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10 de janeiro de 2025

Fotografia em paraísos tropicais





Uma fotografia é um segredo de um segredo.

Quanto mais ela te fala, menos você sabe.

–– Diane Arbus.   
............................... 








As fronteiras instáveis e fluidas entre alta cultura e cultura popular – ou entre a arte erudita e o kitsch, o brega, o cafona, no sentido de separar o que seja de bom gosto do que seja considerado vulgar, duvidoso, sem refinamento, de mau gosto ou de qualidade inferior – surgem diluídas e misturadas em uma mostra que, pela primeira vez, reuniu um acervo de 200 obras de 83 artistas latino-americanos de destaque nascidos no Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Guatemala, México, Peru e Venezuela. Todas as obras têm em comum o suporte fotográfico com alguma forma de intervenção de pós-produção ou de colagem e abrangem um período histórico de um século, da primeira década do século 20 às duas primeiras décadas do século 21.

IntituladosLes Paradis Latins” (Os paraísos latinos), a exposição e o fotolivro que registra o acervo foram organizados pela Fundação Bemberg de Toulouse, França, tendo como referência a valiosa coleção de raridades garimpadas desde a década de 1960 pelo casal de colecionadores Leticia e Stanislas Poniatowiski, na sua maioria retratos de pessoas anônimas e também de celebridades, de artistas ou de figuras de importância histórica. Anunciada como “celebração de um século de fotografia latino-americana”, a exposição também poderia ser definida como inventário de um século de imagens de resistência à violência e ao preconceito, pois reúne obras de diferentes períodos e lugares que enfrentaram a censura e o silenciamento provocados por imposição de falsos paladinos da moral e dos “bons costumes” ou de governos autoritários.











Fotografia em paraísos tropicais: no alto, 22h35,
da série fotográfica
Das 22h às 23h, México, 1985,
intervenção sobre fotografia e fotocópia
de
Agustín Martinez Castro.

Acima,
As mãos de Pita Amor (México, 1950),
pintura sobre fotografia de
Simón Flechine;
Buenos Aires Tango Clube, Santiago do Chile,
intervenção de 2012 com tinta e lápis de cor sobre
fotografia de 1982 de
Leonora Vicuña;
e Tango (De a dos), fotografia em gelatina
de prata em preto e branco da série
Tango (Chile, 1988), de
Paz Errázuriz.

Também abaixo,
Entre os olhos, o deserto,
intervenção multimídia de 2001 do brasileiro
Miguel Rio Branco sobre fotografias de 1997;
e
Afife Baloyan, Tijuana, México, 1973, fotografia
e intervenção de contraste de
José Luis Venegas.
As imagens reproduzidas nesta postagem fazem
parte do catálogo da exposição










O caráter subversivo


A figura feminina é a presença marcante em todas as imagens fotográficas reunidas pela curadoria, sem nenhuma exceção. Ou talvez a feminilidade, mais até do que a figura feminina, principalmente a feminilidade em seu caráter mais subversivo e provocativo diante da norma dominante e da censura que por tanto tempo tentou silenciar ou esconder na penumbra as dançarinas de tango, de samba, de salsa e de bolero, vedetes e coristas de cabarés ou de teatros, incluindo a importância incontornável de travestis e transgêneros, artistas marginais e ativistas da ação política na vida cotidiana que movimentou e movimenta a revolução social, a identidade cultural e a diversidade sexual no intervalo de décadas.

A apresentação das imagens, em sua maioria com predomínio de cores
fortes e contrastantes
em destaque, com videntes intenções de apelo melodramático e toques de exagero ou de ingenuidade, também são traços comuns entre as obras selecionadas. Em muitos casos, as cores foram acrescentadas com pincel e tinta ou canetas e lápis coloridos sobre as estampas impressas em preto e branco, uma estratégia recorrente que desde os primórdios da fotografia levou muitos artistas a pintarem ou retocaram a mão os retratos registrados pelas câmeras.









Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
imagem sem título
, fotografia realçada com
tinta, obra de
Gerardo Bastón (México,1990).

