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27 de março de 2024

Retratos clandestinos de Helen Levitt

 




A natureza humana é quase inacreditavelmente maleável.
   
– Margaret Mead (1901-1978).  
 

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Durante grande parte dos quase dois séculos da história da fotografia, as mulheres tiveram pouco espaço no trabalho por trás das câmeras, mas com o passar do tempo foram expandindo seus papéis e experimentando cada vez mais os diversos aspectos do aparato fotográfico. Atualmente, qualquer seleção ou recorte sobre a história da fotografia tem, necessariamente, destaque para mulheres que atuaram ou atuam nas variadas frentes dos registros fotográficos no passado ou no presente. Desde os primeiros tempos da imagem fotográfica, a presença feminina no domínio da técnica esteve presente, porém mais como exceção do que como regra, como se comprova nos registros sobre nomes como Constance Talbot (1811-1880), primeira mulher a tirar uma fotografia, ou Ann Cook (1796-1870), primeira fotógrafa a abrir um estúdio de retratos.

Entre as mulheres que atuaram de forma marcante no campo da fotografia no século 19, ou que nasceram no Oitocentos, alcançaram destaque os nomes de Anna Atkins (1799-1871), Julia Margaret Cameron (1815-1879), Shima Ryü (1823-1900), Gertrude Käsebier (1854-1934), Frances Johnston (1864-1952), Alice Austen (1866-1952), Lady Ottoline Morrell (1873-1938), Harriet Chalmers Adams (1875-1937), Imogen Cunningham (1883-1976), Florence Henri (1893-1952), Claude Cahun (1894-1954), Lucia Moholy (1894-1989), Dorothea Lange (1895-1965), Tina Modotti (1896-1942), Germaine Krull (1897-1985), Berenice Abbott (1898-1991) e Ilse Bing (1899-1998), entre outras, sem esquecer aquelas que realizaram trabalhos importantes de forma pioneira na fotografia, mas que permaneceram no anonimato, por preconceito ou porque, por motivos diversos, não tiveram seus nomes registrados pela história oficial.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto, crianças

dançando nas ruas de Nova York, fotografia de 1940.

Acima, mãe e filha (1939) e a família na janela (1940).

Abaixo, Helen Levitt em autorretrato (circa de 1950)

e duas meninas brincando com giz na calçada (1940).

Todas as fotografias reproduzidas nesta página estão

no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”,

apresentada na Photoghapher’s Gallery de Londres








No Brasil, de acordo com o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro – Fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), de Boris Kossoy, publicado pelo Instituto Moreira Salles em 2002, entre centenas de fotógrafos que atuaram naquele período também há algumas mulheres que tiveram um papel pioneiro da maior importância, entre elas Fanny Volk, que atuou no Paraná; Hermina de Carvalho Menna da Costa, em Pernambuco; Leocadia Amoretti e Madame Lavenue, no Rio de Janeiro; Madame Reeckel, no Rio Grande do Sul; Maria Brasilina de Magalhães Faria, no Espírito Santo; Maria Izabel da Rocha, em Sergipe; e Roza Augusta, na Paraíba. Em São Paulo, Gioconda Rizzo (1897-2004), descendente de italianos, foi uma das primeiras mulheres a atuar como fotógrafa e a primeira a abrir um estúdio fotográfico, a Photo Femina, em 1914; e Elvira Pastore (1876-1972), casada com Vicenzo Pastore (1865-1918), ambos italianos, dividia com o marido todo o trabalho no estúdio fotográfico que abriram em São Paulo em 1900.

No século 20, a presença e a importância de mulheres na fotografia têm aumento qualitativo e quantitativo, incluindo a presença inédita de mulheres fazendo a cobertura em cenários de guerra, como Gerda Taro (1910-1937), na Guerra Civil Espanhola, e Margaret Bourke-White (1904-1971), na Segunda Guerra Mundial. Mulheres exerceram o papel de fotógrafas também na vanguarda da arte moderna, desde o começo do século passado, registrando paisagens e temas abstratos, nudez, cenas urbanas, retratos de famosos e de anônimos, muitas delas com premiações importantes e destaque na imprensa, espaços que antes eram restritos quase exclusivamente para os homens.

