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2 de dezembro de 2025

Surrealismo na fotografia

 





Todos agem “como se fossem anjos”, todos possuem

tanto “como se fossem ricos” e todos vivem “como se

fossem livres”. Não há nenhum vestígio real, contudo,

de anjos, de riqueza e de liberdade. Apenas imagens.

                                                           –– Walter Benjamin, “O Surrealismo” (1929).  




Movimento estético e artístico que provocou impacto na busca pela liberação das expressões do inconsciente, dos sonhos, da irracionalidade e das distorções da realidade, o Surrealismo também teve importância como ação política e ideológica antiautoritária e antifascista, além de representar uma linha de força fundamental nos grupos de vanguarda da Arte Moderna contra o conservadorismo. Com seu centro irradiador situado inicialmente na França, especialmente em Paris, o movimento rapidamente se espalhou pelo mundo em suas mais diversas formas de expressão, levando os domínios da arte, da literatura e do cinema “até os limites extremos do possível” – como aponta o alemão Walter Benjamin no ensaio “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”.

Na língua francesa, o prefixo “sur” sempre existiu com acepções em “acima”, “sobre” ou “além”, mas o termo “sur-realismo” só foi publicado pela primeira vez em 1917 pelo escritor e crítico de arte Guillaume Apollinaire. Em um artigo, e em sua peça teatral “As tetas de Tirésias”, considerada uma obra precursora do surrealismo, Apollinaire escreveu: “Quando o homem quis imitar o caminhar, criou a roda, que não se assemelha a uma perna. Assim, criou o surrealismo sem se dar conta”. Em outubro de 1924, sete anos depois do primeiro registro na referência pioneira de Apollinaire, o escritor e poeta André Breton publicou o “Manifesto Surrealista”, marco fundador do movimento – e definiu o Surrealismo como "automatismo psíquico puro pelo qual se destina a expressar o verdadeiro funcionamento do pensamento e dos sonhos, livre de qualquer controle ou preocupação com a razão ou a moral".










Surrealismo na fotografia: no alto da página,
Uns sobem e outros descem (Unos suben y outros
bajan, 1940), fotografia de Lola Álvarez Bravo.
Acima, mais duas fotos de Lola Álvarez Bravo,
Homem-rã (Hombre rana, 1949) e Olho (Ojo, 1950).

Abaixo, Jean Cocteau em fotografia de Julien Clergue
durante as filmagens de O testamento de Orfeu
(Le testament d’Orphee), filme de 1959 com direção,
roteiro e atuação de Cocteau no papel central.
Todas as imagens fazem parte do catálogo da
exposição Surrealism na Throckmorton Fine Art,
exceto quando indicado nas legendas









Um século depois do marco inaugural do manifesto de André Breton, um olhar em retrospectiva consegue estabelecer as características difusas e marcantes desta visão artística que explora as dimensões mais eletrizantes da imaginação humana. Nas celebrações do centenário e da herança do movimento, um dos destaques vem da Throckmorton Fine Art, de Nova York, com uma exposição sobre o impacto do movimento na fotografia, reunindo fotógrafos que atuaram na Europa, nos EUA e no México nos anos 1920 e nas décadas seguintes. No acervo selecionado estão obras que moldaram as formas e a estética do Surrealismo na fotografia e que levantam questões sobre a natureza da realidade e da identidade individual de cada fotógrafo selecionado – retomando abordagens sobre o estilo e as características do movimento surrealista que provocam polêmica desde o tempo em que a fotografia como técnica e como meio de expressão era questionada em seu estatuto de arte e muitas vezes considerada uma arte menor.


Imagens de sonho


O uso de técnicas que na época eram consideradas inovadoras e radicais, como o automatismo psíquico, as associações livres e a colagem para explorar o mundos dos sonhos e dos desejos, surgiram anunciadas como estratégias no primeiro manifesto de André Breton. Nos anos seguintes, viriam outros manifestos também escritos por Breton, “Surrealismo e Pintura”, de 1928, e “Segundo Manifesto do Surrealismo”, de 1930. Um terceiro documento, “Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente”, foi coescrito por Breton, Diego Rivera e Leon Trotsky no México, em 1938, e publicado com grande repercussão na França, na revista Partisan Review. Trotsky, liderança importante da Revolução Russa de 1917, havia sido expulso do Partido Comunista da União Soviética e estava exilado no México desde 1936, acolhido pelo casal Diego Rivera e Frida Kahlo.

