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27 de março de 2024

Retratos clandestinos de Helen Levitt

 




Durante grande parte dos quase dois séculos da história da fotografia, as mulheres tiveram pouco espaço no trabalho por trás das câmeras, mas com o passar do tempo foram expandindo seus papéis e experimentando cada vez mais os diversos aspectos do aparato fotográfico. Atualmente, qualquer seleção ou recorte sobre a história da fotografia tem, necessariamente, destaque para mulheres que atuaram ou atuam nas variadas frentes dos registros fotográficos no passado ou no presente. Desde os primeiros tempos da imagem fotográfica, a presença feminina no domínio da técnica esteve presente, porém mais como exceção do que como regra, como se comprova nos registros sobre nomes como Constance Talbot (1811-1880), primeira mulher a tirar uma fotografia, ou Ann Cook (1796-1870), primeira fotógrafa a abrir um estúdio de retratos.

Entre as fotógrafas mais importantes que atuaram de forma marcante em todos os campos da fotografia no século 19, ou que nasceram no Oitocentos, também têm destaque nomes como Anna Atkins (1799-1871), Julia Margaret Cameron (1815-1879), Shima Ryü (1823-1900), Gertrude Käsebier (1854-1934), Frances Johnston (1864-1952), Alice Austen (1866-1952), Lady Ottoline Morrell (1873-1938), Harriet Chalmers Adams (1875-1937), Imogen Cunningham (1883-1976), Florence Henri (1893-1952), Claude Cahun (1894-1954), Lucia Moholy (1894-1989), Dorothea Lange (1895-1965), Tina Modotti (1896-1942), Germaine Krull (1897-1985), Berenice Abbott (1898-1991) e Ilse Bing (1899-1998), entre outras, incluindo aquelas que realizaram trabalhos importantes de forma pioneira na fotografia, mas que permanecem no anonimato, porque, por motivos diversos, não tiveram seus nomes registrados pela história oficial.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto, crianças

dançando nas ruas de Nova York, fotografia de 1940.

Acima, mãe e filha (1939) e a família na janela (1940).

Abaixo, Helen Levitt em autorretrato (circa de 1950)

e duas meninas brincando com giz na calçada (1940).

Todas as fotografias reproduzidas nesta página fazem

parte do catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”,

apresentada na Photoghapher’s Gallery de Londres








No Brasil, de acordo com o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro – Fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), de Boris Kossoy, publicado pelo Instituto Moreira Salles em 2002, entre centenas de fotógrafos que atuaram naquele período também há algumas mulheres que tiveram um papel pioneiro da maior importância, entre elas Fanny Volk, que atuou no Paraná; Hermina de Carvalho Menna da Costa, em Pernambuco; Leocadia Amoretti e Madame Lavenue, no Rio de Janeiro; Madame Reeckel, no Rio Grande do Sul; Maria Brasilina de Magalhães Faria, no Espírito Santo; Maria Izabel da Rocha, em Sergipe; e Roza Augusta, na Paraíba. Em São Paulo, Gioconda Rizzo (1897-2004), descendente de italianos, foi uma das primeiras mulheres a atuar como fotógrafa e a primeira a abrir um estúdio fotográfico, a Photo Femina, em 1914; e Elvira Pastore (1876-1972), casada com Vicenzo Pastore (1865-1918), ambos italianos, dividia com o marido todo o trabalho no estúdio fotográfico que abriram em São Paulo em 1900.

