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24 de agosto de 2022

Estratégias do Zé Carioca

 





O que faço é um trabalho de amor. Eu não entrei

neste negócio apenas para ganhar dinheiro.

Walt Disney (1901-1966).


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Criado por Walt Disney durante uma viagem ao Rio de Janeiro e, oficialmente, lançado em 24 de agosto de 1942, Zé Carioca completa hoje seu aniversário. Trata-se de um caso exemplar das estratégias políticas que usam personagens de histórias infantis e, na perspectiva do Brasil, um capítulo importante da invasão cultural norte-americana, como já foi apontado por diversos estudos. São 80 anos de existência do único personagem brasileiro na The Walt Disney Company – uma data comemorada com homenagens e grandes negócios anunciados para os próximos meses. Entre as homenagens, novas histórias em quadrinhos, com o relançamento da revista do personagem e de uma edição especial do “Almanaque do Zé Carioca”, além do lançamento de três livroinéditos: “O essencial do Zé Carioca: celebrando os 80 anos de sua estreia”, pela editora Culturama, que desde 2020 assumiu a publicação das revistas Disney no Brasil; “Zé Carioca conta a história do Brasil”, um projeto do escritor Eduardo Bueno; e "Muito prazer, Zé Carioca", uma biografia do personagem escrita por Jorge Carvalho de Mello. 

Entre os negócios anunciados também estão relançamentos do personagem no canal Disney Plus, uma programação de eventos criada em parceria da Disney com o canal ESPN e conteúdos especiais nos sites e redes sociais da empresa, além de coleções temáticas do Zé Carioca licenciadas pela primeira vez para roupas, brinquedos, instrumentos musicais e acessórios que serão vendidos em parcerias com diversas marcas no Brasil e em outros países. Com as estratégias comerciais, a meta é reposicionar o personagem em destaque entre os produtos da Disney, depois do quase esquecimento nas últimas décadas, quando até suas revistas tiveram publicação cancelada no mercado brasileiro. Nos últimos anos, o Zé Carioca apareceu apenas ocasionalmente em pequenas histórias no “Almanaque Disney”.







Estratégias do Zé Carioca: no alto, a nova versão do
personagem, que chega ao 80 anos. Acima, Zé Carioca
na nova imagem para o reposicionamento comercial.

Abaixo, Walt Disney e sua equipe desembarcando
no Rio de Janeiro, em 1941, no programa de governo
nomeado como Política da Boa Vizinhança; e o cartaz
original da estreia de Zé Carioca no cinema, ao lado
do Pato Donald, no filme de 1942 "Alô Amigos"




             

A história do Zé Carioca teve início sob encomenda para um projeto político: assim que foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial, Walt Disney foi destacado pelo Departamento de Estado para a missão de criar peças de cinema e de histórias em quadrinhos para a aproximação dos Estados Unidos com os países da América Latina, dentro das estratégias da chamada Política da Boa Vizinhança, criada pelo governo Franklin Roosevelt na década de 1930, e que ganhou força para conquistar a simpatia dos governos e dos povos latino-americanos em tempos de guerra contra os nazistas. No vértice brasileiro da aproximação estão acordos comerciais com o governo de Getúlio Vargas e a importação pelos Estados Unidos de Carmen Miranda, na época a maior estrela da música, do rádio, do cinema e do teatro de revista no Brasil. Carmen embarcou para os EUA em 1939, alcançando em pouco tempo um sucesso estrondoso na Broadway e em Hollywood.


Malandro, alegre, hospitaleiro


Na sequência dos acordos comerciais e de geopolítica dos EUA com o governo Vargas, viriam dois grandes projetos de cultura e política a cargo de Orson Welles e de Walt Disney. O filme de Orson Welles no Brasil, “It’s All True”, jamais foi concluído pelo cineasta, que retornou aos EUA no final de 1942 depois de filmagens que foram uma sucessão de escândalos e de acidentes. Walt Disney, por sua vez, chegou com sua equipe ao Brasil em 1941 e, assim como Welles, ficou encantado com a cultura brasileira. Durante a viagem de Disney veio a inspiração para criar o Zé Carioca, um papagaio malandro, alegre e hospitaleiro, que vivia no morro da favela, enrolava seu próprio cigarro, gostava de feijoada, de cachaça e de futebol. Sua estreia aconteceu em 1942, no filme “Alô Amigos” ("Saludos Amigos" / "Hello Friends"). Com o sucesso comercial do filme, nos EUA, no Brasil e em outros países, Zé Carioca retornaria em uma série de histórias em quadrinhos e em outros dois filmes: “Você já foi à Bahia?” ("The Three Caballeros", 1944) e “Tempo de Melodia” ("Melody Times", 1948).








Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
bebe cachaça com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, o presidente Getúlio Vargas
(à esquerda) com Walt Disney (à direita) no
Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Abaixo,
um encontro do maestro Heitor Vila Lobos com
Walt Disney, também no Rio de Janeiro






Em “Alô Amigos”, sexto longa-metragem de animação de Walt Disney (os anteriores foram "Branca de Neve e os Sete Anões", "Pinóquio", "Fantasia", "Dumbo" e "Bambi"), há quatro histórias, ou quatro segmentos, cada um representando um país, e todos estão interligados. No primeiro, "Lago Titicaca", o turista norte-americano Pato Donald visita o Peru; no segundo, "Pedro", um pequeno avião parte do Chile para buscar correspondência aérea na Argentina; no terceiro, "O Gaúcho", Pateta é o cowboy dos EUA que vai aos pampas argentinos; no quarto, "Aquarela do Brasil", Zé Carioca recebe o viajante dos EUA, o Pato Donald, e o acompanha em um passeio pelo Rio de Janeiro e por diferentes paisagens do Brasil, seguindo também pela América Latina. Donald, que havia estreado no cinema em 1934, em um episódio curto do filme “Sinfonias Tolas” (“Silly Simphony”), aparece em forma redesenhada e definitiva, com o uniforme azul e branco de marinheiro – na verdade um “mariner”, integrante do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, evidentemente destacado para um “esforço de guerra”.

No mesmo ano de 1942, Donald apareceria em outro filme de propaganda de guerra, o desenho anti-nazista “A Face do Fuehrer” (“Der Fuehrer’s Face”), que venceu em 1943 o Oscar de melhor curta-metragem de animação. Donald também é protagonista em “O Espírito de 1943” (“The Spirit of ‘43”), filme curto em que ele seráconvencido a doar parte de seu salário de trabalhador para as campanhas da guerra, e em outros dois filmes de animação em longa-metragem com Zé Carioca, os já citados “Você já foi à Bahia?” e “Tempo de Melodia”. “Alô Amigos” seria um grande sucesso comercial de Disney, apresentando na trilha sonora duas canções brasileiras que se tornariam populares no mundo inteiro: “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, e “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu, que seriam gravadas em seguida por Carmen Miranda e por muitos artistas de diversos gêneros e nacionalidades, de Frank Sinatra e Ray Conniff a Paco de Lucia e Xavier Cugat, entre outros.






             






Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
dança o samba com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, Walt Disney (de bigode) e sua
equipe visitam a quadra da escola de samba Portela
na companhia de Paulo da Portela.

Abaixo, Carmen Miranda durante as filmagens
de "Uma Noite no Rio", em 1941, com
o músico Zezinho (de camisa listrada), que foi
um dos integrantes do grupo Bando da Lua e
o dublador de Zé Carioca em "Alô Amigos"
 









A gênese do papagaio carioca


O sucesso no cinema levou Zé Carioca para as páginas das histórias em quadrinhos. No final de 1942, ele surgiria em tirinhas publicadas por vários jornais nos EUA e, nos anos seguintes, chegaria ao Brasil e a outros países no formato de revista em quadrinhos que exploravam o exotismo das paisagens do Rio de Janeiro. Na biografia de Walt Disney publicada em 1994, “An American Original” (Disney Editions), o autor Bob Thomas descreve as circunstâncias que levaram Disney a criar o personagem em uma suíte do Hotel Copacabana Palace, que esteve temporariamente transformada em estúdio, enumerando referências que estão na gênese do filme "Alô Amigos" e do personagem do papagaio malandro. Tudo indica que na origem do Zé Carioca estão ideias originais de José Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido como J. Carlos, cartunista que fazia sucesso na revista “O Tico-Tico”.

Entre outros personagens que o cartunista desenhava para “O Tico-Tico”, havia um papagaio sem nome que fumava charuto e aparecia ocasionalmente em charges e histórias de outros personagens. Ao tomar conhecimento dos projetos para o filme e para um novo personagem que seria criado, J. Carlos presenteou Disney, durante um jantar, com um desenho do tal papagaio que ele havia criado. No desenho, o papagaio abraçava o Pato Donald. Segundo o biógrafo Bob Thomas, o desenho de J. Carlos, associado a outras referências de pessoas do meio artístico que Disney conheceu no Brasil, levariam à concretização do personagem Zé Carioca. Entre as referências também estava o músico e humorista Zezinho (José do Patrocínio Oliveira), que tocava cavaquinho no grupo Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda. Não por acaso, Zezinho é o dono da voz que dubla o Zé Carioca em “Alô Amigos”.