Desde então, o movimento surrealista se espalhou pelo mundo como tendência e influência para artistas das áreas mais variadas. O impacto do Surrealismo também foi sentido no Brasil, onde os ideais do movimento prosperaram na primeira geração dos modernistas da Semana de 1922, com destaque na literatura de Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Limaou na arte de Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Flávio de Carvalho e Cícero Dias, entre outros, além da presença incontornável de Maria Martins, parceira de Marcel Duchamp e primeira mulher a despontar como expoente nos círculos surrealistas de Paris.






Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
Ruínas com forma masculina
(Ruins and Male Form,
década de 1920), fotografia
s e colagem de Lionel Wendt.

Abaixo,
Torre do Rockfeller Center nº 14
(Rockefeller Center Tower nº 14), fotografia
de 1932 de
Rosa Covarrubias. Também abaixo,
Cartografia interior nº 23 e nº 21, fotografias com
intervenções e colagens de 1995 e 1996, no estilo
surrealista, por Tatiana Parcero







Nomeada como “Surrealismo: Mais de um século unindo os reinos dos sonhos e da realidade” (Surrealism: Over a Century Merging the Realms of Dreams and Reality), a mostra na galeria Throckmorton Fine Art, com curadoria da historiadora María Míllan, reúne 50 fotografias ampliadas, a maioria delas em preto e branco, de 25 artistas que abraçaram os ideais surrealistas para produzir imagens que expressam elementos do acaso e um forte simbolismo na composição. Em comum a todos eles, um método de trabalho para criar representações inesperadas por meio da fotografia. É um acervo valioso, mas trata-se tão somente de uma amostragem: quem tem algum repertório sobre o movimento irá perceber, pela lista de fotografias selecionadas, que nem todos os nomes do primeiro time do Surrealismo na fotografia estão representados na mostra.

Entre os nomes de destaque histórico do movimento que atuaram na fotografia, Man Ray (1890-1976), Claude Cahun (1894-1954) e Hans Bellmer (1902-1975) talvez sejam as ausências mais marcantes da mostra, ainda que isso não diminua seu alcance e sua importância como retrospectiva, porque a curadoria consegue contemplar um conjunto coerente de obras e
autores. Como o Surrealismo sempre foi inerentemente político, desde seus primórdios como movimento de protesto e de combate ao fascismo, ao autoritarismo e ao conservadorismo, o acervo selecionado não exclui o potencial da estética surrealista como arma política para romper barreiras – entre temáticas, entre gêneros e entre linguagens. É o que a fotografia surrealista representa: ao contrário da atuação centrada exclusivamente na produção fotográfica, o que fotógrafos com ideais surrealistas estabelecem são possibilidades criativas de intercâmbio da fotografia com formas de expressão das artes plásticas, das artes cênicas, da literatura, do cinema – aproximando flagrantes do real, por meio do aparato fotográfico, ao inesperado, ao impossível e às formas do inconsciente.









Limites extremos


Pelas fotografias selecionadas, é possível perceber que a linguagem e o espírito do movimento surrealista se estendem para muito além dos nomes que os manuais de história da arte enumera como artistas canônicos, alcançando também fotógrafos que adotaram abordagens lúdicas e experimentais inspiradas nos ideais estéticos do Surrealismo. Na fotografia, tais ideais formam um arsenal que funciona como ferramentas de composição, potencializado com base no próprio aparato dos equipamentos, que a linguagem fotográfica nas primeira décadas do século 20 ainda navegava na transição entre as possibilidades do meio como documentação e como autoexpressão. Na aproximação com o Surrealismo, novas diretrizes surgiam na busca pelos limites extremos da técnica em variações de dupla exposição, negativos sobrepostos, fotomontagens, solarização e polarização, uso de lentes especiais, de iluminação incomum, de perspectivas distorcidas em enquadramentos surpreendentes ou até mesmo recorrendo a adereços absurdos com o objetivo de proporcionar resultados de efeitos dramáticos.