No século 20, a presença e a importância de mulheres na fotografia têm aumento qualitativo e quantitativo, incluindo a presença de mulheres fazendo a cobertura em cenários de guerra, como Gerda Taro (1910-1937) na Guerra Civil Espanhola e Margaret Bourke-White (1904-1971) na Segunda Guerra Mundial. Mulheres exercem o papel de fotógrafas também nos movimentos de vanguarda, desde o começo do século passado, registrando paisagens e temas abstratos, nudez, cenas urbanas, retratos de famosos e de anônimos, muitas delas com premiações importantes e destaque na imprensa e no mundo das artes que antes era restrito aos homens. Entre elas estão Lisette Model (1901-1983), Lola Alvarez Bravo (1903-1993), Dora Maar (1907-1997), Lee Miller (1907-1977), Ruth Gruber (1911-2016), Eve Arnold (1912-2012) e Inge Morath (1923-2002), além de nomes contemporâneos importantes como Rineke Dijkstra, Roni Horn, Diane Arbus, Nan Goldin, Annie Griffiths, Cindy Sherman, Annie Leibovitz, Kiki Smith, Carrie Mae Weems, Carol Guzy, Catherine Leroy. Há também as grandes fotógrafas que atuam no Brasil, como Claudia Andujar (nascida na Suíça), Maureen Bisilliat (nascida na Inglaterra), Nair Benedicto e mais uma lista extensa que inclui veteranas do ofício e nomes da nova geração.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

duas crianças na janela, fotografia de 1939.

Acima, crianças brincando na calçada (1940).

Abaixo, a família (1945) e casal improvável (1941)









Uma poesia visual


Nesta legião de fotógrafas, um dos destaques inevitáveis é a norte-americana Helen Levitt (1913-2009), com seu trabalho com as câmeras que atravessou todo o século 20 e atuou em todas as frentes e temáticas da fotografia de arte e do fotojornalismo. Descendente de imigrantes judeus-russos, Helen Levitt nasceu em Nova York – cidade que, com seus personagens e suas ruas, foi cenário da maioria de suas fotografias de 1930 até sua aposentadoria, no final da década de 1990, o que levou Susan Sontag, sua admiradora de longa data, a definir as imagens de Helen Levitt como “uma poesia visual sobre Nova York”.

Neste século 21, depois que Helen Levitt morreu, aos 95 anos, em 2009, grandes retrospectivas temáticas sobre sua obra foram organizadas no Festival PhotoEspaña em Madri e também na Fundação Cartier-Bresson em Paris, no Sprengel Museum em Hannover, no Albertina Museum em Viena, no Fotografiemuseum de Amsterdã e no Festival de Fotografia de Arles (no sul da França), entre outras exposições importantes que tiveram as imagens de Levitt como tema. A retrospectiva mais abrangente, que cobre toda a pauta temática de sua trajetória de 70 anos dedicados à fotografia, foi aberta em 2022 na Photographer’s Gallery de Londres, nomeada como “Helen Levitt: in the street”.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

as amigas, fotografia de 1941. Acima, os irmãos (1944).

Abaixo, um gato (1945) e retrato de Walker Evans (1940)










De todos os aspectos que sobressaem quando se observa um conjunto de fotografias de Helen Levitt, o lúdico talvez seja o mais marcante – ainda que o grande fotógrafo das questões sociais nos Estados Unidos, Walker Evans (1993-1995), seja reconhecido por ela como sua maior influência. O lúdico e o poético nas imagens de Helen Levitt talvez tenha uma relação mais direta com as fotografias humanistas de outros dois mestres, os franceses Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e Robert Doisneau (1912-1994). O fato de Levitt creditar Walker Evans como sua maior influência por certo vem de coincidências biográficas: quando circulavam as primeiras fotografias de Evans mostrando cenas dramáticas e extremamente realistas de agricultores pobres do sul dos Estados Unidos, no período da Grande Depressão, Levitt começava a trabalhar com fotografia, como assistente em um estúdio comercial no Bronx. Evans, naquele período, havia sido contratado pela Farm Security Administration, agência federal criada pelo governo do presidente Franklin Roosevelt, e suas fotografias publicadas por jornais e revistas causaram uma grande comoção.