Entre as mulheres que alcançaram destaque como fotógrafas nos movimentos de vanguarda estão, entre outras, Lisette Model (1901-1983), Lola Alvarez Bravo (1903-1993), Grete Stern (1904-1999), Dora Maar (1907-1997), Lee Miller (1907-1977), Gisèle Freund (1908-2000), Ruth Gruber (1911-2016), Eve Arnold (1912-2012), Maya Deren (1917-1961), Inge Morath (1923-2002) e Sabine Weiss (1924-2021), além de nomes contemporâneos importantes como Rineke Dijkstra, Roni Horn, Mary Ellen Mark, Diane Arbus, Nan Goldin, Annie Griffiths, Cindy Sherman, Annie Leibovitz, Kiki Smith, Carrie Mae Weems, Carol Guzy, Catherine Leroy, Francesca Woodman, Donna Ferrato e Sally Mann. Há também grandes fotógrafas que atuam ou atuaram no Brasil, como Hildegard Rosenthal (nascida na Suíça), Alice Brill (nascida na Alemanha), Claudia Andujar (nascida na Suíça), Maureen Bisilliat (nascida na Inglaterra), Madalena Schwartz (nascida na Hungria), Nair Benedicto, Vania Toledo, Rosa Gauditano, Anna Mariani, Elvira Alegre e mais uma lista extensa que inclui veteranas e nomes das novas gerações.









Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

duas crianças na janela, fotografia de 1939.

Acima, crianças brincando na calçada (1940).

Abaixo, a família (1945) e casal improvável (1941)









Uma poesia visual


Nesta legião de fotógrafas, um dos destaques inevitáveis é a norte-americana Helen Levitt (1913-2009), com seu trabalho com a câmera nas ruas que atravessou todo o século 20, atuando em todas as frentes e temáticas da fotografia de arte e do fotojornalismo. Descendente de imigrantes judeus-russos, Helen Levitt nasceu em Nova York – cidade que, com seus personagens, foi cenário da maioria de suas fotografias de 1930 até sua aposentadoria, no final da década de 1990, o que levou Susan Sontag, sua admiradora de longa data, a definir as imagens da fotógrafa como “uma poesia visual sobre Nova York”.

Neste século 21, depois que Helen Levitt morreu, aos 95 anos, em 2009, grandes retrospectivas temáticas sobre sua obra foram organizadas no Festival PhotoEspaña em Madri e também na Fundação Cartier-Bresson em Paris, no Sprengel Museum em Hannover, no Albertina Museum em Viena, no Fotografiemuseum de Amsterdã e no Festival de Fotografia de Arles (no sul da França), entre outras exposições importantes que tiveram as imagens de Levitt como tema. A retrospectiva mais abrangente, que cobre toda a pauta temática de sua trajetória de 70 anos dedicados à fotografia, foi aberta em 2022 na Photographer’s Gallery de Londres, nomeada como “Helen Levitt: in the street”.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

as amigas, fotografia de 1941. Acima, os irmãos (1944).

Abaixo, um gato (1945) e retrato de Walker Evans (1940)










De todos os aspectos que sobressaem quando se observa um conjunto de fotografias de Helen Levitt, o lúdico talvez seja o mais marcante – ainda que o grande fotógrafo das questões sociais nos Estados Unidos, Walker Evans (1903-1975), seja reconhecido por ela como sua maior influência. O lúdico e o poético nas imagens de Helen Levitt, contudo, talvez tenha uma relação mais direta com as fotografias humanistas de outros mestres, como os franceses Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e Robert Doisneau (1912-1994). O fato de Levitt creditar Walker Evans como sua maior influência vem, por certo, de coincidências biográficas: quando circulavam as primeiras fotografias de Evans mostrando cenas dramáticas e extremamente realistas de agricultores pobres do sul dos Estados Unidos, no período da Grande Depressão, Levitt começava a trabalhar com fotografia, como assistente em um estúdio comercial instalado no Bronx, em Nova York. Evans, naquele período, havia sido contratado pela Farm Security Administration, agência federal criada pelo governo do presidente Franklin Roosevelt, e suas fotografias publicadas por vários jornais e revistas causavam uma grande comoção.