Estratégias do Zé Carioca: acima, uma
reunião no hotel Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro, em 1941, com Jorge Guinle,
dono do hotel, Carmen Miranda e Walt Disney.
Abaixo, Walt Disney filmando nas areias da
praia de Copacabana e passeando de barco
na baia da Guanabara com a equipe de trabalho
















Outras influências para a criação do personagem Zé Carioca vêm do charuto que o compositor Heitor Vila Lobos sempre fumava e dos olhos azuis do compositor Herivelto Martins – duas das personalidades muito populares da época, no meio artístico do Rio de Janeiro, que tiveram vários encontros com Walt Disney, tanto em reuniões de trabalho como em jantares e passeios pelos mais conhecidos cenários cariocas. O biógrafo também cita os convites que foram feitos pessoalmente por Disney para o compositor Ary Barroso, para o maestro Vila Lobos e para o cartunista J. Carlos, para que eles fossem trabalhar sob contrato com a equipe Disney em Hollywood, mas todos eles recusaram as propostas.

Nos anos seguintes, Ary Barroso venderia os direitos de algumas canções para filmes da Disney e para outros estúdios de Hollywood. Vila Lobos, no final da década de 1950, seria contratado para criar a trilha sonora de "Green Mansions" (no Brasil, "A flor que não morreu"), superprodução da Metro Goldwyn Mayer com direção de Mel Ferrer e com Audrey Hepburn e Anthony Perkins no elenco. O maestro brasileiro compôs uma peça sinfônica belíssima, hoje conhecida como "Floresta do Amazonas", mas ficou extremamente insatisfeito com o uso que fizeram de suas partituras na trilha sonora da versão final do filme e nunca mais quis repetir a experiência.


Do cinema para os quadrinhos


Na temporada de Disney no Brasil há também a presença de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, que acompanhou uma visita de Disney e sua equipe à quadra da escola de samba na Guanabara e deixou Disney impressionado por sua elegância, sua alegria e sua gentileza hospitaleira – as mesmas características que seriam levadas para o filme “Alô Amigos” e que ficaram visíveis na recepção que Zé Carioca faz para o Pato Donald no Rio de Janeiro. Bob Thomas também cita outro brasileiro como referência para a criação do papagaio: o advogado Manuel Vicente Alves, mais conhecido como Dr. Jacarandá, um tipo folclórico na época, na zona sul carioca, que também foi apresentado a Disney na visita da equipe à quadra da Portela. Tal como aconteceria com Zé Carioca, o Dr. Jacarandá sempre usava, sob o sol escaldante do Rio de Janeiro, chapéu panamá de aba reta, paletó de alfaiataria, camisa social com gravata borboleta colorida e um inseparável guarda-chuva.









Estratégias do Zé Carioca: no alto, a capa
da primeira edição do livro "An American Original",
biografia de Walt Disney escrita por Bob Thomas.
Acima, o Zé Carioca em sua imagem clássica.

Abaixo, os encontros de Walt Disney com
o compositor Ary Barroso e com Alceu Penna,
ilustrador da revista O Cruzeiro, no hotel
Copacabana Palace em 1941










Nos estúdios Disney, Zé Carioca ganhou vida também sem a presença do Pato Donald. As tirinhas e histórias em quadrinhos do personagem, criadas a partir de 1942, tiveram roteiro de Hubie Karp e desenhos de Bob Grant e Paul Murry – os três integrantes da equipe Disney que também trabalharam no filme “Alô Amigos”. O personagem, batizado como Joe Carioca, estreou nas páginas de jornais e revistas dos EUA em outubro de 1942 e quatro meses depois chegava ao Brasil publicado em “O Globo Juvenil”, suplemento mensal que circulou entre 1937 e 1952, em formato tabloide de 16 páginas impressas em papel jornal, tendo como editor Nelson Rodrigues, que ganharia notoriedade como cronista e dramaturgo. As histórias do Zé Carioca também tiveram uma edição especial publicada pela Editora Melhoramentos em 1945: o personagem, fumando seu charuto, aparece na capa tendo ao fundo a baía da Guanabara.

