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26 de agosto de 2014

Cortázar faz 100 anos





Andávamos sem nos procurar, mas sabendo 
sempre que andávamos para nos encontrar. 

–– "Rayuela" (1963), Julio Cortázar.    


Um dos autores mais inovadores e originais de nossa época, Julio Cortázar (1914-1984) completa 100 anos lembrado como mestre do conto e da prosa poética. Militante incansável dos Direitos Humanos, das causas políticas e sociais, Cortázar criou um universo literário especialíssimo, pontuado de revelações insólitas e imprevistas que fizeram dele um expoente do fantástico, destacado, por muitos, como comparável a Jorge Luis Borges, Franz Kafka e Edgar Allan Poe. Seus textos, em prosa, poesia e ensaios, lançaram o chamado “boom” do realismo mágico da literatura latino-americana e romperam com os modelos clássicos da narração e da linearidade temporal (veja também o artigo Semióticas: Bodas do "boom").

Cortázar e seus livros mais conhecidos, especialmente “Rayuela – O Jogo da Amarelinha”, publicado em 1963, inauguram um novo formato que permite várias leituras, orientadas pelo autor, e inspiram há mais de meio século um grande número de leitores, escritores, músicos, cineastas e artistas em geral. Há também os vários filmes baseados em sua literatura, entre os quais dois, pelo menos, se destacam como clássicos do cinema – os dois, por coincidência, lançados em 1967:  “Blow-Up”, de Michelangelo Antonioni, baseado em “Las babas del diablo”, um dos contos de “Las armas secretas”, publicado em 1959; e “Week End à Francesa”, de Jean-Luc Godard, adaptação de “La Autopista del Sur”, publicado em “Todos los Fuegos el Fuego” (1966).

A lista de filmes que são adaptações da literatura de Cortázar não é extensa. No momento em que escrevo este artigo, pelo que sei há 12 filmes de longa-metragem baseados em obras de Cortázar 
– filmes de ficção, não incluindo documentários sobre o autor ou sobre sua obra. Além dos dois filmes citados acima, de Antonioni e Godard, há também "O Grande Engarrafamento" ("L'Ingorgo: Una Storia Impossible"), filme de 1979 do italiano Luigi Comencini, também baseado em "La Autopista del Sur", com um elenco de estrelas que inclui, entre outros astros e estrelas, os italianos Marcello Mastroiani, Ugo Tognazzi e Alberto Sordi, os espanhóis Fernando Rey, Angela Molina e José Sacristán e os franceses Gerard Depardieu e Annie Girardot.

Também são baseados na literatura de Cortázar três filmes do argentino Manuel Antín: "La Cifra Impar", de 1962, adaptação de "Cartas de mamá", publicado em "Las armas secretas"; "Circe", de 1964, adaptação do conto homônimo publicado em "Bestiário" (1951); e "Intimidad de los parques", de 1965, adaptação de "El Ídolo de las Cícladas" e "Continuidad de los parques", dois contos publicados em "Final de Juego" (1956). A lista se completa com "El Perseguidor", de 1965, adaptação do argentino Osis Wilenski para o conto homônimo de "Las Armas Secretas"; o brasileiro "Jogo Subterrâneo", de 2005, adaptação de Roberto Gervitz para "Manuscrito encontrado en un bolsillo", publicado em "Octaedro" (1974); "Mentiras Piedosas", filme de 2008 do argentino Diego Sabanés, baseado em "La salud de los enfermos", conto de "Todos los fuegos el fuego" (1966); e "Diário para un cuento", filme de 2008 de Jana Bokova, coprodução de Argentina e Espanha, baseado no texto homônimo que Cortázar incluiu no último livro que publicou, "Deshoras" (1983).
 
Os leitores que conhecem as entrevistas de Cortázar também sabem que ele tem uma estranha habilidade para transformar os diálogos com seus entrevistadores em ironias que beiram o sublime em sugestões de heterotopias. Explico melhor este comentário a seguir, reproduzindo alguns trechos das minhas entrevistas preferidas de Cortázar, nas quais ele fala da infância, da política, da literatura. Em cada trecho selecionado das entrevistas, a complexidade surge por via indireta, condensada, às vezes entre metáforas, mas a fala de Cortázar guarda sempre a qualidade de revelar o coletivo no autobiográfico, o simples na complexidade, destacando aspectos fundamentais em sua mitologia autoral que sempre encontram aquele toque de Midas do autor ao direcionar as experiências mais cotidianas e rotineiras ao que temos por hábito chamar de Arte – uma habilidade por vezes insólita, incômoda, extraordinária, mas quase sempre bela, incomum, surpreendente.