Abaixo,
Nahui Olin (México, 1921), fotografia
impressa em gravura de
Gustavo F. Silva com
pintura em técnica mista de
Nahui Olin
(pseudônimo de Carmen Mondragón).

Também abaixo, colagem com costura e
técnica mista sobre fotografias de 2019
de Carla Rippey (México); colagem de 1975
com fotografia e técnica mista do brasileiro
Luiz Alphonsus, intitulada Crepúsculo Tropical;
e
um retrato de Magnólia em Juchitán
(México, 1987) por
Graciela Iturbide




              
     







Na extensa galeria da diversidade, em que algum charme das celebridades e muitas extravagâncias anônimas se misturam, marcadas pelo requinte discreto ou pelo excesso mais provocante, cada uma das amostras dos “paraísos latinos” selecionadas para o acervo também diluem as fronteiras que separam a fotografia das outras artes visuais, em estratégias de aproximação com o desenho e a pintura, com as artes gráficas, as variações da gravura, as fotonovelas, as técnicas dos cartazes e da publicidade, ou as técnicas mistas de colagens, de recortes, de montagens e de sobreposições de imagens. Algumas das obras vão remeter os olhares mais atentos às experiências estéticas mais radicais dos mestres dos movimentos de vanguarda da arte moderna no começo do século 20, ainda que a maioria delas tenha sido produzida a partir da década de 1960, sob forte influência das experiências da Pop Art e da arte contemporânea.





Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
Autorretrato como Rrose Sélavy
(Colômbia, 1980),
de
Álvaro Barríos. Rrose Sélavy era um personagem
fictício, alter-ego do mestre dadaísta
Marcel Duchamp.

Acima, uma corista anônima na Argentina, 1960,
em fotografia de
George Friedman. Abaixo,
dois retratos da vedete
Amapola Devodier
(México, 1955) por
Simón Flechine








A intensidade da cor


No ensaio que apresenta a exposição e o fotolivro, o curador e historiador Alexis Fabry (também autor de “Urbes Mutantes 1941-2012”, catálogo sobre a fotografia latino-americana publicado na Espanha em 2013) destaca que na maior parte dos países da América Latina a intensidade da cor e do carnaval são, muitas vezes, inseparáveis da tragédia. “A proximidade entre a festa e o trágico, assim como o atrito e a permeabilidade entre a alta e a baixa cultura, são questões muito características da arte latino-americana”, reconhece. Outra questão a que o curador faz referência são as limitações provocadas pela carência de recursos financeiros e materiais, uma dificuldade sempre presente para artistas da América Latina, o que levou muitos deles a recorrerem a suportes alternativos como o uso de papel e fotocópias, que são meios mais baratos, e de fácil acesso, que permitiram a produção e a divulgação de diversas obras selecionadas.

 











Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
Autorretrato
(1950), com a fotógrafa Grete Stern,
nascida na Alemanha e radicada
na Argentina
desde 1935, refletida em montagem fotográfica
sobre o espelho. Acima, La Madre de Dios
(Guatemala, 1974), fotografia e colagem em
técnica mista do brasileiro Ayrton de Magalhães;
e
Serviço de luxo (México, 1987), intervenção
em técnica mista sobre fotografia e fotocópia
de
Felipe Ehrenberg.

Abaixo,
duas obras de Facundo de Zuviría:
Estampas de Buenos Aires
(1982),
autorretrato e colagem
em cartaz de
técnica mista
; e Evita, San Telmo (1982),
cartaz e fotografia de rua em cópia Cibachrome













Ao justificar os critérios historiográficos e estéticos da curadoria, Alexis Fabry também ressalta que, enquanto nos países da Europa e nos Estados Unidos a Pop Art se concentra em comentários de metalinguagem sobre a sociedade de consumo, na maior parte dos países da América Latina a influência da Pop Art estabelece um diálogo imprevisível com o artesanato e com a arte ingênua das festas populares. Na perspectiva do Brasil, tal diálogo se estabelece principalmente com o que a cultura erudita costuma nomear como vulgar, como brega e como cafona – termos carregados de preconceito desde a origem linguística: “vulgar” é uma definição para o grosseiro e o obsceno porque tem origem popular, acessível a todos, enquanto “brega” seria o gênero do exagero dramático, ingênuo ou mal feito, e “cafona”, equivalente ao italiano “cafone” (camponês, periférico, rude, estúpido), identifica o que as elites descartam e classificam como imitações grosseiras ou fora de moda.