Outra característica marcante no acervo selecionado pela Throckmorton Fine Art está no número expressivo de mulheres no espectro da fotografia surrealista. Dos 25 artistas presentes na exposição, mais da metade são mulheres, com destaque para Dora Maar, Kati Horna, Stella Snead, Tina Modotti, Berenice Abbott, Germaine Krull, Lola Álvarez Bravo, Mariana Yampolsky, Imogen Cunningham, Graciela Iturbide, María García e Francesca Woodman. Também marcam presença na exposição composições inesperadas na forma e no enquadramento de objetos inanimados por Edward Weston; nas distorções do corpo por André Kertész; nos flagrantes irônicos de Henri Cartier-Bresson; e nas encenações mirabolantes de Philippe Halsman.







Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
fotografia de Berenice Abbott da década de 1920,
As mãos de Jean Cocteau, da série Rostos de 1920
(
Jean Cocteau's Handsfrom, Faces of the 20's Portfolio).

Abaixo, fotografia sem título de 1962 de Kati Horna,
da série Oda a la necrofilia, Cuidad de México.

Também abaixo, duas fotografias de Henri Cartier-Bresson:
um retrato de 1930 
do escritor André Peyre próximo a um
cartaz publicitário; e um flagrante em fotografia de
1933 em uma rua de Valência, Espanha













Poder da imaginação


Para o senso comum, que faz com frequência uma associação direta do Surrealismo com as provocações de mestres como Salvador Dalí e René Magritte nas artes plásticas, Luis Buñuel no cinema ou Antonin Artaud no teatro, talvez possam parecer pouco expressivas as pequenas variações sobre imagens cotidianas em algumas fotografias selecionadas. Tais variações, no entanto, não podem ser separadas da estética surrealista se questionam a ditadura da razão e valores burgueses como pátria, família, religião, trabalho, ou se fazem um elogio subversivo ao poder da imaginação – porque, no primeiro manifesto, Breton declarava sua crença na possibilidade de reduzir dois estados tão contraditórios, sonho e realidade, a uma espécie de síntese de uma realidade absoluta, uma sobre-realidade (ou surrealidade).














Uma importante alteração no Surrealismo surge no final da década de 1930, com a Segunda Guerra Mundial explodindo em países da Europa. Neste cenário, os Estados Unidos e outros países do continente americano atraem uma onda de artistas e intelectuais europeus que fugiam das zonas de guerra. Há, também, um evento catalisador realizado na Cidade do México em 1940: a Exposição Internacional do Surrealismo, organizada por André Breton, que marca um momento crucial para o envolvimento e a contribuição da América Latina para o estilo e para os ideais surrealistas. Embora o movimento surrealista seja amplamente considerado europeu, obras de artistas e fotógrafos do México e de outros países latino-americanos também passam a destacar a relação do Surrealismo com a produção cultural dos povos do continente que abrigou, desde sempre, tanto tradições como imaginação criativa inclinadas para o maravilhoso e o fantástico – como confirma a ascensão do realismo mágico na literatura e nas artes plásticas.


Fronteiras da realidade


As imagens violentas e chocantes dos campos de batalha na Segunda Guerra podem receber a nomeação de surrealistas, pelo impacto que provocaram, já que o termo passou a ser incorporado como adjetivo na linguagem cotidiana para se referir ao que é estranho ou surpreendente, fora do comum, mas o movimento de forma geral teve o seu desfecho no pós-guerra. O fim do surrealismo como uma força vital está ligado a uma exposição, “Le Surrealisme en 1947”, concebida e realizada por André Breton e Marcel Duchamp com o objetivo anunciado de marcar o retorno do movimento surrealista a Paris após a guerra. O objetivo, no entanto, não se concretizou. A exposição, na verdade, demonstrou que a geração mais jovem, incluindo artistas como Francis Bacon, Alan Davie, Eduardo Paolozzi e Richard Hamilton, estava se movendo em direções diferentes com outros ideais.







Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
Adelaido, El Conquistador
, fotografia de 1951
de
Héctor García. Abaixo, Dançarina satírica
(Satiric Dancer), uma fotografia de 1926
de
André Kertész.

No final da página, o encontro lendário de
Leon Trotsky, Diego Rivera e André Breton
no México, 
fotografado por Fritz Bach em junho
de 1938, na época em que os três escreveram, em
parceria, o Manifesto por uma Arte Revolucionária
Independente
, publicado pela revista Partisan Review.

