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24 de janeiro de 2024

Picasso na fotografia





A arte não tem passado nem futuro.

Tudo o que eu já fiz foi para o presente.

Pablo Picasso (1881-1973).  

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Pablo Picasso é homenageado em um dos mais importantes eventos mundiais de fotografia, o PhotoEspanha, festival anual com sede em Madri. A exposição de abertura do festival, instalada nas galerias do Fernán Gómez Centro Cultural de La Villa, reuniu um grande acervo de retratos de Picasso – talvez o nome mais importante e mais prestigiado da arte no último século, o artista que atravessou todos os estilos e todos os movimentos da Arte Moderna e se mantém como referência e influência marcante da Arte Contemporânea.

A homenagem, nomeada “Picasso na foto”, marca os 50 anos da morte do artista e traz uma seleção de imagens de suas últimas décadas de vida. Os retratos em exposição, que vêm dos arquivos do Museu Picasso de Barcelona e de coleções particulares, abordam os processos criativos e o tempo de lazer do artista – com os dois aspectos constantemente sobrepostos. São imagens que, em sua maioria, foram registradas por nomes que têm um peso incomparável na história da fotografia e do fotojornalismo, compartilhando as galerias da exposição com retratos do artista feitos por amigos e em família.

Entre os fotojornalistas que fizeram retratos de Picasso estão os maiorais do primeiro time como David Douglas Duncan, Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, Robert Doisneau, Brassai, Man Ray, David Seymour, Lucien Clergue, Willy Rizzo e Cecil Beaton, entre muitos outros. A exposição, que também inclui uma seleção de fotografias que Brigitte Baer reuniu no Catálogo Raisonné de gravuras e litografias de Picasso, depois da temporada no PhotoEspanha segue uma agenda itinerante por outros museus e galerias de diversos países, com curadoria de Emmanuel Guigon, que desde 2016 assumiu o cargo de diretor do Museu Picasso de Barcelona.






      



Exposição Picasso na Fotografia: no alto, Picasso

em foto de sua esposa Jacqueline. Acima, intervenção

de Picasso em foto do álbum de família em que ele

está à mesa com Édouard Pignon, Anna Maria Torra

e Madeleine Lacourière em outubro de 1958.


Também acima, Emmanuel Guigon, diretor do Museu

Picasso de Barcelona e curador da exposição aberta

no Festival PhotoEspanha, diante de um dos célebres

retratos de Picasso, feito por Robert Doisneau em 1952.

Abaixo, com o amigo Gustau Gili Esteve no ateliê de

Notre-Dame-de-Vie, em abril de 1969; e no encontro

com outro mestre,
Joan Miró, fotografados por

Jacqueline Picasso no ateliê em Mougins, em 1967





              




Um diário fotográfico


O acervo de retratos de Picasso no PhotoEspanha destaca especialmente os períodos de convívio do artista com três grandes fotógrafos que fizeram inúmeras visitas à intimidade de Picasso com a família e trabalhando no ateliê em Mougins, na Côte d’Azur, Sul da França, às margens do Mar Mediterrâneo. São eles o francês Lucien Clergue (1934-2014), que fez um diário fotográfico dos dias compartilhados com Picasso ao longo dos anos; o norte-americano David Douglas Duncan (1916-2018), que travou amizade com Picasso desde que se conheceram em 1956, no convívio muito próximo que se estendeu até 1962, quando Duncan publicou um célebre fotolivro sobre a intimidade do artista e seus processos criativos; e Robert Capa (1913-1954), que representa um capítulo à parte na trajetória de Picasso.

