Mostrando postagens com marcador ilustração. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador ilustração. Mostrar todas as postagens

20 de dezembro de 2014

Natal surreal de Salvador Dalí






Não há nenhum vestígio real, bem entendido, de
anjos, de riqueza ou de liberdade. Apenas imagens.
.....
––  Walter Benjamin em "O surrealismo, último  
instantâneo da inteligência europeia" (1929) 


Uma série de aquarelas com cenas bíblicas que permaneceu inédita por mais de meio século e duas coleções de cartões de Natal criadas por Salvador Dalí (1904-1979) são as mais recentes novidades do acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí com sede na Espanha. As obras foram incluídas no Catálogo Raisonné, que é a publicação completa dos trabalhos oficiais do artista, depois de aprovadas por especialistas em minuciosas avaliações comparativas e laudos técnicos. A série de 105 aquarelas foi pintada entre 1963 e 1964, sob encomenda para uma edição de luxo da Bíblia Sagrada em espanhol. Mas uma série de desentendimentos entre o artista e os editores interrompeu o projeto e só recentemente as aquarelas foram localizadas e autenticadas pelos técnicos da fundação.

Quanto às coleções de cartões de Natal, uma delas, com as aquarelas criadas por Salvador Dalí sob encomenda, no final década de 1950, para a editora norte-americana Hallmark, permanecia inédita. Quando recebeu a encomenda, Dalí exigiu um pagamento antecipado de 15 mil dólares para 10 cartões de felicitações com temas de Natal. O pagamento foi feito e a encomenda foi entregue no prazo previsto, mas os cartões foram considerados perturbadores e polêmicos demais para alcançarem sucesso comercial, motivo pelo qual a direção da empresa apresentou a série em uma exposição em sua galeria de arte, mas produziu apenas uma tiragem restrita. A outra coleção, com obras que em sua maioria também permaneciam inéditas, reúne aquarelas e ilustrações feitas entre 1958 e 1976 para os cartões que a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica enviava a um seleto grupo de clientes a cada final de ano. 

As obras que chegaram ao Catálogo Raissoné são surpreendentes e polêmicas, como sempre, em se tratando da arte de Dalí. “A diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista” – costumava dizer, em estado de provocação, o mestre Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol. Dalí sempre teve a seu favor uma técnica de pintura extraordinária, com habilidade e domínio criativo tão grandes quanto sua loucura e originalidade, e atravessou o último século influenciando artistas das mais diversas áreas, das mais diversas tendências e nacionalidades, da brasileira Tarsila do Amaral ao norte-americano Andy Warhol, entre muitos e muitos outros.










As imagens do Natal surreal segundo
Salvador Dalí: no alto e acima, o artista
fotografado em seu castelo em Cadaqués,
Espanha, no Natal de 1970, pelo turco
Ara Güller. Também acima, Dalí e Gala,
sua musa e agente que direcionou sua carreira
durante décadas, fotografados na cerimônia do
casamento civil, em 1934, por Eric Schaal.

Abaixo, Crucifixión, Cristo en la cruz,
aquarela criada sob encomenda para uma
edição de luxo da Bíblia Sagrada, em 1964.
Também abaixo, dois cartões de Natal
criados sob encomenda: o primeiro para
a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica
(Anjo de Natal, 1967) e o segundo para
editora Hallmark na década de 1950












Dalí também merece destaque, entre os mestres da arte no século 20, como um dos que mais produziram, segundo apontam seus mais importantes biógrafos, Robert Descharnes e Gilles Néret. Suas obras, disputadas pelos grandes museus, estão em sua maioria nas coleções do Museu Salvador Dalí em Saint Petersbourg, na Flórida, Estados Unidos, e na Fundação Gala-Salvador Dalí, na Espanha. A fundação, criada pelo próprio Dalí, em 1983, administra três museus na Catalunha: a sede, em Figueras, e as duas residências de Dalí e Gala, sua esposa e musa inspiradora desde 1929, transformadas, após a morte do artista, no Teatro-Museu Dalí, também em Figueras, e no Museu Port Lligat, em Cadaqués.