Nas páginas de “O Globo Juvenil”, Zé Carioca faria sucesso com suas histórias e tirinhas intercaladas com quadrinhos que traziam heróis estrangeiros como Superman, Mandrake, O Fantasma, Flash Gordon, Brucutu e Ferdinando, entre outros. A primeira vez que Zé Carioca apareceu na capa de uma revista foi na primeira edição de “O Pato Donald”, que inaugurou a parceria comercial entre Disney e a Editora Abril, em julho de 1950, participando apenas de uma história. Depois desta primeira fase do personagem, Zé Carioca retornaria somente na década de 1960 às revistas dos personagens Disney. Em 1961, ele ganharia sua própria revista de publicação semanal com histórias inéditas, criadas no Brasil, e com adaptações de histórias de outros personagens da Disney, tendo na capa da primeira edição o título "O Pato Donald apresenta Zé Carioca". Em 2018, depois de 68 anos, a Editora Abril encerrou seu contrato de publicação das revistas Disney, que desde 2020 passaram a ser publicadas pela Editora Culturama, mas várias revistas permanecem canceladas.







Estratégias do Zé Carioca: acima, o papagaio
malandro criado por J. Carlos para as charges
da revista "O Tico-Tico", uma das fontes de
inspiração para Walt Disney criar o Zé Carioca.

Abaixo, uma sequência dos primeiros esboços
da equipe Disney para o personagem; e a capa
da primeira edição da revista "O Pato Donald"
no Brasil, em junho de 1950, que teve a presença
de Zé Carioca como convidado especial








As intenções políticas


O encontro de Zé Carioca com o Pato Donald em “Alô Amigos” também é um campo fértil para estudos políticos e de historiografia. No livro “The Hispanic Image on the Silver Screen” (“A imagem hispânica na tela de prata”, Editora Greenwood, 1992), o historiador Alfred Charles Richard Jr. apresenta uma constatação que se tornou célebre: segundo ele, o filme “Alô Amigos” conseguiu consolidar, para grande parte do público de países da América Latina, em poucos meses, mais simpatia pelos Estados Unidos do que as ofensivas do Departamento de Estado norte-americano conseguiram antes em mais de 50 anos de ocupações militares e de ações diplomáticas.

Em seu estudo, Richard Jr. avalia os efeitos que o cinema de Hollywood teve sobre o público na formação e na propagação de estereótipos, assim como as relações muito próximas entre o cinema norte-americano e a política de outros países da América, com filmes que, com muita frequência, justificavam e glorificavam a intervenção dos Estados Unidos nos assuntos das nações latino-americanas. No caso brasileiro, tais intervenções são especialmente visíveis em dois momentos de regimes ditatoriais: primeiro, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, que coincide com a vigência da Política da Boa Vizinhança do governo Roosevelt; e posteriormente na ditadura militar que tomou o poder no período de 1964 até os anos 1980.










Estratégias do Zé Carioca: acima, Walt Disney
passeando na praia de Copacabana, em 1941;
e desenhando croquis e cenários para o filme
"Alô Amigos" com Mary Blair na varanda do hotel,
no Rio de Janeiro. Abaixo, Walt Disney passeando,
anônimo no meio da multidão na Avenida Rio Branco,
centro do Rio de Janeiro, fotografado para reportagem
da revista "Life" por Hart Preston; e o encontro
entre o presidente do EUA, Franklin Roosevelt,
e o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, em
Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943.

Também abaixo, a capa da edição brasileira
do livro de Ariel Dorfman e Armand Mattelart,
"Para ler o Pato Donald"; e uma seleção de
capas históricas do Zé Carioca no Brasil:

1) Zé Carioca, edição especial da Melhoramentos em
1945; 2) Zé Carioca na capa de "O Globo Juvenil" em
janeiro de 1944; e 3) Zé Carioca na primeira edição de
sua revista, em 1961, que traz na capa o título
"O Pato Donald apresenta Zé Carioca"







Tais associações entre ações políticas, cinema, literatura e estereótipos instrumentalizados na cultura brasileira são também abordadas em diversos estudos de crítica literária, de comunicação social, de sociologia e de antropologia, entre eles “Dialética da Malandragem” (Revista de Estudos Brasileiros da USP, 1970), de Antonio Candido; “Carnavais, Malandros e Heróis” (Editora Rocco, 1979), de Roberto da Matta; e "A Invasão Cultural Norte-Americana" (Editora Moderna, 1988), de Júlia Falivene Alves. Uma abordagem mais específica sobre o tema, feita a partir da análise de personagens de Walt Disney e de sua influência na América Latina, foi publicada em 1971, no Chile, por Ariel Dorfman e Armand Mattelart, e se tornaria um clássico incontornável: “Para ler o Pato Donald – Comunicação de massa e colonialismo”, que teve primeira edição no Brasil em 1977, pela Editora Paz e Terra, em tradução do historiador de quadrinhos Álvaro de Moya.

