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14 de abril de 2024

A invasão do Gibi

 




Criada em 1905, a revista em quadrinhos “O Tico-Tico”,
pioneira no Brasil, reinava desde o primeiro número com sucesso absoluto entre crianças e adultos, com seus personagens e aventuras tipicamente brasileiros, criados por artistas nacionais, com poucas exceções de estrangeiros que apareciam como convidados em suas páginas. Sem nenhum rival à altura, “O Tico-Tico” seguia rentável e imbatível até a década de 1930, quando outros jornais e revistas decidiram investir no público infantojuvenil. Foi então que “O Tico-Tico” começou a perder público e as dificuldades financeiras foram se agravando, nos anos e décadas seguintes, com a invasão norte-americana e a conquista do território nacional pelos personagens Disney e as aventuras de heróis e super-heróis da DC Comics e da Marvel.

A batalha foi violenta: em pouco tempo, a maioria dos personagens nacionais deixaria de ter histórias inéditas e passaria a ser apenas lembranças, coisa do passado, ou apenas exceções, como aconteceria com o surgimento isolado de personagens de artistas como Ziraldo ou Maurício de Souza, a partir da década de 1960. Um capítulo importante da invasão dos quadrinhos norte-americanos aconteceria às vésperas da Segunda Guerra Mundial: em abril de 1939, a editora O Globo, um setor das Organizações Globo, grande conglomerado de jornais, revistas e rádios, já naquela época sob o comando de Roberto Marinho (1904-2003), lançou uma revista infantojuvenil semanal chamada “Gibi” que foi um sucesso imediato e a primeira grande concorrente a desbancar a liderança de “O Tico-Tico” (Veja também: Semióticas – Revistinha de vovô).










A invasão do Gibi: no alto da página, o mascote,
personagem símbolo da revista "Gibi", um estereótipo
racista e discriminatório que estava presente em todas
as edições. Acima, um anúncio de vendas da revista
por reembolso postal, expediente que garantia à
Editora O Globo várias reimpressões com milhares de
exemplares; e a apresentação do Spirit, criação de
Will Eisner, um dos personagens de grande
sucesso na trajetória da "Gibi".

Abaixo, O Fantasma na capa e nas páginas
da "Gibi": personagem criado por Lee Falk
(também criador de Mandrake, o mágico) e pelo
desenhista Ray Moore, foi um dos grandes
sucessos entre os leitores da revista.
Também abaixo, a ilustração da última página
da última edição semanal de "Gibi" em 1975












Além de ser uma porta de entrada para a invasão dos heróis e super-heróis dos quadrinhos norte-americanos, a revista lançada pelo Grupo Globo também fazia seu marketing reforçando um preconceito racial: "Gibi”, desde o seu número de estreia, trazia como símbolo, na capa, a referência racista de um personagem em desenho estereotipado retratando um menino negro e pobre. Na época, a palavra “gibi” era uma expressão francamente racista, muito usada como xingamento e como ofensa, para designar “menino negro”, “negrinho ladrão” ou “negro feio e grosseiro”. Mas o preconceito racial foi normalizado em pouco tempo: o sucesso da publicação do Grupo Globo foi tanto que a palavra “gibi” começou a perder seu caráter racista, pejorativo e discriminatório, para ganhar no senso comum um novo significado como revista de histórias em quadrinhos de heróis e super-heróis.



Desembarque no Brasil



A grande variedade de personagens norte-americanos dos quadrinhos, de vários autores e em vários gêneros, começou seu desembarque maciço no Brasil pelas páginas da revista “Gibi”, sem enfrentar nenhuma resistência nem do público nem dos criadores de quadrinhos brasileiros. Entre os invasores estavam Flash Gordon, Charlie Chan, Fantasma, Mandrake, Spirit, Capitão Marvel, Namor, Tocha Humana, Cavaleiro Negro, Agente X-9, Ferdinando, Brucutu, Popeye e muitos outros. Impressa em papel jornal, sempre alternando páginas coloridas, páginas em preto e branco e páginas em duas ou três cores, a revista ganharia vários formatos desde o lançamento. O formato principal, conhecido como série original, circulou entre 1939 e 1954, tendo 1842 edições.