Na mesma época, no começo dos anos 1930, a jovem Helen Levitt participava de vários grupos de ativistas e sindicalistas e um dos principais líderes, Sid Grossman, também fotógrafo e fundador da cooperativa Photo League, pedia a jornalistas e fotógrafos mais atenção aos trabalhadores e aos movimentos sociais como consciência de classe – conforme ela declarou em uma de suas raras entrevistas, à National Public Radio, reproduzida no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”. “Eu decidi que deveria tirar fotos de pessoas da classe trabalhadora e assim dar minha contribuição verdadeira para os movimentos sociais que estavam se organizando”, afirmou Levitt. Ela era descrita por seus parceiros de trabalho como uma pessoa extremamente gentil e simpática, mas muito tímida, com poucos amigos, que nunca se casou e morou a vida inteira em Nova York, no mesmo apartamento, com curtos intervalos de uma temporada que passou no México, em 1941, e outra em viagem pela Europa, no final da década de 1950, depois que conseguiu uma bolsa de financiamento da Fundação Guggenheim.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: acima,

crianças no Halloween (1940) e fumantes (1940).

Abaixo, à procura de um táxi urgentemente (1982)






A temática das ruas


Na retrospectiva que ocupou todos os salões e corredores dos dois andares da Photographer’s Gallery de Londres, centenas de fotografias que Helen Levitt produziu, durante mais de 70 anos, com sua câmera Leica de 35 mm, foram selecionadas em torno de três núcleos temáticos: as ruas, as cenas do metrô e as experiências com os filmes coloridos, nas quais ela foi uma das pioneiras entre fotojornalistas. Na temática das ruas, pela qual ela é mais amplamente conhecida, estão registrados personagens e cenários de sua vizinhança em Nova York, incluindo o Lower East Side de Manhattan, o Bronx e o perímetro espanhol do Harlem. Na maioria das imagens, as crianças são o centro da atenção de Helen Levitt, em flagrantes poéticos de jogos e brincadeiras e também distraídas, observando algo que está fora do enquadramento da fotografia, como se a fotógrafa estivesse em atitude clandestina e sua presença não fosse notada pelos personagens em cena.







Retratos clandestinos de Helen Levitt:

acima, retratos no metrô em 1978 e 1973.

Abaixo, retratos no metrô em 1975 e 1978.


No final da página, amigas saindo de férias (1973),

a loja de doces (1971), a cabine telefônica (1988)

e menina procurando algo (1980)








A citada influência marcante de Walker Evans torna-se mais evidente com as fotografias feitas por Helen Levitt no metrô de Nova York. São personagens anônimos, que remetem às célebres fotografias que Evans capturou no mesmo cenário, quando viajava quase diariamente no metrô, vestindo um sobretudo sob o qual ocultava sua câmera Contax de 35 mm., entre fevereiro de 1936 e janeiro de 1941. As fotografias de Evans no metrô (Veja mais em: Semióticas – Homens ilustres), que foram apresentadas em uma exposição que marcou época, no pós-guerra, e depois publicadas no fotolivro Many are called (Muitos são chamados), reeditado em 2004 pela Yale University Press, também influenciaram o jovem Stanley Kubrick, que trabalhou durante anos como fotojornalista em Nova York antes de se tornar cineasta (Veja mais em: Semióticas – Kubrick no Metrô).

Helen Levitt teve a oportunidade de acompanhar, em 1938, algumas viagens de trabalho de seu mentor Walker Evans fotografando anônimos no metrô de Nova York e, nos anos e nas décadas seguintes, repetiu por diversas vezes a experiência de fotografar os passageiros, também em anonimato, com seu próprio estilo e seu equipamento mais modesto. Uma seleção destas fotografias foi apresentada pela primeira vez em 1991, em uma exposição no Metropolitan Museum de Nova York (MOMa) e, em 2017, foi reunida no fotolivro Manhattan Transit: The Subway Photographs of Helen Levitt (‎Walther König Editions).

No terceiro grupo temático da exposição “In the street”, onde estão amostragens das experiências de Helen Levitt com as fotografias coloridas, produzidas a partir da década de 1960, também estão selecionadas as imagens que provocam com mais intensidade o senso de humor e algum estranhamento do observador. Algumas cenas têm mesmo um certo apelo surrealista, ainda que sejam registros poéticos sobre a vida que a fotógrafa continuava a encontrar nas ruas de Nova York. Há crianças brincando, casais de namorados, maridos e esposas, mães com seus bebês, mulheres indo e vindo, velhos solitários, pessoas comuns.