Memórias de Cortázar: no alto,
em 1980, em Paris, fotografado por
José Alias. Acima, imagens do álbum
de família. Abaixo, com sua irmã, Ofelia;
com a mãe, María Herminia Descotte;
e em uma sequência de sete fotografias por
José Gelabert em 1959, na sede da UNESCO
em Paris, 
onde trabalhou como tradutor










.





1. Infância


Sou filho de argentinos, mas nascido na embaixada da Argentina em Ixelles, uma vila em Bruxelas, na Bélgica, conhecida por reunir muitos estudantes, artistas e intelectuais. Voltei com meus pais para a Argentina aos quatro anos de idade. Meus pais se separaram naquela época e fui criado por minha mãe, uma tia e uma avó. Passei minha infância em uma névoa de duendes, elfos e fadas, com uma sensação de espaço e tempo diferente dos outros.

Um dia, meu pai desapareceu misteriosamente de casa e nunca mais foi visto. Anos mais tarde, tivemos notícias dele: havia morrido no interior do país. Maior foi a surpresa quando soubemos que ele havia deixado fazendas e uma confortável pensão, tudo em nome de minha mãe. Meu pai também se chamava Julio – Julio Cortázar.


– Extraído da entrevista a Elena Poniatowska publicada na “Revista Plural”, n° 44 (México, maio de 1975). 





 
















2. Política


Claro que me incomoda ser mais requerido para dar opiniões políticas que literárias, porque sou um homem literário. Assim como os franceses costumam referir-se ao homem como um animal pensante ou um animal filosófico, eu sou um animal literário. Nasci para a literatura e se fui assumindo lentamente este compromisso ideológico que eu tenho e vocês conhecem, isso foi ao término de um processo muito lento, muito complicado e às vezes muito penoso.

No meu coração, a América Latina existe como uma unidade. Sou argentino, claro (e sinto-me contente com isso), mas estou em casa em qualquer país da América Latina. Sinto as diferenças locais, mas são diferenças dentro da unidade. No plano geopolítico, está a nefasta política de dividir para reinar, que os norte-americanos impõem desde há muito tempo, fomentando os nacionalismos, as rivalidades entre os países para dominá-los melhor, destruindo o sonho de Bolívar dos “Estados Unidos da América do Sul” e criando diferentes países orgulhosos, dispostos a fazer a guerra por questões que não resistem a uma análise profunda. Isso é uma realidade.


– Extraído da entrevista a Viviana Marcela Iriart publicada na “Revista Semana” (Venezuela, setembro de 1979).










Memórias de Cortázar: acima, durante a entrevista

com Viviana Marcela Iriart em setembro de 1979

em Caracas, Venezuela, fotografados por

Eduardo Gamondés. Abaixo, com suas duas

esposas: com Aurora Bernárdez, com quem

viveu de 1953 a 1967; e com Carol Dunlop,

com quem viveu de 1970 a 1982.


Também abaixo, Cortázar na capa do livro com

a transcrição da longa entrevista que concedeu

Ernesto González Bermejo, fotografado

pelo próprio Bermejo, seguido por Cortázar em

Buenos Aires, em 1983, fotografado por Dani Yaco;

e Cortázar em 1976 no deserto de Zabriskie Point,

em Death Valley (EUA), cenário do filme de

Michelangelo Antonioni, cineasta que também

havia adaptado para o cinema, em 1966, o conto

de Cortázar Las babas del diablo, transformado

no filme Blow Up. A fotografia foi enviada

pelo correio por Cortázar, para Antonioni,

em março de 1976 com a inscrição

"Blow Up encontra Zabriskie Point"


















.


                 











3. Literatura


A literatura que escrevo sempre recebeu muitas críticas das mais violentas. De um lado, por parte dos aficionados da literatura da direita liberal ilustrada; e de outro, por parte dos meus próprios companheiros de estrada da esquerda. É claro que os mal-entendidos da esquerda me doem. Os da direita, não levo a sério. Até porque teria sido estranho se a direita não tivesse ficado zangada com o que escrevo.

