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24 de agosto de 2022

Estratégias do Zé Carioca

 





O que faço é um trabalho de amor. Eu não entrei

neste negócio apenas para ganhar dinheiro.

Walt Disney (1901-1966).


.............



Criado por Walt Disney durante uma viagem ao Rio de Janeiro e, oficialmente, lançado em 24 de agosto de 1942, Zé Carioca completa hoje seu aniversário. Trata-se de um caso exemplar das estratégias políticas que usam personagens de histórias infantis e, na perspectiva do Brasil, um capítulo importante da invasão cultural norte-americana, como já foi apontado por diversos estudos. São 80 anos de existência do único personagem brasileiro na The Walt Disney Company – uma data comemorada com homenagens e grandes negócios anunciados para os próximos meses.

As homenagens são um pouco tímidas: novas 
histórias em quadrinhos, com o relançamento da revista do personagem e uma edição especial do “Almanaque do Zé Carioca”. Há, também, o lançamento de três livroinéditos: “O essencial do Zé Carioca: celebrando os 80 anos de sua estreia”, pela editora Culturama, que desde 2020 assumiu a publicação das revistas Disney no Brasil; “Zé Carioca conta a história do Brasil”, um projeto do escritor Eduardo Bueno; e "Muito prazer, Zé Carioca", uma biografia do personagem escrita por Jorge Carvalho de Mello. 

Entre os negócios anunciados, mas ainda sem previsão de datas, estão relançamentos do personagem no canal Disney Plus, uma programação de eventos criada em parceria da Disney com o canal ESPN e conteúdos especiais nos sites e redes sociais da empresa, além de coleções temáticas do Zé Carioca licenciadas pela primeira vez para roupas, brinquedos, instrumentos musicais e acessórios que serão vendidos em parcerias com diversas marcas no Brasil e em outros países. Com as estratégias comerciais, a meta é reposicionar o personagem em destaque entre os produtos da Disney, depois do quase esquecimento nas últimas décadas, quando até suas revistas tiveram publicação cancelada no mercado brasileiro. Nos últimos anos, o Zé Carioca apareceu apenas ocasionalmente em pequenas histórias no “Almanaque Disney”.







Estratégias do Zé Carioca: no alto, a nova versão do
personagem, que chega ao 80 anos. Acima, Zé Carioca
na nova imagem para o reposicionamento comercial.

Abaixo, Walt Disney e sua equipe desembarcando
no Rio de Janeiro, em 1941, no programa de governo
nomeado como Política da Boa Vizinhança; e o cartaz
original da estreia de Zé Carioca no cinema, ao lado
do Pato Donald, no filme de 1942 "Alô Amigos"




             

A história do Zé Carioca teve início sob encomenda para um projeto político: assim que foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial, Walt Disney foi destacado pelo Departamento de Estado para a missão de criar peças de cinema e de histórias em quadrinhos para a aproximação dos Estados Unidos com os países da América Latina, dentro das estratégias da chamada Política da Boa Vizinhança, criada pelo governo Franklin Roosevelt na década de 1930, e que ganhou força para conquistar a simpatia dos governos e dos povos latino-americanos em tempos de guerra contra os nazistas. No vértice brasileiro da aproximação estão acordos comerciais com o governo de Getúlio Vargas e a importação pelos Estados Unidos de Carmen Miranda, na época a maior estrela da música, do rádio, do cinema e do teatro de revista no Brasil. Carmen embarcou para os EUA em 1939, alcançando em pouco tempo um sucesso estrondoso na Broadway e em Hollywood.


Malandro, alegre, hospitaleiro


Na sequência dos acordos comerciais e de geopolítica dos EUA com o governo Vargas, viriam dois grandes projetos de cultura e política a cargo de Orson Welles e de Walt Disney. O filme de Orson Welles no Brasil, “It’s All True”, jamais foi concluído pelo cineasta, que retornou aos EUA no final de 1942 depois de filmagens que foram uma sucessão de escândalos e de acidentes. Walt Disney, por sua vez, chegou com sua equipe ao Brasil em 1941 e, assim como Welles, ficou encantado com a cultura brasileira. Durante a viagem de Disney veio a inspiração para criar o Zé Carioca, um papagaio malandro, alegre e hospitaleiro, que vivia no morro da favela, enrolava seu próprio cigarro, gostava de feijoada, de cachaça e de futebol. Sua estreia aconteceu em 1942, no filme “Alô Amigos” ("Saludos Amigos" / "Hello Friends"). Com o sucesso comercial do filme, nos EUA, no Brasil e em outros países, Zé Carioca retornaria em uma série de histórias em quadrinhos e em outros dois filmes: “Você já foi à Bahia?” ("The Three Caballeros", 1944) e “Tempo de Melodia” ("Melody Times", 1948).








Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
bebe cachaça com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, o presidente Getúlio Vargas
(à esquerda) com Walt Disney (à direita) no
Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Abaixo,
um encontro do maestro Heitor Vila Lobos com
Walt Disney, também no Rio de Janeiro






Em “Alô Amigos”, sexto longa-metragem de animação de Walt Disney (os anteriores foram "Branca de Neve e os Sete Anões", "Pinóquio", "Fantasia", "Dumbo" e "Bambi"), há quatro histórias, ou quatro segmentos, cada um representando um país, e todos estão interligados. No primeiro, "Lago Titicaca", o turista norte-americano Pato Donald visita o Peru; no segundo, "Pedro", um pequeno avião parte do Chile para buscar correspondência aérea na Argentina; no terceiro, "O Gaúcho", Pateta é o cowboy dos EUA que vai aos pampas argentinos; no quarto, "Aquarela do Brasil", Zé Carioca recebe o viajante dos EUA, o Pato Donald, e o acompanha em um passeio pelo Rio de Janeiro e por diferentes paisagens do Brasil, seguindo também pela América Latina. Donald, que havia estreado no cinema em 1934, em um episódio curto do filme “Sinfonias Tolas” (“Silly Simphony”), aparece em forma redesenhada e definitiva, com o uniforme azul e branco de marinheiro – na verdade um “mariner”, integrante do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, evidentemente destacado para um “esforço de guerra”.

