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25 de novembro de 2011

Polícia & Ladrão






Não importa quão necessária ou justificável
seja uma guerra, ela será sempre um crime.

––  Ernest Hemingway (1899-1961).   
 

Um dia a socióloga Julita Lemgruber acordou com a decisão de contar sua história de “mulher forte” no comando dos presídios do Rio de Janeiro. A intenção resultou em um livro tão breve quanto emblemático. Em "A Dona das Chaves" (Editora Record), escrito em parceria com a jornalista Anabela Paiva, a socióloga abre as portas do mundo das cadeias e penitenciárias do Rio de Janeiro e resgata um capítulo importante da tragédia carioca.

Narrado como um thriller policial, a mistura de relato autobiográfico, livro-reportagem e depoimento em primeira pessoa começa com um capítulo eletrizante ("Diretora do Desipe morre em assalto") e prossegue com fôlego por mais 36 capítulos que reconstituem uma trajetória marcante de 1991 a 1994, período em que a socióloga assumiu no Rio e permaneceu no posto pioneiro de primeira mulher no Brasil a ocupar o cargo de direção de uma rede de presídios do Estado, com 10 mil presos e 2.300 agentes.

De 1994 até os recentes acontecimentos policiais no Rio de Janeiro, o que mudou no cenário da segurança pública para os cariocas e brasileiros? – pergunto a ela em entrevista por telefone. "O que mudou? O que mudou é que houve um agravamento da situação, com presídios superlotados, violência e corrupção. Os atores do processo mudaram, mas no geral a situação está infinitamente mais grave", destaca Julita Lemgruber. "Os problemas hoje são os mesmos porque, nestes 20 anos, não houve nenhum presidente ou programa de governo voltado para a criação de um sistema penitenciário decente no Brasil", dispara.






     


  












Polícia & Ladrão: no alto, uma vista da favela
da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro,
considerada a maior favela do Brasil, com
mais de 70 mil moradores, e a capa do livro
A Dona das Chaves. Acima, duas referências
da malandragem carioca na música popular,
o Kid Morengueira, Moreira da Silva (1902-2000),
e Bezerra da Silva (1927-2005). Também acima,
a capa da primeira revista em quadrinhos do
Vigilante Rodoviário, personagem que teve
origem na primeira série nacional de sucesso
na televisão brasileira, uma produção da
TV Tupi em 1961 e 1962; e o cartaz original
e cenas de um grande sucesso de público e crítica
no cinema nacional, O Assalto ao Trem Pagador,
filme de 1962 de Roberto Farias, que tem no elenco
Reginaldo Faria, Grande Otelo e Eliezer Gomes. 
 
Também acima, o Morro da Mangueira, no
Rio de Janeiro, em fotografia de 1965. Abaixo,
o cartaz e imagens de outro grande sucesso do
cinema nacional,
O Bandido da Luz Vermelha,
filme de
1968 de Rogério Sganzerla que teve,
à frente do elenco, Paulo Villaça e Helena Ignez;
e cenas
de duas adaptações da literatura com
tramas policiais 
que se tornaram clássicos premiados
do 
cinema brasileiro: mulher (Irma Alvarez) seduz
um amante
(Reginaldo Faria) para assassinar o
marido que a maltrata em Porto das Caixas,
filme de 1962, estreia de Paulo Cesar Saraceni
na direção, com roteiro do escritor Lúcio Cardoso;
e uma cena d
e Cidade de Deus, filme de 2002,
adaptação do livro 
de Paulo Lins para o cinema,
com direção 
de Fernando Meirelles e Kátia Lund


















A narrativa envolvente tecida por "A Dona das Chaves" é didática nas informações sobre o sistema carcerário e expõe a situação precária dos presos, a violência e as dificuldades para a resolução dos problemas – pontuada pelas reflexões de Lemgruber, que revela um mundo desconhecido do público e uma atuação que tocou em polêmicas, marcada por vitórias e derrotas, surpresas e decepções.

"O que assistimos no Brasil é uma continuidade dramática do crime e da tragédia do sistema penitenciário, resultado de um desprezo histórico", destaca a socióloga. Ela explica que o projeto do livro começou quando ficou amiga de Anabela Paiva em 2004. Na época, a jornalista juntou-se ao grupo de pesquisas do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, dirigido por Lemgruber.


"Em 2008, tivemos a certeza de que da amizade poderia nascer um projeto que fosse além do trabalho de pesquisa. Daí até a publicação do livro foi um passo, mas um passo de muito trabalho e de muitas versões e tentativas", recorda. Julita, autora de obras acadêmicas, queria contar com sabor jornalístico as histórias vividas como diretora do sistema penitenciário. O resultado é "A Dona das Chaves", um livro que parece ficção, recheado de suspense e de reviravoltas dramáticas.