Creio que a literatura serve como uma das muitas possibilidades do homem de realizar-se como "homo ludens". E, em última instância, como homem feliz. A literatura é uma das possibilidades da felicidade humana. Fazer e ler literatura. Sou feliz quando escrevo e penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando digo felicidade, não estou me referindo a uma felicidade beata: felicidade pode ser exaltação, amor, cólera... Digamos, potencialização.






 
 
  
 



Memórias de Cortázar: no alto, durante temporada na
Universidade de Berkeley, Califórnia, EUA, em 1980,
no curso que depois seria transformado no livro
Aulas de Literatura. Acima, com sua gata Flanelle
no apartamento em que morava em Paris, em 1967,
fotografado por Antonio Marín Segovia, e aclamado
pela multidão nas ruas, em fotografia de Renzo Gostoli,
na última visita que fez a Buenos Aires, em dezembro
de 1983, dois meses antes de sua morte. Abaixo,
fotografado por José Alias nos anos 1970, nas ruas
de Paris e indo às compras com Carol Dunlop.

Também abaixo, na Kombi Volkswagen batizada
de Fafner, durante a viagem de 800km entre Paris
e Marselha que Cortázar fez com Carol Dunlop,
entre maio e junho de 1982, transformada no livro
Los autonautas de la cosmopista. Carol morreria
em novembro daquele ano e Cortázar morreria
logo depois, em 12 de fevereiro de 1984. Nas
três últimas fotografias abaixo, Cortázar em
uma 
visita a Ouro Preto, Minas Gerais, em
1973, sua agente literária Ugné Karvelis




















.





Na verdade meus amigos acreditam que sou um vampiro porque tenho uma alergia muito forte ao alho. Desde os 30 anos não posso comer a mais insignificante quantidade de alho que tenho enxaquecas incríveis. E os vampiros são alérgicos a alho. Até hoje os camponeses húngaros e romenos têm em suas cabanas réstias de alho, pois sabem que os vampiros são afugentados por duas coisas: alho e crucifixo, porque são criaturas do Diabo. Salvo que aconteça como na paródia de Polanski, na qual, ao se ver diante um crucifixo, um vampiro diz: “Não ligo para isso. Sou judeu”.


–  Extraído da entrevista a Ernesto González Bermejo realizada no México, em 1978, e publicada em “Conversas com Cortázar” (Editora Jorge Zahar, 2002).



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Cortázar faz 100 anos. In: Blog Semióticas, 26 de agosto de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/08/cortazar-faz-100-anos.html (acessado em .../.../...).







Memórias de Cortázar: acima, em Trinidad, Cuba, em 1967.
Abaixo, dois flagrantes em Paris, 1967, por Sara Facio;
Cortázar e seu trompete, fotografado por Alberto Jonquières;
e o túmulo do escritor no cemitério de Montparnasse, Paris


































Exposição em homenagem ao centenário
de Julio Cortázar em Paris, na sede do
Ministério da Cultura e da Comunicação,
aberta de março a setembro de 2014


 

2 de fevereiro de 2013

Bodas do 'boom'






Tenho me perguntado muitas vezes: escreveria
ainda se me dissessem, hoje, que amanhã uma
catástrofe cósmica destruirá o universo, de modo
que ninguém poderá ler aquilo que hoje escrevo?
–– Umberto Eco, "Sobre a literatura" (2002).  

 
Foi no início da década de 1960 que leitores do mundo inteiro tiveram as primeiras notícias sobre uma nova safra de grandes escritores de países da América Latina. Surgiam nomes que pelas afinidades ou pelas semelhanças de estilo e temática pareciam formar um grupo organizado, como os argentinos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares; o colombiano Gabriel García Márquez; os peruanos Carlos Castaneda, José María Arguedas e Mario Vargas Llosa; os cubanos José Lezama Lima, Alejo Carpentier e Guillermo Cabrera Infante; os mexicanos Juan Rulfo, Octavio Paz e Carlos Fuentes; os chilenos Pablo Neruda, Violeta Parra e José Donoso; o guatemalteco Miguel Ángel Asturias; os bolivianos Gastón Suárez e Marcelo Quiroga Santa Cruz; os venezuelanos Salvador Garmendia e Miguel Otero Silva; o nicaraguense Ernesto Cardenal; o paraguaio Augusto Roa Bastos; os uruguaios Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti e Eduardo Galeano; ou os brasileiros Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice Lispector, Murilo Rubião e José J. Veiga, entre outros – alguns deles presentes em todas as listas que se referem ao "boom", outros sem alcançar o lugar de classificação unânime ou só incluídos a partir das décadas seguintes.