Uma trajetória de polêmicas



O acervo do Catálogo Raissoné das obras de Dalí conta, entre suas peças mais valiosas, com mais de 1.500 quadros que se inscrevem entre as mais celebradas e reproduzidas pinturas do último século. Também fazem parte do acervo completo mais de uma centena de esculturas, milhares de desenhos e ilustrações feitas sob encomenda para livros e revistas, cartazes publicitários, obras realizadas em colaborações e parcerias para teatro e cinema, cartas e manuscritos autobiográficos, séries de performances em fotografias, entrevistas e vários outros projetos, todos com o traço e as formas inconfundíveis das criações de Salvador Dalí.










Os cartões de Natal criados por
Salvador Dalí: acima, a Sagrada Família
em aquarela criada para a empresa
Hallmark na década de 1950; e um cartão
de Natal criado para o UNICEF em 1981.

Abaixo, variações para as árvores
de Natal nas ilustrações criadas por Dalí
para a Hoechst Ibérica, as duas primeiras
em 1958 e as duas seguintes em 1968














No século passado, Salvador Dalí foi muito criticado por conta de sua dedicação ao “irracional” e por suas posições políticas reacionárias, entre elas o apoio ao general Francisco Franco, que chegou ao poder no rescaldo da Guerra Civil Espanhola. Contudo, passou ileso pelas incontáveis polêmicas e continua em evidência, como uma autêntica celebridade, quase 30 anos depois de sua morte, com as exposições de suas obras sempre atraindo multidões e batendo recordes de público pelo mundo afora.

A trajetória de controvérsias e provocações de Dalí teve início nas primeiras décadas do século 20, com a expressão radical de suas obras que firmou o conceito de Surrealismo nas artes plásticas. No final da década de 1930, entretanto, ele foi expulso do grupo dos surrealistas da Europa pelo poeta e mentor do “Manifesto Surrealista” (1924), André Breton – que passaria a se referir ao desafeto como “Avida Dólares” (ávido por dólares), um anagrama perfeito para o nome Salvador Dalí.






O Natal segundo Salvador Dalí em
aquarelas criadas para os cartões da
Hoechst Ibérica: acima, Felicitación
de Navidad Astronautica, de 1962,
reflete o impacto que as notícias
sobre os primeiros voos
espaciais exerceram no artista.

Abaixo, Dalí em seu ateliê em 
Paris,
em 1930, começando a pintar
La persistência de la memoria,
uma de suas obras mais célebres;
e três variações criadas por Dalí
para a tradição das árvores de Natal
em ilustrações para cartões que foram
impressos em 1967, 1971 e 1970













A grande arte: caos e criação



Depois do rompimento com os surrealistas, Dalí e Gala partiram em 1940, rumo aos Estados Unidos, para prestar serviços em Hollywood e “comercializar” sua produção em artes plásticas (veja mais em Semióticas: Alice volta ao futuro). A temporada de uma década na América foi brilhante e também polêmica, como tudo o que se refere à obra do mestre surrealista. De volta, com Gala, à sua terra natal, Figueras, na Catalunha, Espanha, na década de 1950, Dalí iria diversificar cada vez mais seus projetos – incluindo, entre eles, as séries de aquarelas e ilustrações para cartões de natal criadas sob encomenda.

Pelo que relatam Robert Descharnes e Gilles Néret, nas biografias e catálogos publicados pela Taschen (“Dalí – A Obra Pintada” e “Salvador Dalí – A Conquista do Irracional”), Dalí produziu 19 aquarelas e ilustrações para os cartões de Natal produzidos pela empresa farmacêutica Hoechst Ibérica, entre 1958 e 1976. A empresa, que tinha sede em Barcelona, decidiu imprimir uma grande tiragem em formato de 10,04cm X 6,93cm e os cartões eram enviados, a cada final de ano, para médicos e profissionais de saúde. Atualmente, estes cartões originais com as ilustrações de Dalí são relíquias valiosas, disputadas por colecionadores.