Na mesma época, no começo dos anos 1930, a jovem Helen Levitt participava de vários grupos de ativistas e sindicalistas e um dos principais líderes, Sid Grossman, também fotógrafo e fundador da cooperativa Photo League, pedia a jornalistas e fotógrafos mais atenção aos trabalhadores e aos movimentos sociais como consciência de classe – conforme ela declarou em uma de suas raras entrevistas, à National Public Radio, reproduzida no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”. “Eu decidi que deveria tirar fotos de pessoas da classe trabalhadora e assim dar minha contribuição verdadeira para apoiar os movimentos sociais que estavam se organizando”, afirmou Levitt. Ela era descrita por seus parceiros de trabalho como uma pessoa extremamente gentil e simpática, mas muito tímida, com poucos amigos, que nunca se casou e morou a vida inteira em Nova York, no mesmo apartamento em Greenwich Village, com curtos intervalos de uma temporada que passou no México, em 1941, e outra em viagem pela Europa, no final da década de 1950, depois que conseguiu uma bolsa de financiamento da Fundação Guggenheim.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: acima,

crianças no Halloween (1940) e fumantes (1940).

Abaixo, o bebê rindo muito no carrinho (1940)

e à procura de um táxi urgentemente (1982)








A temática das ruas


Na retrospectiva que ocupou todos os salões e corredores dos dois andares da Photographer’s Gallery de Londres, centenas de fotografias que Helen Levitt produziu, durante mais de 70 anos, com sua câmera Leica de 35 mm, foram selecionadas em torno de três núcleos temáticos: as ruas, as cenas do metrô e as experiências com os filmes coloridos, nas quais ela foi uma das pioneiras entre fotojornalistas. Na temática das ruas, pela qual ela é mais amplamente conhecida, estão registrados personagens e cenários de sua vizinhança em Nova York, incluindo o Lower East Side de Manhattan, o Bronx e o perímetro espanhol do Harlem. Na maioria das imagens, as crianças são o centro da atenção de Helen Levitt, em flagrantes poéticos de jogos e brincadeiras e também distraídas, observando algo que está fora do enquadramento da fotografia, como se a fotógrafa estivesse em atitude clandestina e sua presença não fosse notada pelos personagens em cena.









Retratos clandestinos de Helen Levitt:

no alto, Helen Levitt no metrô em 1938, em

fotografia de Walker Evans. Acima e abaixo,

retratos no metrô
feitos por Helen Levitt

nos anos de 1978, 1973, 1975 e 1978.


No final da página, amigas saindo de férias (1973),

a loja de doces (1971), a cabine telefônica (1988),

na esquina de calção azul (1981) e

a menina procura algo (1980)









A citada influência marcante de Walker Evans torna-se mais evidente com as fotografias feitas por Helen Levitt no metrô de Nova York. São personagens anônimos, que remetem às célebres fotografias que Evans capturou no mesmo cenário, quando viajava quase diariamente no metrô, vestindo um sobretudo sob o qual ocultava sua câmera Contax de 35 mm, entre fevereiro de 1936 e janeiro de 1941. As fotografias de Evans no metrô (Veja mais em: Semióticas – Homens ilustres), que foram apresentadas em uma exposição que marcou época, no pós-guerra, e depois publicadas no fotolivro Many are called (Muitos são chamados), reeditado em 2004 pela Yale University Press, também influenciaram o jovem Stanley Kubrick, que trabalhou durante anos como fotojornalista em Nova York antes de se tornar cineasta (Veja mais em: Semióticas – Kubrick no Metrô).

Helen Levitt teve a oportunidade de acompanhar, em 1938, algumas viagens de trabalho de seu mentor Walker Evans fotografando anônimos no metrô de Nova York e, nos anos e nas décadas seguintes, repetiu por diversas vezes a experiência de fotografar os passageiros, também em anonimato, com seu próprio estilo e seu equipamento mais modesto. Uma seleção destas fotografias foi apresentada pela primeira vez em 1991, em uma exposição no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, e em 2017 foi reunida no fotolivro Manhattan Transit: The Subway Photographs of Helen Levitt (‎Walther König Editions).

