30 de setembro de 2025

Fotografia no estilo humanista

 
 



Faço fotografias para registrar o acaso mais efêmero,

para manter uma imagem de algo que vai desaparecer,

gestos, atitudes, objetos que são lembretes de nossas

vidas tão breves. A câmera encontra cada um deles e

os registra no momento em que eles desaparecem.

–– Sabine Weiss.  


Trata-se de um autêntico resumo da ópera: uma seleção de imagens clássicas da melhor fotografia humanista feita em meados do século 20. A seleção foi produzida pela Peter Fetterman Gallery, de Santa Mônica, Califórnia, a partir do extenso acervo de um grupo de fotógrafos que há décadas permanece em destaque na lista dos nomes mais célebres na história da fotografia. A exposição, presencial e também apresentada no formato on-line, foi nomeada “Nouvelle Vague: fotografia francesa das décadas de 1950 e 1960”, oferecendo ao visitante um vislumbre fascinante sobre a fotografia do século 20 e homenageando, por meio da amostragem, o legado duradouro do movimento humanista que remodelou a cultura visual contemporânea a partir da Segunda Guerra Mundial.

Todos os integrantes do grupo são fotógrafos lendários: Henri Cartier-Bresson (1908-2004), Raymond Cauchetier (1920-2021), Edouard Boubat (1923-1999), Jean-Philippe Charbonnier (1921-2004), Robert Doisneau (1912-1994), Willy Ronis (1910-2009), Marc Riboud (1923-2016), Louis Stettner (1922-2016), Bruce Davidson (nascido em 1933), Georges Dambier (1925-2011), Herman Leonard (1923-2010) e quatro mulheres de grande importância no período, Sabine Weiss (1924-2021), Janine Niépce (1921-2007), Lilian Bassman (1917-2012) e Dorothy Bohm (1924-2023). Inspirados pelo movimento humanista francês que teve início na década de 1930, o grupo de fotógrafos criou um estilo distinto no cenário da fotografia e do fotojornalismo, unindo questões de realismo e de lirismo ao capturar imagens de momentos espontâneos e da intimidade de personagens anônimos na vida cotidiana, com notável sensibilidade e uma incomparável profundidade poética. Todas as fotos selecionadas têm como cenário a cidade de Paris.








Fotografia no estilo humanista: no alto da página
e acima, Duas meninas em Maubert
(Paris, 1952)
A noiva, Igreja de Saint Roch
(Paris, 1952),
fotografias de
Edouard Boubat. Também acima,
Babás puxando carrinhos de bebê no parque,
fotografia de 1960 de Bruce Davidson.

Abaixo, fotografias de Raymond Cauchetier
durante as filmagens de
Jules et Jim, filme de
1962 de
François Truffaut, com Jeanne Moreau,
Oskar Werner, Henri Serre, Truffaut e equipe na
cena da corrida na ponte; e um flagrante descontraído
na filmagens com Truffaut e Jeanne Moreau.

Todas as fotografias nesta postagem fazem parte
do catálogo da exposição
Nouvelle Vague,
exceto quando houver indicação na legenda










Sutilezas da condição humana


Vem destas características, compartilhadas no trabalho de todos os fotógrafos da seleção, um certo olhar de empatia pelas sutilezas da condição humana – aspecto que justifica o termo “humanismo” associado ao estilo e ao movimento em questão, marcado desde a origem por valores fundamentais da dignidade, da compaixão e da autenticidade. As fotografias em exposição foram publicadas nos principais jornais e revistas da época, entre eles “Berliner Illustrirte Zeitung”, “Vu”, “Point de Vue”, “Regards”, “L’Espresso”, “Paris Match”, “Picture Post”, “Life”, “Look”, “Time”, Vogue”, “Elle”, Harper’s Bazaar”, “Le Monde Illustré” e “Plaisir de France” – no Brasil, também nas décadas de 1950 e 1960, ensaios fotográficos e fotorreportagens de fotógrafos nacionais e estrangeiros, muitas vezes em fotografias publicadas apenas com legendas, ou em fotolegendas, sem textos de reportagem, surgiam em destaque, estampados principalmente no “Jornal do Brasil” e nas revistas “O Cruzeiro”, “Realidade”, “Fatos & Fotos” e “Manchete”.