Não há como negar que os grandes fotógrafos têm papel importante na criação do mito de Picasso, mas o papel de Robert Capa foi decisivo. Os primeiros contatos entre o artista mais lendário da Arte Moderna e o mais importante fotógrafo de guerras aconteceram na década de 1930, quando Capa e sua companheira, a alemã Gerda Taro, registravam os combates da Guerra Civil Espanhola e os movimentos de resistência contra a repressão imposta pelo general Francisco Franco. Capa, que fundaria a célebre Agência Magnum em 1947, junto com Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger, fez os contatos para a promoção de uma das obras mais importantes de Picasso, “Guernica”: foi por interferência de Capa que David Seymour fotografou Picasso em 1937 diante de sua obra monumental, assim que ela foi pintada, logo após o bombardeio genocida das tropas e aviões franquistas contra a vila espanhola.








Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

entre amigos, em foto de 1959 de Lucien Clergue,

ensaiando músicas com Paco Muñoz e o antiquário

Affrentranger em sua loja em Arles, na França;

e proseando com um motorista de táxi no

aeroporto de Nice, em foto de Lucien Clergue.


Abaixo, um visitante da exposição observa

um retrato de Picasso feito na casa do

artista em Vallouris, França, em 1952, por

Robert Doisneau; e Picasso e Jacqueline

dançando no ateliê da casa em que

viviam em Cannes, no verão de 1957,

em fotografia de David Douglas Duncan













Contador de histórias


Robert Capa e Cartier-Bresson também fotografaram por diversas vezes Picasso em seu quarto, no apartamento em que morava em Paris, na Rue des Grands-Augustins, e a todo vapor no ambiente de trabalho, durante a Segunda Guerra, e todos os biógrafos são unânimes em reconhecer que Capa, Cartier-Bresson e outros grandes fotógrafos ajudaram a disseminar imagens que popularizaram Pablo Picasso como um artista contador de histórias épicas, politizado e irreverente, viril, sedutor e bem-humorado, brincalhão, fumante de charuto, de bem com a vida e dândi, rudemente bonito, que se casou diversas vezes, teve quatro filhos com três mulheres e conquistou incontáveis e belas amantes – tudo contribuindo para a construção da narrativa histórica que levaria Picasso à prosperidade que outros artistas da época nunca alcançaram.

Durante e depois da Segunda Guerra, Capa compartilhava a intimidade de Picasso, e em 1948 passou uma temporada de férias no Mediterrâneo com Picasso e sua esposa da época, Françoise Gilot. Na temporada na praia com Picasso em família, Capa fazia testes com fotografias em filmes coloridos, uma novidade que ainda não estava disponível no mercado, e registrou retratos que estão entre os mais memoráveis na trajetória de Picasso, como o passeio de sombrinha na praia, com o artista descalço acompanhando sua musa (veja mais em Semióticas –Robert Capa em cores).









Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

no ateliê da casa em Cannes, em julho de 1957,

em fotografia de David Douglas Duncan;

e o criador diante da criatura, Guernica,

em fotografia de 1937 de David Seymour.

Abaixo, Picasso na intimidade de seu

apartamento na Rue des Grands-Augustins,

em Paris, em fotografia de 1944 de

Henri Cartier-Bresson;
e Picasso no

Hotel Vaste Horizon
em Mougins,
Côte d’Azur,

em fotografia de 1937 de sua musa Dora Maar











As musas do artista


As relações de Picasso com as mulheres sempre transparecem em sua obra: todas as musas, sejam amantes, namoradas ou esposas, foram registradas em pinturas, desenhos, esculturas (veja também Semióticas – Picasso em preto e branco). É como se cada uma delas houvesse inspirado uma certa obra-prima, algumas celebrizadas em obras radicais, outras com diversas variantes para o mesmo perfil. Entre todas, talvez nenhuma tenha a importância de sua mais famosa amante, Henriette Theodora Markovitch (1907–1997), mais conhecida pelo pseudônimo de Dora Maar. Intelectual, fotógrafa, poeta e pintora, Dora Maar era francesa descendente de croatas e viveu a infância e a juventude na Argentina. Sua influência foi tão importante para Picasso que foi ela quem ajudou o artista a planejar e pintar “Guernica”, entre outras obras-primas.