A invasão do Gibi: no alto, a apresentação do herói
Flash Gordon, criação de Alex Raymond, na capa da
revista "Gibi", que também mostrava uma seleção
de outros personagens que estavam na edição.
Acima, o super-herói Capitão Marvel, criado pelo
roteirista Bill Parker e pelo desenhista C.C. Beck,
na capa da edição mensal da revista "Gibi".

Abaixo, edição da "Gibi Mensal" de janeiro de 1946
trazendo na capa a estreia de um novo herói em luta
contra os japoneses, Namor, o Príncipe Submarino,
criado pelo escritor e roteirista Bill Everett; duas capas
da "Gibi" em 1940; e uma amostra de suas páginas
com impressão no padrão de duas cores






                  

         

Em paralelo à série original foram lançadas, também com grande sucesso de vendas, “Gibi Mensal”, que circulou de 1941 a 1963, com 271 números; “Gibi Semanal”, de 1974 a 1975, com 40 edições; e lançamentos especiais, com edições não consecutivas entre 1974 e 1985, além de 12 edições de “Gibi” para colecionadores, lançadas no começo dos anos 1990. Cada tiragem das revistas tinha números altos, que variavam entre 50 mil e 100 mil exemplares, algumas vezes com reimpressões para atender às encomendas de vendas, sendo que o motivo principal das interrupções nas edições de cada formato não foram as quedas de vendas, mas sim os novos lançamentos: novas revistas que foram criadas para trazer exclusivamente apenas personagens específicos.

As revistas em quadrinhos, com a "Gibi" em primeiro plano, ganhavam cada vez mais leitores no Brasil. O sucesso de vendas era tanto que, em 1952, o Grupo Globo fundou uma nova empresa, a Rio Gráfica Editora, para dar conta da impressão das edições da "Gibi", que continuava a publicar suas coletâneas com vários personagens na mesma revista, em edições semanais e mensais, e dos novos lançamentos em quadrinhos, com novas revistas dedicadas cada uma a um só personagem. No começo dos anos 1990, a Rio Gráfica Editora seria modernizada e receberia o nome de Editora Globo. 

“Gibi” foi o maior sucesso durante anos, mas não foi um caso único. Desde o começo da década de 1930 surgiram outras revistas em quadrinhos no Brasil e também páginas inteiras de jornais dedicadas ao formato em tirinhas, acompanhando as novidades editoriais que faziam sucesso no mercado dos Estados Unidos e de outros países. O jornalista e editor russo, naturalizado brasileiro, Adolfo Aizen (1904-1991), foi um dos primeiros a apostar nas publicações exclusivas de quadrinhos de origem norte-americana. Em uma temporada nos Estados Unidos, em 1931, Aizen conheceu a variedade e o sucesso comercial das revistas em quadrinhos e também das páginas de tirinhas nos jornais, além dos suplementos temáticos semanais, dedicados ao público feminino e infantojuvenil, que vinham como cadernos encartados nas edições. De volta ao Brasil, Aizen ofereceu um projeto sobre a novidade para seu chefe nas redações de jornais e revistas, Roberto Marinho, que no primeiro momento descartou a proposta por não acreditar no potencial de vendas.








A invasão do Gibi: no alto, Adolfo Aizen, um dos
pioneiros na publicação de histórias em quadrinhos
importadas dos Estados Unidos. Acima, Aizen
na década de 1950 em um jantar comemorativo
com seu principal concorrente, Roberto Marinho.

Abaixo, capa de uma edição da revista "Gibi"
de 1940 que apresentava pela primeira vez
um personagem chamado O Pato Donald









Guerra dos Gibis


Aizen, então, emplacou seu projeto de quadrinhos junto à concorrência, no jornal carioca A Nação. O projeto de Aizen foi publicado no formato do Suplemento Juvenil, semanal, com sucesso imediato, trazendo personagens na época muito populares nos Estados Unidos e licenciados pela King Features Syndicate, incluindo histórias do Super-Homem, Tarzan, Pinduca, Betty Boop, Os Sobrinhos do Capitão e as primeiras produções dos estúdios de Walt Disney (Veja também: Semióticas– Estratégias do Zé Carioca) . Segundo informa o pesquisador Gonçalo Júnior, no livro “A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos (1933-1964)”, lançado pela Companhia das Letras em 2004, o sucesso foi tanto que, nos dias de publicação do Suplemento Juvenil, as vendas do jornal A Nação triplicavam.