No mesmo ano de 1942, Donald apareceria em outro filme de propaganda de guerra, o desenho anti-nazista “A Face do Fuehrer” (“Der Fuehrer’s Face”), que venceu em 1943 o Oscar de melhor curta-metragem de animação. Donald também é protagonista em “O Espírito de 1943” (“The Spirit of ‘43”), filme curto em que ele seráconvencido a doar parte de seu salário de trabalhador para as campanhas da guerra, e em outros dois filmes de animação em longa-metragem com Zé Carioca, os já citados “Você já foi à Bahia?” e “Tempo de Melodia”. “Alô Amigos” seria um grande sucesso comercial de Disney, apresentando na trilha sonora duas canções brasileiras que se tornariam populares no mundo inteiro: “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, e “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu, que seriam gravadas em seguida por Carmen Miranda e por muitos artistas de diversos gêneros e nacionalidades, de Frank Sinatra e Ray Conniff a Paco de Lucia e Xavier Cugat, entre outros.






             






Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
dança o samba com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, Walt Disney (de bigode) e sua
equipe visitam a quadra da escola de samba Portela
na companhia de Paulo da Portela.

Abaixo, Carmen Miranda em Hollywood com
a primeira formação do Bando da Lua e durante
as filmagens de "Uma Noite no Rio", em 1941,
com o músico José do Patrocínio, mais conhecido
como Zezinho (de camisa listrada e o primeiro à
esquerda, na primeira foto), que entrou para o
grupo Bando da Lua em 1941 e foi o primeiro
dublador do Zé Carioca em "Alô Amigos"
e nos filmes seguintes do personagem










A
gênese do papagaio carioca


O sucesso no cinema levou Zé Carioca para as páginas das histórias em quadrinhos. No final de 1942, ele surgiria em tirinhas publicadas por vários jornais nos EUA e, nos anos seguintes, chegaria ao Brasil e a outros países no formato de revista em quadrinhos que exploravam o exotismo das paisagens do Rio de Janeiro. Na biografia de Walt Disney publicada em 1994, “An American Original” (Disney Editions), o autor Bob Thomas descreve as circunstâncias que levaram Disney a criar o personagem em uma suíte do Hotel Copacabana Palace, que esteve temporariamente transformada em estúdio, enumerando referências que estão na gênese do filme "Alô Amigos" e do personagem do papagaio malandro. Tudo indica que na origem do Zé Carioca estão ideias originais de José Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido como J. Carlos, cartunista que fazia sucesso na revista “O Tico-Tico”.

Entre outros personagens que o cartunista desenhava para “O Tico-Tico”, havia um papagaio sem nome que fumava charuto e aparecia ocasionalmente em charges e histórias de outros personagens. Ao tomar conhecimento dos projetos para o filme e para um novo personagem que seria criado, J. Carlos presenteou Disney, durante um jantar, com um desenho do tal papagaio que ele havia criado. No desenho, o papagaio abraçava o Pato Donald. Segundo o biógrafo Bob Thomas, o desenho de J. Carlos, associado a outras referências de pessoas do meio artístico que Disney conheceu no Brasil, levariam à concretização do personagem Zé Carioca. Entre as referências também estava o músico e humorista Zezinho (José do Patrocínio Oliveira), que tocava cavaquinho no grupo Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda. Não por acaso, Zezinho é o dono da voz que dubla o Zé Carioca em “Alô Amigos”.






Estratégias do Zé Carioca: acima, uma
reunião no hotel Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro, em 1941, com Jorge Guinle,
dono do hotel, Carmen Miranda e Walt Disney.
Abaixo, Walt Disney filmando nas areias da
praia de Copacabana e passeando de barco
na baia da Guanabara com a equipe de trabalho
















Outras influências para a criação do personagem Zé Carioca vêm do charuto que o compositor Heitor Vila Lobos sempre fumava e dos olhos azuis do compositor Herivelto Martins – duas das personalidades muito populares da época, no meio artístico do Rio de Janeiro, que tiveram vários encontros com Walt Disney, tanto em reuniões de trabalho como em jantares e passeios pelos mais conhecidos cenários cariocas. O biógrafo também cita os convites que foram feitos pessoalmente por Disney para o compositor Ary Barroso, para o maestro Vila Lobos e para o cartunista J. Carlos, para que eles fossem trabalhar sob contrato com a equipe Disney em Hollywood, mas todos eles recusaram as propostas.

Nos anos seguintes, Ary Barroso venderia os direitos de algumas canções para filmes da Disney e para outros estúdios de Hollywood. Vila Lobos, no final da década de 1950, seria contratado para criar a trilha sonora de "Green Mansions" (no Brasil, "A flor que não morreu"), superprodução da Metro Goldwyn Mayer com direção de Mel Ferrer e com Audrey Hepburn e Anthony Perkins no elenco. O maestro brasileiro compôs uma peça sinfônica belíssima, hoje conhecida como "Floresta do Amazonas", mas ficou extremamente insatisfeito com o uso que fizeram de suas partituras na trilha sonora da versão final do filme e nunca mais quis repetir a experiência.