Dora e Picasso ficaram juntos por 10 anos, no período em que ele oficialmente esteve casado com Olga Khoklova e depois com Marie-Thérèse Walter, que tinha 17 anos quando se conheceram. Depois do término com Picasso, Dora Maar continuou a pintar, fotografar, escrever, afastada dos amigos e trabalhando em uma rotina de reclusão, mas permaneceu sem reconhecimento até sua morte, em 1997, aos 89 anos. Em 1999, finalmente foi organizada a primeira grande retrospectiva de seu trabalho, em Paris, e sua obra, inédita e surpreendente, aos poucos começou a ser valorizada.

Do primeiro casamento de Picasso, em 1918, com Olga Khoklova, bailarina nascida na Ucrânia, nasceu, em 1921, Paulo Picasso, seu primeiro filho. Em 1927, Picasso conhece Marie-Thérèse Walter, com quem teve em 1935 outra filha, Maya Picasso. A lista de musas, namoradas e amantes continuou a ganhar acréscimos, mas teve uma pausa em 1943, quando começa seu relacionamento com Françoise Gilot, que seria mãe de seus filhos Claude, nascido em 1947, e Paloma, nascida em 1949. O último casamento viria em 1961, com Jacqueline Roque, com quem Picasso viveu durante duas décadas, no período em que experimentou novas técnicas, novos materiais e novos suportes para sua arte, de 1953 até sua morte, em 8 de abril de 1973, aos 91 anos.







  


Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

com sua primeira esposa, Olga Khoklova, no ano

em que se casaram, 1918. Abaixo, um desenho de

Picasso para registrar um encontro na intimidade

entre amigos em Paris, 1919: a partir da esquerda,

Jean Cocteau, Olga, Eric Satie e Clive Bell.


Abaixo, Picasso com mulheres importantes

em sua trajetória: com Marie-Thérèse Walter;

com os retratos de Dora Maar (em fotografia

de Brassaï em 1939); com Dora Maar e amigos

no ateliê em Mougins (a partir da esquerda,

Ady, Marie e Paul Cuttoli, Man Ray, Picasso

e Dora Maar), fotografados por Man Ray;

Dora Maar e Picasso
na Côte d’Azur, em 1937,

fotografados por Eileen Agar; e Picasso

com Françoise Gilot e Javier Vilato, seu

sobrinho, em foto de 1948 de Robert Capa













  




As formas apaixonadas


A lista extensa de musas e amantes de Picasso também inclui, entre as mais conhecidas, Fernande Olivier (com quem ele viveu de 1904 a 1912), Marcele Humbert (de 1912 a 1917), Lee Miller (de 1943 a 1945), Geneviéve Laporte (de 1944 a 1953) e Sylvette David (de 1954 a 1955), entre outras. O artista despertava a paixão de suas musas, e cada rompimento foi doloroso, porque ao que se sabe nenhuma delas nunca aceitou o fim do relacionamento. Os amores de Picasso e sua relação intensa com tantas musas e amantes não provocou grandes escândalos na época, mas têm gerado alguma polêmica nos últimos anos. A mais recente aconteceu em 2021, no embalo da publicidade internacional do movimento “Me Too”, contra o assédio sexual, quando professoras de história da arte e seus alunos fizeram um protesto no Museu Pablo Picasso de Barcelona, com a intenção de denunciar os relacionamentos abusivos do artista, mas sem grande repercussão.

Outras denúncias sobre comportamento abusivo na trajetória do artista e sua dominação “animalesca” sobre as mulheres com quem se relacionava são descritos por sua neta, Marina Picasso (filha de Paulo e neta de Olga Khoklova), no livro “Meu Avô, Pablo Picasso”, que desde o lançamento em 2001 foi um best-seller internacional. Marina, uma das privilegiadas herdeiras de Picasso, nasceu em 1950, em Cannes, e teve um irmão, Pablo, que cometeu suicídio aos 24 anos – segundo ela, por culpa e negligência do avô, que nunca quis dividir sua herança bilionária em vida e nunca se preocupou em dedicar sua atenção para os filhos e os netos.








Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

com os filhos Claude e Paloma, no verão de 1951,

em foto de Edward Quinn.; e Picasso com Claude

em 1954, assistindo a uma tourada em Vallouris,

França, em fotografia de Jean Meunier.

Claude Picasso morreu em 2023, aos 76 anos.


Abaixo, Picasso na praia, em Cannes, 1965,

em fotografia de Lucien Clergue; e no ateliê,

em 1955, fotografado por Edward Quinn. No final

da página, a capa do livro de Marina Picasso,

que foi lançado em 2001, e dois retratos de

Picasso por Robert Capa: na praia, em 1948,

e fumando, na casa de Vallauris, em 1949




                 



      



Contradições bilionárias


No livro, Marina Picasso relata: “Minha avó Olga, humilhada, manchada, degradada por tantas traições, acabou sua vida paralisada, sem que meu avô fosse uma única vez vê-la no seu leito de angústia e de desolação. No entanto, ela tinha abandonado tudo por ele: o seu país, a carreira, os sonhos, o seu orgulho”. Olga nunca aceitou o divórcio de Picasso e, oficialmente, permaneceu casada com ele até morrer, em 1955. Criador de uma obra extensa e das mais valiosas entre todos os acervos do mundo da arte, Picasso morreu sem deixar testamento. Seus bens e obras foram divididos entre os quatro filhos em 1974, por um acordo judicial.

Em todos os sentidos, a nova exposição confirma que Picasso é um caso único. Ele trabalhou intensamente na arte, da infância à velhice, e deixou uma quantidade impressionante de obras surpreendentes, mas a amostragem das fotos que registra sua trajetória revela algo mais do que o artista em ação, em seu ateliê ou nas pausas em momentos de lazer: são imagens que traduzem a vida e as contradições de Picasso em pequenos fragmentos. Sua importância para a arte e a cultura do século 20 é inquestionável, assim como sua interminável paixão pela criação. Apesar disso, Picasso é um artista que divide opiniões e sua reputação muitas vezes precede a sua arte. Talvez por estes detalhes a exposição de sua presença marcante em décadas da história da fotografia traz mais perguntas do que respostas, mas não há como negar que sua relação com a câmera foi, antes de tudo, um veículo – uma estratégia para perpetuar sua própria autoimagem cuidadosamente construída, tão grandiosa quanto mítica.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Picasso na fotografia. In: Blog Semióticas, 24 de janeiro de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/01/picasso-na-fotografia.html (acessado em .../.../…).


 
Para uma visita à exposição Picasso na PhotoEspanha, clique aqui.


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21 de julho de 2015

Mulheres de Korda










Uma “ironia do destino”: ele se tornou fotógrafo com a intenção de conhecer belas mulheres, mas terminou famoso no mundo inteiro por causa do retrato de um homem. Na verdade, não apenas um retrato qualquer – e sim, aquela fotografia que é quase um consenso como a mais reproduzida de todos os tempos: a imagem de Che Guevara. O retrato foi batizado na década de 1960 de “Guerrilheiro Heroico” pelo autor, o fotógrafo cubano Alberto Díaz Gutiérrez, mais conhecido pelo pseudônimo Alberto Korda (1928-2001). Agora, os retratos de belas mulheres, vertente de seu trabalho que ainda hoje é pouco conhecida, foram finalmente reunidas na mais importante exposição da PhotoEspanha, Festival Internacional de Fotografia e Artes Visuais, com sede em Madri, que programou uma edição dedicada à fotografia na América Latina.