No terceiro grupo temático da exposição “In the street”, onde estão amostragens das experiências de Helen Levitt com as fotografias coloridas, produzidas a partir da década de 1950, também estão selecionadas as imagens que provocam com mais intensidade o senso de humor e algum estranhamento do observador. Algumas cenas têm mesmo um certo apelo surrealista, ainda que sejam registros poéticos sobre a vida que a fotógrafa, depois de décadas de trabalho diário, continuava a encontrar nas ruas de Nova York. Há crianças brincando, casais de namorados, maridos e esposas, mães com seus bebês, mulheres indo e vindo, velhos solitários, pessoas comuns.

Em uma das fotografias coloridas, uma mulher de vestido azul florido está de costas, usando um telefone público, e ocupa todo o espaço da cabine, em uma esquina de Nova York, enquanto duas crianças, possivelmente seus filhos, estão espremidas contra as paredes de vidro, uma de cada lado. Parece que cada fotografia de Helen Levitt conta toda uma história repleta de detalhes. A maioria de suas imagens coloridas, para as quais ela dedicou muito trabalho e atenção em seus últimos anos de atuação, nunca foi publicada em livro, mas esteve presente nas retrospectivas que celebraram, nos últimos anos, seu olhar personalíssimo que conquistou legiões de seguidores na arte da fotografia.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos clandestinos de Helen Levitt. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/03/retratos-clandestinos-de-helen-levitt.html (acessado em .../.../…).



 
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12 de maio de 2019

O brinquedo nazista








Os jogos infantis são impregnados de comportamentos
miméticos que não se limitam de modo algum à imitação
de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante
ou professor, mas também de ser moinho de vento e trem.
A questão importante, contudo, é saber qual a utilidade
para a criança desse adestramento da atitude mimética.

–– Walter Benjamin, 1928.    



No senso comum está, muitas vezes, a ideia de que tanto jogos, brinquedos e brincadeiras, como as etiquetas do antigo comportamento em geral eram muito melhores que os de hoje em dia, seja esta ideia um modo melancólico de utopia nostálgica ou mesmo um argumento para criticar e contrapor, em nossos dias, a onipresença cotidiana de objetos eletrônicos e virtuais, videogames e telemáticas de formatos e definições variadas, computadores, celulares e seus similares. A percepção do senso comum também confirma que jogos e brinquedos formam uma parte importante da nossa identidade na trajetória de nossas vidas individuais e coletivas, assim como fazem e sempre fizeram parte de todas as culturas em todas as épocas. Mas o que as maneiras de brincar dizem sobre uma sociedade?

A questão foi objeto de investigação filosófica e histórica por pensadores e pesquisadores das mais diversas áreas e nacionalidades, de Sigmund Freud e Ludwig Wittgenstein a Johan Huizinga, de Jean Piaget e Roger Caillois a Umberto Eco, de Maria Montessori e Joffre Dumazedier a Ellen Key, de Lev Vygotsky e Melanie Klein a Roland Barthes, de Walter Benjamin a Paulo Freire e Tizuko Kishimoto, entre outros. Na Antiguidade Clássica, Aristóteles já destacava o valor do jogo por sua autossuficiência, nos livros de sua “Arte Retórica” (publicados em texto integral no Brasil pela Editora Edipro), e interrogava sobre sua causa final em variáveis como luta e disputa, derrota e vitória, para concluir que, em toda circunstância, são as formas do prazer pelo próprio jogo o que procuram aqueles que jogam. Sobre as reflexões pioneiras de Aristóteles talvez seja também importante lembrar que, em grego, há uma revelação etimológica sobre as relações que se estabelecem entre infância, jogos e brincadeiras: todos os vocábulos referentes às atividades lúdicas estão ligados à palavra criança (“pais”, paidí“paidós”) e o verbo paizeim, que se traduz por “brincar”, também pode ser traduzido literalmente por “hora de brincar” ou “agir como criança”.










O brinquedo nazista: no alto, boneca produzida
pela tradicional empresa Käthe Kruse, que adotou
na década de 1930 uniformes militares nazistas
ou da Juventude Hitlerista para sua extensa linha
de bonecas e bonecos. Acima, a capa do livro de
André Postert e a reconstituição pelo autor de
um quarto de criança de classe média
na Alemanha da década de 1930.