Sobre o acervo reunido com a chancela de “paraísos latinos” vale acrescentar que os adjetivos pejorativos citados como juízos de valor – vulgar, brega ou cafona – são termos que, traduzidos em outras línguas, encontram sinônimos ou correlatos na complexidade do “kitsch” ou do “camp”, conceitos amplamente discutidos e problematizados por teóricos da cultura como Theodor Adorno ou Susan Sontag. Em outras palavras, são termos que, antes de carregarem definições apressadas, elitistas e muito preconceituosas, como mau gosto, como exagero ou como falso e artificial, deveriam ou poderiam também ser caracterizados como uma resposta original e popular à cultura de massa e aos processos de industrialização – ou ainda, como adverte Susan Sontag em “Notes on Camp”, ensaio publicado em 1964, como um produto ou uma obra de uma estética especial que consegue a proeza de imitar para ironizar, e tornar ridículo, tudo o que seja identificado para consumo exclusivo das elites e das classes dominantes.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fotografia em paraísos tropicais. In: Blog Semióticas, 10 de janeiro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/01/fotografia-em-paraisos-tropicais.html (acessado em .../.../…).


Para uma visita virtual à exposição “Les Paradis Latins”, clique aqui.







Para comprar o fotolivro “Les Paradis Latins”, clique aqui.


Fotógrafos e a
rtistas reunidos em Les Paradis Latins”:

 

Luiz Alphonsus (Brasil), Édgar Álvarez (Colômbia), Yolanda Andrade (México), Constantino Arias (Cuba), Aristides Ariza (Colômbia), Éver Astudillo (Colômbia), Pepe Avilés (Equador), Daniel Barraco (Argentina), Álvaro Barrios (Colômbia), Gerardo Bastón (México), Juan Enrique Bedoya (Peru), Ricardo Bezerra (Chile), Bandi Binder (Argentina), Joaquín Blez (Cuba), Hugo Brehme (México), Jorge Cáceres (Chile), Johanna Calle (Colômbia), Carlos Caputto (Argentina), Anselmo Carrera (Peru), Daniel Chauche (Guatemala), María Eugenia Chellet (México), Gilberto Chen (México), Cif (México), Raúl Corrales (Cuba), Armando Cristeto (México), Ayrton de Magalhães (Brasil), Gertrudis de Moses (Chile), Facundo de Zuviría (Argentina), Hector Delgado (Peru), Hernan Díaz (Colômbia), Wilson Díaz (Colômbia), Felipe Ehrenberg (México), Paz Errázuriz (Chile), Gustavo F. Silva e Nahui Olin (México), Simón Flechine (México), George Friedman (Argentina), Flavia Gandolfo (Peru), Andrés Garay (México), Kattia García Fayat (Cuba), Antonio Garduño (México), Pedro Juan Guttiérrez (Cuba), Maria Eugenia Haya (Cuba), Annemarie Heinrich (Argentina), Armando Herrera (México), Terry Holiday (México), Graciela Iturbide (México), Maripaz Jaramillo (Colômbia), Agustin Jiménez (México), Alejandro Kuropatwa (Argentina), Melitta Lang (Argentina), Fabrizio León Diez (México), Sandra Llano-Mejía (Colômbia), Marcos López (Argentina), Rogelio López Marin (Cuba), Sergio Marras (Chile), Agustin Martínez Castro (México), Daniel Merle ( Argentina), Jorge Maria Múnera (Colômbia), Juan Ocón (México), Martin Ortiz (México), Pablo Ortiz Monasterio (México), Adolfo Patiño (México), Valle Polifoto (Colômbia), Juan Ponce Guadián (México), Santiago Rebolledo (Colômbia), Miguel Rio Branco (Brasil), Carla Rippey (México), Manuel Jesus Serrano (Equador), José Sigala (Venezuela), Francisco Smythe (Chile), Guadalupe Sobarzo (México), Grete Stern (Argentina), Rubén Torres Llorca (Cuba), José Trinidad Romero (México), Sergio Trujillo (Colômbia), Jorge Vall (Venezuela), Manolo Vellojín (Colômbia), José Luis Venegas (México), Leonora Vicuña (Chile) e Rogelio Villarreal (México).