Trata-se de “Korda, retrato femenino”, exposição aberta ao público no Museu Cerralbo, em Madri, que também conta com uma versão on-line e reúne, pela primeira vez, o acervo de fotografias de Alberto Korda que retratam apenas mulheres. São 60 imagens em preto e branco ou com matizes de sépia, a maior parte delas realizadas nas décadas de 1950 e 1960, sendo muitas inéditas em publicação e exibição pública. Considerado um dos mais tradicionais e consagrados eventos internacionais dedicados à fotografia, a mostra PhotoEspanha ocupa espaços de Madri e de várias cidades da Espanha e de outros países, incluindo Cascais e Lisboa, em Portugal, além de outras capitais da Europa – como Londres e Paris – Bogotá, na Colômbia, e também São Paulo, com exposições e diversos eventos em museus e espaços culturais.

Pelo recorte temático, dos 395 fotógrafos selecionados para a PhotoEspanha, a maioria vem da América Latina, incluindo nomes pouco conhecidos e também celebridades, com destaque, entre outros, para o brasileiro Mário Cravo Neto (1947-2009) e também Lola Álvarez Bravo (1903-1993), do México, Julio Zadik (1916-2002), da Guatemala, e Tina Modotti (1896-1942), italiana que viveu e trabalhou no México e em outros países. Mesmo entre tantas personalidades de importância central na fotografia do século 20, o cubano Alberto Korda surge como o grande destaque nesta edição da PhotoEspanha – com curadoria de sua obra em exposição a cargo de Ana Berruguete e contando com a colaboração da filha do fotógrafo, Diana Diaz.















Mulheres de Alberto Korda: no alto
e acima, o fotógrafo em seu estúdio em
Havana, Cuba, no ano 2000, e o filme 
de sua fotografia mais conhecida. Abaixo,
reproduções das fotografias de Korda
selecionadas para a mostra retrospectiva
da PhotoEspanha, com uma cena de
rua da Revolução Cubana de 1959 e
fotografia de 1958 com a bela Norka,
modelo que seria, anos depois, a segunda
esposa de Korda. Também abaixo, a capa
do catálogo oficial da exposição em Madri
e duas fotografias de 1956 de Nidia Ríos,
uma das musas de Korda e dos anúncios
de publicidade produzidos em
Cuba durante a década de 1950







                                











Autodidata que chegou à profissão de fotógrafo aprendendo e experimentando com uma Kodak 35 que tomou emprestada, Alberto Korda sempre dizia que buscou a fotografia somente com a intenção de conquistar mulheres, seguindo os passos do mais célebre dos fotógrafos de moda e seu preferido, o norte-americano Richard Avedon (1923-2004). A dedicação à fotografia com o objetivo de seduzir namoradas é relatada no livro "Cuba por Korda", lançado no Brasil pela Cosac & Naify. Escrito pelos franceses Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, o livro – perfil biográfico em edição recheada por 82 fotografias impressionantes, apresentadas em ordem cronológica – destaca que a trajetória de Korda foi marcada por estes estilos opostos: a moda, através dos retratos de belas mulheres, e as etapas da revolução de 1959 em Cuba, incluindo a tomada do poder e seus desdobramentos.



Revolução e retratos femininos



Primeiro a moda e os retratos femininos – e mais tarde a fotorreportagem sobre a revolução e seus líderes Fidel Castro e Che Guevara. Nos depoimentos transcritos por Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, Alberto Korda revela que inicialmente havia optado por uma "vida frívola", mas reconhece que, aos poucos e sucessivamente, os rumos da revolução em Cuba mudaram sua maneira de ver o mundo. "Percebi que valia a pena dedicar um trabalho à revolução que propunha a supressão das extremas desigualdades sociais", confessa Korda, que acompanhou Fidel e Che Guevara até as altitudes da Sierra Maestra, ainda no período das guerrilhas, tornando-se um olhar privilegiado que fez História ao registrar, por dentro, os momentos cruciais de afirmação do novo regime. 