A novidade: a literatura que estes autores apresentavam a leitores da Europa, dos Estados Unidos e de outros países era bastante diferente do lugar comum e imprevisível em suas variações de romances, novelas, contos, poemas. Mas, ao mesmo tempo, trazia semelhanças com clássicos da Literatura Universal, com recursos do fantástico e do mundo das fábulas a conduzir narrativas primorosas sobre a vida real nos trópicos, na periferia do capitalismo, nos confins da América Central e da América do Sul. Com seus impasses rurais e urbanos de toda ordem, seus fantasmas e assombrações muito peculiares e suas interfaces de magia, de insólito, de sobrenatural, de crueldade, a nova literatura da América Latina surgia com um inesperado sucesso de crítica e de vendas, surpreendendo até os mais céticos e seduzindo uma multidão de novos leitores pelo mundo afora.

O inumano, a metalinguagem e seres do mundo da imaginação invadiam de forma poética narrativas que muitas vezes fugiam às categorias estanques de gênero ou tornavam relativas estas fronteiras, quase sempre com destaque no viés de crítica aos dramas da realidade social – daí a definição que abarcaria grandes autores e obras da América Latina daquele momento: o “boom” do Realismo Mágico ou Realismo Fantástico ou Realismo Maravilhoso, nomenclatura sujeita a sutilezas de classificação e que também não alcança unanimidade entre críticos e teóricos da literatura ou dos estudos culturais. Sobre todos, há pelo menos um consenso: Borges, que foi um dos patronos e antecessores do grupo. Com seus textos híbridos entre ensaio e ficção, em que o assunto é quase sempre a própria literatura, reunidos em livros como “Ficciones” (1944) e “El Aleph” (1949), Borges é o primeiro nome do “boom” a alcançar o leitor médio e a crítica acadêmica do Primeiro Mundo (veja também "Semióticas: Outros Borges").













Gigantes no "boom" do Realismo Mágico:
no alto e acima, Cortázar em Paris, em 1964,
no quarto de trabalho e às margens do
Rio Sena, fotografado por Pierre Boulat.
Acima, Borges em Buenos Aires. Abaixo,
os amigos se encontram: Julio Cortázar
e Carlos Fuentes; Cortázar, Fuentes e o
cineasta Luis Buñuel; Cortázar em Cuba com
José Lezama Lima;
Gabriel García Márquez
com Cortázar;
Ernesto Cardenal com
Eduardo Galeano e
Cortázar no México, em
1980; e Carlos Fuentes, Juan Carlos Onetti,
Emir Rodríguez Monegal e Pablo Neruda
no Chile, em 1970.

Também abaixo, Borges em Nova York,
em 1969, fotografado por Diane Arbus;
e a capa de Los Nuestros, livro de 1966
de Luis Harss relançado em 2012, em
espanhol, pela Editora Alfaguara







 
 
 
 
 














Mais de quatro décadas depois das primeiras edições de seus livros em espanhol, Borges finalmente seria publicado em francês, em inglês, em italiano, em português e em outros idiomas pelo mundo afora. Sua literatura, encadeada em textos breves e da maior complexidade, surge para seus compatriotas e para seus leitores estrangeiros com a originalidade de uma “obra aberta”  como definiria com propriedade Umberto Eco, referindo-se a certas possibilidades de cooperação interpretativa nas trilhas da "semiose ilimitada" fundadas pela semiótica de Charles Sanders Peirce.

Borges e sua literatura cativam os principais expoentes do Estruturalismo e levam Michel Foucault declarar, em 1966, no prefácio de “As Palavras e as Coisas”, publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes: Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”.



Meio século de história



Talvez Borges seja um dos consensos possíveis sobre aquele grupo de autores, mas sempre houve muitas controvérsias sobre as origens e as motivações do “boom”. Sabe-se que o termo, para se referir à literatura latino-americana, foi usado pela primeira vez por um escritor e jornalista chileno, Luis Harss. No mesmo ano em que Foucault publicava na França “As Palavras e as Coisas”, Harss lançava seu livro “Los Nuestros”, em que mistura depoimentos, reportagem e crítica para investigar o fenômeno da repercussão internacional de certas obras e certos autores, algo sem precedentes na literatura da América Latina.