Do cinema para os quadrinhos


Na temporada de Disney no Brasil há também a presença de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, que acompanhou uma visita de Disney e sua equipe à quadra da escola de samba na Guanabara e deixou Disney impressionado por sua elegância, sua alegria e sua gentileza hospitaleira – as mesmas características que seriam levadas para o filme “Alô Amigos” e que ficaram visíveis na recepção que Zé Carioca faz para o Pato Donald no Rio de Janeiro. Bob Thomas também cita outro brasileiro como referência para a criação do papagaio: o advogado Manuel Vicente Alves, mais conhecido como Dr. Jacarandá, um tipo folclórico na época, na zona sul carioca, que também foi apresentado a Disney na visita da equipe à quadra da Portela. Tal como aconteceria com Zé Carioca, o Dr. Jacarandá sempre usava, sob o sol escaldante do Rio de Janeiro, chapéu panamá de aba reta, paletó de alfaiataria, camisa social com gravata borboleta colorida e um inseparável guarda-chuva.









Estratégias do Zé Carioca: no alto, a capa
da primeira edição do livro "An American Original",
biografia de Walt Disney escrita por Bob Thomas.
Acima, o Zé Carioca em sua imagem clássica.

Abaixo, os encontros de Walt Disney com
o compositor Ary Barroso e com Alceu Penna,
ilustrador da revista O Cruzeiro, no hotel
Copacabana Palace em 1941










Nos estúdios Disney, Zé Carioca ganhou vida também sem a presença do Pato Donald. As tirinhas e histórias em quadrinhos do personagem, criadas a partir de 1942, tiveram roteiro de Hubie Karp e desenhos de Bob Grant e Paul Murry – os três integrantes da equipe Disney que também trabalharam no filme “Alô Amigos”. O personagem, batizado como Joe Carioca, estreou nas páginas de jornais e revistas dos EUA em outubro de 1942 e quatro meses depois chegava ao Brasil publicado em “O Globo Juvenil”, suplemento mensal que circulou entre 1937 e 1952, em formato tabloide de 16 páginas impressas em papel jornal, tendo como editor Nelson Rodrigues, que ganharia notoriedade como cronista e dramaturgo. As histórias do Zé Carioca também tiveram uma edição especial publicada pela Editora Melhoramentos em 1945: o personagem, fumando seu charuto, aparece na capa tendo ao fundo a baía da Guanabara.

Nas páginas de “O Globo Juvenil”, Zé Carioca faria sucesso com suas histórias e tirinhas intercaladas com quadrinhos que traziam heróis estrangeiros como Superman, Mandrake, O Fantasma, Flash Gordon, Brucutu e Ferdinando, entre outros. A primeira vez que Zé Carioca apareceu na capa de uma revista foi na primeira edição de “O Pato Donald”, que inaugurou a parceria comercial entre Disney e a Editora Abril, em julho de 1950, participando apenas de uma história. Depois desta primeira fase do personagem, Zé Carioca retornaria somente na década de 1960 às revistas dos personagens Disney. Em 1961, ele ganharia sua própria revista de publicação semanal com histórias inéditas, criadas no Brasil, e com adaptações de histórias de outros personagens da Disney, tendo na capa da primeira edição o título "O Pato Donald apresenta Zé Carioca". Em 2018, depois de 68 anos, a Editora Abril encerrou seu contrato de publicação das revistas Disney, que desde 2020 passaram a ser publicadas pela Editora Culturama, mas várias revistas permanecem canceladas.







Estratégias do Zé Carioca: acima, o papagaio
malandro criado por J. Carlos para as charges
da revista "O Tico-Tico", uma das fontes de
inspiração para Walt Disney criar o Zé Carioca.

Abaixo, uma sequência dos primeiros esboços
da equipe Disney para o personagem; e a capa
da primeira edição da revista "O Pato Donald"
no Brasil, em junho de 1950, que teve a presença
de Zé Carioca como convidado especial








As intenções políticas


O encontro de Zé Carioca com o Pato Donald em “Alô Amigos” também é um campo fértil para estudos políticos e de historiografia. No livro “The Hispanic Image on the Silver Screen” (“A imagem hispânica na tela de prata”, Editora Greenwood, 1992), o historiador Alfred Charles Richard Jr. apresenta uma constatação que se tornou célebre: segundo ele, o filme “Alô Amigos” conseguiu consolidar, para grande parte do público de países da América Latina, em poucos meses, mais simpatia pelos Estados Unidos do que as ofensivas do Departamento de Estado norte-americano conseguiram antes em mais de 50 anos de ocupações militares e de ações diplomáticas.

Em seu estudo, Richard Jr. avalia os efeitos que o cinema de Hollywood teve sobre o público na formação e na propagação de estereótipos, assim como as relações muito próximas entre o cinema norte-americano e a política de outros países da América, com filmes que, com muita frequência, justificavam e glorificavam a intervenção dos Estados Unidos nos assuntos das nações latino-americanas. No caso brasileiro, tais intervenções são especialmente visíveis em dois momentos de regimes ditatoriais: primeiro, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, que coincide com a vigência da Política da Boa Vizinhança do governo Roosevelt; e posteriormente na ditadura militar que tomou o poder no período de 1964 até os anos 1980.