Em uma das fotografias coloridas, uma mulher de vestido azul florido está usando o telefone público e ocupa todo o espaço da cabine, em uma esquina, enquanto duas crianças, possivelmente seus filhos, estão espremidas contra as paredes de vidro, uma de cada lado. Parece que cada fotografia de Helen Levitt conta uma história repleta de detalhes. A maioria de suas imagens coloridas, para as quais ela dedicou toda a atenção em seus últimos anos de atuação, nunca foi publicada em livro, mas esteve presente nas retrospectivas que celebraram, nos últimos anos, seu olhar personalíssimo que conquistou legiões de seguidores na arte da fotografia.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos clandestinos de Helen Levitt. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/03/retratos-clandestinos-de-helen-levitt.html (acessado em .../.../…).



 
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5 de janeiro de 2012

Homens ilustres





Muitas vezes me perguntam como um fotógrafo supera o medo e a

inquietação que muitas pessoas têm de se deparar com uma câmera,

e apenas digo que qualquer pessoa sensível é incomodada por uma

coisa dessas, a menos que o motivo seja tão forte –– e a crença no

que ela esteja fazendo também seja tão forte que isso realmente

não importa. O importante é fazer a foto.


–– Walker Evans (1903-1975).   

                                                                                                                                                                                
Há reportagens e há livros que têm o mérito de transcender a época em que foram publicados e, com o passar dos anos, ganham a condição de capítulos importantes da História. No Brasil, foi assim com as reportagens que Euclides da Cunha (1866-1909) fez no interior da Bahia sobre a Guerra de Canudos, em 1897, depois reunidas em "Os Sertões" (1902), um daqueles livros que merecem o adjetivo "emblemático". Também fizeram História, entre outras, a série de matérias e fotografias sobre a fome no Nordeste brasileiro, publicadas a partir da década de 1940, na revista "O Cruzeiro", pelo repórter David Nasser e pelo fotógrafo Jean Manzon – ou ainda a célebre entrevista que Samuel Wainer fez com Getúlio Vargas para os "Diários Associados" em 1949 e que deu origem ao "queremismo", a campanha para a volta de Vargas ao cargo de presidente da República, cargo para o qual ele se candidatou e foi eleito em 1950.
Fora do Brasil, um dos trabalhos jornalísticos que marcaram época e entraram para a história do século 20 foi realizado por dois norte-americanos: o fotógrafo Walker Evans (1903-1975) e o jornalista James Rufus Agee (1909-1955). A série memorável e pioneira de reportagens produzidas por Evans e Agee na década de 1930 retratou a vida dura das famílias de agricultores e de trabalhadores nômades no sul e no sudeste dos Estados Unidos, levados à miséria pelos reflexos econômicos do "crash" de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York.
Foi o início da época depois chamada de "Grande Depressão". As reportagens da dupla Walker Evans e James Agee, comoventes e surpreendentes, foram publicadas primeiro pela revista "Fortune" e depois reproduzidas no mundo inteiro, inclusive pela revista brasileira "O Cruzeiro". Em 1941, o trabalho de Evans e Agee foi reunido em um livro que se tornou uma lendária obra de referência – "Elogiemos os Homens Ilustres", lançado agora pela primeira vez no Brasil em edição ilustrada pela Companhia das Letras.






Homens ilustres: no alto, o casal Warren Beatty e
Faye Dunaway em Bonnie & Clyde - Uma Rajada
de Balas, filme de 1967 de Arthur Penn. Acima,
a fotografia reproduzida na capa da edição nacional
do livro Elogiemos os Homens Ilustres: o agricultor
Floyd Burroughs e uma de suas filhas, Lucille,
fotografados por Walker Evans no Alabama, em 1936.