 
Mulheres de Alberto Korda: acima,
duas fotografias produzidas por ele
para anúncios de publicidade em
revistas femininas publicadas em
Cuba e consideradas pornográficas
depois da revolução de 1959. Abaixo,
Julia López Cruz, que foi a primeira
esposa de Korda, fotografada por
ele em Brisas del Mar, em 1956 


 





 
Na apresentação à exposição “Korda, retrato feminino”, a curadora Ana Berruguete lembra que as imagens de Che Guevara, de Fidel e de Cuba no período da revolução são a vertente mais conhecida e divulgada do trabalho do fotógrafo, mas destaca que ele sempre teve uma verdadeira obsessão em capturar a beleza das mulheres, do começo ao fim de sua trajetória dedicada à fotografia. “É indiscutível que a beleza feminina foi o gênero por excelência do trabalho de Alberto Korda”, aponta Berruguete. Entre as fotografias inéditas de Korda, reunidas na exposição, estão suas últimas imagens de belas mulheres, registradas em São Paulo, no ano 2000, e três retratos de sua primeira esposa, Julia López Cruz, mãe de Diana Diaz.

Alberto e Julia se casaram em 1951 e se separaram cinco anos mais tarde, na época em que o fotógrafo não fazia segredo sobre seus relacionamentos amorosos com as beldades que viriam a posar no Metropolitan, estúdio que fundou em 1954, em Havana, em parceria com Luis Pierce. Foi também nesta época que ele adotou o pseudônimo Alberto Korda, em homenagem aos cineastas húngaros Zoltan e Alexander Korda, dois irmãos que naquele tempo dirigiam superproduções de Hollywood que faziam muito sucesso nos cinemas em Havana, e porque a sonoridade do nome Korda, segundo ele próprio, lembrava a marca Kodak. 








 Mulheres de Alberto Korda: acima
e abaixo, Norka, musa e segunda
esposa do fotógrafo, em ensaios
fotográficos produzidos para capas
do suplemento feminino do
Diario de la Marina, em 1956 
 









 
O grande domínio da luz



De todas as mulheres que visitavam seu estúdio em Havana – que também era ponto de encontro de artistas e intelectuais – destacam-se Nidia Ríos e Natalia Méndez, também conhecida como Norka, as duas beldades e musas principais das campanhas publicitárias produzidas em Cuba na década de 1950. Tanto Nidia quanto Norka – que se tornaria mais tarde, oficialmente, a segunda esposa de Korda – eram altas, magras e loiras, com aparência que não lembrava em nada a maioria das mulheres de Cuba. A estratégia diária do trabalho de Korda, de acordo com o que relatou para seus biógrafos, começava com a procura, nas ruas, por manequins inexperientes que fossem jovens, belas, elegantes, e que, principalmente, transbordassem erotismo.

Pelas imagens selecionadas para a exposição em Madri é possível perceber o grande domínio da luz no trabalho do fotógrafo – especialmente no uso da luz natural, já que muitas de suas fotos publicitárias eram produzidas fora do estúdio, em lugares como hotéis, praças e praias, construindo cenas que parecem saídas dos filmes clássicos de Hollywood, com suas personagens posando de divas, com ar de mistério. O mesmo domínio da luz também é visível em suas fotos que registram as pessoas anônimas nas ruas e nos desfiles militares, na época da revolução. A mudança do tema de belas mulheres para os anônimos e os militares nas fotos de Korda, entretanto, não é tão radical como pode parecer.