Também no final da página, mais duas fotografias do
catálogo da exposição
na Throckmorton Fine Art:
Três marionetes em um cenário de navio
(Three Puppets in a Ship Setting), fotografia
de 1929 de
Tina Modotti; e Nu em abstração
(Nude Abstraction), fotografia de 1953 de
Weegee









Um século após seu surgimento, o Surrealismo continua a existir, como estilo e como referência, não somente na fotografia, mas em todos os domínios da criação artística, no mundo inteiro, em grande parte como citação às obras dos pioneiros do movimento nas décadas de 1920 e 1930. Seu legado e influência se mantêm inegáveis sempre que estão em cena imagens com sugestões oníricas e inesperadas, fantásticas, bizarras ou grotescas, que nos levam a reavaliar nosso olhar sobre a realidade e a vida cotidiana. O acervo selecionado na exposição atual, com uma gama significativa de imagens de fotógrafos pioneiros, tem grande valor como retrospectiva não só porque promove uma revisão das conquistas do Surrealismo na fotografia, mas porque reafirma a importância, urgente e contínua, de examinarmos as fronteiras entre a realidade e as representações da realidade.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Surrealismo na fotografia. In: Blog Semióticas, 2 de dezembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/12/surrealismo-na-fotografia.html (acesso em .../.../…).



Para visitar a exposição na  Throckmorton Fine Art,  clique aqui.













25 de abril de 2023

Fractais de Marianne Peretti


    





 

A geometria fractal não é apenas mais um capítulo da
matemática e sim uma habilidade da percepção que ajuda
o homem comum a ver o mundo de maneira diferente.

–– Benoît Mandelbrot (1924-2010).   


Única mulher na equipe de trabalho de Oscar Niemeyer para a construção de Brasília, Marianne Peretti morreu aos 94 anos, no dia 25 de abril de 2022, deixando um acervo grandioso de uma forma de arte pouco cultivada no Brasil: os vitrais. As obras mais importantes do vitral no patrimônio histórico e artístico brasileiro foram criadas por Marianne Peretti, com destaque para os conjuntos de vitrais do Plano Piloto da Capital Federal, nos prédios da Catedral de Brasília, da Câmara dos Deputados, do Panteão da Pátria, do Superior Tribunal de Justiça, do Palácio do Jaburu e do Memorial JK, entre outros, além de obras em várias cidades brasileiras e no exterior.

Marianne Peretti também se dedicou à criação de centenas de murais e esculturas, instalados no Brasil e no exterior, principalmente em cidades da França e da Itália. Filha da modelo fotográfica francesa Antoinette Louise Clotilde Ruffier e do historiador pernambucano João de Medeiros Peretti, Marie Anne Antoinette Hélène Peretti nasceu em Paris, onde teve sua formação técnica e acadêmica em artes plásticas. Veio de mudança definitiva para o Brasil em 1953, depois de seu casamento com Henry Albert Gilbert, um cidadão inglês que trabalhava em São Paulo e que conheceu em uma das várias viagens de navio que fazia, nas idas e vindas entre o Brasil e a França, para visitar a família.

 

              


 
 


















      
    




Fractais de Marianne Peretti: no alto da página,
a Catedral de Brasília, com a estrutura dos vitrais da
artista Marianne Peretti, considerada por pesquisadores
internacionais uma obra-prima do vitral no século 20.
Também acima, o interior da Catedral de Brasília;
três fotografias da artista, planejando os vitrais no
interior da catedral, e em 1965, na época em que
participou da Bienal de São Paulo; e em
uma visita à catedral no ano de 2015.

Abaixo, Marianne Peretti na última visita que fez a
Brasília, em dezembro de 2021, fotografada diante de
sua obra "O lago dos peixes", no Museu do Senado,
um painel em vidro criado e instalado em 1978









Um ano antes da mudança para o Brasil, a artista fez sua primeira exposição individual, apresentada na Galerie Mirador da Place Vendôme, em Paris, em 1952, e contando na abertura com a presença ilustre de um de seus admiradores, Salvador Dalí. Em seus depoimentos para o estudo biográfico “A ousadia da invenção” (Edições SESC e Editora B52, de 2015), o primeiro livro dedicado à artista, organizado por Tactiana Braga e Laurindo Pontes, que catalogou cerca de 600 trabalhos de sua autoria, Marianne Peretti reconhece e destaca a importância da longa parceria com Oscar Niemeyer, que deu origem a mais de 20 trabalhos em Brasília, todos integrados de forma harmoniosa aos projetos arquitetônicos na estética e na funcionalidade.