Abaixo, a família Burroughs reunida e uma seleção
das célebres fotografias que Walker Evans registrou
no interior do Alabama: cenas de um realismo brutal,
mas também pontuadas de poesia
















A série de documentação fotográfica que a dupla Walker Evans e James Agee registrou viajando pelo Sul dos EUA, entre 1935 e 1936, foi na verdade um trabalho contratado pelo governo do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt, na época interessado em criar um arquivo de imagens sobre a pobreza na região para fundamentar o trabalho de uma agência estatal. Teoricamente, o arquivo serviria ao programa social do governo para a erradicação da pobreza e a construção de uma identidade nacional – o chamado New Deal, destinado a atender segmentos menos favorecidos que ficaram ainda mais pobres com os desdobramentos do “crash” de 1929, entre eles os plantadores de algodão do Alabama.
Considerando a radical transformação da agência estatal (um serviço de assistência aos agricultores convertido poucos anos depois no Office for War Information), fica a dúvida se as fotografias e reportagens da dupla não serviriam a outro propósito – em especial o controle ideológico da população local por parte do Estado, por exemplo. Para além do uso político da pesquisa, entretanto, as imagens de Evans e os textos de Agee, desde a primeira publicação na "Fortune", foram transformados em parâmetro para o conceito do que fosse a "objetividade jornalística".


Amor em tempos de penúria


Durante quatro semanas, fotógrafo e repórter conviveram com três famílias de meeiros pobres do Alabama, numa relação tão próxima que chegaram a dormir nas choupanas miseráveis e, diz a lenda, se apaixonaram por duas das garotas pobres do lugar. O resultado final da experiência fez história e mudou os rumos do jornalismo e da fotografia, extrapolando ao extremo os limites do que era conhecido como qualidade nas matérias publicadas na imprensa e emplacando como rotina o trabalho jornalístico a quatro mãos de repórteres e fotógrafos – prática que perdura em todo o mundo nos principais veículos de imprensa até os nossos dias.

















"Estávamos deitados de costas separados por cerca de meio metro, calados, olhos abertos, ouvindo", relata James Agee em "Elogiemos os Homens Ilustres", traduzindo em um texto sofisticado, na fronteira entre o jornalismo e a melhor literatura, uma das muitas noites em que ele e o fotógrafo Walker Evans dormiram alojados com simplicidade e gentileza pelas famílias que retratavam, com um tom característico de brutal realismo, mas pontuado de poesia. 
"Seres humanos, com a ajuda de mulas, trabalhavam essa terra para que pudessem viver. A esfera de poder de uma só família humana e uma mula é pequena; e dentro dos limites de cada uma dessas pequenas esferas a essencial fragilidade humana, a chaga finalmente morta que é viver e a força indignada para não perecer, ergueram contra suas circunstâncias hostis esta casca de ferida, este abrigo para uma família e seus animais", registrou Agee. 
Se a qualidade literária dos textos foge do estilo frio e trivial das notícias tradicionais, as imagens de Evans não deixam por menos. Cada fotograma, por mais simples que pareça, à primeira vista, está carregado de emoções: cenas do trabalho no campo, casebres de madeira, rostos magros e sofridos, crianças tristes, talheres entortados guardados em buracos na parede, botinas gastas esquecidas em um canto, mães maltrapilhas, pés descalços, moscas pousadas no prato de comida.











A edição brasileira inclui 60 fotos impressionantes, em matizes de preto e branco, encartadas, antecedendo a íntegra do texto de Agee – que também pode ser lido como um ensaio brilhante sobre os limites da objetividade jornalística naquelas situações em que o repórter tem ou cria uma relação afetiva muito próxima com suas fontes. Nos anos e décadas seguintes, as reportagens de Walker Evans e James Rufus Agee sobre as vítimas da "grande depressão" provocariam revoluções no jornalismo.


Entre tigres e cavalos


 
De certa forma, a pobreza que se seguiu ao "crash" da Bolsa de Nova York deu origem a um vigoroso movimento intelectual e artístico, que se engajou em revelar e denunciar as novas e terríveis condições de vida dos agricultores da região sudeste dos Estados Unidos, que pela primeira vez eram reveladas em palavras e imagens que retratavam muita penúria. Na trilha desbravada por Evans e Agee, muitos outros escritores, fotógrafos, pesquisadores das ciências sociais e da antropologia, dramaturgos e cineastas puseram o pé na estrada para desvendar a "verdadeira América". 