Estratégias do Zé Carioca: acima, Walt Disney
passeando na praia de Copacabana, em 1941;
e desenhando croquis e cenários para o filme
"Alô Amigos" com Mary Blair na varanda do hotel,
no Rio de Janeiro. Abaixo, Walt Disney passeando,
anônimo no meio da multidão na Avenida Rio Branco,
centro do Rio de Janeiro, fotografado para reportagem
da revista "Life" por Hart Preston; e o encontro
entre o presidente do EUA, Franklin Roosevelt,
e o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, em
Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943.

Também abaixo, a capa da edição brasileira
do livro de Ariel Dorfman e Armand Mattelart,
"Para ler o Pato Donald"; e uma seleção de
capas históricas do Zé Carioca no Brasil:

1) Zé Carioca, edição especial da Melhoramentos em
1945; 2) Zé Carioca na capa de "O Globo Juvenil" em
janeiro de 1944; e 3) Zé Carioca na primeira edição de
sua revista, em 1961, que traz na capa o título
"O Pato Donald apresenta Zé Carioca"







Tais associações entre ações políticas, cinema, literatura e estereótipos instrumentalizados na cultura brasileira são também abordadas em diversos estudos de crítica literária, de comunicação social, de sociologia e de antropologia, entre eles “Dialética da Malandragem” (Revista de Estudos Brasileiros da USP, 1970), de Antonio Candido; “Carnavais, Malandros e Heróis” (Editora Rocco, 1979), de Roberto da Matta; e "A Invasão Cultural Norte-Americana" (Editora Moderna, 1988), de Júlia Falivene Alves. Uma abordagem mais específica sobre o tema, feita a partir da análise de personagens de Walt Disney e de sua influência na América Latina, foi publicada em 1971, no Chile, por Ariel Dorfman e Armand Mattelart, e se tornaria um clássico incontornável: “Para ler o Pato Donald – Comunicação de massa e colonialismo”, que teve primeira edição no Brasil em 1977, pela Editora Paz e Terra, em tradução do historiador de quadrinhos Álvaro de Moya.

Dorfman, nascido na Argentina, e Mattelart, nascido na Bélgica, ambos militantes de esquerda na luta pelos Direitos Humanos, propõem, em suas próprias palavras, um “manual de descolonização” a partir de uma leitura dos quadrinhos por um viés marxista. Uma definição reveladora sobre o estudo é apresentada de forma resumida, pelos próprios autores, na abertura do terceiro capítulo do livro: “Os povos subdesenvolvidos são para Disney, então, como as crianças; devem ser tratados como tais, e se não aceitam essa definição de seu ser, é preciso descer suas calças e lhes dar uma boa surra. Para que aprendam!” Observadas com um intervalo histórico de mais de 50 anos, pode-se perceber com muita clareza o quanto as análises radicais e ideológicas de Dorfman e Mattelart removeram as máscaras de inocência e de ingenuidade que, por muito tempo, conseguiram disfarçar o aparato violento de dominação cultural e os mecanismos agressivos de propaganda política, manipulados, desde sempre, para favorecer e fortalecer os interesses do império norte-americano.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Estratégias do Zé Carioca. In: Blog Semióticas, 24 de agosto de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/08/estrategias-do-ze-carioca.html (acessado em .../.../…).

















6 de maio de 2015

Revoluções de Orson Welles






Sim, é preciso ter dúvidas, sempre. Só os estúpidos

conseguem ter uma confiança absoluta em si mesmos.

–– Orson Welles (depoimento citado na biografia   

publicada em 1977 por Joseph McBride).   




Grandioso, grandiloquente, monumental, imponente, radical, majestoso, soberbo – são alguns dos adjetivos e superlativos que sempre vêm associados ao nome de Orson Welles, o gênio incontestado do cinema que hoje completa seu centenário de nascimento. George Orson Welles, nascido em 6 de maio de 1915 no Wisconsin, EUA, órfão de pai e mãe antes da adolescência, se tornaria uma celebridade que revolucionou o teatro, o rádio, o cinema – quando ainda era um jovem de pouco mais de 20 anos de idade. Polêmico, controverso, inconformista, ele mantém a condição de unanimidade para a maioria dos críticos e historiadores como o maior diretor de cinema de todos os tempos, depois de mais de três décadas de sua morte, em Hollywood, em 10 de outubro de 1985.

O centenário de Orson Welles recebe homenagens em vários países, inclusive no Brasil, com exibições de algumas de suas obras-primas como cineasta, ator, roteirista, entre elas “Citizen Kane” (“Cidadão Kane”, 1941). Mas sequer a imponência de seu filme mais famoso está isenta de controvérsias e de questionamentos: há quem conteste até mesmo os méritos principais de “Cidadão Kane”, com o argumento de que as grandes qualidades do filme estariam menos no trabalho de Orson Welles e mais nas inovações criadas pela direção de fotografia de Gregg Tolland, pela trilha sonora de Bernard Herrmann e, principalmente, pelo roteiro original de Herman Mankiewicz. Depois de muitas brigas intermináveis com Mankiewicz, dentro e fora dos estúdios, Welles terminou assinando como co-autor os créditos oficiais pelo roteiro de “Cidadão Kane”, e a grande ironia é que foi com este roteiro que ele venceu o único Oscar de sua longa e tumultuada carreira como um dos artistas mais excêntricos e fundamentais da história do cinema.