O livro de Harss, relançado em 2012 pela Editora Alfaguara, foi o resultado de uma série de entrevistas do autor com 10 escritores latino-americanos por ele considerados os mais representativos daquele momento: Jorge Luis Borges, Miguel Ángel Astúrias, Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, García Márquez e Vargas Llosa. Houve controvérsias, já que a lista de entrevistados deixou de fora e sequer mencionou nomes que expoentes da crítica em países da Europa já destacavam como protagonistas do renascimento da literatura na América Latina, entre eles Clarice Lispector, José Donoso, Ernesto Sabato, José María Arguedas, Augusto Roa Bastos ou Guillermo Cabrera Infante. Contudo, desde então formou-se um certo consenso entre pesquisadores para o reconhecimento de que Harss exerceu papel pioneiro na criação do cânone e da primeira carta de navegação relevante sobre o "boom".
 












Harss destaca entre os autores do grupo uma nova relação com a linguagem da forma literária, francamente experimental e política, e propõe um marco inaugural: várias foram as publicações que prepararam o terreno, incluindo as primeiras edições de Borges na França, na segunda metade da década de 1950, além de títulos importantes de outros autores nos anos seguintes, mas ele situa em 1963 o primeiro grande momento do “boom” latino-americano, com a publicação simultânea em espanhol, francês e inglês de um livro ímpar: “Rayuela” (no Brasil, “O jogo da amarelinha”), de Cortázar. Pelas coordenadas traçadas por Harss, o “boom” completa, em 2013, 50 anos de história.

Do Terceiro Mundo para o Velho Mundo: a partir de uma reflexão sobre a situação política e social da América Latina, autores em países diferentes, e que sequer se conheciam, transformaram em literatura da melhor qualidade, na mesma época, os absurdos e o insólito da vida cotidiana. Povoada de tradições exóticas e de cenários desconhecidos, repleta de apelos ao sobrenatural, a literatura da América Latina pela primeira vez ganharia projeção internacional, passando a exercer considerável influência sobre a obra de importantes pensadores e ficcionistas até nossos dias, incluindo, entre muitos outros, Italo Calvino, José Saramago, Susan Sontag, Umberto Eco, Homi Bhabha, Salman Rushdie, Roberto Bolaño.












Viagem a Paris: três expoentes do “boom”

e suas esposas, em foto de 1969 – a partir

da direita, Mario Vargas Llosa e Patricia;

José Donoso e Pilar; Mercedes e Gabriel

Garcia Márquez. Também acima, a capa

de junho de 1967 da revista Argentina

Primera Plana, publicação pioneira ao

destacar os autores do boom e o

lançamento de Cem anos de solidão,

e fotografias dos arquivos de García Márquez. 


Abaixo: 1) um encontro de García Márquez e

Vargas Llosa em fevereiro de 1976, época

em que os dois romperam relações por conta

de ciúmes conjugais e pelas posições políticas

de Vargas Llosa de apoio a políticos de direita

e às ditaduras militares na América Latina;

2) Pablo Neruda e García Márquez brincam

com a pose de uma estátua na Normandia,

em visita à França, em 1969; 3) Pablo Neruda

em visita ao Brasil em 1945, fotografado na

praia de Ipanema, no Rio de Janeiro;

4) Vinicius de Moraes e Pablo Neruda em

visita a Ouro Preto, Minas Gerais, em 1968;

5) García Márquez com Jorge Amado em

Salvador, Bahia, na década de 1970, fotografados

por Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado;

6) García Márquez em Barcelona, em 1970;

7) García Márquez e Carlos Fuentes na

Feira do Livro de Barcelona em 2008;

e 8) García Márquez no Méxicofotografado por

Daniel Mordzinski em 2009, quando declarou

em entrevista ao jornal El País que havia se

aposentado e que não pretendia mais escrever






















 




 
Contudo, do lado de dentro das fronteiras de cada país do continente latino-americano, o contexto político daquele momento histórico era explosivo e dos mais sombrios. A resposta à Revolução Cubana em 1959 foram, nos anos seguintes, os regimes de exceção e as ditaduras militares, instaladas simultaneamente na maior parte dos países da região com apoio dos Estados Unidos. Esta nova realidade, que despertou uma mistura de sentimentos de utopia e desejo de justiça, também gerou alegorias transformadas em obras-primas da Literatura Universal.