Era como se as políticas assistencialistas batizadas de "New Deal", adotadas por Franklin Roosevelt (que presidiu os Estados Unidos entre 1933 e 1945, em três mandatos completos e nos meses iniciais do quarto, quando morreu), transbordassem de forma inesperada para a esfera da arte e da cultura. Produzidas no início da primeira gestão de Roosevelt no cargo de presidente do país, as fotos de Walker Evans e os textos de James Agee publicados na revista "Fortune" foram e ainda são fonte de inspiração para muitos. 

Além de divisor de águas para o "novo jornalismo", é possível perceber a influência das reportagens pioneiras de Evans e Agee em outros trabalhos que também se tornariam clássicos norte-americanos imbatíveis, caso da obra-prima do escritor John Steinbeck, “As Vinhas da Ira” (1939), romance que recebeu o prestigiado Prêmio Pulitzer em 1940 e teve peso na escolha de Steinbeck para o Prêmio Nobel de Literatura em 1962. Na ficção que mais parece um livro-reportagem, Steinbeck transporta à literatura a trágica odisseia de uma família de agricultores liderada por um herói idealista, Tom Joad, e a exploração cruel a que estavam submetidos os trabalhadores rurais, a maioria deles desempregados e nômades. As reportagens de Evans e Agee e o romance de Steinbeck, por sua vez, também dariam origem ao filme memorável que o cineasta John Ford realizou em 1940.













Homens ilustres: Henry Fonda no papel de
Tom Joad, o herói idealista que lidera a família
de agricultores durante uma sofrida jornada em
busca de sobrevivência e trabalho no filme
As Vinhas da Ira, de 1940, um clássico do
cinema em retrato emocionante sobre a pobreza
e a época da Grande Depressão, 
adaptação de
John Ford para o romance de John Steinbeck











O sucesso comercial e político alcançado pelo primeiro trabalho da dupla Evans e Agee, com seu tom emocional e dramático, a despeito da pobreza dos retratados, levaria o fotógrafo e o jornalista para outros caminhos, distantes do Alabama, na década seguinte.Walker Evans e suas fotografias em claro-escuro passariam a integrar o acervo de grandes museus, como o Museum of Modern Art (MoMa) e o Metropolitan Museum, de Nova York. Agee, por sua vez, iria tornar-se poeta, romancista premiado e roteirista de sucesso disputado pelos grandes estúdios em Hollywood. 


Levam a assinatura personalíssima de James Rufus Agee o roteiro de clássicos do cinema como "Uma Aventura na África" ("The African Queen"), que John Huston filmaria com Katharine Hepburn e Humphrey Bogart em 1951, entre outros grandes filmes. Agee também seria celebrado por seus pares como um dos mais influentes críticos de cinema que atuaram na América no século 20. Uma das várias e saborosas máximas atribuídas a ele é por certo ainda hoje exemplar: "os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução".










Homens ilustres: a dupla que marcou época com a
reportagem histórica que seria depois transformada
no livro Elogiemos os Homens Ilustres. No alto,
o fotógrafo Walker Evans (1903-1975). Acima,
seu parceiro de trabalho, o jornalista, escritor,
poeta e roteirista de filmes de Hollywood,
James Rufus Agee (1909-1955).

Abaixo, três fazendeiros do Alabama
(Frank Tengle, Bud Fields e Floyd Burroughs)
arruinados na época da Grande Depressão e
retrato de uma Vila de mineiros no Alabama,
fotografias de 1936 de Walker Evans; e os perfis do
homem médio dos EUA em Trabalhadores anônimos,
reportagem com texto de James Agee e fotografias de
Walker Evans publicada na revista Fortune em 1946
















A Grande Depressão



A primeira edição de "Elogiemos os Homens Ilustres" no Brasil coincide com o lançamento de várias outras três publicações que por outros caminhos abordam o mesmo tema. Entre elas, pelo menos três merecem destaque – o terceiro número da revista "Serrote", editada pelo Instituto Moreira Salles; o livro "A Grande Depressão - Política e Economia na Década de 1930 na Europa, Américas, África e Ásia" (editora Civilização Brasileira), organizado por Flávio Limoncic e Carlos Palomanes; e "Bonnie & Clyde – A Vida por Trás da Lenda" (editora Larousse do Brasil), de Paul Schneider, best-seller internacional que conta a vida atribulada e apaixonada de Bonnie Parker e Clyde Barrow, o casal de criminosos mais famoso dos Estados Unidos na década de 1930.