Abaixo, as peças originais do jogo de
tabuleiro A Corrida da Vitória da Suástica
(Der siegeslauf des hakenkreuzes), lançado
quando Hitler tomou o poder em 1934.
Todas as imagens desta página fazem parte
do acervo reunido por André Postert












No último século, Walter Benjamin, vivendo na Alemanha em tempos sombrios que testemunhavam o avanço rumo ao poder e à destruição do nazismo, também deixou pesquisas e escritos reveladores sobre a prática de jogos como repetição e sobre as formas alegóricas de brincar. No ensaio “Brinquedos e jogos”, publicado em 1928 com o subtítulo “Observações marginais sobre uma obra monumental” (publicado no Brasil em “Reflexões sobre o brinquedo, a criança e a educação”, livro da Editora 34), Benjamin ressalta a polissemia da palavra “jogos” – na língua alemã, “spiel” (no singular) ou “spiele” (no plural) é um substantivo que pode ser traduzido tanto por “jogos” como por “brincadeiras”. “Spieler” se traduz por jogador; “spielerisch”, por brincalhão; assim como “spielen”, o verbo relacionado ao termo, tem, entre outros significados, “brincar”, “jogar” ou “representar”.



Ideologia bélica e macabra



No duplo sentido, em alemão, da palavra “spiele” e da prática de jogos e brincadeiras, Benjamin faz referências sobre as maneiras de brincar e sobre as fantasias e percepções construídas na brincadeira, nas lutas e na destruição dos brinquedos, nos objetos e na imaginação que marcam a vida cotidiana estampada no singular e no plural. “A essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformar a experiência mais comovente em hábito”, alerta Benjamin, para concluir que “o hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo que em formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho da brincadeira”. Se é verdade, como questiona Benjamin, que para cada um existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro submerge, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos? 








.


O brinquedo nazista: no alto, fotografia de
álbum de família na Alemanha da década de 1930.
Acima, bonecos produzidos pela Käthe Kruse:
à esquerda, folheto com anúncio do lançamento
Friedebald Puppe, boneco com mecanismo para
erguer o braço para a saudação a Hitler e que
esgotou rapidamente no mercado pela demanda
de exportações no começo da Segunda Guerra;
à direita, soldadinho de feltro, também
produzido pela Käthe Kruse, com enchimento
de algodão e uniforme militar completo.

Abaixo, bonecos em metal para a
coleção Mini-Nazis, que eram vendidos
separadamente; e fotografia de álbum de família
com meninos em 1938 estreando os presentes
de jogos de guerra sob a árvore de Natal













O questionamento filosófico e nostálgico identificado por Walter Benjamin em 1928 parece ter sido tomado literalmente como fio condutor pelo historiador André Postert, que desde 2014 atua como pesquisador associado do Instituto Hannah Arendt na cidade alemã de Dresden. Postert investigou durante anos, em arquivos e bibliotecas da Alemanha, os registros mais variados sobre os jogos infantis e as velhas caixas de brinquedos. Os resultados das pesquisas agora estão reunidos no livro “Kinderspiel, Glücksspiel, Kriegsspiel: Große Geschichte in kleinen Dingen 1900-1945” (em tradução livre, Jogo infantil, jogo de sorte, jogo de guerra, Grande História em pequenas coisas 1900-1945”), lançamento da Editora DTV em alemão e outras línguas (veja o link para leitura dos primeiros capítulos no final deste artigo).

Limitando sua investigação à primeira metade do século 20, Postert descreve práticas e objetos muitas vezes macabros que foram extremamente populares: de bonecas e bonecos em seus uniformes militares a carrinhos e miniaturas de aviões, tanques e submarinos, réplicas de armas, jogos de tabuleiro, cartas de baralhos, cartelas de sorteios, dados, livros infantis e fichas impressas e ilustradas, brinquedos com algum teor erótico, peças de xadrez ou uma variedade de peças para montar. Os itens do inventário que Postert organizou surpreendem porque comprovam os indicativos explícitos de uma profunda e intensa propaganda para a ideologia bélica, violenta e antissemita. Como agravante, no perfil da grande maioria dos brinquedos e dos jogos com estratégias de batalha, na época das duas guerras mundiais, todos com muitas estampas de armas, suásticas, escudos e outros símbolos nazistas, os apelos para crianças e adultos eram sempre anunciados em destaque como “educativos”.