 
Mulheres de Alberto Korda: acima,
Norka em fotografia para um anúncio
publicitário da joalheria Cuervo y
Sobrinos, em 1958. Abaixo, Korda
ajustando a luz em uma sessão no
estúdio, no começo da década
de 1950; e a fotografia da garota
pobre em um vilarejo na região de
Pinar de Rio, em 1958, que marca
uma mudança radical na
trajetória de Korda











Os biógrafos destacam que, com a tomada do poder em Cuba pela revolução comunista, a demanda pelo trabalho de Alberto Korda em publicidade caiu e muitas de suas fotos chegaram a ser consideradas “pornográficas”. Mas sua decisão de mudar veio antes mesmo da revolução: ele próprio relata que, certo dia, em 1958, viu nas ruas de um vilarejo muito pobre, na região de Pinar de Rio, uma menina pequena que de repente ficou assustada com sua presença e com a câmera que ele carregava. Ele lembrou de sua filha quando observou que a menina fazia uma saia improvisada de papel sujo para vestir uma boneca que, na verdade, era apenas um pedaço de madeira. Comovido, desde aquele dia resolveu se unir ao ideal revolucionário que prometia acabar com a injustiça social. Depois da revolução, seria o fotógrafo oficial de Fidel.



Guerrilheiro Heroico



As mulheres não estão ausentes na trajetória de Korda no período posterior à revolução de 1959. Pelo contrário. Na seleção apresentada pela PhotoEspanha, em Madri, não faltam retratos de belas mulheres, sejam elas as camponesas, as milicianas carregando armas e vestindo uniformes militares ou ainda as espectadoras dos desfiles nas ruas de Havana. Quase três décadas depois da revolução, já na década de 1980, Korda retomou o trabalho dedicado à moda e à publicidade, um retorno às origens que não mais abandonaria. Suas últimas fotografias também estão na exposição em Madri: foi um ensaio produzido em uma estação ferroviária de São Paulo, onde Korda retratou belas e sensuais modelos em dezembro do ano 2000. Ele morreu cinco meses depois, em Paris.









 
Mulheres de Alberto Korda: depois
da Revolução Cubana de 1959,
o fotógrafo continuaria a registrar
imagens de belas mulheres, não mais
para anúncios publicitários e ensaios de
revistas de moda, e sim personagens
anônimas nas ruas, no campo
e nos desfiles militares











Para os biógrafos, a paixão pelas belas mulheres, pelas doses generosas de rum e pela Revolução Cubana foram os gostos pessoais da dedicação de vida e das vertentes principais do trabalho de Alberto Korda, o fotógrafo que imortalizou o retrato de Che Guevara. Em 1959, ano em que as tropas lideradas por Fidel Castro ocuparam Havana, Korda já acompanhava como fotojornalista as ações da guerrilha em Sierra Maestra e depois, foi convocado para fazer parte da equipe do jornal "Revolución".

Meses depois de instalado o governo da revolução em Havana, Korda permananece em ação, tanto nas ruas como no papel de enviado especial que acompanhava Fidel ou Guevara em viagens internacionais, alternando retratos oficiais e fotojornalismo em ambientes mais descontraídos. Os “retratos femininos”, porém, com o passar dos anos foram se tornando a parte menos conhecida de sua extensa obra – que soma mais de 20 mil negativos, na maior parte ainda inéditos e só recentemente identificados.





 Mulheres de Alberto Korda: acima,
o fotojornalista em ação nas ruas de Havana,
em dezembro de 1959, registra Che Guevara
ao lado da esposa Aleida March. Abaixo,
Korda em autorretrato com sua musa,
Norka, em 1956; em seu estúdio em
Havana, em 1964, fotografado por Ida Kar;
e três dos retratos de mulheres anônimas,
da série de registros "Korda in America",
feita durante a viagem da comitiva de
Fidel aos EUA, em abril de 1959
























Também causa surpresa que a fotografia mais famosa de Alberto Korda tenha permanecido por muito tempo inédita. Na foto, Che Guevara é retratado por Korda em Havana, em 5 de março de 1960, em um encontro organizado por Fidel após o violento atentado atribuído à Agencia Central de Inteligência dos EUA (CIA) contra o navio La Coubre, ancorado no porto de Havana, em que morreram 69 marinheiros cubanos e seis franceses, deixando dezenas de feridos.