O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a homenagem a
Don Quijote em cartão criado
para a Hoechst Ibérica em 1960.

Abaixo, uma homenagem de Dalí
para Las Meninascélebre pintura de
1656 de Diego Velázquez, no cartão
criado em 1961; a árvore de Natal no
cartão criado em 1974; e o Papai Noel
em um dos cartões rejeitados pela
empresa Hallmark em 1960









As imagens da série sob encomenda para a Hoechst Ibérica não foram as únicas criadas por Salvador Dalí com temas de Natal. Ele também criou cartões de Natal exclusivos para amigos e colaboradores como Enrique Sabater, seu secretário particular a partir de 1969. Há ainda uma série de pinturas em óleo sobre tela, criada entre 1964 e 1967, com variações sobre imagens de São José e da Virgem Maria com o Menino Jesus. Como quase tudo que o mestre produziu, são pinturas que também impressionam, talvez porque, mesmo representando o tema religioso, a série, batizada de “Iesu Nativitas” (Natal, em latim), revela imagens que fogem ao lugar-comum da tradição das cenas de Natal.

O caso mais polêmico envolvendo Salvador Dalí e as encomendas para cartões de Natal parece ter sido mesmo a série produzida para a empresa norte-americana Hallmark. O fundador da empresa, Joyce Clyde Hall, desde o final da Segunda Guerra convidava artistas muito conhecidos para produzir imagens para os cartões de Natal da Hallmark. A iniciativa trouxe prestígio para a empresa e alavancou as vendas, com cartões criados por nomes como Pablo Picasso Georgia O'Keeffe, entre vários outros. Mas com a série criada em 1960 por Dalí surgiu um impasse.






O impasse com a encomenda a Dalí para a criação dos cartões de Natal aconteceu porque, assim que recebeu as imagens originais, pintadas a óleo e em guache sobre papel, a empresa passou a temer repercussão negativa ou até mesmo protestos do público. O pagamento de US$ 15 mil foi feito pelo Hallmark antecipadamente, por exigência do artista. Das 10 imagens criadas por Dalí, a maioria foi considerada pelos executivos da empresa “surreais” em excesso e terminaram rejeitadas e arquivadas, não sendo comercializadas no formato de cartões para produção em larga escala, como antes estava previsto. A série foi apresentada em uma exposição na galeria de arte da empresa, em Kansas City, Missouri, no Natal de 1960, e alguns cartões foram impressas para distribuição restrita. Desde então as imagens permaneceram inéditas.


Além dos cartões para a Hoechst Ibérica e para a Hallmark, Dalí também criou outras ilustrações natalinas sob encomenda para revistas e para anúncios publicitários. Alguns destes trabalhos já estavam no catálogo de suas obras-primas, caso das pinturas e aquarelas que tiveram versões publicadas em dezembro de 1948 na capa da revista “Vogue” norte-americana e dos anúncios de publicidade para as meias de nylon da marca Bryans, publicadas na edição de Natal da “Harper's Bazaar”, também em 1948, quando Dalí e Gala ainda moravam nos Estados Unidos.