Fotografia no estilo humanista: no alto,
J
ardin des Tuileries em duas fotografias
de 1953 de
Dorothy Bohm. Abaixo,
duas fotografias de
Georges Dambier,
Suzy Parker, Etole leopard (Paris, 1952) e
Sophie Litvak, Avenue Messine (Paris, 1953)











Outro veículo privilegiado para a publicação e circulação da produção fotográfica no período selecionado pela exposição, as décadas de 1950 e 1960, foi a edição cada vez mais frequente de fotolivros. Com seu surgimento a partir da década de 1920, e com o avanço nas técnicas de artes gráficas, que também trouxeram mais qualidade para a edição das revistas ilustradas, os fotolivros começaram a ganhar espaço e a representar uma evolução na experiência de livros ilustrados com fotografias. No fotolivro, fotografias ampliadas passaram a ocupar a quase totalidade das páginas, na maioria das vezes seguidas apenas de legendas ou de poucos textos descritivos, na forma de pequenos artigos ou de breves ensaios, com a edição muitas vezes dedicada à obra temática de um único fotógrafo.


A estética nostálgica


Na atualidade, quando se completam 100 anos das primeiras edições de fotolivros, veículos privilegiados que tornaram mais conhecido o trabalho de vários fotógrafos da exposição, a maior parte das fotografias selecionadas permanece continuamente reproduzida, na imprensa, em sites e nas redes sociais da internet, seja por sua estética nostálgica ou sua importância documental, inspirando gerações de fotógrafos e artistas. O cinema e o mundo da moda, que continuam a atrair a atenção do grande público, também foram veículos que tornaram conhecidos o nome de vários fotógrafos, não só nos registros de astros e estrelas em eventos oficiais, mas também nos bastidores de filmagens e nos trabalhos de produção que antecediam os grandes lançamentos e apresentações.








Fotografia no estilo humanista: no alto e
acima, duas fotografias de Raymond Cauchetier
nas filmagens de
“Acossado”, filme de 1959 de
J
ean-Luc Godard; na primeira, Godard dirige
Jean Seberg; na segunda, uma cena do beijo
de
Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg.

Abaixo, duas fotos de
Robert Doisneau,
Le Baiser Blotto
(Paris, 1950) e
Le Manege de Mr. Barre (Paris, 1955)









No grupo de fotógrafos selecionados, alguns tiveram uma relação mais orgânica com os bastidores da alta costura e com as cenas de filmagens. Sabine Weiss, Janine Niepce, Lilian Bassman e Dorothy Bohm, embora tenham se dedicado também ao fotojornalismo e a uma pauta temática extensa na cobertura de acontecimentos, que vão da crônica de notícias diárias aos retratos de personalidades da cultura e da política, surgem nas fotos em exposição em flagrantes relacionados aos desfiles de estações e ao trabalho dos célebres estilistas das grifes Chanel, Dior, Patou, Saint Laurent e outros. Nas ocasiões em que elas buscam a poética das ruas, os registros têm sempre detalhes que surpreendem e encontram um certo "punctum" da imagem fotográfica, aquele "algo mais" que eleva a fotografia do banal ao sublime, sobre o qual Roland Barthes escreveu um livro célebre e definitivo, "A Câmara Clara", de 1980.









Fotografia no estilo humanista: no alto
e acima, Cais Malaquais (Paris, 1953) e
Os amantes da Bastilha (Paris, 1957),
duas fotografias de
Willy Ronis.

Abaixo,
Albervilliers, (Paris, 1949) e
Atravessando o Sena, mãe e filho (Paris, 1950),
duas fotografias de
Louis Strettner










Um Balzac da câmera


Nos flagrantes de filmagens naquele período, o nome mais presente é Raymond Cauchetier, o fotógrafo que acompanhou as primeiras filmagens de novatos como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Demy, no que viria a ser um movimento dos mais influentes no cinema, a “Nouvelle Vague”, que não por acaso está no título da exposição organizada pela Peter Fetterman Gallery. Nos registros de Cauchetier, as primeiras cenas sob o comando de estreantes no cinema não surgem como imagens feitas sob encomenda, exclusivamente publicitárias, mas sim como testemunhos sobre métodos herodoxos de jovens cineastas que criaram obras-primas, somente reconhecidas como tal anos depois.