O sucesso do Suplemento Juvenil levaria Aizen a fundar sua própria editora especializada em quadrinhos, registrada como Grande Consórcio de Suplementos Nacionais. As publicações da editora de Aizen se tornando cada vez mais populares foram um alerta para a concorrência, levando outros empresários à criação de projetos similares, também na década de 1930, sempre com conteúdo importado dos Estados Unidos. Entre outros lançamentos que fizeram sucesso neste período estavam a Gazeta Juvenil, encarte tabloide do jornal A Gazeta de São Paulo, e o Mundo Infantil, da Editora Vecchi do Rio de Janeiro. Roberto Marinho também copiou o projeto de seu ex-funcionário Aizen, lançando em 1937 O Globo Juvenil, suplemento semanal que era encartado no jornal O Globo. A recepção favorável do suplemento com histórias em quadrinhos e o aumento considerável nas vendas levou Marinho à criação da revista “Gibi” em 1939.








A invasão do Gibi: no alto, Mandrake, criação de
Lee Falk, na capa do Suplemento Juvenil em
agosto de 1937. Acima, O Pato Donald na capa
da última edição do Suplemento Juvenil em 1945.
Abaixo, Superman na revista da
EBAL





Ao fim da Segunda Guerra, o mercado de jornais e revistas alcançou uma considerável expansão no Brasil, multiplicando os parques gráficos nas décadas seguintes. A concorrência se tornaria mais acirrada e levaria Adolfo Aizen a fundar, em 1945 uma nova editora especializada em revistas infantojuvenis, a Editora Brasil-América Limitada (EBAL), com publicações específicas para cada personagem e cada herói, com grande destaque para o lançamento da primeira revista exclusiva para o primeiro e mais famoso super-herói, o “Superman” (Veja também: Semióticas – Um novo Superman)
. Um novo capítulo da concorrência viria em 1950, com a criação da revista “O Pato Donald”, primeiro lançamento da Editora Abril fundada por Victor Civita.

Nascido em Nova York e descendente de judeus italianos, Victor Civita começou em sociedade com seu irmão, Cesar Civita, que também havia fundado na Argentina uma Editora Abril, na década anterior. Instalando sua editora em São Paulo, Victor Civita se naturalizou brasileiro e, a partir do licenciamento para todos os personagens dos Estúdios Disney,
criou um grande império editorial (Veja também: Semióticas – Páginas de Realidade)
com dezenas de revistas, voltadas para diversos segmentos do público, passando a disputar, em pouco tempo, a liderança de vendas no mercado nacional com as Organizações Globo de Roberto Marinho e com os Diários Associados de Assis Chateaubriand, um conglomerado que controlava a edição de jornais em vários estados do Brasil. Chateaubriand também era o proprietário da revista O Cruzeiro, fenômeno editorial que liderou o mercado brasileiro de revistas de notícias e variedades desde seu lançamento, em 1928, até encerrar as edições no começo da década de 1970. O fim da revista O Cruzeiro foi ocasionado pela falência do império dos Diários Associados, que ficou acéfalo depois da morte de Chateubriand em 1968 (Veja também: Semióticas – O Cruzeiro nos bastidores)









A invasão do Gibi: no alto, a capa da primeira
edição da revista Gibi com a apresentação de
Charlie Chan, o detetive de origem chinesa,
criação de Earl Derr Biggers. Acima, o anúncio
do lançamento da "Gibi" na primeira página do
jornal O Globo em 12 de abril de 1939.
Abaixo: uma capa de "Gibi" em tempos de
guerra, em 5 de janeiro de 1945







Ausência de regulamentação


A hegemonia norte-americana nas histórias e revistas em quadrinhos não se deu apenas por alguma qualidade superior ou pelo estilo deste ou daquele criador, como poderia supor o leitor mais ingênuo: a grande vantagem que as empresas norte-americanas tiveram foi resultado de uma total ausência de regulamentação para sua entrada no Brasil, onde puderam atuar livres de impostos e sem a contrapartida de nenhum investimento, porque seus custos de produção haviam sido cobertos pelo próprio consumo interno em seu país de origem.