É uma trajetória de polêmicas e controvérsias espetaculares. Depois das revoluções que o jovem Orson Welles havia provocado nos palcos de teatro e principalmente no rádio – quando espalhou o pânico nos EUA, em 1938, com sua célebre adaptação em tom de boletim jornalístico em um programa radiofônico em cadeia nacional, ao vivo, de “A Guerra dos Mundos”, clássico da literatura de ficção científica de H. G. Wells, que levou os ouvintes a acreditarem que estava realmente acontecendo uma invasão de extraterrestres – vem o seu filme de estreia, “Cidadão Kane”, não menos polêmico nem menos espetacular, ainda hoje um marco capital da história do cinema, uma obra que há quase um século permanece em destaque como presença obrigatória no topo das listas mais prestigiadas de “melhores filmes de todos os tempos”, tanto pela abordagem crítica e feroz que apresenta sobre os meios de comunicação de massa, quanto pelas inovações técnicas e narrativas que imprime na linguagem cinematográfica.












Revoluções de Orson Welles: no alto e acima,
o artista no estúdio, durante a transmissão pelo rádio,
na noite do dia 30 de outubro de 1938, véspera do
Dia das Bruxas, de sua versão em tom de flagrante
jornalístico para o clássico da literatura de ficção científica
A Guerra dos Mundos, romance publicado em 1897
pelo britânico Herbert George 
Wells (H. G. Wells).

O programa de rádio de Orson Welles com a adaptação
de A Guerra dos Mundos ficou famoso no mundo inteiro
porque 
espalhou pânico entre os ouvintes dos EUA,
que imaginaram estar acontecendo, realmente,
uma invasão verdadeira e 
violenta de
seres extraterrestres.

Abaixo, o encontro 
de Welles com o escritor H. G. Wells
em Nova York, em 1940; Welles com seu roteirista
Herman Mankiewicz, da parceria em Cidadão Kane;
e Welles com o cenógrafo e diretor de fotografia
Greg Toland, o técnico genial e anônimo por trás
de "Cidadão Kane" e outros clássicos do cinema da
antiga Hollywood. Também abaixo, Welles 
em 1938
explicando aos 
jornalistas, horas depois da transmissão
do programa de rádio 
com sua versão espetacular
de A Guerra dos Mundos
que não tinha ideia
do caos e das 
consequências que provocaria

















Entre as grandes homenagens a Orson Welles para celebrar seu legado, à altura de sua importância, as principais estão agendadas para o Festival de Cinema de Cannes, de 13 a 24 de maio. O tributo a Welles programado para Cannes inclui cerimônias com as presenças confirmadas de sua filha, Beatrice Welles, e de Oja Kodar, sua companheira nos últimos anos de vida, e as primeiras exibições de três filmes restaurados em alta resolução (4K): “Cidadão Kane” e “A Dama de Xangai” (1948), dirigidos por ele; e “O Terceiro Homem” (1949), de Carol Reed, que tem Orson Welles como protagonista.



Autópsia de uma lenda



O Festival de Cannes também programou exibições de dois documentários inéditos sobre o cineasta, ambos com cenas e depoimentos de Welles já anunciados como polêmicos e nunca antes exibidos: “Orson Welles, Autópsia de uma Lenda” e “Este é Orson Welles” – o primeiro com direção de Elisabeth Kapnist, produzido pela Phares et Balises e pela Arte France; o segundo com roteiro e co-direção de Clara e Julia Kuperberg, produzido pela TCM Cinéma e pela Wichita Films.









Orson Welles durante as filmagens e
em cena de Cidadão Kane (1941),
sua estreia no cinema, considerado
pela crítica como um dos melhores
filmes de todos os tempos e o mais
importante dirigido por Welles,
devido à temática de crítica à
manipulação do público pelos
meios de comunicação e pelas
inovações técnicas e narrativas
que incluem o uso dramático de
ângulos de câmera e a montagem
que não segue o tempo linear.

Abaixo, Orson Welles
chegando para a sessão de estreia
de Cidadão Kane, em Nova York,
fotografado por W. Eugene Smith;
e com Carol Reed nas filmagens de
O Terceiro Homem, filme dirigido
por Reed em 1949 com Welles
no papel de protagonista











A agenda do Festival de Cannes em tributo ao criador de “Cidadão Kane”, contudo, também traz uma frustração para a legião de admiradores e estudiosos das obras-primas de Orson Welles: não está programada, ao contrário das expectativas mais otimistas, a primeira exibição de “The Other Side of the Wind”, o filme épico que consumiu a última década de vida do cineasta e que não chegou a ser concluído. É provavelmente o filme mais famoso nunca lançado – na verdade, mais um de seus vários e grandiosos projetos incompletos, entre os quais também estão suas filmagens no Brasil para o explosivo documentário “It's All True” (É Tudo Verdade), jamais concluído por Welles.

A batalha interminável pela conclusão e lançamento de “The Other Side of the Wind”, que está completando 40 anos, tem sido anunciada e sucessivamente interrompida por motivos diversos, em grande parte por questões legais que envolvem os direitos da obra e os herdeiros do cineasta, entre eles as filhas Beatrice, Chris e Rebecca Welles, além dos netos e bisnetos. Welles foi casado oficialmente três vezes: com as atrizes Virginia Nicholson (1934–1940), mãe de Chris; com Rita Hayworth (1943–1948), mãe de Rebecca; e com Paola Mori (1955–1985), mãe de Beatrice.












Orson Welles e suas quatro esposas:
acima, com Virginia Nicholson em 1938
e com Rita Hayworth em 1941 e em 1944.

Abaixo, com Paola Mori em 1955;
e com sua companheira dos
últimos anos de vida, Oja Kodar,
em 1975, durante as filmagens de
The Other Side of the Wind










Fronteiras entre realidade e ficção



Além dos casamentos oficiais, há os vários relacionamentos extraconjugais do cineasta, conhecido como conquistador de belas mulheres. Dizem os biógrafos que Welles vivia um caso de amor com a estrela Dolores Del Rio quando se apaixonou por Rita Hayworth em 1941, durante a temporada no Brasil, ao ver uma foto da atriz na revista Life. Ao retornar a Hollywood, teve início sua aproximação com Rita, com quem se casou em setembro de 1943. O casamento chegou ao fim em 1948, depois do rompimento durante as filmagens de "A Dama de Xangai".