Dorfman, nascido na Argentina, e Mattelart, nascido na Bélgica, ambos militantes de esquerda na luta pelos Direitos Humanos, propõem, em suas próprias palavras, um “manual de descolonização” a partir de uma leitura dos quadrinhos por um viés marxista. Uma definição reveladora sobre o estudo é apresentada de forma resumida, pelos próprios autores, na abertura do terceiro capítulo do livro: “Os povos subdesenvolvidos são para Disney, então, como as crianças; devem ser tratados como tais, e se não aceitam essa definição de seu ser, é preciso descer suas calças e lhes dar uma boa surra. Para que aprendam!” Observadas com um intervalo histórico de mais de 50 anos, pode-se perceber com muita clareza o quanto as análises radicais e ideológicas de Dorfman e Mattelart removeram as máscaras de inocência e de ingenuidade que, por muito tempo, conseguiram disfarçar o aparato violento de dominação cultural e os mecanismos agressivos de propaganda política, manipulados, desde sempre, para favorecer e fortalecer os interesses do império norte-americano.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Estratégias do Zé Carioca. In: Blog Semióticas, 24 de agosto de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/08/estrategias-do-ze-carioca.html (acessado em .../.../…).

















5 de setembro de 2013

O Cruzeiro nos bastidores








Uma das maiores revistas da história da América Latina, pela qualidade e pela média de 4 milhões de leitores semanais que atingiu, em meados do século 20 – o mais importante veículo do império de imprensa dos Diários Associados, do lendário Assis Chateaubriand, O Cruzeiro, a TV de papel, como se dizia na época, fez escola, consagrou jornalistas e fotógrafos, realizou coberturas marcantes e ambiciosas sobre a vida de um país em constantes transformações, deixou saudades, muitas polêmicas e também muitas dívidas.

Durante meio século, O Cruzeiro trouxe fama, fortuna e glória para uns e ruína para outros. Entre a primeira edição, em 1928, lançada às vésperas da Revolução de 1930, e a última, em 1974, chegou a atingir em seus tempos áureos, nas décadas de 1940 e 1950, tiragens de mais de 700 mil exemplares – número absurdo, se comparado aos jornais e revistas de maior circulação naquele mesmo período, que raramente tiveram tiragens superiores a 10 mil. O Cruzeiro se manteve por 50 anos como principal fonte de leitura e informação em todo o Brasil, além da multidão de leitores que conquistou na América Latina, nos anos 1950, quando também foi editada em espanhol.

A trajetória da revista que teve sua história vinculada ao processo de modernização da sociedade brasileira e suas questões polêmicas, fundamentais para a imprensa e os desdobramentos da política, no Brasil do século 20, têm poucos registros em livro, em uma proporção inversa à sua importância. Entre os relatos publicados sobre a trajetória da revista, referência obrigatória sobre a imprensa brasileira, há a biografia "Chatô, O rei do Brasil" (Companhia das Letras, 1994), de Fernando Morais – e também o catálogo da mostra recente realizada pelo Instituto Moreira Salles, "As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960)", projeto que une extensa pesquisa acadêmica em torno da revista, exposição itinerante e publicação do catálogo com os estudos e o acervo fotográfico do IMS. 











Imagens de O Cruzeiro: no alto,
capa da primeira edição, lançada no
Rio de Janeiro em 10 de novembro
de 1928, trazendo na capa a ousada
ilustração do beijo de uma melindrosa,
como eram chamadas nos salões da
década de 1920 as moças ousadas nas
atitudes e na maneira de se vestirem.
Acima, Getúlio Vargas na capa 
e no poder, na edição de 8 de
novembro de 1930; Getúlio ao lado
de Assis Chateaubriand, em 1945;
e cena urbana de São Paulo em
1940, em foto de Jean Manzon.