 





Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
flagrante da exposição na Fundação Bemberg,
em fotografia de
Frederic Scheiber.

Acima, a partir do alto:
1) Colagens, Caderno 2
(Colômbia, 1980), recortes e arte em técnica mista,
criação de
Éver Astudillo; 2) Cristina Molina
(México, 1970), colagem e intervenção com
caneta e lápis de cor por
Juan Ponce Guadián;
e
3) Monumento ao Marques de Sade (Chile,
1947), colagem e montagem de fotografias
por
Jorge Cáceres



29 de julho de 2022

Retratos de August Sander






Nenhuma obra de arte é contemplada tão atentamente 

em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, 

de nossos parentes próximos, de nossos seres amados.

–– Alfred Lichtwark (1852-1914).   


A arte do retrato fotográfico, que teve início em meados do século 19, ganhou um capítulo especial no século 20 com as fotografias do alemão August Sander (1876-1964). Considerados um caso exemplar de fotografia documental, os retratos feitos por Sander são abordados como referência importante em alguns dos principais estudos já realizados sobre fotografia: ele é citado como “corpus extraordinário” por Walter Benjamin em “Pequena história da fotografia” (1931) e é um dos fotógrafos selecionados para as análises que Roland Barthes apresenta em “A câmara clara” (1980), assim como está destacado por suas “imagens de arquétipo” no estudo não menos célebre de Susan Sontag (em “Sobre a fotografia”, de 1973) e também surge como parâmetro e analogia para uma “idealização do poder” na leitura de John Berger (em “Para entender uma fotografia”, de 2013).

Um “revival” em homenagem à arte de August Sander aconteceu recentemente com uma exposição itinerante aberta no Museu de Arte Contemporânea da cidade de Siegen, na Alemanha. Depois de Siegen, a exposição seguirá uma extensa agenda em outros importantes museus da Europa e de outros continentes. Trata-se da primeira grande exposição sobre o acervo de Sander desde a década de 1960, quando depois de sua morte foram realizadas retrospectivas de seus retratos nos museus de Siegen (1964), de Herdorf (1965), terra natal do fotógrafo, e no MoMA de Nova York (1969). Nos anos seguintes, houve apenas pequenas amostragens da obra de Sander em exposições nos museus da Alemanha e de outros países.









Retratos de August Sander: no alto da página,
"Agricultores, 1914", uma das fotografias
destacadas por John Berger. Acima, "Notário",
o trabalhador do cartório na fotografia analisada
por Roland Barthes em A câmara clara;
e August Sander em autorretrato
da década de 1950.

Abaixo, "Desempregado, 1928";
e um quadro com as 70 fotografias do arquivo
de August Sander selecionadas pelo próprio
fotógrafo e apresentadas na exposição do
Museu de Arte Contemporânea
da cidade de Siegen, Alemanha
 










A nova exposição em Siegen traz uma seleção de 70 ampliações dos retratos de August Sander – seleção que havia sido feita pelo próprio fotógrafo no início da década de 1960. Com o título de “70 Porträts aus, Menschen des 20. Jahrhunderts” (70 retratos de pessoas do século 20), a exposição já é considerada a mais importante e mais abrangente já realizada com o trabalho de August Sander. A homenagem à arte do retrato segundo Sander ainda traz como atração adicional um evento paralelo incomum: a exposição acontece simultaneamente a uma outra mostra, apresentada no mesmo museu, chamada de “Nach August Sander, Menschen des 21. Jahrhunderts” (Depois de August Sander, pessoas do século 21), que reúne retratos feitos por 13 fotógrafos contemporâneos e que tem a proposta de estabelecer um diálogo conceitual com o acervo de Sander, com curadoria de Thomas Thiel.