Harmonia e funcionalidade



A arte de Marianne Peretti também trouxe uma contribuição conceitual para o cânone da arquitetura: com a concepção inovadora de seus vitrais, a força criativa da artista confronta os preceitos da arquitetura modernista que zelam pela autonomia estética dos meios construtivos. Segundo tais preceitos, a integração de esculturas, pinturas, murais e vitrais com a estrutura concreta das obras arquitetônicas nunca alcança resultados convincentes. Porém, a arte de Marianne Peretti comprova, na prática, que matérias-primas inovadoras, aliadas à criatividade nas formas e cores, podem conviver em harmonia e até mesmo ampliar a funcionalidade na engenharia e na arquitetura dos projetos.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista
com Salvador Dalí, em 1952, na abertura de sua
primeira exposição individual em Paris. Abaixo,
os rascunhos dos vitrais da Catedral de Brasilia,
em tamanho natural, no piso do ginásio Nilson Nelson,
em Brasília, e o painel "Alumbramento", formado
por mais de 200 peças de vidro, instalado
no Salão Branco do Congresso Nacional













Formada a partir de uma variedade de materiais que inclui, além do vidro e da fibra de vidro, resinas, tinturas, bronze e outros metais, a arte do vitral de Marianne Peretti retoma a tradição que teve início a partir do ano 1000, em culturas orientais, e que floresceu como elemento do estilo gótico na ornamentação de igrejas e catedrais da Europa durante a Idade Média. Na forma tradicional cultivada pelos europeus, os vitrais coloridos e seus efeitos refletidos pela luz do sol quase sempre retratam personagens e cenas religiosas do cristianismo. Nas obras criadas por Marianne Peretti, as cenas religiosas cedem lugar a formas abstratas e geométricas que inovam e rompem com os paradigmas medievais do vitral.



Ousadia da invenção



As inovações apresentadas na arte do vitral de Marianne Peretti, como destaca Véronique David, em depoimento para o livro “A ousadia da invenção”, estão presentes na forma e no conteúdo, bem como na relação que se estabelece com a luz. Véronique David, do Centro André Chastel – Sorbonne/INHA, defende que o trabalho da artista na Catedral de Brasília representa uma obra-prima mundial do vitral do século 20. Conforme seu argumento, na maioria dos vitrais na tradição da Europa a relação com a luz se dá como se houvesse uma “parede transparente” que pode reluzir e iluminar um ambiente escuro, enquanto nos vitrais criados por Marianne Peretti as formas translúcidas e as sobreposições de vidro permitem que a obra reflita e se prolongue no espaço, com os reflexos da iluminação sendo projetados nos vãos e superfícies, como se a obra não acabasse nos limites da moldura que está delineada pelos arcos e ângulos do metal e do concreto.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista
fotografada em 2014 por Breno Laprovitera.

Abaixo, "Pasiphae", painel em cristal e vidro artesanal,
instalado no Salão Nobre do Congresso Nacional;
e o vitral instalado na Capela do Jaburu, em Brasília,
com iluminação natural em horas diferentes do dia


















São exatamente os vitrais mais conhecidos de Marianne Peretti, instalados na Catedral de Brasília, que exemplificam à perfeição suas inovações em relação à tradição do vitral gótico medieval, de inspiração restrita às cenas de passagens bíblicas. Na Catedral de Brasília, os vitrais coloridos da artista, recobertos com camadas de fibra de vidro, rodeiam a construção em 360 graus, cobrindo todos os intervalos das 16 colunas curvas, simetricamente opostas, que formam diâmetros de 70 metros com altura de 40 metros e ampliam as vibrações acústicas, o que dispensa microfones para a celebração das missas. As bases muito afinadas das colunas, intercaladas pelo posicionamento dos vitrais e pelos reflexos do espelho d'água ao redor da catedral, provocam no observador uma certa sinestesia e a impressão de que as estruturas de concreto, de metal e de vidro mal tocam o piso.