Cartões de Natal segundo Salvador
Dalí: acima, o cartão criado em 1969
para presentear seu secretário
particular, Enrique Sabater

Abaixo, quatro cartões da série de Natal
criada por Dalí em 1960 para a Hallmark:
1) a árvore de Natal formada por borboletas;
2) a visita dos três reis magos; 3) o anjo
sem cabeça tocando alaúde para Maria
e o menino recém-nascido; e 4) a borboleta
noturna que visita a Madonna e seu filho.
Também abaixo, a Virgem Maria e Jesus
 em aquarela criada para o cartão
da Hoechst Ibérica em 1960



















As estranhas simetrias



Nas pinturas, desenhos e ilustrações com os temas de Natal criados por Salvador Dalí, existe a inevitável persistência de determinados símbolos que percorrem toda a sua trajetória: no lugar dos típicos cenários de neve, de pinheiros verdejantes, de laços e bolas coloridas, as imagens natalinas do mestre surrealista representam outros elementos, com sugestões arquitetônicas e formas geométricas em estranhas simetrias de corpos femininos, além dos adornos propositalmente incomuns que provocam saborosas ilusões de ótica e remetem a polêmicas que marcaram época.

O Natal surreal de Dalí é repleto de analogias que fogem dos limites da religiosidade e avançam em aproximações com o abstrato, o irreal, o sonho. Mesmo quando o que está representado é a Sagrada Família, formada por São José, a Virgem Maria e o Jesus Cristo recém-nascido, a imagem vai revelar outras simetrias – com cores imprevistas, com fragmentos de peixes e insetos, com anjos e árvores delineados em forma de ambiguidades, às vezes bizarras, e também com figuras lendárias da história da arte e da literatura, como a Infanta Margarita Teresa, imortalizada em “Las Meninas”, pintura de 1656 de Diego Velázquez, ou o Don Quijote de la Mancha criado por Miguel de Cervantes no livro de 1600.









O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a capa de Dalí para a
edição que comemorou o aniversário
de 50 anos da revista Vogue, em abril de
1944, e a adaptação da ilustração do artista
na capa da Vogue de dezembro de 1946.

Abaixo, a mesma ilustração nas
versões originais criadas por Dalí;
na terceira ilustração, a dobra que
permite outra visualização da figura











O próprio Dalí declarou muitas vezes que a irracionalidade e o apelo ao universo do pensamento onírico sempre foram os princípios condutores de todo o seu processo criativo. Em dois dos documentários que ele realizou, em parcerias com o fotógrafo Philippe Halsman (“Chaos and Creation”, 1960) e o cineasta Jack Bond (“Dalí in New York”, 1965), Dalí explica, com muitos exemplos e em mínimos detalhes, as etapas de seu processo de criação e as técnicas envolvidas dos primeiros esboços à finalização, condenando toda arte que esteja pautada sobre as regras da tradição e do “bom gosto”.







O Natal surreal segundo Dalí:
acima, o anúncio publicitário
para as meias de nylon da marca
Bryans, publicado em dezembro de
1948 pela revista Harper's Bazaar.

Abaixo, mais três pinturas sob encomenda
para estampar cartões de Natal, a primeira
de 1967 duas seguintes criadas em 1964, da
série intitulada Iesu Nativitas, com o nascimento
de Jesus na gruta em Belém e com a fuga da
Sagrada Família para o Egito. Também abaixo,
uma estampa em homenagem a Dalí,
instalada em dezembro de 2013 na escadaria
do Philadelphia Museum of Art (EUA)














A tradição da ruptura



No filme em parceria com o fotógrafo Philippe Halsman, seu mais fiel colaborador desde a década de 1940, Salvador Dalí volta às suas declarações polêmicas da época do rompimento definitivo com o grupo surrealista (“a diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista”) para avaliar os avanços que a Arte Moderna e o Surrealismo proporcionaram ao século 20. Segundo Dalí, toda a influência e as referências que a arte produzida por ele legou à História vão muito além das exposições em galerias e do destaque de suas obras nos acervos dos principais museus internacionais: elas atingiram o comportamento individual de muitos, muito antes da "atitude rock" de estrelas da música e da cultura pop, e marcaram presença até em questões de ciência e tecnologia.