Traduções de uma época


Durante décadas, August Sander fotografou grupos profissionais e classes sociais com um método muito planejado e com rigor de estudo antropológico. Ele começou a fotografar ainda na adolescência, quando acompanhava o pai, que era trabalhador em uma mina em Herdorf, e aprendeu os primeiros passos no ofício da fotografia ajudando fotógrafos profissionais que trabalhavam para a empresa que explorava as minas. Com apoio de um tio, comprou sua primeira câmera antes de prestar o serviço militar. Mais tarde, no exército, entre 1897 e 1899, atuou como assistente de fotografia e, nos anos seguintes, viajou por cidades da Alemanha trabalhando como fotógrafo e aperfeiçoando seu ofício.







Retratos de August Sander: acima, o casal
em fotografia de 1912 nomeada como
"Criação e Harmonia".

Abaixo, "Faxineira", fotografia de 1928;
"Lavadeira", fotografia de 1930; e
"Garota em uma carroça na feira",
fotografia de 1932















Em 1901, Sander foi contratado por um estúdio fotográfico na cidade de Linz, onde permaneceu durante uma década, primeiro como funcionário e depois como sócio da empresa. Em 1909, abriu seu próprio estúdio na cidade de Colônia, iniciando a série “Retratos do século 20”, seu projeto ambicioso para montar um amplo catálogo fotográfico sobre a sociedade alemã. No projeto, chegou a reunir um grande acervo de centenas de retratos em 45 portfólios temáticos organizados em sete categorias identificadas como “O fazendeiro”, “O artesão”, “A mulher”, “As fazendas” (listando os trabalhadores pelas tarefas que desempenhavam), “Os artistas”, “A grande cidade” (moradores e trabalhadores das cidades) e “À margem”, que talvez represente a parte mais radical e mais polêmica de seu trabalho, com ciganos, imigrantes, andarilhos e pessoas que, por algum motivo, estavam marginalizadas pela sociedade de sua época.

A primeira seleção dos retratos de August Sander foi feita por ele mesmo, em 1929, quando publicou uma seleção de 60 fotografias em “Antlitz der Zeit(Rostos do nosso tempo), um livro que inspirou trabalhos similares de fotógrafos do primeiro time de outros países, entre eles os norte-americanos Walker Evans (1903-1975), Robert Frank (1924-2019) e Diane Arbus (1923-1971) ou o francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004). Porém, com a chegada dos nazistas ao poder, na Alemanha, o trabalho de Sander passou a sofrer censura e perseguições. Seu filho Erich, militante de um partido de esquerda, foi preso em 1934 e condenado a 10 anos de prisão. Em 1936, seu livro “Antlitz der Zeit” foi recolhido e proibido, tendo todas as matrizes de impressão destruídas, sob o argumento de que o fotógrafo promovia somente os pobres e as exceções da sociedade, e não os alemães “legítimos”.










Retratos de August Sander
: no alto, "Pugilistas",
fotografia de 1929; acima, "Estudante do ensino médio",
de 1926. Abaixo, "Meninas", fotografia de 1925;
e "Viúvo" (Witwer), fotografia de 1914












Fotografias e máscaras


Quando a Segunda Guerra Mundial começou, August Sander se mudou de Colônia para a área rural e durante anos passou a fotografar apenas a natureza e as paisagens. No pós-guerra, Sander retorna à vida nas cidades e monta um acervo extenso sobre a arquitetura e as ruas dos centros urbanos da Alemanha, mas não retornou ao projeto original de “Retratos do século 20”. Quando morreu, em 1964, deixou um valioso acervo com mais de 40 mil imagens, incluindo negativos e ampliações, que levaram à criação do Arquivo August Sander, com sede na cidade de Colônia. Uma amostragem de 650 fotografias selecionadas do arquivo foi publicada em um catálogo em 1999, com edição da Taschen e curadoria de Susanne Lange-Greve.