O brinquedo nazista: no alto, miniaturas de
tanque de guerra, sucesso de vendas no
começo da década de 1940. Acima, pai e
filho brincam com miniatura de submarino
em fotografia promocional de 1941.

Abaixo, os tabuleiros e peças de
Juden raus! (Fora judeus!), lançado
em 1936 pela Günther & Co. com o rótulo de
um jogo para toda a família” e no qual o
vencedor era o jogador que primeiro conseguisse
recolher” seis judeus antes dos outros. Também
abaixo, outro jogo de tabuleiro de conteúdo
antissemita, Sakampf, em que os jogadores
disputavam pelo título de ser o primeiro a
destruir a democracia na Alemanha












.

Suásticas no tabuleiro



Na apresentação a seu inventário, André Postert destaca que jogos e brinquedos são reveladores sobre o comportamento de uma sociedade: eles representam o “zeitgest”, o “espírito da época” ou o sinal dos tempos. Segundo Postert, jogos, brinquedos e brincadeiras podem ser bons indicadores sobre o passado no tempo presente porque retratam a história em todos os seus aspectos, incluindo aqueles que em sua época não foram compreendidos, ou porque foram ignorados ou porque foram mascarados com sérias intenções ideológicas: tanto aspectos referentes às questões de tecnologia e economia como as implicações sobre política, educação, comportamento, racismo, fanatismo, religião, injustiça, crimes e guerras. “Alguns jogos e brinquedos são apenas uma moda passageira”, aponta Postert, “enquanto outros às vezes experimentam um renascimento inesperado depois de décadas. Acredito que isso acontece porque jogos e brinquedos não apenas escrevem a história, mas também refletem a história”.

A chegada de Adolf Hitler ao poder e à ditadura nazista na Alemanha abrange o período que vai de 1933 até o fim da Segunda Guerra, 1945, mas desde o começo do século 20 os jogos e brinquedos com orientação bélica e racista já ocupavam o mercado e as linhas de produção da poderosa indústria alemã. O auge para tal indústria antecede a Segunda Guerra e termina por alcançar os índices recordes de maior produção global para a Alemanha nas décadas de 1920 e 1930. Sob o controle de Hitler e do Partido Nazista (NSDAP), a Alemanha foi transformada em um estado totalitário fascista em que a vontade do Führer (líder) estava acima das leis e controlava todos os aspectos da vida dos cidadãos. Na Alemanha Nazista, também chamada de Terceiro Reich, a indústria de brinquedos foi transformada em mais uma engrenagem de sua gigantesca máquina de propaganda.












O brinquedo nazista: no alto, página do
catálogo de 1936 de miniaturas militares
da Hausser, uma das maiores fabricantes de
brinquedos da Alemanha na década de 1930.
Acima, o tabuleiro original de Guetto,
jogo que tem como tema a vida cotidiana no
campo de concentração de Theresienstadt
e que foi criado por um artista judeu,
Oswald Pöck, sequestrado em Viena, na
Áustria, em novembro de 1941, para ser
executado em Theresienstadt. Pöck
sobreviveu durante anos no cativeiro e
morreu em setembro de 1944, assassinado
no campo de concentração de Auschwitz.

Abaixo, a caixa original e uma seleção
de fichas de outro campeão de vendas,
o jogo de tabuleiro Weltkrieges Spiel
(Jogo da Segunda Guerra Mundial)












Enquanto os grandes fabricantes de brinquedos abraçavam as bandeiras do Terceiro Reich, em suas causas bélicas e racistas de perseguição e assassinato de judeus e outros grupos considerados indesejáveis, Joseph Goebbels, o todo poderoso ministro da Propaganda, atuava para lançar mão de todos os recursos para controle da opinião pública alemã, censurando e também assassinando qualquer oposição na cena política, nas escolas e na cultura em geral, promovendo determinadas formas de expressão artística favoráveis aos planos nazistas e fascistas e proibindo qualquer questionamento. Postert destaca que a indústria de brinquedos aceitou todas as formas de controle sem nenhuma resistência e que o próprio Hitler, assim como Goebbels, ia publicamente a mercados, a empresas e a grandes lojas de departamentos no Natal e em datas cívicas para promover, em ações direcionadas de publicidade, certos jogos e brinquedos, distribuindo presentes na presença da imprensa e de grandes plateias em situações planejadas nos mínimos detalhes. A mensagem era direta: “nós amamos as crianças e as crianças nos amam”.