Na sequência final do filme, o artista das controvérsias e das polêmicas apresenta sua conclusão profética que continua extremamente atual, depois de mais de 50 anos. "O Surrealismo irá, pelo menos, ter servido para provar que a esterilidade e as tentativas de automatizações foram longe demais e ainda correm o sério risco de conduzir toda arte e toda civilização a um único sistema totalitário", alerta. Não resta nenhuma dúvida: o provocador Salvador Dalí permanece como um daqueles grandes mestres, raros e visionários, que sempre conseguem surpreender.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Natal surreal de Salvador Dalí. In: Blog Semióticas, 20 de dezembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/natal-surreal-de-salvador-dali.html (acessado em .../.../...).

















 Para uma visita ao acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí, clique aqui.






22 de fevereiro de 2012

Presente verde-amarelo







No mundo da ilustração, muitos acham que o ilustrador 
é artista plástico. Eu discordo. O ilustrador é um escritor. 
Só que o seu instrumento de escrever é o desenho. 
O ilustrador é um escritor de imagens
––  Odilon Moraes.   

 

Em um de seus célebres ensaios, o francês Roland Barthes (1915-1980) interroga o leitor sobre as competições esportivas que, ele recorda, são espetáculos que vêm de outras eras, herdados de épocas ancestrais, resquícios dos antigos sacrifícios religiosos. "Que necessidade têm esses homens de atacar? Por que ficam perturbados diante desse espetáculo? Por que dão tudo de si? Por que esse combate inútil? O que é o esporte?"  questiona o pensador.

O próprio Barthes encontra a resposta, na frase seguinte, segundo a qual o esporte remete sempre a outra pergunta – quem é o melhor? – e dá novo sentido à questão dos antigos duelos. "Quem é o melhor para vencer a resistência das coisas, a imobilidade da natureza? Quem é o melhor para trabalhar o mundo e oferecê-lo a todos os homens? Eis o que diz o esporte. O esporte é feito para relatar o contrato humano", professa a sabedoria de Barthes.

Escrito em 1961 e mantido inédito em português até 2009, quando foi publicado no terceiro número da revista "Serrote", do Instituto Moreira Salles (IMS), o ensaio de Barthes, intitulado "O que é o esporte?", destaca aspectos mitológicos e cotidianos das arenas esportivas, nas quais o homem não enfrenta diretamente o homem: há entre eles um intermediário, algo que está em jogo na cerimônia da disputa, algo que pode ser máquina, pode ser disco, pode ser bola.












No caso brasileiro, entretanto, o que faz do futebol um esporte nacional? O ilustrador, pintor e escritor Odilon Moraes enfrenta a questão e busca a natureza mitológica do mais nacional dos esportes criando uma sequência de imagens que seduz e encanta até mesmo os pequenos leitores ainda não alfabetizados. A resposta do ilustrador e contador de histórias é construída pela simplicidade de um fragmento de memória da vida cotidiana de um garoto comum representada de forma muito pouco usual.



O traço azul do lápis



Sem nenhuma palavra – apenas com o traço azul do lápis que preenche com cores verde-amarelas camisas da seleção e bandeirinhas brasileiras – Odilon Moraes constrói, nas 48 páginas do livro-imagem "O Presente" (editora Cosac Naify), uma sequência de reminiscências da infância que deixa em destaque uma vivência comum a gerações e gerações de brasileirinhos: a descoberta da paixão pelo futebol.

"Meu livro é uma mistura de várias referências, principalmente minhas próprias memórias de infância e as experiências vividas com as primeiras Copas do Mundo assistidas pela TV", explica Odilon, respondendo à pergunta que fiz para esclarecer minha suspeita de que "O Presente" contava uma história autobiográfica de algum momento da infância do autor, um paulista que nasceu na capital, em 1966, mas passou a infância e a adolescência em Tanabi e outras cidades do interior paulista.







