin. Abaixo, obra de Sonia Delaunay de 1925, Vestidos simultâneos (três mulheres, formas, cores); e uma colagem com pintura em óleo sobre tela em técnica mista, Natureza morta, obra de 1926 de Aleksandra Ekster
Genocídio
e independência
O
percurso histórico da Ucrânia não foi menos violento no decorrer
do último século. Além das batalhas no território ucraniano
durante a Primeira Guerra Mundial, no período de 1914-1917, e na época
da Revolução Russa de 1917, houve diversos conflitos armados pela
independência do país no período de 1917 a 1921, até a
entrada definitiva da Ucrânia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em
1922. Com os expurgos de Josef Stalin na União Soviética, na década de 1930, muitos líderes ucranianos foram presos ou mortos, o que gerou nova onda de protestos violentos. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o país teve posições
contraditórias, com seus movimentos nacionalistas lutando simultaneamente contra os nazistas e contra os soviéticos.
Como saldo, os conflitos em decorrência da Segunda Guerra levaram à morte de cinco a oito milhões de ucranianos, na maior
parte civis. Nas décadas seguintes não houve paz: as fronteiras da Ucrânia foram
diversas vezes alteradas, quase sempre deflagrando mais violência e
novos conflitos armados, até o fim da União Soviética, em 1991,
com um referendo popular para a população ucraniana que aprovou a independência do país. No
último século, a Ucrânia ainda foi palco do acidente na usina nuclear de
Chernobil, em abril de 1986, que deixou milhares de mortos
e consequências permanentes de contaminação e envenenamento.
Arte moderna na Ucrânia: acima, Funeral, pintura em óleo sobre papel de 1920, obra de Oleksandr Bohomazov. Abaixo, Retrato de Mykhailo Semenko, técnica mista de aquarela, grafite e nanquim sobre papel, obra de 1929 de Anatol Petrytskyi; e Nova arte, desenho em técnica sobre papel, obra em 1927 de Vasyl Yermilov para a capa da edição nº 23 da revista Nove Mystetstvo (Nova Arte), identificada como um marco inicial do movimento construtivista
Um raro período de paz e prosperidade aconteceu na década de 1920, com a entrada da Ucrânia na União Soviética. Na cultura, a
literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema prosperavam de forma surpreendente.
Sobre a literatura, o Brasil tem um vínculo importante com a
Ucrânia: Clarice Lispector, uma das grandes referências da
literatura brasileira, nasceu na cidade ucraniana de Tchetchelnik,
enquanto seus pais percorriam as aldeias para fugir da
perseguição aos judeus, durante a guerra civil na Rússia de
1920-1922. Contudo, como a própria Clarice declarou, a Ucrânia foi
uma terra em que nunca pisou, pois veio para o Brasil com um
ano e dois meses de idade, quando sua família de imigrantes chegou
ao Recife, capital de Pernambuco. Clarice não é a única referência da Ucrânia na cultura brasileira. Outro nome importante é Gregori Warchavchik, arquiteto e artista plástico que nasceu na cidade ucraniana de Odessa e chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista, tornando-se um dos destaques da arquitetura moderna brasileira.
Depois
de muitas idas e vindas, muitas perseguições e destruições,
vários expoentes da arte moderna da Ucrânia permanecem na posição
privilegiada de cânones da arte mundial, pelo que representaram de
inovação e ruptura em seu tempo e pela influência que exercem até
a atualidade como mestres do cubismo, do suprematismo, do futurismo, do expressionismo e da arte abstrata. Um grupo destes mestres tem em comum uma trajetória de formação acadêmica no início do século 20, na Ucrânia, e posterior destaque entre os modernos para além das fronteiras do país, especialmente em Moscou, na União Soviética, e em Paris, na França, onde vários deles viveram na célebre colônia de arte La Ruche (A Colmeia): neste
grupo estão, entre outros, Sonia
Delaunay, Olexandr Archipenko, Olexandr Bohomazov, Nathan Alman e
Wladimir Baranoff-Rossiné.
Os
artistas que deixaram a Ucrânia desde o começo do século
20, e que por longos períodos viveram ou em Moscou, ou na Alemanha, ou na colônia parisiense La Ruche,
são conhecidos na história da arte como expoentes do Renascimento
Ucraniano – entre eles nomes como Arkhip
Kuindzhi, mestre da cor e dos efeitos
de luz na pintura, que exerceu forte influência em
seus contemporâneos e no surgimento da Arte Moderna, apontado como referência por nomes do primeiro time das vanguardas como Wassily Kandinsky e Marc Chagall, e também Dziga Vertov, de importância fundamental na história
do cinema. Vertov, na verdade, nasceu na Polônia, mas teve sua formação
acadêmica e técnica na Ucrânia, país onde realizou seus filmes
mais importantes, mesmo depois de fixar residência em Moscou.