Diante do público brasileiro, o que estava em jogo era o controle do mercado, a exploração comercial predatória, motivo pelo qual o produto norte-americano chegava com custos muito baixos, com o objetivo violento de eliminar qualquer resistência e toda a concorrência local, com preços muito mais acessíveis do que o valor real que deveria ser pago ou investido para manter a produção nacional. No universo das histórias em quadrinhos, os artifícios de dominação pelo monopólio da produção econômica e da produção cultural tiveram uma total equivalência.







A invasão do Gibi: acima, a capa do número 2 da
revista "Gibi" em 1939. Abaixo, capa do número 47,
também de 1939, e uma edição especial de 1963
com seleção de histórias de Águia Negra,
Capitão César, O Sombra e Robin Hood
.

Também abaixo, trabalhador na expedição da
revista "Gibi", na sede de O Globo, em 1948,
e uma capa da edição semanal
lançada em 1974









Os quadrinhos e toda a produção cultural estrangeira, conforme destaca Julia Falivene Alves em “A invasão cultural norte-americana” (Editora Moderna, 2012), chegavam e eram amplamente consumidos porque seus preços eram bem mais acessíveis do que aquele que qualquer editor teria de pagar aos similares brasileiros que fossem criados pelos artistas nacionais. Segundo a historiadora, isso naturalmente acontecia (e acontece) porque a indústria norte-americana conta com a mais completa benevolência das autoridades locais, em vários níveis, e com a ausência de regulamentação para tais transações comerciais no Brasil – além de deter, na maioria das vezes, equipamentos e tecnologias mais avançadas, maior disponibilidade de capital e mercado consumidor mais amplo do que os pequenos e independentes produtores nacionais do Brasil e dos países periféricos.

Ao considerar a invasão norte-americana, tanto a que se deu pelas histórias em quadrinhos e por outras mídias, no decorrer do século 20, como os cenários de maior complexidade da internet e das plataformas de redes sociais na atualidade, é de fundamental importância ressaltar os aspectos políticos e ideológicos, sejam eles diretos, explícitos, ou dissimulados e subliminares. Nenhum leitor ou espectador pode ser ingênuo em relação às intenções em jogo, uma vez que os personagens norte-americanos, sem exceção, não apenas os heróis e super-heróis envolvidos em tramas de guerra e dominação imperialista, mas também os nada ingênuos personagens Disney e equivalentes, promovem, de forma permanente, processos de “lavagem cerebral” no público – em estratégias premeditadas que, com o passar do tempo, passaram a ser vistas com naturalidade. Enquanto seus produtores e o país ao qual pertencem obtêm lucros imensos e garantem sua hegemonia no mercado internacional de produtos culturais, os selvagens pacíficos do Terceiro Mundo, em troca de alguma diversão, continuam “pagando o pato”.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 14 de abril de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/04/a-invasao-do-gibi.html (acessado em .../.../…).

 

 
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21 de maio de 2021

Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado



 




Em Gaia, não existe poluição nem desequilíbrio. As regras

do jogo determinam: qualquer espécie que produza algo

nocivo ou que afete o meio ambiente está condenada.

––  James Lovelock em “Gaia: Um novo olhar

sobre a vida na Terra” (1979).  


Faz escuro mas eu canto  

porque a manhã vai chegar.  

––  Thiago de Mello em “Madrugada camponesa” (1965).  