Nos retratos de August Sander, Walter Benjamin percebeu a “grandeza anônima” de um rosto humano, que aparece nas fotografias com uma significação nova e, em suas palavras, “incomensurável”, ressaltada pelo prefácio da primeira edição de “Rostos do nosso tempo”, escrito por Alfred Düblin. Segundo a análise de Benjamin, “August Sander reuniu uma série de rostos que em nada ficam a dever à poderosa galeria fisionômica de um Eisenstein ou de um Pudovkin, e ele realizou este trabalho numa perspectiva científica” (Benjamin, “Pequena história da fotografia”. In: “Obras escolhidas”, vol. 1, editora Brasiliense, p. 102-103). Benjamin também elogia a “atualidade insuspeitada” da obra de Sander reunida no livro, que ele define como “mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos”.














Retratos de August Sander: no alto,
"Três gerações de uma família", fotografia
de 1912; acima, "As irmãs Fuchs", de 1912.

Abaixo, "Trabalhadores na região de Ruhr",
fotografia de 1928; e "Mestre de obras", de 1926 
 







Assim como Benjamin, Roland Barthes também considera o impacto da galeria fisionômica de August Sander, que ele nomeia como “máscaras”, figuras que revelam mitologias antes insuspeitadas. “Os grandes retratistas são grandes mitólogos: Nadar (a burguesia francesa), Sander (os alemães da Alemanha pré-nazista), Avedon (a ‘high-class’ nova-iorquina). A máscara é, no entanto, a região difícil da fotografia, porque a Fotografia da Máscara é, de fato, suficientemente crítica para inquietar (em 1934, os nazistas censuraram Sander porque seus ‘rostos da época’ não correspondiam ao arquétipo nazista da raça), mas por outro lado, é muito discreta (ou muito ‘distinta’) para constituir verdadeiramente uma crítica social eficaz, pelo menos segundo as exigências do militantismo: qual ciência engajada reconheceria o interesse da fisiognomonia?” (Barthes, “A câmara clara”, editora Nova Fronteira, p. 58-62). Uma das fotografias que Barthes toma como exemplo e parâmetro de sua abordagem é o retrato do “notário” de Sander, sobre o qual ele questiona e provoca: “A aptidão para perceber o sentido, político ou moral, de um rosto não é, em si mesma, um desvio de classe?”


Mundo em desaparecimento


As “máscaras” que August Sander registrou também estão em destaque na análise de Susan Sontag, para quem os célebres retratos que o fotógrafo fez das pessoas comuns não são apenas imagens documentais e sim, “apesar de seu realismo de classe, uma das obras mais verdadeiramente abstratas da história da fotografia” (Sontag, “Sobre a fotografia”, editora Arbor, p. 59-62). Sontag também ressalta que nas fotografias de Sander os pobres não deixam de ter um ar de dignidade, o que não se deve a qualquer altruísmo ou qualquer intenção de compaixão: eles têm dignidade, segundo Sontag, porque são vistos (e fotografados) do mesmo modo frio que qualquer outra pessoa de classes sociais mais abastadas. Susan Sontag também percebe que o fotógrafo não sabia que estava registrando um mundo em desaparecimento, provocado pelo avanço acelerado do nazismo: o próprio August Sander não pensava que estava revelando a verdade das pessoas, mas sim capturando, de uma forma técnica e isenta de preconceitos, as “máscaras sociais” de sua identidade e sua individualidade.















Retratos de August Sander: no alto,
"Carregador de tijolos", fotografia de 1928;
acima, "Fazendeiro", de 1910.

Abaixo, "Dois jovens boêmios
(Willi Bongard e Gottfried Brockmann)"
,
fotografia de 1925







John Berger foi outro teórico importante que não resistiu à analogia das fotografias com “máscaras”, apresentadas a partir dos retratos de August Sander como reveladoras da classe social, do lugar no mundo, das aspirações existenciais de cada indivíduo anônimo ou bem posicionado na escala da sociedade e da hierarquia de seu tempo. Berger vê o “retrato político” na obra de Sander, mas considerando um amplo alcance para o adjetivo “político”, nunca redutível à sedução das instâncias do poder na época ou à resistência diante do que fosse injusto ou opressivo – ainda que seja impossível não considerar a trajetória do projeto fotográfico de Sander frente ao avanço do nazi-fascismo, à destruição e à violência como programa de governo que teriam a Segunda Guerra como desfecho.