O chefe da tropa



Enquanto "A Dona das Chaves" parece um filme policial, a trajetória do cinema brasileiro nas últimas décadas é marcada por filmes policiais que são sucesso de público e crítica, de "Assalto ao Trem Pagador" e "O Bandido da Luz Vermelha" no Cinema Novo dos anos 1960 aos recentes "Carandiru" e "Cidade de Deus". Dois livros de Luiz Eduardo Soares estão na origem do sucesso - e um sucesso como poucos: os recordistas de bilheteria "Tropa de Elite" 1 & 2.

"Imagina o drama do policial que vai todos os dias às zonas de guerra e depois retorna de ônibus para casa e para a normalidade no final do expediente. Isso é muito surrealista", comentou Soares em entrevista por telefone, à vésperas de vir a Belo Horizonte participar de um debate sobre seus livros no projeto Sempre um Papo. Antes de falar sobre seu novo livro, Soares fez questão de destacar que não exerce nenhum cargo público e que há algum tempo trocou o gabinete pelas ruas.

Cientista social e antropólogo com extensa atuação como pesquisador e gestor público, Soares participou do Governo do Estado do Rio de Janeiro, à frente da Secretaria de Segurança Pública e como coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania. Na época, chegou a denunciar a "banda podre" da Polícia do Rio, mas após uma polêmica em que teria defendido a atitude do cineasta João Moreira Salles (que realizava com Kátia Lund, em 1998-1999, sob encomenda da TV francesa, o documentário "Notícias de uma Guerra Particular" e, supostamente, pagava mesada ao traficante Marcinho VP), Soares foi demitido ao vivo, no telejornal "RJ-TV", pelo então governador Anthony Garotinho.










Polícia & Ladrão: filmes do diretor
e roteirista Hector Babenco que se
tornaram campeões de bilheteria.
Acima, Pixote, A Lei do Mais Fraco,
de 1981, e Lúcio Flávio, O Passageiro
da Agonia, de 1977. Abaixo, o cartaz
de Carandiru, de 2003, seguido por
cena de Tropa de Elite 2 (2010), pelos
cartazes de Notícias de uma Guerra
Particular (1999), de Katia Lund e
João Moreira Salles, e Cidade de Deus
(2002), de Fernando Meirelles e Katia
Lund. Também abaixo, um manifestante
em protesto na Cinelândia, centro do
Rio de Janeiro, ergue cartaz pedindo
mais educação e menos caveirão
(nome que os cariocas deram para as
viaturas blindadas da Polícia Militar,
em fotografia de Daniel Ramalho.

No alto da página e no final
do texto, registros da ocupação da
favela da Rocinha, no Rio de Janeiro,
em 2011, que mobilizou 3 mil policiais,
em fotos de Marino Azevedo (ABR)







Desde que deixou os cargos junto ao Governo do Rio, Soares também exerceu o cargo de Secretário Nacional de Segurança Pública no primeiro Governo Lula, concluiu seu pós-doutorado, atuou como professor visitante de universidades dos EUA (Columbia, Virgínia, Pittsburgh) e foi o idealizador das propostas para a área de segurança pública da senadora e candidata à Presidência da República nas últimas eleições Marina Silva.

Atualmente professor universitário, Soares tem aparecido na mídia quase sempre no papel de escritor: ele é autor de uma dúzia de livros de sucesso, entre eles "Meu Casaco de General" (Companhia das Letras), relato biográfico sobre sua experiência na Segurança Pública do Rio de Janeiro. Soares também divide com Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel a autoria de "Elite da Tropa 2" (Editora Nova Fronteira), destaque nas listas de mais vendidos. Combinação de literatura e jornalismo, é um livro difícil de definir, construído em diálogo com José Padilha e a equipe de "Tropa de Elite". 







Na entrevista que fiz com ele por telefone, Luiz Eduardo Soares explica que os dois livros e os dois filmes são autônomos, ainda que compartilhem os mesmos assuntos, referências e intenções. "Não existe uma fórmula para escrever a tese certa e vencer", ele diz, enquanto avalia que o segredo do sucesso dos dois "Elite da Tropa" foi desvendar a rotina do policial, algo que sempre esteve muito longe e, contraditoriamente, muito perto da vida cotidiana o cidadão comum.



Arte é o aprendizado da tolerância



"São vozes narrativas muito próximas, que têm muito em comum, compartilhadas por dois projetos simultâneos que são os dois livros 'Elite da Tropa' e os dois filmes 'Tropa de Elite'. São obras em diálogo, mas obras distintas", explica Luiz Eduardo Soares, uma das maiores autoridades em segurança pública no Brasil. Sobre a parceria nos livros com Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, e nos dois filmes "Tropa de Elite", nos quais divide o argumento com a equipe do diretor José Padilha, Soares diz que foi uma surpresa, mas comemora o sucesso. "No Brasil, de fato é um modelo pouco usual. Mas parece que deu certo e tem tudo para se repetir em outros projetos", reconhece.








Na mesa de trabalho de Soares estão também outros projetos em parceria com Padilha. Desde o fim das filmagens de "Tropa 2" (imagem acima), em março de 2010, e depois do sucesso de bilheteria – que alçou o filme ao recorde de arrecadação do cinema brasileiro, superando o marco histórico de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, adaptação de Bruno Barreto do romance de Jorge Amado – a equipe do diretor trabalha em vários projetos paralelos.