O último e mais duradouro caso de amor de Orson Welles foi com Oja Kodar, sua companhia mais frequente nas duas últimas décadas de vida, enquanto ele ainda estava casado com Paola Mori. Atriz, modelo fotográfico, fotógrafa, escritora e roteirista nascida na Croácia,
Oja Kodar aparece na filmografia de Welles como co-argumentista e co-roteirista de “F for Fake” e de “The Other Side of the Wind”, do qual detém ainda hoje todo o material originalmente filmado por Welles e para o qual já anunciou uma parceria firmada com a plataforma Netflix para pós-produção e exibição do filme.

O projeto grandioso de “The Other Side of the Wind” contou com um elenco que incluía dezenas de nomes conhecidos do cinema, entre eles os também cineastas John Huston, Peter Bogdanovich, Dennis Hopper, Claude Chabrol e Mercedes McCambridge. Ao que se sabe, o filme traz uma história que dilui as fronteiras entre realidade e ficção, ao estilo de “Cidadão Kane” e "F for Fake", para acompanhar a festa de 75 anos de Jake Hannaford, alter-ego de Welles. No filme, o cineasta ficcional é interpretado por John Huston, que foi um dos grandes amigos na trajetória pessoal e profissional de Orson Welles.










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Orson Welles em cena: no alto,
com Rita Hayworth, em 1947, em
A Dama de Xangai. Acima, com
Jeanne Moreau, em 1967, em duas
cenas de The Deep, baseado no romance
Dead Calm”, de Charles F. Williams,
um dos vários projetos grandiosos e
inacabados do cineasta. Abaixo,
uma prosa animada entre dois gênios:
 Orson Welles e Charles Chaplin
em um bar de Los Angeles, em 1947 










Desde a estreia nos palcos, aos 17 anos, como ator e diretor de teatro, ou no grande escândalo provocado com sua versão radiofônica de “A Guerra dos Mundos”, e daí às turbulentas produções dos 13 filmes de longa-metragem que concluiu, de “Cidadão Kane” a “F for Fake”, uma grande questão perpassa todos os projetos de Orson Welles, incluindo os argumentos da maioria dos mais de 100 filmes em que participou como ator ou narrador: a denúncia contra o fascismo explícito ou dissimulado na manipulação da opinião pública através dos aparatos da mídia.

Esta grande questão, considerada uma afronta pelos grandes executivos de Hollywood desde “Cidadão Kane”, está na origem das maiores dificuldades que Welles enfrentou em seus projetos mais ambiciosos – mas também fez dele um mestre e uma referência exemplar diante de sucessivas gerações de cineastas e pensadores do cinema, dos pioneiros do Neo-Realismo italiano no pós-guerra aos lendários críticos da revista "Cahiers du Cinéma" e aos diretores da Nouvelle Vague francesa. Não por acaso, coube ao teórico do cinema, André Bazin, um dos fundadores da "Cahiers du Cinéma", o título como um dos principais biógrafos de Orson Welles.









Orson Welles em terras brasileiras:
no alto, com Vinicius de Moraes no
Cassino da Urca. Acima, proseando
com Dorival Caymmi, que havia sido
contratado para compor as canções da
trilha sonora para o filme It's All True.

Abaixo, Welles desembarcando no Brasil
e passeando na praia de Copacabana,
 no Rio de Janeiro, durante o Carnaval de
1942; no Cassino da Urca, sendo apresentado
à estrela Linda Batista, com quem teve um
breve romance; filmando os foliões nas rua e
flagrado
em um baile popular; em uma entrevista
coletiva 
no Copacabana Palacetambém no
Rio de Janeiro, fotografado para um
a reportagem
da 
revista O Cruzeiro; e os flagrantes de Welles
com a equipe de It's All True durante as
filmagens em Fortaleza, registrados pelo
fotógrafo Chico Albuquerque (1917-2000).
Também abaixo, o músico Arrigo Barnabé
no papel de Orson Welles em cena de
"Nem tudo é verdade"filme realizado
em 1985 por Rogério Sganzerla
























Orson Welles no Brasil



O reconhecimento a Welles como cineasta mais importante de todos os tempos também vem dos nomes mais importantes do cinema do “Terceiro Mundo” – entre eles os brasileiros Paulo Emílio Salles Gomes, Vinicius de Moraes (que durante anos foi crítico de cinema e conviveu com Welles desde 1940, quando Vinicius atuou como Adido Diplomático em Los Angeles), bem como para Glauber Rocha, para Rogério Sganzerla e para os demais protagonistas do Cinema Novo no Brasil.

Vinicius de Moraes dedicou ao cinema de Orson Welles textos que são elogios incondicionais, publicados nas décadas de 1940 e 1950 nos jornais “Última Hora” e “A Manhã” e nas revistas “Diretrizes” e “Sombra”. O mesmo se dá com o principal pensador do cinema no Brasil, Paulo Emílio Sales Gomes, que dedica à importância de Orson Welles um autêntico dossiê em dezenas de crônicas publicadas nas décadas de 1950 e 1960, no jornal “Estado de São Paulo”, e posteriormente reunidas nos dois volumes de “Crítica de Cinema no Suplemento Literário” (Editora Paz e Terra, 1982).