Abaixo, ritual de dança da tribo Caiapó
Kuben-kran-ken na Amazônia, em
fotografia de José Medeiros, em
1957; a Guerra da Coreia, em 1951,
fotografada para O Cruzeiro por
Luciano Carneiro; e carrancas
nos barcos do Rio São Francisco, em
foto de 1943 de Marcel Gautherot








Além do catálogo da exposição e do livro de Fernando Morais, que tornou-se best-seller desde o lançamento, com a história do 'velho capitão' Assis Chateaubriand, mais temido que amado, poderoso, controvertido, há também um outro livro, que não teve destaque na época do lançamento nem tornou-se campeão de vendas, mas que apresenta um registro específico e da maior importância sobre o cotidiano da principal revista brasileira do século 20: "O Império de Papel – Os bastidores de O Cruzeiro" (Editora Sulina, 1998), escrito por alguém que por certo pode falar com propriedade sobre os bastidores da publicação: o jornalista Antonio Accioly Netto, que durante 40 anos foi redator e diretor de redação da revista. 



Nomes, datas, histórias



Na época em que "O Império de Papel" foi lançado, tive a sorte de entrevistar Accioly Netto para o jornal “O Tempo”, de Belo Horizonte. O lançamento do livro, com sessão de autógrafos, chegou a ser agendado em BH, mas terminou cancelado, na véspera do evento, por causa de um problema de saúde do autor, na época com 92 anos, ainda morando no Rio de Janeiro e muito lúcido, bem-humorado, demonstrando uma memória surpreendente para nomes, datas e acontecimentos da história do Brasil – como comprovei na conversa pelo telefone.
 








Durante a entrevista, um detalhe que me deixou surpreso, além da lucidez do quase centenário Accioly, foi a extensão das atividades a que ele se dedicou. Além do seu trabalho capital em O Cruzeiro, foi também artista plástico (participou da histórica Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo), publicitário, escritor e autor teatral, com vários livros publicados. O registro das memórias do tempo de O Cruzeiro, seu último projeto, consumiu cerca de 25 anos, desde a preparação e revisão dos originais à seleção de fotografias e ilustrações para a edição do livro. Accioly Netto morreria em abril de 2001, três anos depois do lançamento de "O Império de Papel".

Antes de fazer contato com o autor, na época do lançamento, elaborei um roteiro extenso para a entrevista, mas pelo telefone ele foi econômico nas respostas, com tiradas certeiras de bom humor e ironia e, na maior parte das vezes, apontando que a pergunta feita ja estava respondida no livro, no capítulo tal e página tal. Entre uma e outra ironia, ainda lembrou dos vários jornalistas mineiros que passaram pela redação de O Cruzeiro e comentou sobre os tantos jornais importantes que surgiram, fizeram História e desapareceram em Minas Gerais, no decorrer do século 20 – entre eles, Jornal de Minas, Jornal da Noite, Diário da Tarde, Diário de Minas, A Tribuna, Folha de Minas, Diário Mercantil, O Combate, Binômio e muitos outros.









Imagens de O Cruzeiro: no alto,
índio ajuda a tirar um avião de um
atoleiro, em fotografia de José
Medeiros para a reportagem que
acompanhou uma expedição da
Aeronáutica ao Mato Grosso, em
1948. Acima, o presidente Juscelino
Kubitschek na inauguração de Brasília,
em abril de 1960, em fotografia de Luis
Carlos Barreto; e Getúlio Vargas
no Xingu, Amazônia, em 1953,
fotografado por Henri Ballot




  







Mais críticas do que admiração



Pelo telefone, o homem que esteve durante décadas à frente da redação da revista O Cruzeiro não teve reservas em criticar os políticos que estavam no poder no final dos anos 1990. Também não fez nenhum elogio à imprensa – muito pelo contrário. Sobre as grandes personalidades da época de O Cruzeiro, Accioly Netto também confessou, na entrevista e no livro, mais críticas severas do que admiração, incluindo revelações negativas sobre seu antigo chefe Assis Chateaubriand, seus subordinados e seus aduladores, e sobre medalhões da política e da cultura como Vargas, JK, Niemeyer, Carmen Miranda.

O relato do autor, testemunha ocular dos caminhos trilhados pela revista mais importante de seu tempo, resume uma reflexão muito pessoal sobre o passado, reunindo à historiografia saborosas anedotas envolvendo artistas e políticos do primeiro escalão. Tanto que ´"O Império de Papel" poderia ser classificado como livro-reportagem e também como prosa memorialista, por conta do lirismo de suas passagens confessionais.


















Imagens de O Cruzeiro: as polêmicas
e o olhar humanista nas páginas da revista
em fotografias de José Medeiros. No alto,
operários no vagão do trem no Rio de Janeiro,
em 1948; Mara Rúbia, Rainha do Baile das Atrizes,
e Francisco de Moraes Cardoso, o Rei Momo que
reinou de 1934 a 1948 no Carnaval carioca, em fotografia
de 28 de fevereiro de 1946 de Jean Manzon; e o
beijo do casal anônimo no tradicional
Baile de Carnaval do Hotel Glória, no
Rio de Janeiro, em fotografia que ilustrou
uma reportagem publicada em 1950.