Da América Latina à Europa



O estudo publicado em 1966 por Luis Harss já apontava para as semelhanças e diferenças – tanto entre obras e autores incluídos no “boom” do Realismo Mágico, quanto entre este movimento e as vanguardas modernistas nas primeiras décadas do século 20. Se é inquestionável que o “boom” produziu obras-primas que permanecem há mais de meio século como influência e referência, também é certo que ele nunca teve qualquer padrão estético coeso. Em outras palavras, parodiando um célebre aforismo sobre Minas Gerais de Guimarães Rosa, também ele um expoente entre estas referências: no “boom”, são vários.













Em sua grande maioria, os autores do “boom” sempre estiveram comprometidos com apoio aos movimentos populares de resistência à censura e à repressão instaladas pelas ditaduras militares em seus países de origem. Alguns deles foram exilados e outros, como Cortázar, chegaram a empreender jornadas internacionais pela Anistia e pelos Direitos Humanos, mas nenhum deles chegou a apresentar algum manifesto ou programa de ação – prática frequente da militância entre as vanguardas da arte no começo do século 20.

Pelo contrário. Não houve nenhum “alinhamento”, nenhuma “meta programática”. Tanta variedade e liberdade acabou fornecendo fôlego às críticas: os detratores do “boom” existem, ainda que sem grande influência ou ressonância, e costumam se apegar ao argumento de que o grupo não tinha coesão e que tudo não passou de marketing editorial. Mas talvez tal argumento seja mesmo um equívoco: afinal, as obras-primas lançadas naquele período são um contraponto inquestionável.

A diversidade de autores e obras nomeados com o rótulo de Realismo Mágico é evidente. Basta lembrar que um dos destaques incluídos no “boom” foi o cânone maior da literatura do Brasil, Machado de Assis (1839–1908), um mestre do século 19, traduzido e publicado nos Estados Unidos e na Europa na mesma época e no mesmo pacote editorial que reunia, entre outros “estreantes”, Borges, Cortázar, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Vargas Llosa, García Márquez, Guimarães Rosa, Jorge Amado (veja também "Semióticas: O Bruxo e a crítica internacional").






Machado de Assis: cânone brasileiro
do século 19 surge em destaque no
mesmo pacote literário e comercial
dos autores latino-americanos do
"boom" do Realismo Fantástico









Contracultura, o contexto libertário



Também há controvérsias quanto ao tempo de duração do “boom”, mas com frequência se destaca o período que vai de 1963, com a publicação de “Rayuela”, até, para alguns, a data de 11 de setembro de 1973, com o golpe militar contra o governo de Salvador Allende no Chile, enquanto para outros o período se estende até 1982, ano em que se concede o Prêmio Nobel de Literatura a García Márquez. Não por acaso, é também no ano de 1982 que muitos países da América Latina começam o retorno a regimes democráticos, depois dos tempos sombrios de violência e censura das ditaduras militares. Mas este período historiográfico também não deixa de ser uma demarcação aleatória, sujeita a variáveis – há quem defenda também outros eventos para a demarcação inicial, entre eles o marco em 1962, ano da publicação de “Historias de cronopios y de famas”, de Cortázar, ou em 1959, ano da Revolução Cubana.

As controvérsias e questionamentos fazem todo sentido, ainda mais que os nomes principais do “boom” haviam publicado muito antes de 1963 e continuaram a produzir e publicar até muito depois do ano de 1982. Outras datas com frequência apontadas como marcos de importância para assinalar o fim, ou mesmo para um novo renascimento do “boom”, incluem o ano de 1986, quando morreu Borges, decano do grupo, ou o ano de 2010, quando outro baluarte do movimento que destaca a literatura da América Latina, o peruano Vargas Llosa, também seria condecorado com o Prêmio Nobel de Literatura.







D




Três obras de Borges que foram adaptadas
com sucesso para o cinema: acima, uma cena
de A Estratégia da Aranha, filme de 1970
com direção de Bernardo Bertolucci; e
Borges durante as filmagens de Invasión,
filme de 1969 de Hugo Santiago com roteiro
de Borges e Adolfo Bioy Casares (na foto,
a partir da esquerda, o diretor de fotografia
Ricardo Aronovich, o cineasta Hugo Santiago,
Jorge Luis Borges e o ator Lautaro Murúa);
no alto, cartaz de A Intrusaco-produção
entre Brasil e Argentina, de 1979, com
direção de Carlos Hugo Christensen.
Abaixo, uma cena do filme de 1965
A hora e a vez de Augusto Matraga,
versão do cineasta Roberto Santos
para o conto que encerra "Sagarana",
livro de João Guimarães Rosa.