   



O fotógrafo brasileiro aclamado como mestre do preto e branco, em seu metódico e sublime trabalho sobre as incomensuráveis belezas da natureza e as terríveis violências que os homens infligem a ela, anuncia sua aposentadoria do trabalho de campo, mas vai continuar com dedicação intensiva ao processo de edição de seu arquivo fotográfico que contém mais de 500 mil imagens. Sebastião Salgado é, sempre, sinônimo de imagens de impacto: pode ser o formigueiro humano em Serra Pelada, na floresta amazônica do Brasil, ou os campos de petróleo no Kuwait que parecem saídos da ficção científica, os trabalhadores sem terra do Brasil em assembleias nos acampamentos do MST, as culturas mais tradicionais nos grotões da América Latina, as manadas de elefantes selvagens lutando contra a extinção nas savanas da África, milhares de pinguins amontoados nas paisagens de gelo da Antártida ou famílias nômades que sobrevivem isoladas em confins remotos da Ásia. Em todos os cenários, os enquadramentos poéticos e melancólicos de Sebastião Salgado impressionam.

Seu projeto mais monumental foi “Gênesis”, uma expedição que viajou durante anos pelos últimos recantos da natureza mais remotos e ainda preservados no planeta. O projeto gerou em 2013 um fotolivro que bateu recordes de vendas, mesmo sendo uma edição de luxo em capa dura, e uma exposição de fotografias que levou multidões aos grandes museus e aos principais espaços de cultura no Brasil e em vários países. Mas agora veio “Amazônia”, a nova investida de Sebastião Salgado, que parece tão colossal como foi “Gênesis”. O novo projeto surgiu como resultado de sete anos de expedições fotográficas pelo interior da maior floresta tropical do mundo, com Salgado e sua equipe indo ao encontro dos povos indígenas e do território que abriga aquele ecossistema extraordinário da imensidão verde com exuberante vegetação nativa.













Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: no alto,
o fotógrafo registrado na abertura da exposição
na Philharmonie de Paris por Patricia Moribe;
acima, também na abertura da exposição
em fotografias de Joel Saget. Abaixo, um
flagrante feito pelo próprio Sebastião Salgado
durante a montagem da exposição; o fotógrafo
em ação na floresta amazônica, em fotografia
de seu filho, Juliano Salgado; e a fotografia
escolhida para o cartaz da mostra, com uma vista
das margens do rio Jaú, no Estado do Amazonas.
Todas as imagens desta página, exceto os três
retratos acima identificados, fazem parte do catálogo
da mostra "Amazônia" de Sebastião Salgado
















.Em “Amazônia”, as mais de 200 fotografias selecionadas mostram retratos da diversidade grandiosa das paisagens com rios e montanhas, incluindo imagens áreas tiradas de aviões e helicópteros durante missões do Exército que o fotógrafo acompanhou, e cenas da vida cotidiana dos diferentes povos da floresta. O que Salgado registra tem uma beleza comovente, ainda mais quando se sabe que a grandiosidade da floresta está cada vez mais sob ataques implacáveis e criminosos, com recordes de desmatamento que vêm sendo sucessivamente batidos desde 2018, quando chegou a poder no Brasil a máfia liderada por Jair Bolsonaro, o presidente da República de posições ultradireitistas, assumidamente fascistas, de ódio e destruição, inimigo do meio ambiente, da justiça e da democracia, um político retrógrado que a maioria da imprensa estrangeira nomeia com os adjetivos “pária” e “genocida”.


Luz e sombras


Trabalhadas em variações de luz e sombras, as fotografias de “Amazônia”, assim como aconteceu com o projeto “Gênesis”, deram origem a um fotolivro em formato pôster de mais de 500 páginas, publicado pela editora Taschen, e ontem foram apresentadas, pela primeira vez, em uma grande exposição que reabriu para o público, depois de um ano de fechamento pela pandemia de covid-19, as luxuosas galerias do Parc de la Villette da Philharmonie de Paris (veja o link para uma visita virtual no final deste artigo). De acordo com o extenso dossiê sobre o projeto distribuído à imprensa, as imagens de “Amazônia” nasceram de uma intenção política de Sebastião Salgado, que procura celebrar o que ainda resta da imensa floresta tropical para conseguir protegê-la.