Acima e abaixo, imagens de reportagem
sobre ritual de iniciação no Candomblé,
na Bahia, publicada em 1951 com o título
As Noivas dos Deuses Sanguinários”, com
texto de Arlindo Silva e 42 fotografias de
José Medeiros; reportagem de "O Cruzeiro" 
foi uma resposta a matéria sobre o mesmo tema
publicada na revista da França Paris Match,
também em 1951, considerada ofensiva,
sensacionalista e preconceituosa.

Também abaixo, outra revolução
de costumes em O Cruzeiro através
dos anúncios publicitários, agentes
importantes no processo de modernização
da sociedade brasileira








 



Há também o impressionante e permanente sucesso de público, que fez a revista esgotar nas bancas desde a primeira edição, mantendo de forma ininterrupta o mesmo apelo até que houve a ruína financeira, a morte de Chateaubriand e o esfacelamento do império. Accioly recorda que, mesmo em ruína financeira, O Cruzeiro ainda conservava uma vendagem relativamente boa quando teve sua publicação interrompida. O fim veio em 1974, quando o título foi cedido para pagar dívidas atrasadas e voltou a circular, em versões limitadas e canhestras, até 1975. 



Uma revista assassinada



Com o fechamento da revista, o sofisticado equipamento gráfico foi liquidado a preço de ferro-velho, a memorável equipe de redação no Rio de Janeiro se dispersou e os arquivos da revista – considerados à época os melhores já reunidos por uma publicação em toda a história da imprensa no Brasil – foram arrematados pelo jornal Estado de Minas, sendo transferidos em caminhões para Belo Horizonte. Duas décadas e meia depois da “débácle”, Accioly publicou seu relato sobre a experiência na revista, definido por ele como "um acerto de contas com o passado e com uma revista que foi assassinada".











Os originais de Accioly tiveram a edição final organizada por Ruy Castro e Heloísa Seixas, que mantiveram o tom confessional e a narrativa em primeira pessoa, concisa e equilibrada, pontuada por muitas fotografias e fac-símiles dos arquivos pessoais do autor. Accioly resume os 46 anos de circulação de O Cruzeiro em breves 160 páginas, intercalando a leveza e a complexidade da trajetória com suas lembranças privilegiadas de quem acompanhou 'de dentro' cada número semanal da revista, desde o primeiro, em 1928, até a derrocada do Império Chateaubriand.

Através do relato por vezes irônico, por vezes direto e contundente do autor, "O Império de Papel" apresenta um inventário dos bastidores da revista que formatou o imaginário de milhões de brasileiros por décadas seguidas, antes do sucesso do rádio ou da onipresença da TV. Nas páginas do inventário assinado por Accioly surgem nomes conhecidos, outros nem tanto, e muitas artimanhas que ainda hoje continuam a reger as complexas relações entre imprensa e política. 











Sucessos permanentes de O Cruzeiro:
acima, O Amigo da Onça, de Péricles.
Abaixo, a baiana de Salvador Marta Rocha,
primeira Miss Brasil, eleita em 26 de junho
de 1954, na capa da revista em 1° de agosto
do mesmo ano, na edição que trouxe um famoso
ensaio fotográfico imitado há décadas por todas
as candidatas aos títulos de Miss; e a celebração
de Odete Lara, Glória Menezes, Leonardo Villar
e Norma Bengell pela premiação em 1962 de
"O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte,
versão da peça teatral de Dias Gomes, até hoje
o único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro,
prêmio principal no Festival de Cannes.

Também abaixo: Geraldo Vandré nas páginas de
O Cruzeiro em 2 de outubro de 1968, na edição
que denunciou a desclassificação da canção
"Pra não dizer que não falei das flores" no
3º Festival Internacional da Canção, produzido
pela TV Globo. A canção de Vandré, apesar de
ser a grande favorita do público, não foi a vencedora
do festival por imposição da censura da ditadura militar.
O prêmio de campeã ficou com "Sabiá", canção de
Chico Buarque em parceria com Tom Jobim.