"Meu pai comprou a primeira TV a cores depois da Copa de 1974. Mas assistimos aos jogos do Brasil na casa de um amigo dele. Foi inesquecível, apesar das imagens cheias de chuviscos e de fantasmas", ironiza o autor, na breve entrevista que fiz com ele por telefone. Depois que confesso que "O Presente" me fez lembrar de minha própria infância, com os mesmos cenários e personagens, Odilon resgata na conversa ou ou outro caso curioso que permaneceu gravado em suas lembranças de criança e conta que tem dois filhos pequenos, de quatro e de um ano de idade, que atualmente fazem as vezes de primeiros leitores do pai escritor e ilustrador.

"Como toda arte e toda literatura, 'O Presente' é um apanhado de várias verdades para formar uma ficção", define. A opção pela ausência de palavras no livro, ele reconhece, nasceu da atividade profissional que o leva no dia a dia a ilustrar textos de outros autores. "A experiência me fez perceber que o desenho conta coisas diferentes da palavra, assim como as palavras dizem coisas que a imagem sozinha às vezes não consegue traduzir", explica.

Ele também acredita que um livro ilustrado, sem palavras, destaca melhor o poder que a imagem tem, inclusive de transformar a palavra. "Mesmo em um livro ilustrado em que há palavras, acontece este poder quase mágico da transformação da realidade. Você vê a palavra e entende uma coisa, olha a imagem entende outra, e vice-versa. A grande riqueza é esse jogo entre palavras e imagens e isso significa interdependência", ressalta o autor, com o conhecimento de causa de quem é também o ilustrador.

Segundo Odilon Moraes, a forma de narrativa do livro ilustrado traduz a maneira como compreendemos o mundo. "A gente não compreende o mundo apenas pelas palavras. A gente compreende o mundo pelas palavras e pelas imagens. O leitor precisa se sujeitar a essa dupla orientação, uma coisa contada pela imagem e outra pela palavra, que muitas vezes não se cruzam. Mesmo quando querem contar a mesma coisa, são coisas contadas de forma diferente", completa.







Formado em Arquitetura, Odilon Moraes estreou como autor em 2002, com "A Princesinha Medrosa", relançado pela Cosac Naify em 2009. Depois vieram "Pedro e Lua" (2004) e o livro-objeto "Ismália" (2006), criado a partir do poema de Alphonsus de Guimaraens. Recebeu prêmios de melhor livro do ano pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e também ilustrou "O Homem que Sabia Javanês" (2003), de Lima Barreto, "O Presente dos Magos" (2004), de O. Henry, e "Será o Benedito!" (2008), de Mário de Andrade, entre outros. 



O melhor caminho 



Ele também faz questão de ressaltar que nem sempre o livro ilustrado é literatura infantil. "A literatura infantil existiu antes do livro ilustrado. Existiam histórias para crianças, mas eram os pais ou os adultos que liam para elas. A partir do final do século 19 é que surge o livro-brinquedo, o livro que é criado para ser manuseado pela criança. O próprio fato de usar a imagem como narrativa é uma derivação do universo da criança, assim como imagens coloridas, pouco texto, imprevisibilidade na exploração do objeto. Então, podemos dizer que o livro ilustrado nasce dentro desse pensamento do livro-brinquedo, onde desponta uma curiosidade, que é a ilustração passar a ser um trilho para construir histórias".











Ilustrações de Odilon Moraes: acima,
o autor trabalhando em "mesa de luz"
para o projeto do livro O Presente.
Também acima, imagens extraídas
de seus livros Será o Benedito! e
O Homem que Sabia Javanês.