Para Berger, alguns dos retratos, na extensa galeria de tipos dos mais diversos extratos sociais que Sander fotografou, são especialmente evidentes quanto à idealização do “poder puramente sedentário” e podem ser destacados como uma ilustração da hegemonia que antecede a tomada do poder na Alemanha pelo nazismo (Berger, “Para entender uma fotografia”, editora Companhia das Letras, p. 63-66). Um dos exemplos, que Berger considera “cristalino” e “sedutor”, é a fotografia que mostra três camponeses felizes, vestindo terno, a caminho do baile. Trata-se, segundo Berger, de uma lição prática sobre a quantidade de informação que existe ali para ser descoberta e revelada.
















Retratos de August Sander: no alto,
"O artista austríaco Raoul Hausmann e suas
amigas Hedwig Mankiewitz e Vera Broido"
,
fotografia de 1929; acima, "Artista de circo",
de 1932; e "Artistas no Carnaval da cidade de
Colônia"
, de 1931. Abaixo, "Cigano", fotografia
de 1930, e "O confeiteiro", de 1928.

No final da página, três amostras das releituras
contemporâneas dos retratos de Sander, que
fazem parte da exposição 
Depois de August Sander,
pessoas do século 21
, também apresentada
no Museu de Arte Contemporânea de Siegen:
"Camouflage" (2006), de Hans Eijkelboom;
"Golden" (2018), de Tobias Zielony; e
"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr











Diálogo contemporâneo


O plural de leituras que a galeria de retratos de August Sander proporciona foi a referência para a escolha dos 13 fotógrafos contemporâneos, alemães e estrangeiros, que tiveram suas obras selecionadas para a mostra “Depois de August Sander, pessoas do século 21”. Foram convidados pelos curadores: Mohamed Bourouissa, Jos de Gruyter & Harald Thys, Hans Eijkelboom, Omer Fast, Soham Gupta, Sharon Hayes, Bouchra Khalili, Ilya Lipkin, Sandra Schäfer, Collier Schorr, Tobias Zielony Artur Żmijewski. O foco para a escolha dos retratos, feitos por cada um dos fotógrafos, foi a possibilidade de diálogo com as 70 fotografias selecionadas pelo próprio August Sander, no começo da década de 1960, agora apresentadas no Museu de Arte Contemporânea de Siegen.

Enquanto os retratos em preto e branco de August Sander ocupam as galerias principais do museu de Siegen, os convidados têm seus trabalhos, em cores, na grande maioria, apresentados em galerias paralelas. Na comparação entre o preto e branco das fotografias antigas e o colorido intenso dos retratos contemporâneos, o impacto das imagens de Sander permanece inalterado, mas os fotógrafos convidados surpreendem com retratos que atualizam o tema das classes sociais e suas ocupações com originalidade.

O salto no tempo, com um intervalo que tem aproximadamente 100 anos, entre os retratos de August Sander e os retratos contemporâneos selecionados, torna visíveis mudanças de atitude e de comportamento em relação à vida cotidiana e novas questões políticas sobre pessoas comuns. A observação atenta dos retratos de August Sander levou Susan Sontag, em “Sobre a fotografia”, a lembrar aquela máxima do poeta Sthépane Mallarmé de que tudo no mundo existe para terminar num livro. Parodiando Sontag e Mallarmé, podemos chegar à conclusão de que observar estes retratos, com um intervalo de quase um século, revela que todos os rostos do mundo existem para serem fotografados.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos de August Sander. In: Blog Semióticas, 29 de julho de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/07/retratos-de-august-sander.html (acessado em .../.../…).


Para fazer uma visita virtual à exposição no Museu de Siegen,  clique aqui.




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"Camouflage"
 (2006), de Hans Eijkelboom
     





"Golden" (2018), de Tobias Zielony

  



"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr


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