Entre os cineastas do Brasil, o prestígio de Orson Welles também foi destacado em longos e poéticos ensaios de Glauber Rocha, que antes de cineasta foi crítico de cinema do “Diário de Notícias” e do “Jornal do Brasil”. Welles e “Cidadão Kane”, segundo Glauber, também foram a referência confessa para “Terra em Transe” (1967), uma das principais obras-primas do cinema brasileiro. “Se Eisenstein foi o maior intérprete da revolução soviética”, escreve Glauber no livro “O Século do Cinema” (Cosac Naify, 2006), “Orson Welles é o maior intérprete da tragédia imperialista”.

Além de Glauber, há ainda Rogério Sganzerla, que dedicou ao cinema de Orson Welles, e à sua tumultuada passagem pelo Brasil, quatro filmes: “Nem Tudo é Verdade” (1986), “A Linguagem de Orson Welles” (1991), “Tudo é Brasil” (1998) e “O Signo do Caos” (2003). A influência de Welles sobre a obra de Sganzerla impressiona pelas questões de forma e conteúdo – presentes já em seu filme de estreia, “O Bandido da Luz Vermelha” (1969), que faz uma paráfrase permanente ao tom épico de “Cidadão Kane” e é apresentado como narração radiofônica – não por acaso remetendo ao tom alarmante de Welles em sua versão para o rádio de “A Guerra dos Mundos”.




















Papéis verdadeiros



Para Orson Welles, segundo informa o ensaio biográfico escrito em 1950 por André Bazin (publicado no Brasil com o título “Orson Welles" pela Editora Jorge Zahar, em 2005), as filmagens no Brasil representavam uma parte importante da visão progressista do cineasta sobre a cultura afrodescendente – que teve início com o trabalho de Welles nos palcos da Broadway, em 1936, especialmente na montagem de “Macbeth”, de Shakeaspeare, transferindo a ação da Escócia para o Haiti, com as bruxas transformadas em feiticeiros do Vodu e um elenco formado somente por atores negros, com a presença de músicos haitianos no palco.

Nosso objetivo não era extravagante”, descreve Welles a Bazin. “Queríamos dar a artistas negros a oportunidade de interpretar papéis que fossem papéis verdadeiros, em vez de confiná-los nos eternos personagens de babás de touca ou tios Tom”. A abordagem da cultura afrodescendente por Orson Welles, destaca Bazin, seria também o centro de outras duas de suas obras monumentais, mas infelizmente inacabadas: a adaptação do romance “Coração das trevas”, de Joseph Conrad, cujo argumento seria depois transformado no “Apocalipse Now” (1979) de Francis Ford Coppola, e o documentário “It’s All True”, filmado no Brasil, em 1942, mas que teve a produção bruscamente interrompida naquele ano pelos executivos dos estúdios RKO. 











Revoluções de Orson Welles: no alto,
Welles com Oja Kodar durante as filmagens
do inacabado The Other Side of the Wind,
seu último projeto, com participação de seus
amigos, entre eles os cineastas John Huston
Peter Bogdanovich (acima).

Abaixo, Welles, Oja Kodar e Gary Graves
durante a temporada das filmagens de
The Other Side of the Windencontro
registrado por outro grande amigo de
Welles, o fotógrafo Frank Marshall
  





 
Orson Welles tinha 27 anos e um contrato ambicioso com os Estúdios RKO quando veio para o Brasil em fevereiro de 1942 com a missão de realizar um filme musical sobre o samba, o carnaval e outros elementos da cultura brasileira. A missão foi organizada por Nelson Rockefeller, na época coordenador de Assuntos Interamericanos do governo dos EUA e maior acionista dos Estúdios RKO, para apoiar os esforços de guerra e de aproximação com o Brasil, que ficariam conhecidos como Política da Boa Vizinhança. Welles vinha do sucesso no teatro, da prodigiosa carreira no rádio e da explosão criativa e impactante que foi seu projeto de estreia no cinema, com “Cidadão Kane”. Em troca, como parte dos acordos entre os dois países, a maior estrela do rádio, do teatro e do cinema do Brasil, Carmen Miranda, havia sido enviada aos EUA para atuar na Broadway e em Hollywood.

Constava do projeto grandioso de Orson Welles para a Política da Boa Vizinhança a realização de três episódios previstos para o longa "It's All True": o primeiro foi filmado no México pelo segundo diretor da equipe de Welles, Norman Foster, e seria nomeado “My Friend Bonito”; o segundo e o terceiro, com títulos provisórios de “Carnaval” e “Quatro Homens numa Jangada”, teriam cenas filmadas no Rio de Janeiro e em Fortaleza. Welles também filmou em Ouro Preto, Minas Gerais, durante as celebrações da Semana Santa, e ficou encantado com os rituais católicos nos cenários barrocos, que sugeriam uma viagem no tempo, e pelo emaranhado de ladeiras da cidade com calçamento de pedra.

Apesar do entusiasmo de Welles e de sua equipe pelo projeto, o desfecho foi melancólico.
Welles gastou muito mais dinheiro que o previsto, esgotou todos os cronogramas e acabou mudando completamente o projeto inicial, por conta própria. Ao invés de filmar um documentário espetacular sobre o samba e o carnaval carioca, concentrou todos os esforços e verbas para acompanhar e reconstituir a viagem de 61 dias de quatro jangadeiros que foram de Fortaleza ao Rio de Janeiro para chamar a atenção do então presidente Getúlio Vargas para os problemas trabalhistas dos pescadores.