Abaixo, a capa da primeira edição
de A princesinha medrosalivro de
estreia do autor, que além de ilustrar,
também escreveu o texto, conquistando
prêmio de Melhor Livro para Crianças,
concedido em 2002 pela FNLIJ. Também
abaixo, e nas ilustrações a partir do alto
da página, imagens de O Presente









Na atualidade, alguns autores dizem que o livro ilustrado é literatura pós-moderna, porque congrega vários elementos: a imagem, a palavra e às vezes o objeto. Minha teoria é que, pelo fato de o livro ilustrado ter nascido dentro da literatura infantil, guarda-se o território da criança, da experimentação. Mesmo se há um adulto que fala 'não faço livro ilustrado para criança', na verdade ele está se utilizando de recursos do universo infantil que foram muitos expressivos", ele explica, sempre tendo como exemplo seu próprio trabalho como autor e ilustrador.
  
"Não basta uma boa ideia ou uma bela imagem. É preciso desenvolver esta ideia em etapas e criar uma sequência", ele diz, referindo-se à experiência de vida transformada nas imagens de "O Presente". No livro, o garoto protagonista tem uma frustração ao assistir aos jogos da Copa do Mundo pela TV, vestindo a camisa verde-amarela que ganhara do pai. Mas ele alcança a superação através do próprio jogo, quando é convidado para uma "pelada" com os amigos. Trata-se de um livro sobre futebol, mas que também alcança questões mais profundas sobre amizade, lembranças e amadurecimento

Na origem de “O Presente”, o autor confirma, estão muitas de suas lembranças da infância. “Pensei em datas que marcam as pessoas. Por exemplo, em todo Natal você se lembra no do ano passado, e pensa em como será o próximo... E com a Copa do Mundo ocorre algo semelhante. Quando comecei a fazer o livro, me vi refletindo sobre isso, e pensei no meu filho pequeno, João. Aí me veio à cabeça uma lembrança muito especial da primeira Copa que me lembro de ter assistido com atenção”.

Trabalhando como ilustrador desde 1989, ele diz que foi de certa forma influenciado pelo pai, que sempre pintou, e que um dia, quando resolveu levar seus desenhos a uma editora, pouco antes de se formar em Arquitetura, conseguiu mudar toda a sua vida. Sobre seu ofício como autor e como ilustrador, ele confessa: "Hoje sei que o melhor caminho é desenhar quando não consigo escrever e escrever quando não consigo desenhar".



























A infância do autor



Ele recorda que o ponto de partida para criar o livro foram suas memórias sobre a Copa do Mundo de 1974, que assistiu pela TV. “Eu morava no interior e meu pai me levou pra ver uma partida na casa de um amigo, o primeiro cara que tinha televisão em cores na cidade. O que mais me lembro é que ninguém conseguia assistir direito ao jogo porque a TV era mal regulada e só víamos uma coisinha amarela passando para lá e para cá, uma mancha amarela que eram as camisas da seleção. Só depois da Copa meu pai conseguiu comprar nossa primeira TV em cores”.

A experiência da infância do autor conseguiu gerar uma obra das mais especiais sobre a paixão de muitos brasileiros pelo futebol. Como escreve Tales Ab'Sáber, que assina o texto da contracapa do livro, o futebol é "uma das mais complexas formações que a cultura e a sociedade brasileira foram capazes de produzir. O despertar do amor ao futebol se confunde com o despertar da própria consciência de si".

Traduzindo algumas de suas memórias de infância na simplicidade e na beleza de um livro sem palavras, Odilon Moraes tematiza o futebol com o que ele tem de tristeza e alegria, frustração e surpresa. A partir de suas próprias lembranças, como acontece sempre na grande arte da literatura, ele compõe um presente de fato muito especial para crianças e para adultos de todas as idades: uma história que comove com seu texto invisível porque incorpora muito afeto desenhado em verde, amarelo, azul e branco.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Presente verde-amarelo. In: Blog Semióticas, 22 de fevereiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/02/presente-verde-amarelo.html (acessado em .../.../...).



Para comprar o livro de Odilon Moraes O Presente,  clique aqui.







Para comprar o livro  Histórias à brasileira, clique aqui.












Odilon Moraes no estúdio de trabalho,
fotografado por Nino Andrés





Outras páginas de Semióticas