Fotografia no estilo humanista: acima,
Jardin du Luxembourg
(Paris, 1956) e
La 2CV (Paris, 1957), duas fotografias
de
Sabine Weiss. Abaixo, Marche, mode,
fotografia de 1948 de
Willy Ronis






No ensaio que apresenta a exposição, indicações sobre os antecedentes que foram referência para a maioria dos fotógrafos selecionados. Tais referências estão localizadas principalmente na arte e no estilo de cinco fotógrafos: nos flagrantes que Eugène Atget (1857-1927) registrou em fotografias sobre as ruas desertas de Paris, que levou Berenice Abbott a chamá-lo de “um Balzac da câmera”; nas contribuições inovadoras da composição fotográfica, nos ângulos incomuns de câmera e no estilo provocador de nomes como os húngaros André Kertész (1894-1985) e Brassaï, pseudônimo de Gyula Halász (1899-1984); e nas concepções de composição da imagem fotográfica de dois fotógrafos, artistas e curadores em diversas modalidades de arte, Alfred Stieglitz (1864-1946), nascido nos EUA, e Edward Steichen (1879-1973), nascido em Luxemburgo.


A Família do Homem


Sobre Edward Steichen, pode-se dizer que ele surge como referência para os fotógrafos selecionados e também como antecedente no formato adotado pela presente exposição, uma vez que todos os fotógrafos da seleção também estiveram presentes em “A Família do Homem” (The Family Man), uma monumental exposição que tornou-se um acontecimento histórico. A exposição que marcou época teve curadoria de Steichen, na época diretor do departamento de fotografia do MoMA, foi realizada em 1955 e depois editada no formato fotolivro, reunindo 503 fotografias de 273 fotógrafos (sendo 40 fotógrafas) de 68 países. O Brasil esteve representado por Pierre Verger, nascido na França e naturalizado brasileiro.








Fotografia no estilo humanista: no alto
e acima,
L'Élégante et les Colonnes Morris
(
Paris, 1950) e Bal champêtre à la cité universitaire
de Paris
(1962), duas fotografias de Janine Niépce.
Abaixo, uma imagem da coleção outono/inverno da
Maison Dior
em 1958, fotografia de Sabine Weiss.

No final da página, a capa e duas páginas
do fotolivro de 1955 A Família do Homem,
que reuniu o acervo da exposição
organizada por 
Edward Steichen







“A Família do Homem”, modelo para todas as grandes exposições de fotografia realizadas desde então, foi apresentada primeiro no MoMA, em Nova York, e em seguida em museus de outros países, no decorrer de uma década, sempre com recordes de público, totalizando mais de 10 milhões de visitantes. Alguns historiadores da arte consideram que a fotografia humanista, e de forma especial o acervo reunido com “A Família do Homem”, foram fundamentais para elevar a fotografia ao patamar de arte colecionável e peça valorizada no acervo dos grandes museus.

Steichen, em sua autobiografia (“Uma vida na fotografia”, publicada em 1963), declarou sobre o sucesso do projeto monumental do qual ele foi idealizador e curador: “As pessoas na plateia olhavam para as fotos, e as pessoas nas fotos olhavam de volta para elas. Elas se reconheciam.” Lembrando as palavras de seu mestre Edward Steichen e a metáfora poética da fotografia como espelho, Sabine Weiss escreveu, em um artigo autobiográfico para uma retrospectiva sobre sua obra autoral no Museu do Louvre, na década de 1990, que todas as fotografias, e a fotografia humanista de modo particular, são lembretes para ninguém esquecer que nossas vidas são tão breves e tão passageiras.

por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fotografia no estilo humanista. In: Blog Semióticas, 30 de setembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/09/fotografia-no-estilo-humanista.html (acesso em .../.../…).

 

Para uma visita virtual à exposição da  Peter Fetterman Gallery,  clique aqui. 




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