Na sequência abaixo, uma seleção em homenagem a
As Garotas, página criada e ilustrada por Alceu Penna,
publicada semanalmente durante 26 anos consecutivos,
de 1938 a 1964, levando para todo o Brasil a moda e os
costumes cariocas; e a estrela Carmen Miranda, grande
recordista de capas na trajetória de O Cruzeiro











  
Notáveis no 'esquadrão de ouro'



Também surge no livro de Accioly um elenco interminável de personalidades notáveis: aquelas que acabaram virando notícia – artistas, políticos, atletas, jogadores de futebol, nomes de primeira grandeza na história brasileira, alguns visitantes estrangeiros – e aquelas que fizeram a notícia, incluindo o trabalho em dupla de repórter e fotógrafo, que O Cruzeiro inaugurou e manteve como linha de frente, e célebres redatores, colunistas, chargistas, ilustradores. 

Um dos maiores sucessos de O Cruzeiro, a seção e o personagem "O Amigo da Onça" foram criados por um dos cartunistas fixos da revista, Péricles, inspirado em um outro personagem de sucesso na imprensa argentina da primeira metade do século 20. Outro grande sucesso da revista foi a seção "As Garotas", coluna impressa em cores semanalmente entre 1938-1964, produzida por Alceu Penna com seu traço característico em ilustrações sobre as 'jovens modernas' e breves textos de ironia e humor, levando para todo o Brasil a moda e os costumes cariocas. A seção "As Garotas" também foi considerada referência no comércio de tecidos e produtos direcionados ao público feminino e precursora na criação de uma moda brasileira. 


















Além de Péricles e Alceu, nomes que permanecem em destaque na imprensa como Millôr Fernandes e Ziraldo também fizeram parte dos quadros da revista, assim como Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Rachel de Queiroz e muitos outros. "O Cruzeiro só fez o sucesso que fez, durante tanto tempo, porque contava com um 'esquadrão de ouro' de grandes repórteres e de grandes fotógrafos. Eles é que foram as verdadeiras estrelas, porque levaram a atividade de imprensa no Brasil a um patamar novo e muito nobre. O 'esquadrão de ouro' de O Cruzeiro provocou uma profunda revolução no Brasil e no jornalismo brasileiro", defende Accioly, relembrando uma ou outra das grandes reportagens que fizeram história sobre índios, misses, escândalos, estrelas e até discos voadores, para destacar o mérito dos profissionais que fizeram a revista e que permanecem entre os mais brilhantes na imprensa brasileira.

"O Império de Papel" apresenta a lista completa do 'esquadrão de ouro' da revista que, em seus tempos áureos, era comparada a publicações internacionais como Life, Look, Vogue, Cosmopolitan, entre outras. Estão na lista o repórter David Nasser, que formou dupla com o fotógrafo Jean Manzon, além de outras duplas memoráveis reunindo nomes como Mário de Moraes e Ubiratan Lemos, Arlindo Silva e Jorge Ferreira, Odorico Tavares e José Medeiros, João Martins e Eduardo Keffel, Luciano Carneiro, Edmar Morel, Eugênio Silva, Flávio Damm, Carlos Moskovics, Salomão Scliar, Roberto Maia, Indalécio Wanderley, Pierre Verger, Luis Carlos Barreto – além de muitos e muitos outros e do próprio Accioly Netto, seguramente um dos personagens principais na saga de O Cruzeiro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O Cruzeiro nos bastidores. In: Blog Semióticas, 15 de setembro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/09/o-cruzeiro-nos-bastidores.html (acessado em .../.../...).
















Acima, capa do catálogo da exposição organizada
pelo Instituto Moreira Salles; e fotografia das
páginas de O Cruzeiro com publicidade em que
uma família da elite assiste à novidade da TV
em São Paulo, em 1950, época da inauguração
da pioneira TV Tupi dos Diários Associados
de Assis Chateubriand.
 
 Também acima, fac-símile com uma das últimas
séries de grandes reportagens de O Cruzeiro, tendo
como tema as origens misteriosas da fortuna do
empresário e apresentador de TV Silvio Santos.
Produzida pelo repórter Arlindo Silva e o
fotógrafo Eduardo Roberto, a série teve início
em maio de 1971, com a reportagem de seis páginas
“O fenômeno Silvio Santos”, e prosseguiu ao longo
das 10 edições seguintes. Anos depois, Arlindo Silva
publicaria a primeira biografia de Silvio Santos

Abaixo, a estrela da TV Tupi, Hebe Camargo, na capa
de O Cruzeiro em 1963; Leila Diniz na edição de
junho de 1967; e Rita Lee em uma das últimas edições
da revista, em 1974, em foto de Indalécio Wanderley














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