Che Guevara participava, ao lado de várias autoridades cubanas, da cerimônia em homenagem às vítimas da explosão. Também estavam presentes, na mesma cerimônia, na tribuna, Fidel Castro e o casal de intelectuais franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que naquela data estavam em visita a Cuba. Korda, na época, já trabalhava para o “Revolución”, mas por algum motivo a célebre fotografia de Che Guevara não foi publicada pelo jornal oficial de Cuba.












Mulheres de Alberto Korda: no alto,
modelo em um dos últimos ensaios do
fotógrafo, realizado em dezembro do ano
2000, em São Paulo. Acima, a beleza
feminina em um desfile na época da
revolução, em Havana; e uma fotografia de
Korda na capa da revista Cuba em 1964

Abaixo, Fidel Castro fotografado por Korda
em 1962Che Guevara no cinema, na versão
de 2004 de "Diários de Motocicleta", filme
com direção do brasileiro Walter Salles,
baseado no livro autobiográfico de Che, com
Gael Garcia Bernal vivendo o jovem médico
Ernesto Che Guevara na viagem de moto que
ele fez em 1952 por toda a América do Sul;
Che Guevara acompanhando o casal
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir,
fotografados por Korda durante a
visita Cuba, em 1960.

Também abaixo, Korda com sua
fotografia mais famosa, que próprio
fotógrafo batizou de Guerrilheiro Heróico;
Alberto Korda observando sua obra célebre;
e duas intervenções artísticas que ajudaram
a propagar no mundo inteiro o mítico
Che Guevara, em gravuras produzidas
por Jim Fitzpatrick (na foto ao lado da obra)
e por Andy Warhol, com o painel das
variações cromáticas, ambas datadas de 1968;
e a imagem de Che em bandeiras e camisetas
vendidas em bancas nas ruas de Havana









 











   

Somente anos depois, em 1967, pouco antes da morte de Che na Bolívia, o editor Giangiacomo Feltrinelli obteve a imagem capturada por Korda. De volta a Milão, Feltrinelli imprimiu milhões de pôsteres e postais, pelos quais Korda nunca recebeu um centavo. Segundo os depoimentos transcritos por Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, ele teria ficado ressentido apenas porque a foto vinha sem crédito. Depois disso a fotografia quase acidental do “Guerrilheiro Heróico” foi finalmente publicada na França, pela revista “Paris Match”, e em seguida ganhou o mundo, impulsionada pela morte de Che. No ano seguinte, duas intervenções de artistas ajudaram ainda mais a popularizar a fotografia de Alberto Korda.

O primeiro foi o irlandês Jim Fitzpatrick, que em 1968 transformou a imagem em um pôster pintado em preto, branco e vermelho, mas sem nenhuma menção à autoria de Korda. O retrato de Che também foi transformado em 1968 em serigrafias de cores contrastadas por Andy Warhol – que repetiu a técnica e a ideia original de sua obra mais famosa, as serigrafias de Marilyn Monroe em policromia, criadas assim que a morte da atriz foi anunciada, em agosto de 1962.

Assim como fez com a imagem de Marilyn, em que omitiu o nome de Frank Powolny (que havia fotografado a atriz em 1953), Warhol também não fez qualquer menção ao nome de Alberto Korda como autor do retrato de Che Guevara, mas ganhou fortunas com a venda das gravuras originais e com os direitos de reprodução. É um caso impressionante: passaram-se décadas e a imagem do “Guerrilheiro Heróico” continua a ser usada por muitos, em situações e intenções diversas. Nas vezes em que foi questionado sobre as apropriações que faziam de sua fotografia mais famosa, Korda declarava ter esperança de que aquela imagem jamais perderia a força de representar a utopia e a ternura. Tudo indica que ele estava certo.



por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Mulheres de Korda. In: Blog Semióticas, 21 de julho de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/07/mulheres-de-korda.html (acessado em .../.../...).












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