Também abaixo, o fotógrafo no estúdio
em Blow Upversão de 1967 de
Michelangelo Antonioni para o
Cortázar de Las Babas del Diablo;
Week-End à Francesa, versão também
de 1967 de Jean-Luc Godard para a
narrativa A auto-estrada do sulde
Cortázar; e uma cena de Erêndira,
filme de 1983 de Ruy Guerra com
roteiro de García Márquez baseado
em sua novela La increíble triste
historia de la cândida Erêndira
y de su abuela desalmada







A descoberta da literatura da América Latina por leitores do Primeiro Mundo vem no contexto libertário da Contracultura – tempos da Guerra Fria, da novidade da TV e da dominação cultural norte-americana avançando pelos cinco continentes. É também a época em que ganham força protestos da juventude, o recém-criado rock'n'roll, o movimento estudantil, mobilizações pelos direitos civis, as passeatas pacifistas, as rupturas lançadas pelo comportamento inconformista e pela literatura libertária da geração beat – por sua vez mentores e avatares da experiência em sociedades alternativas, em viagens esotéricas de autoconhecimento, em religiões orientais, em rituais de shamanismo e de alucinógenos.

Neste cenário, o “boom” da literatura latino-americana encontra terreno fértil. Rapidamente assimilado, desatou a imaginação de leitores e de outros autores, convocou o humor e a ironia em situações das mais alegóricas e criou novas formas narrativas que foram absorvidas pela Literatura Universal. Não é um legado pequeno, ainda que seja possível estabelecer toda uma rede de filiações dos escritores do “boom” a certas obras e autores como James Joyce, William Faulkner, Franz Kafka – com reflexos que transparecem como influência ou referência direta em “Rayuela”, em “Pedro Páramo”, em “Cien Años de Soledad” e em boa parte do que o Realismo Mágico produziu.






Week End (1967)

.



 

As narrativas do trio Faulkner-Joyce-Kafka são fundamentais à literatura do “boom”, mas há outras obras que prevalecem como referência direta, entre elas "As Vinhas da Ira" ("The Grapes of Wrath"), romance de 1939 de John Steinbeck. Virginia Woolf também ganha destaque como forte influência para alguns, caso de García Márquez, Cortázar e Clarice Lispector, assim são referências importantes para vários autores do “boom” os escritos experimentais lançados por Guillaume Apollinaire e todo o Modernismo dos surrealistas franceses. Porém, nem tudo é século 20.

Pairando sobre todos, inevitável, no “boom”, está a sombra de Edgar Allan Poe, além das clássicas novelas de ficção científica, enquanto Borges, Cortázar, Guimarães Rosa e outros também rendem tributo a Machado de Assis, mestre nas artimanhas do fantástico e nas alegorias construídas no jogo narrativo, não por acaso também leitor devotado e tradutor de Poe. Na lista de mentores e precursores em evidência ainda há Goethe, Byron, Baudelaire, Rimbaud, Flaubert, Swift, Shakespeare, Rabelais, o romance medieval de Cervantes, os contos árabes de Sherazade, a mitologia pagã da Antiguidade, a Torá e os evangelhos da Bíblia Sagrada, entre outros títulos enumerados nas estantes da Biblioteca. Sobre esta rede quase infinita de influências e de precursores, Borges, o visionário, guardou um comentário definitivo: os livros sempre falam entre si e isso não depende de os autores terem se conhecido.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bodas do “boom”. In: Blog Semióticas, 2 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/bodas-do-boom.html (acessado em .../.../…).



Clássicos do Realismo Fantástico nas livrarias:















No alto, "Música de banda" (1960),
fotografia de Juan Rulfo. Acima,
ilustração na capa da primeira edição
de “Cien años de soledad”, de
Gabriel García Márquez, publicada
em 1967 por Editorial Sudamericana.
Abaixo, fotografia de um antigo catálogo
de roteiro turístico da Colômbia indicando
a aldeia fictícia de Macondo criada pela
literatura de García Márquez










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