Nascido Denis Arkadievitch Kaufman, ele mudou seu nome para Dziga
Vertov – a palavra “dziga” em ucraniano significa moto-contínuo
ou máquina de movimento perpétuo, e “vertov”, em russo
(“vertet”), significa mover, rodar, girar.
Arte moderna na Ucrânia: no alto, Depois da Chuva, pintura de 1881 de Arkhip Kuindzhi, nascido em Mariupol, Ucrânia, na época uma província do Império da Rússia.
Acima, a capa do catálogo da exposição realizada no museu da Espanha. Abaixo, Composição, pintura em óleo sobre tela de 1920 de Vadym Meller; e Composição em suprematismo, colagem em técnica mista sobre cartão, obra de 1921 de Boris Kosarev
Vanguardas ucranianas
Outro
expoente do Renascimento Ucraniano é Kazimir Malevich, nascido em
Kiev, mentor do movimento pioneiro da arte abstrata conhecido como
suprematismo, e muitas vezes identificado erroneamente como russo,
talvez por seu papel como artista central das vanguardas na União Soviética. Há outras situações semelhantes de erro de atribuição de nacionalidade de artistas ucranianos: uma delas é a trajetória de Aleksandra Ekster, uma das mulheres mais influentes das vanguardas
da Europa e muitas vezes identificada
como artista da Rússia, apesar de ter nascido na Polônia, ter vivido e
trabalhado a vida toda na Ucrânia e ter residido apenas quatro anos em
Moscou, antes de passar um longo período de exílio em Paris.
Há,
também, casos de grandes artistas da Ucrânia que vêm
de antes da arte moderna e que são erroneamente identificados
como russos: um deles é Ilya Repin, nascido na província ucraniana
de Chuguev e um dos nomes mais celebrados na Rússia na segunda
metade do século 19. Depois de décadas atuando como professor na Academia Russa de Artes em São Petesburgo, Repin deixou o cargo em 1905 e foi
morar na Finlândia. Quando a Finlândia se separou da
Rússia, em 1917, Repin se tornaria um dos entusiastas da revolução, mas
nunca mais foi autorizado a retornar a São Petesburgo ou a Moscou, nem
quando houve exposições com retrospectivas de suas obras.
Arte moderna na Ucrânia: acima, Três figuras de mulheres, pintura em óleo sobre tela de 1909 de Oleksandra Ekster. Abaixo, Anunciação, pintura em óleo sobre tela de 1908 de Oleksandr Murashko. No final da página, Cidade, pintura de 1917 de Issakhar Ber Ryback; e uma das curadoras da mostra, a ucraniana Katia Denysova, durante uma entrevista coletiva na abertura da exposição em Madri
Um
século depois de seu surgimento, uma amostragem realmente importante
do Renascimento Ucraniano e dos artistas de vanguarda da Ucrânia foi
finalmente reunida – contraditoriamente como consequência da guerra. Tudo começou com uma viagem que parece
enredo de um filme de ficção: quando teve início o bombardeamento em Kiev, em 2022, obras de arte muito valiosas que estavam no Museu Nacional da Ucrânia e em outros acervos e coleções particulares foram transportadas,
secretamente, em dois caminhões que partiram da Ucrânia em direção
à Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia), aberta ao
público no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza.
Depois
da viagem arriscada de mais de 3 mil quilômetros atravessando a Europa, de Kiev a Madri, passando pela Polônia, as obras-primas da arte moderna da Ucrânia, talvez o patrimônio
cultural móvel mais valioso do país, estarão em exposição de gala
na Espanha até o final de abril. Depois da temporada na Espanha, o acervo segue para mostras em
outros grandes museus, em itinerário que começa no Museum Ludwig, na Alemanha. As 70 obras reunidas para a exposição destacam, em primeiro lugar, o absurdo da guerra, de todas as guerras, mas também traduzem a
importância de artistas célebres que nasceram ou trabalharam
durante muitos anos na Ucrânia. São obras e artistas que deixaram marcas definitivas tanto na cultura ucraniana como no estabelecimento das
revoluções radicais de sentido, de forma e de conteúdo, que convencionamos
nomear no mundo inteiro como Arte Moderna.