Quatro desses novos projetos foram anunciados por Padilha: dois roteiros sobre educação e pirataria, em filmes de ficção, mais a adaptação de um romance norte-americano ("Marching powder: a true story of friendship, cocaine and South America's strangest jail", que traz as memórias do traficante Thomas McFadden, co-escritas por Rusty Young) e a transformação em documentário do livro de Soares, "Nunca Antes na História Desse País", que aborda episódios do Governo Lula.







"Este 'Nunca Antes na História Desse País' não será exatamente um documentário", revela Soares. "Será uma obra de ficção em diálogo com a realidade, com as liberdades narrativas que o cinema proporciona. Mas o projeto ainda está bem no começo", explica. O próximo livro também está com data marcada para chegar às livrarias. "Será a biografia de um traficante internacional que ganhou status de celebridade", diz Soares, que prefere não anunciar por enquanto o nome verdadeiro do biografado.

Outro projeto de Soares é um álbum de histórias em quadrinhos, em parceria com o artista gráfico Marcos Wagner, que também deve ter lançamento em breve. "Tenho aprendido nestes anos que o trabalho criativo é sempre fascinante, mas também é gerador de muita insegurança. Não há fórmula mágica. Não tem como antecipar se o retorno será positivo ou negativo", conclui Soares.

Ainda sobre o sucesso do projeto “Elite da Tropa” e sobre a vida cotidiana surrealista dos policiais no Rio de Janeiro ele comenta: “Não tem um segredo para o sucesso. Mesmo com todo investimento, ou aquilo acontece para o grande público ou não acontece. Não tem como saber. Já sobre a vida cotidiana do policial brasileiro, e no Rio de Janeiro em particular, sei que é algo muito louco. Ele vai todos os dias às zonas de guerra e depois retorna de ônibus para casa e para a normalidade no final do expediente. Isso é muito surrealista", diz Soares.

Confira alguns trechos da entrevista.


O sr. concorda que os dois livros "Elite da Tropa" e os dois filmes "Tropa de Elite" perseguiram os acertos de outros projetos, especialmente o documentário "Notícias de uma Guerra Particular" e a adaptação do romance "Cidade de Deus" para o cinema?

 
Luiz Eduardo Soares – Sem dúvida nenhuma. Os dois filmes que você cita podem ser tomados como antecedentes importantes do primeiro e do segundo "Tropa de Elite". Aprendi muito com o filme do João Moreira Salles e da Kátia Lund e adoro o livro do Paulo Lins, no qual o filme "Cidade de Deus", do Fernando Meirelles e da Kátia Lund foi baseado. 













 "Notícias de uma Guerra Particular" foi ao "x" do problema quando não se falava da presença de traficantes e chefes do morro, como se eles não existissem...
 
Concordo plenamente. O filme do João é muito especial, porque foi pioneiro ao trazer ao mesmo tempo a palavra do traficante do morro e a palavra do policial. Ele foi aos dois extremos naquele documentário. Já "Cidade de Deus", o filme, relata somente o universo do tráfico, enquanto "Tropa de Elite" vai em outra direção para encontrar o universo do policial. O filme do João mapeou os dois universos e os filmes que vieram depois seguiram com focos específicos.

O diretor José Padilha declarou que os protagonistas de "Tropa de Elite" lembram outros heróis da literatura que viraram sagas marcantes no cinema, como James Bond e Dom Corleone. A comparação é correta?
 
Não sei se concordo com a comparação entre "Tropa de Elite" e os filmes do Agente 007, mas com a saga de Dom Corleone a analogia é perfeita. Creio também que "Tropa de Elite", tanto o primeiro quanto o segundo filme, remetem a certos heróis do cinema como aquele de "Taxi Driver", do Martin Scorsese. Ou seja, são personagens fortes, incomuns, que comovem e fazem pensar, sem necessariamente ser um convite para que o público venha a adotar aquela visão de mundo ou aquele comportamento doentio. Não é este o papel da grande arte, representar e sensibilizar o público, sem forçá-lo a aderir a uma determinada atitude? A arte precisa ensinar, oferecer a possibilidade da experiência, precisa estabelecer um diálogo com o diferente. Arte é o aprendizado da tolerância.

Considerando a repercussão dos dois filmes e a importância do cinema como marco cultural e antropológico, qual é o lugar da saga "Tropa de Elite" como possibilidade de intervenção na realidade do cidadão brasileiro?
 
É uma questão difícil de responder. O fato é que os livros "Elite da Tropa" e os dois filmes "Tropa de Elite" conseguiram atingir alguns nervos e, ao mesmo tempo, passaram a fazer parte do imaginário de boa parte da população. Foi um sucesso imprevisível, até para nós que estávamos envolvidos no projeto desde o início. Tenho pensado muito sobre a dimensão política de tudo isso, que é inevitável.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Polícia & Ladrão. In: Blog Semióticas, 25 de novembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/11/policia-ladrao.html (acessado em .../.../...).








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