Na seções da revista "Serrote", as fotografias de Walker Evans dividem o destaque com uma seleção invejável de ensaios de e sobre nomes de primeira grandeza – Julio Cortázar, Roland Barthes, Fred Astaire, Henry James e Virginia Woolf, entre outros. Na revista, Evans aparece em outro ensaio fotográfico monumental que marcou época e que também virou parâmetro de qualidade, mas que permanecia inédito no Brasil: a edição de “Serrote” traz encartada uma seleção de 16 fotos da série que Evans produziu com passageiros do metrô e intitulada "Muitos São Chamados". A série saiu em livro pela primeira vez em 1966: homens, mulheres, jovens, crianças, casais, pessoas elegantes e imigrantes pobres surgem em imagens monocromáticas e emblemáticas da mais variada expressão.

















Homens ilustres: personagens anônimas em
viagem no metrô de Nova York. As fotografias,
feitas às escondidas por Walker Evans, seriam
publicadas posteriormente em outro livro antológico:
Many Are Called. Abaixo, três fotografias de 1936
de Walker Evans: Street scene (cena de rua), em
Nova York; outra cena de rua no Alabama;
e Hitchhiker's near Vicksburg (Mochileiros
perto de Vicksburg), da época da temporada
com James Agee no Mississippi













Entre fevereiro de 1938 e janeiro de 1941, Walker Evans viajava com frequência no metrô de Nova York, vestindo um sobretudo sob o qual ocultava uma câmera Contax de 35mm. Produziu 89 retratos impressionantes de pessoas anônimas que, na quase totalidade dos casos, estavam tão absortas na vida que sequer percebiam que naquele momento estavam sendo fotografadas.

Acompanha a seleção de fotos de "Serrote" um ensaio inspirado de Samuel Titan Jr. que defende uma tese ainda mais surpreendente. Segundo o tradutor e professor da USP, os retratos reunidos em "Muitos São Chamados" anteciparam a maioria dos traços estilísticos que ficariam conhecidos nos anos seguintes, no cinema e na literatura, como gênero "noir".


Era Vargas, Roosevelt, Bonnie & Clyde



Mais de 80 anos depois da crise econômica que abalou o mundo e tornou os pobres ainda mais pobres, o "crash" da Bolsa de Valores de Nova York e seus reflexos dramáticos pelos cinco continentes também ganham uma reflexão brasileira na série de artigos inéditos organizados por Flavio Limoncic e Francisco Carlos Palomanes Martinho. Em "A Grande Depressão", Limoncic e Palomanes reúnem extratos de teses para mostrar, tanto ao leitor comum como aos estudiosos da questão, que a perplexidade provocada pela atual crise financeira internacional não é maior que aquela deflagrada a partir de 1929. 






Até as circunstâncias históricas e o status das personalidades envolvidas têm estranhas simetrias. Basta lembrar cenas pitorescas dos presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, na década de 1930 como na atualidade. Em 1936, em visita ao Rio de Janeiro, Franklin D. Roosevelt referia-se a Getúlio Vargas, então conhecido como "pai dos pobres", com altos elogios, afirmando que Vargas era o verdadeiro inventor do "New Deal" programa criado por Roosevelt para tentar buscar uma solução para reduzir a pobreza e aplacar a crise agrícola dos Estados Unidos, durante o período da Grande Depressão, e que tornou-se um baluarte de recuperação da economia norte-americana.
Duas pessoas inventaram o New Deal: o presidente do Brasil e o presidente dos Estados Unidos”, declarou Roosevelt aos jornalistas durante um encontro com Vargas no Rio de Janeiro, em 1936. Ironias do destino: em abril de 2009, ao encontrar o presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva em um evento diplomático na Europa, organizado para homenagear o presidente Lula, o presidente dos EUA, Barack Obama, declarou aos jornalistas presentes: "That's my man!" – palavras que lembram aquele elogio polido e político declamado por Roosevelt para Vargas na década de 1930.