Depois da temporada em Paris, onde permanecerá até 31 de outubro, a exposição já tem um roteiro itinerante programado até o final de 2022 para outros espaços nos cinco continentes, começando por Londres, depois Roma, incluindo também São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidadesAs primeiras reportagens com destaque na imprensa estrangeira apontam que “Amazônia” surge como o trabalho mais pessoal e mais reivindicativo de Sebastião Salgado, atualmente com 77 anos. O fotógrafo chegou a anunciar que convidaria, para a abertura da exposição em Paris, lideranças indígenas do Brasil, para fazer ouvir suas vozes contra a destruição da floresta e suas mensagens de alerta sobre as consequências que isso traz para o planeta. Por causa da pandemia, os convites foram descartados, mas a presença e as mensagens dos povos indígenas ressoam na exposição em fotografias magníficas e também em gravações de vídeo e no áudio de canções de seus rituais.
















Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
no alto, o fotógrafo e visitantes anônimos na
abertura da exposição em Paris, em fotografias
de Mario Garcia Sanchez. Acima, o catálogo da
exposição em formato pôster com 528 páginas
e capa dura, em edição de luxo da 
Taschen.

Abaixo, três jovens do povo Zuruahã,
no Estado do Amazonas, e uma amostra
dos registros selecionados de "Amazônia"




















Na cenografia da exposição “Amazônia” apresentada nas galerias da Philharmonie de Paris, o visitante é convidado a penetrar na penumbra e nas sombras para observar as imagens capturadas e ampliadas pelo fotógrafo. A viagem do visitante pelas galerias, seguindo os enquadramentos registrados por Sebastião Salgado, também é acompanhada por temas musicais criados para a exposição pelo francês Jean-Michel Jarre, um dos pioneiros da música eletrônica, que utilizou, para a criação e as mixagens de suas composições, os arquivos de sons da Amazônia que integram o acervo do Museu Etnográfico de Genebra, na Suíça.

Há, também, duas salas especiais anexadas à exposição que apresentam projeções em alta definição de mais de uma centena de fotos, com acompanhamento de gravações sinfônicas para “O Mito da Criação do Rio Amazonas”, composição de Heitor Villa-Lobos, e de melodias de acordes incidentais criados pelo músico Rodolfo Stroeter. Nas galerias e nas salas especiais, a natureza exuberante da imensidão verde surge em variações de preto e branco, nas grandes panorâmicas e nos detalhes do ecossistema que ocupa quase um terço do continente sul-americano, envolvendo o Brasil e mais oito países. “A Amazônia é a pré-história da Humanidade, o paraíso na Terra”, destaca Sebastião Salgado no breve texto sobre a mostra distribuído à imprensa.






Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: acima,
a preparação para um ritual do povo Yawanawá.

Abaixo, imagem da aldeia Yawanawá no
território do Vale do Javari, a segunda maior
reserva indígena do Brasil; o arquipélago fluvial
de Mariuá, localizado no rio Negro; e uma
panorâmica do rio Ituí, no Vale do Javari









Agronegócio criminoso


A abertura da exposição em Paris acontece em um momento de urgência de ações políticas em defesa da região amazônica e do meio ambiente no Brasil. O Congresso Nacional está discutindo e votando um projeto de lei polêmico que altera de forma significativa o controle ambiental e dispensa licenciamento de diversos setores, entre eles as atividades agropecuárias ou obras de infraestrutura e de saneamento básico. Há também inúmeras ações irregulares do governo federal sob o comando das milícias de Bolsonaro, que têm cada vez mais posicionamento explícito pelo desmatamento da Amazônia, do Pantanal de Mato Grosso e de outras áreas de conservação, atuando para reduzir a fiscalização, para burlar as normas e para dar todo estímulo a atividades ilegais de exploração dos recursos naturais. Sebastião Salgado declarou que a ofensiva do desmonte das instituições ambientais é provisório e acabará com o fim do governo Bolsonaro, mas até as próximas eleições, em novembro de 1922, a destruição avança em larga escala.

No dia 19 de maio, véspera da abertura da exposição em Paris, enquanto Sebastião Salgado e sua esposa Lélia Wanick, parceira de todos os projetos, participavam de entrevistas coletivas na França, chegava do Brasil mais uma notícia grave sobre o desmonte premeditado das políticas de proteção ambiental e o envolvimento da gestão Bolsonaro em ações criminosas: uma grande operação foi deflagrada pela Polícia Federal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), visando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, servidores como o presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, e empresários do setor madeireiro, todos envolvidos com esquemas fraudulentos de exportação ilegal de madeira e contrabando de produtos florestais.








Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, o Monte Roraima, em formato de
mesa, localizado na tríplice fronteira entre
Brasil, Venezuela e Guiana. Abaixo, os xamãs
yanomami preparam o ritual para a subida do
Pico da Neblina (visto ao fundo), no norte do
Estado do Amazonas, fronteira com a Venezuela,
o ponto mais alto do Brasil, com 2.995 metros
de altitude, constantemente encoberto pelas
nuvens. Também abaixo, imagem aérea da
chuva que desaba sobre a Serra do Divisor,
extensa área no Estado do Acre
 

















As entidades e uma parte do aparato de fiscalização e proteção do meio ambiente no Brasil estão temporariamente paralisadas trabalhando para o lado mau da nação”, denunciou Sebastião Salgado, que também se diz confiante de que, em breve, as entidades e o aparato de proteção ambiental voltarão a ser o que sempre foram, cumprindo suas funções dentro da lei e não atuando em cumplicidade com ações criminosas. “Vejam por exemplo a Funai, Fundação Nacional do Índio, que sempre foi uma instituição de proteção à população indígena e era dirigida por antropólogos e sociólogos da maior seriedade. Hoje a Funai protege o agronegócio destruidor e é comandada por um policial sem nenhuma qualificação para o cargo”, alertou Salgado, acrescentando que o mesmo ocorre com o Ibama, uma entidade que sempre teve um papel fundamental nas questões ambientais e que no cenário catastrófico provocado pelo atual governo “não tem mais nenhuma capacidade de pressão e controle”.


Governo predador


Questionado pelos jornalistas, Sebastião Salgado classificou o atual governo brasileiro como “predador”. “O governo Bolsonaro é mau. As propostas dele são todas ruins, seja contra negros, mulheres, indígenas ou ainda a proposta absurda de armar o povo brasileiro. São todas propostas profundamente violentas. Espero que esse mal seja curado nas próximas eleições”, ressaltou o fotógrafo, alertando que a destruição das florestas brasileiras acontece por causa dos hábitos da sociedade de consumo. Segundo Salgado, grande parte da destruição da Amazônia acontece para produzir carne para o mercado externo e também para o cultivo da soja, que é exportada por grandes empresários do agronegócio para alimentar vacas e porcos “franceses, chineses e russos”. “Nós precisamos do apoio do planeta, da pressão política de todos os países, da pressão econômica sobre o governo Bolsonaro para proteger a Amazônia”, completou, convocando as autoridades internacionais a se posicionarem contra a gestão criminosa do governo Bolsonaro.










Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, imagem das instalações na exposição
na Philharmonie de Paris e Sebastião Salgado
em entrevista coletiva durante a exposição
fotografado por Shun Kambe.

Abaixo, Manda Yawanawá, menina da
da aldeia de Escondido, no território de
Rio Gregório, Estado do Acre; e uma família
do povo Korubo, que habita a região oeste do
Estado do Amazonas; e uma família do povo
Ashaninka, que vive no Estado do Acre





.

Sebastião Salgado, que iniciou em 2013 suas expedições para o projeto “Amazônia”, também reconheceu que a mostra atual pode ser considerada uma continuidade do trabalho que ele desenvolveu e apresentou em “Gênesis”, que também mostrava áreas do planeta ainda não afetadas pela civilização e que já incluía imagens da floresta amazônica e dos povos indígenas. Sob o olhar estético personalíssimo de Salgado, o visitante da nova exposição é conduzido pelas belezas do ecossistema tropical que permanece, em grande parte, em sua forma original. Os primeiros painéis que o visitante encontra, nas galerias da Philharmonie de Paris, trazem mapas em grande escala e imagens de satélites que destacam as áreas de reservas indígenas, as terras da União, as unidades de conservação e as zonas atualmente desmatadas e degradadas, que já representam cerca de 20% do território total que recebe o nome de Amazônia.