Gêneros e suportes variados



Além de sua maestria na construção e na instalação dos vitrais, Marianne Peretti tem uma trajetória de premiações com artes plásticas em gêneros e suportes tão variados como os murais, as esculturas, trabalhos em design e em arquitetura, além do desenho puro em técnicas mistas, incluindo ilustrações sobre encomenda para livros e outras publicações. Entre as premiações no Brasil, a primeira ocorreu em 1965, na Bienal de São Paulo, com o prêmio pela capa do livro “As Palavras”, de Jean-Paul Sartre.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista em seu
ateliê em Olinda, Pernambuco, em fotografia de
Breno Laprovitera
. Abaixo, dois vitrais da artista:
"Araguaia", instalado em 1977 no Salão Verde
do Congresso Nacional, em Brasília; e o mural
no Memorial Teotônio Vilela, em Alagoas








As obras concebidas para Brasília foram "pensadas" no Rio de Janeiro, onde Marianne morava. Ela viajava para a nova capital a cada 15 dias, para desenvolver e acompanhar os trabalhos, mas quando pisou pela primeira vez em Brasília, a capital já havia sido inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek e, no entanto, continuava em construção. Em abril de 2016, a artista foi homenageada com a maior retrospectiva já feita sobre suas obras, no Museu da República, em Brasília, com a reunião de peças originais de escultura, objetos funcionais como mesas e cadeiras, ilustrações, maquetes e projetos em tamanho natural, com projeções multimídia reproduzindo o efeito de grandiosidade de seus painéis, murais e vitrais.







Fractais de Marianne Peretti: acima, um anjo no vitral
da artista instalado na câmara mortuária do ex-presidente
Juscelino Kubitschek no Memorial JK, em Brasília.

Abaixo, a artista em fotografia de 1970 e fac-símiles
de duas cartas manuscritas por dois parceiros
de anos de trabalho com Marianne Peretti:
Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Também abaixo,
um encontro dos criadores de Brasília com o
ex-presidente José Sarney em 1988:
Marianne Peretti,
Athos Bulcão, Alfredo Ceschiatti, Oscar Niemeyer,
Sarney e Burle Marx
; e a íntegra d
o documentário
"Uma mulher e uma cidade", com direção de
André Farkatt, Camerino Neto, Tactiana Braga,
realizado em 2018 em homenagem à artista. 

No final da página, os vitrais da artista instalados
no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília;
a escultura em bronze "O Pássaro" e "Uma Cadeira",
objeto funcional com design de Marianne Peretti


























Arte monumental


A exposição “A arte monumental de Marianne Peretti”, realizada no Museu da República, teve como complemento seminários com pesquisadores, técnicos e especialistas. Elogios e o completo reconhecimento da importância do trabalho da artista também vieram de Niemeyer e de Lúcio Costa, autores do Plano Piloto de Brasília. Niemeyer declarou em uma carta manuscrita: “Me emocionava vê-la durante meses debruçada a desenhar os vitrais. Eram centenas de folhas de papel vegetal que coladas representavam um gomo da catedral. Marianne Peretti é uma artista de excepcional talento. Os vitrais maravilhosos que criou para a Catedral de Brasília são comparáveis, pelo seu valor e esforço físico, às monumentais obras da Renascença. Sua preocupação invariável é inventar coisas novas, influir com seu trabalho no campo das artes plásticas.”

Lúcio Costa, parceiro de Niemeyer, também registrou em uma carta manuscrita, datada de 6 de agosto de 1993, sua homenagem à obra e à maestria de Marianne Peretti, a artista dos vitrais: “Tive afinal o prazer, depois de tanto tempo, de conhecer pessoalmente a artista que soube tão bem ‘dar à luz’ o interior da Catedral de Brasília, problema difícil que somente uma alma como a sua e um saber como o seu seriam capazes de resolver. Em nome da cidade, o inventor dela agradece a você.” Os elogios carregados de emoção de de Niemeyer e de Lúcio Costa, e também de todos os visitantes que passam pela experiência de estar dentro da Catedral de Brasília ou diante da variedade dos painéis transparentes criados por Marianne Peretti, têm total merecimento.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fractais de Marianne Peretti. In: Blog Semióticas, 29 de abril de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/04/fractais-de-marianne-peretti.html  (acessado em .../.../…).



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