Homens ilustres: o encontro entre os presidentes
Getúlio Vargas Franklin Roosevelt (dos EUA)
na base área norte-americana que foi instalada
em Natal (RN), na Segunda Guerra Mundial,
em 1943. Abaixo, Vargas e Roosevelt em um
banquete em homenagem ao presidente dos EUA
em dezembro de 1936, no Rio de Janeiro, em
fotografia publicada pela revista O Cruzeiro








Os tempos são outros e a crise também, mas os passos dos atuais governantes seguem caminhos parecidos com os daquela época, conforme destacam Limoncic e Palomanes e demais autores reunidos em "A Grande Depressão", empenhados em desvendar as origens daquela crise que se espalhou pelo mundo afora, seu impacto nas economias nacionais e na própria teoria econômica. Ontem, como hoje, a dimensão econômica dos episódios históricos não pode nunca ser dissociada da dimensão política alertam os autores.
Também abordando os reflexos imediatos da crise de 1929, "Bonnie & Clyde - A Vida por Trás da Lenda", o livro de de Paul Schneider, traz minúcias sobre a explosiva trajetória do casal de criminosos mais famoso da década de 1930, e talvez de todo o século 20, que também marcaram época em Hollywood – desde que o sucesso do filme de 1967 (no Brasil, lançado como “Uma Rajada de Balas”), dirigido por Arthur Penn, com as  interpretações memoráveis de Faye Dunaway e Warren Beatty, mudou a forma como o cinema mostrava para as grandes plateias cenas de sexo e violência.








Homens ilustres: o mundo real e o imaginado
pelo cineasta Arthur Penn – no alto, o casal
Faye Dunaway e Warren Beatty posa para fotos
durante as filmagens de Bonnie & Clyde. Acima,
o temido casal fora-da-lei em fotografia de 1934.
Abaixo, um beijo do casal em fotografia encontrada
pelos policiais no carro que ocupavam quando foram
mortos. Também abaixo, a fotografia feita pelos
policiais do carro, após o tiroteiro; e a melancólica
imagem do massacre do casal que encerra
o filme de Arthur Penn







O livro de Paul Schneider busca uma certa estratégia de concentrar várias versões dos fatos em uma só narrativa – mesma técnica inaugurada no cinema pelo “Rashomon” de Akira Kurosawa em 1951 e repetida em grande estilo em 1991 por Oliver Stone em seu "JFK". Poesia e drama se misturam ano após ano na trilha de crimes e tiroteios e declarações de amor e beijos apaixonados de Bonnie & Clyde até o desfecho cruel, numa manhã ensolarada em 23 de maio de 1934. 

No relato biográfico de Schneider, como no filme de Arthur Penn, a cena final da trajetória de Bonnie & Clyde é melancólica. Mas para surpresa de todos, e como um ingrediente lendário a mais para perpetuar a história dos dois no imaginário popular, até mesmo neste momento eles são capazes de trocar olhares apaixonados, como se estivessem mesmo satisfeitos por terem chegado ao fim juntos. "Centenas de balas", escreve Schneider, comovido e comovente.

"Mas depois que eles param de atirar o carro simplesmente desliza devagar. Como uma pantera, dizem os tiras. Eles não sabem nada sobre ela. E, claro, há o carro em si, parecendo uma peneira de tantos buracos". Como cada personagem anônimo, muito pobre e terrivelmente humano nas fotografias de Walker Evans e nos textos do "novo jornalismo" inventado por James Rufus Agee, o casal de foras-da-lei que entrou para a história na década de 1930, que caiu nas graças do público apesar da sequência infinita de crimes violentos e que, décadas depois de ser massacrado a tiros por policiais em uma emboscada, conquistou status de estrelas de cinema, resume com intensidade toda uma época.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Homens ilustres. In: Blog Semióticas, 5 de janeiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/homens-ilustres.html (acessado em .../.../...). 



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