A propaganda explícita



Entre as grandes empresas que comandavam a produção industrial, listadas no inventário de Postert, há muitos casos que impressionam pelo conteúdo bélico e racista dos jogos e brinquedos, de propaganda do estado totalitário, e pelos altos volumes de vendas que tais itens alcançaram. Entre eles está o marco representado pela empresa Käthe Kruse, que adotou uniformes militares nazistas ou da Juventude Hitlerista para sua extensa linha de bonecas e bonecos, ou o macabro “Juden raus!” (Fora judeus!), lançado em 1936 pela Günther & Co. com o rótulo de “um jogo para toda a família”. Na estratégia do “Juden raus!”, jogadores assumem nas peças do tabuleiro o papel de policiais e, ao ritmo de lances de dados, podem invadir propriedades, confiscar bens, prender famílias inteiras de judeus e fazer deportação de sequestrados para os campos de concentração. O vencedor era o jogador que conseguisse “recolher” seis judeus antes dos outros.












O brinquedo nazista: a partir do alto,
Hitler ao lado de um de seus comandantes
de alta patente recebem crianças em foto
promocional distribuída à imprensa no Natal
de 1939. Acima, o ministro da Propaganda
do Terceiro Reich, Joseph Goebbels, leva
as filhas Hilde e Helga (à esquerda) para
uma visita às lojas de brinquedos no Natal de
1938. Também acima, Wehrschach Tak-Tik,
uma variação para o tradicional jogo de xadrez,
tendo peças em azul e vermelho com tanques,
aviões e militares de várias patentes no lugar
de peões, cavalos, bispos, torres e, substituindo
rei e rainha, uma águia (símbolo nazista da
superioridade racial e da invencibilidade,
colocada acima da cruz suástica porque
sempre estava “acima de tudo”).

Abaixo, foto promocional da linha de bonecos
bonecas em uniformes militares em 1938
um anúncio da Associação de Fabricantes
Alemães de Estanho que comemora
o fim da “corrida pacifista”









A iniciação macabra aos rituais, à ideologia e às instituições do Terceiro Reich prossegue em muitos outros jogos e brinquedos investigados no livro de Postert. Havia também uma variedade de coleções de papéis de cartas, cartilhas didáticas e baralhos completos com retratos dos principais chefes do regime nazista, de Hitler a Goebbels, Göring, Himmler e outros comandantes militares, além de miniaturas de veículos reconstruídos em detalhes com bonecos representando personagens reais em seus uniformes militares oficiais. Hitler, com seu motorista e sua limusine preta, figuram como recordistas de vendas.

Outro campeão de vendas “para toda a família” foi o jogo “A Corrida da Vitória da Suástica” (Der siegeslauf des hakenkreuzes), uma peça de propaganda explícita lançada quando Hitler tomou o poder, em 1934. No jogo, as peças com suásticas eram movidas pelos jogadores de um campo a outro do tabuleiro, cada campo indicando momentos históricos do partido nazista desde sua fundação. O jogador que, depois de vários lances, pudesse ultrapassar os obstáculos dos opositores para chegar ao campo final, indicando 1934, vencia a batalha e destruía a democracia alemã.

O extenso acervo de jogos de tabuleiro e de brinquedos reunidos por Postert também representa um arsenal de doutrinação e de destruição, já que, na prática dos jogos e brincadeiras, principalmente as crianças, mas também os jogadores de todas as idades, aprendiam, reforçavam e espalhavam a ideologia fascista do regime com requintes de propaganda racista, militar e política, incluindo a preparação social para a guerra e seus crimes em massa, seus genocídios. Entre os documentos que impressionam pelas formas explícitas de violência que propagam, Postert reproduz trechos de um comunicado público de 1933 da Associação de Fabricantes Alemães de Estanho que é revelador pelos termos que comemora: “Acabou-se com a corrida pacifista estúpida das sociedades da paz e das ligas femininas contra todos os brinquedos militares”.