Orson Welles na Europa: no alto,
em visita a Paris, em 1952, para o
lançamento de seu filme Othelo
fotografado por Fred Brommet.
Acima, com o escritor e cineasta
Pier Paolo Pasolini, em 1962, na
Itália, durante as filmagens de
A Ricota, filme com roteiro e
direção de Pasolini e participação
de Welles como ator. Abaixo,
Welles em Paris, em 1962, com
o ator Anthony Perkins, nas
filmagens de O Processo,
adaptação de Welles para
o conto de Franz Kafka




 


Grandioso, porém inacabado



Mas algo desastroso ocorreu durante a produção de "It's All True" e deflagrou a tragédia. No período das filmagens da reconstituição da travessia pelo mar de Fortaleza para o Rio de Janeiro, numa tarde chuvosa, um dos jangadeiros conhecido como Jacaré recusou-se a sair ao mar para gravar por questões de segurança. Orson Welles insistiu e ofereceu um cachê maior ao jangadeiro, que no final acabou aceitando. Durante a viagem, a jangada virou, jogando os jangadeiros ao mar e Jacaré desapareceu. Seu corpo foi encontrado dias depois, quase irreconhecível, devorado por tubarões.

Abalado pelas dificuldades e ameaçado pelos estúdios, Welles ainda filmou várias sequências com pescadores e cenas poéticas com os belos cenários de cartões postais do Nordeste do Brasil, fez a viagem imprevista para filmar em Ouro Preto, visitou os morros cariocas e participou de reuniões com as principais lideranças políticas de esquerda, antes de voltar para os EUA, onde seguiria sua carreira cada vez mais polêmica, radical e conturbada. As centenas de rolos filmados no Brasil terminaram extraviadas e nunca seriam editadas por ele.






Orson Welles em cena: acima,
durante as filmagens de Chimes at
Midnight, em 1964, fotografado
por Nicolas Tikhomiroff. Abaixo,
Welles filmando The Black Rose 
no Marrocos, em 1948,
fotografado por Robert Capa







Tal como uma ficção que tivesse sido imaginada pelo gênio de Orson Welles, “It's All True” foi dado como definitivamente perdido durante décadas, até que os rolos de filme foram encontrados em um antigo depósito de Hollywood em 1990. O material então foi editado e transformado em um filme lançado em 1993 que é pura metalinguagem: um documentário sobre o documentário apaixonado que Welles filmou no Brasil e não conseguiu finalizar. “It's All True” e suas imagens tão belas quanto melancólicas, editadas à revelia do cineasta, vem completar a lista de seus projetos grandiosos e inacabados, junto a suas adaptações épicas para “Moby Dick”, “O Coração das Trevas”, “Don Quixote” e  também “The Other Side of the Wind”, entre outras.



Um aventureiro legítimo



Sobre a temporada de Orson Welles no Brasil e sobre a importância das revoluções provocadas pelo cinema que ele produziu, vale lembrar as palavras de Vinicius de Moraes em uma crônica publicada ainda na década de 1940 no jornal “A Manhã” e incluída em "O Cinema de Meus Olhos", coletânea publicada em livro em 1992 pela Companhia das Letras com os textos que Vinicius dedicou ao cinema: “É preciso confiar em Orson Welles. Tudo o que há de perigoso nesse homem, na sua arte, na sua violência, na sua crítica, no seu desmando, é necessário à cultura de um novo cinema que nasce (…). Welles aí está, impuro, manchado de astúcia, de fraude muitas vezes, um aventureiro legítimo”.






O último filme lançado por Orson Welles:
F for Fake (no Brasil, “Verdades e 
Mentiras"), mistura de autobiografia com
documentário e ficção que aborda as
verdades e falsificações da arte – uma
brincadeira de gênio, com Welles
como apresentador e protagonista
e com participação de Oja Kodar e
Joseph Cotten, ator de Cidadão Kane
e da maioria dos filmes que Welles
realizou. Abaixo, Welles filma Oja Kodar,
sua companheira nas duas últimas
décadas de vida, e o cartaz original
para o lançamento de It's All True







O jovem Vinicius de Moraes, que mais tarde seria celebrado como referência na cultura brasileira como poeta, cantor, compositor, havia percebido que Orson Welles trazia outra coisa além do cinema tradicional, algo novo, talvez a Grande Arte – mesmo constatando que, em sua época, em tempos de guerra, ninguém andava mais em busca de arte, nem de crítica.

“De arte está o mundo cheio, dessa arte artística de contornos exatos e estética determinada, que se faz sem sofrimento. Orson Welles traz-nos uma natureza persuasiva, que não se vexa da própria sordidez e sabe-se com prazer no espetáculo da grandeza e da miséria da vida”, conclui. Para o jovem Vinicius, como para o genial Orson Welles, a grande arte é, inevitavelmente, uma imitação da vida. Ou seria o contrário?


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Revoluções de Orson Welles. In: Blog Semióticas, 6 de junho de 2015. Disponível no link: http://semioticas1.blogspot.com/2015/05/revolucoes-de-orson-welles.html (acessado em .../.../...).




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No alto, Orson Welles em sua última imagem,
fotografado por Michael O'Neill em maio de 1985.
Acima, o cineasta no papel dele mesmo
em cena do filme "F for Fake". Abaixo,
uma rara
fotografia que registra o encontro histórico do
presidente Getúlio Vargas com Orson Welles,
em Petrópolis, 1942. Aos biógrafos, Welles confessou
que Vargas foi muito gentil, ouviu sobre o projeto
de filmagens com muita atenção e ofereceu café:
“Fiquei envergonhado de responder que eu não
gostava de café, então aceitei e bebi”










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