No mapeamento das reservas dos povos indígenas, Sebastião Salgado apresenta os dez grupos com os quais conviveu durante sua jornada de sete anos, além de outras viagens pontuais que fez à região, a última em fevereiro deste ano. Durante as temporadas com cada tribo, incluindo yanonamis, marúbos, yawanawás, o fotógrafo aguardou autorização para cada contato e repetiu um mesmo ritual entre as árvores: pendurava um lençol branco e abria um largo tapete de plástico no chão, pronto para ser enrolado quando chegasse a chuva que cai quase diariamente em toda a região amazônica. Os povos indígenas com os quais Salgado conviveu durante as expedições, incluindo suas principais lideranças, estão registrados nas imagens em exposição, em fotografias para as quais se prepararam pintando o corpo e enfeitando-se com o cocar das cerimônias.







Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, Tananeloanpikit Vakwë e sua companheira
Tsamavo, da tribo que vive na região do rio Itaquaí,
acima da foz do rio Branco, e tiveram seu primeiro
contato com alguém de fora da tribo em 2015.
Abaixo, crianças do grupo de Vakwë 








Hipótese de Gaia


Amazônia”, a exposição, tem sido classificada como uma experiência mística pela imprensa estrangeira e pelos visitantes. Observando as imagens, a impressão que se tem é que Sebastião Salgado realmente conseguiu registrar e traduzir a beleza e os mistérios da última grande floresta tropical do planeta Terra. A experiência transcendental que emana de suas fotografias tem implicações filosóficas e até teológicas, mas trata-se de um acervo documental de importância política e estética em uma magnitude que ainda não havia sido realizada sobre a imensidão do ecossistema amazônico. E talvez seja, também, um dos melhores exemplos da ecologia profunda – aquele conceito que surgiu desde a década de 1970, a partir da teoria científica conhecida como “hipótese de Gaia”, proposta pelo ambientalista britânico James Lovelock e nomeada em referência ao ser da mitologia grega, Gaia, uma divindade que personificava a Mãe-Terra em suas potencialidades primordiais.






Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, Tupa e Tumi Muxavo, filhos de um
casal da tribo que teve seu primeiro contato com
não indígenas em 1996. Abaixo, Kulutxia, que
teve seu primeiro contato fora da tribo em 2015
e Sebastião Salgado em frente à ampliação de
sua fotografia Xamãs do Xingu, fotografado
por Ueslei Marcelino (Agência Reuters) 









Lovelock, que desde a década de 1960 trabalhava nos comitês científicos da NASA que analisam os parâmetros e possibilidades de vida fora do nosso planeta, passou a desenvolver e defender a teoria segundo a qual a Terra, sua biosfera e seus componentes físicos (atmosfera, criosfera, hidrosfera, litosfera), fazem parte de um complexo e monumental organismo vivo, integrado, planetário e interagente, que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas para garantir de forma cooperativa a sobrevivência de todos os seres, incluindo todo o reino vegetal, todo o reino animal e nossa espécie humana. Segundo Lovelock, essa “entidade viva” que é a Terra, que o senso comum também chama de “natureza”, representa nosso mundo físico como uma metáfora para todos os processos biológicos atuantes no planeta.

A teoria de Lovelock foi descrita por ele em suas célebres conferências, em diversos artigos científicos e no livro “Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra”, publicado em 1979 e, desde então, considerado um dos marcos principais do movimento ecológico que surgia naquela época. Segundo os estudos de Lovelock e de seus colaboradores, todos especialistas em diversas áreas do conhecimento, também os componentes inorgânicos do nosso planeta Terra, como as águas e a atmosfera, devem ser considerados parte da biosfera porque são fundamentais e definitivamente integrados, atuando em equilíbrio e tornando possíveis os processos evolutivos que nos habituamos a chamar de “vida”. A conclusão, como alerta Sebastião Salgado, com urgência e gravidade, é inevitável: a destruição de um ecossistema da magnitude da Amazônia, em última instância, provocará o rompimento desse equilíbrio cooperativo que garante a sobrevivência de todos os seres que habitam nosso planeta. Inclusive dos seres humanos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado. In: Blog Semióticas, 20 de maio de 2021. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2021/05/gaia-amazonia-por-sebastiao-salgado.html (acessado em .../.../…).



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