O brinquedo nazista: no alto, Hitler
estampado na caixa de Führer Quartett,
jogo de cartas lançado em 1934 com o
esquadrão completo do primeiro time das
forças policiais e militares do Terceiro Reich.
Acima, flautas com estampas de suásticas
que também foram usadas em tambores,
apitos, pequenos pianos mecânicos e outros
instrumentos musicais para crianças.

Abaixo, dois exemplares de bonecos que
representam judeus como seres diabólicos
em coleções de fantoches e de marionetes
anunciados pelos fabricantes como
brinquedos para toda a família”









A banalidade do mal



Macabro e fúnebre, o saldo criminoso e assustador do genocídio nazista gerou um cenário traumático que levou, no pós-guerra, pensadores como Hannah Arendt a chamar atenção para o que seria a “banalidade do mal”. Em 1961, depois de 15 anos do final da Segunda Guerra Mundial, Arendt, filósofa alemã de origem judaica que embarcou para os Estados Unidos fugindo do nazismo, é enviada pela revista “The New Yorker” para acompanhar o julgamento, em Israel, de Adolf Eichmann, tenente-coronel da Alemanha Nazista e um dos principais mentores do Holocausto, que havia sido localizado e preso em 1960 em Buenos Aires, Argentina. Com base nos relatos que escreveu para a revista norte-americana, Arendt publica em 1963 o livro “Eichmann em Jerusalém”, que tem por subtítulo “Um relato sobre a banalidade do mal” (editado no Brasil pela Companhia das Letras).

Arendt ressalta, considerando as estratégias nazistas que resultaram no assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus e outras etnias durante a Segunda Guerra, que o acusado naquele julgamento não apresentava características de um caráter distorcido ou doentio e que ele alegava ter feito o que fez porque acreditava ser aquele o seu dever, cumprindo ordens superiores sem questionar. Envolvido em polêmicas e muitas controvérsias, o julgamento, que terminou com Eichmann condenado à morte por enforcamento em 1962, fornece argumentos importantes para que Arendt reconheça, na banalidade do mal, uma ameaça constante para todas as sociedades democráticas, abordando o problema por uma perspectiva política e não moral ou religiosa.













O brinquedo nazista: no alto, o jogo de
salão Atenção, o inimigo está escutando!
(Achtung, Feind hört mit!), lançado em
1940 para promover o filme de propaganda
nazista de mesmo título com roteiro e
direção de Arthur Maria Rabenalt. Acima,
uma foto promocional distribuída pelo
Terceiro Reich nas lojas, às vésperas do
Natal de 1933, para anunciar que o
Führer” iria distribuir presentes para
filhos de pais desempregados e desejava
a todos os alemães um feliz Natal.

Abaixo, miniaturas de blindados militares
fabricados na década de 1930 em metal e
com detalhes cromados. Também abaixo,
Guerra Aéreajogo de tabuleiro fabricado
na Alemanha no início da década de 1940
e que após a Segunda Guerra se tornaria
ainda mais popular em vários países
com o nome de Batalha Naval.
Nas últimas imagens, abaixo,
meninos brincam com miniaturas de
soldados e de veículos de guerra em
fotografia da década de 1930 em um
orfanato na cidade alemã de Potsdam;
e o cartaz para os cinemas brasileiros
de O Tambor (Die Blechtrommel),
filme alegórico sobre um personagem
que vive a infância no período da ascenção
do nazismo, realizado em 1979 por
Volker Schlöndorff com roteiro adaptado
do livro homônimo publicado em 1959
por Günter GrassPrêmio Nobel de
Literatura de 1999







O mal, segundo Hannah Arendt, é um fenômeno político e histórico porque se manifesta apenas onde encontra espaço institucional – e sempre como resultado de uma escolha política: sua banalização corresponde ao vazio de pensamento que transforma a violência homicida em mero cumprimento de metas e organogramas burocráticos. Como a história comprova, a banalidade do mal sempre permanece à espreita, à procura da oportunidade  para se instalar, e até mesmo objetos e práticas na aparência triviais e do senso comum, como jogos, brinquedos e brincadeiras, podem ser instrumentos para espalhar e multiplicar, de forma monstruosa, o perigo de sua contaminação de ódio e violência. 


por José Antônio Orlando.




Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O brinquedo nazista. In: _____. Blog Semióticas, 12 de maio de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/05/o-brinquedo-nazista.html  (acessado em .../.../...).



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