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Desde sua invenção, a fotografia patrocinou a expansão dos limites do visível sobre o invisível, do revelado sobre o oculto. ––
Mauricio
Lissovsky em “A máquina de esperar” (2009). |
Autor de grandes clássicos da literatura universal como “Os Miseráveis” e “O Corcunda de Notre-Dame”, romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, ativista pelos direitos humanos e senador de importante atuação na França, Victor Hugo (1802-1885) poderia também ter sido o primeiro autor de um fotolivro. Contudo, o seu projeto para “As Contemplações”, reunindo uma fotografia para cada poema, terminou rejeitado pela casa editorial Hetzel. Depois de anos de adiamentos, “As Contemplações” seria finalmente publicado em 1856, com 92 poemas que fizeram história, mas sem as fotografias selecionadas pelo autor. Sem a publicação do projeto original de Victor Hugo, as honrarias pelo primeiro livro com fotografias ficaram com o escritor e cientista inglês Henry Fox Talbot.
Também
creditado como um dos inventores da fotografia,
Talbot passou
à condição de pioneiro
como autor de “The Pensil of Nature”, editado
em seis volumes, entre 1844 e 1846, pela casa editorial Longman, Brown, Green &
Longmans de Londres, e celebrado por ser o
primeiro livro a incluir reproduções fotográficas coladas em suas páginas. Na
mesma época da publicação do livro de Talbot, uma fotógrafa, Anna
Atkins, também em Londres, conseguiu realizar um trabalho editorial que é uma
proeza na pesquisa científica, nas artes gráficas e na história da
fotografia. Com espécimes que ela mesma coletou ou recebeu de outros
pesquisadores, Atkins fez
placas de gravuras colocando algas úmidas sobre papel fotossensibilizado, no
processo conhecido como cianótipo, que havia sido inventado em 1842
por John Herschel. O livro de Atkins, “Photographs of British
Algae” (Fotografias de Algas Britânicas), teve edição artesanal
em composições de manuscritos sobre os cianótipos.

Os livros com fotografias tiveram uma extensa trajetória de evolução técnica e aperfeiçoamentos desde os experimentos iniciais de Fox Talbot e Anna Atkins. Em 2005, tal trajetória, que remonta aos primórdios da fotografia, teve uma importante retrospectiva apresentada pelo trabalho de uma dupla de fotógrafos e pesquisadores, Gerry Badger e Martin Parr, autores de “The Photobook: A History” (Phaidon Press), em três volumes ilustrados, lançados respectivamente em 2005, 2006 e 2014. Além de popularizar o termo fotolivro (photobook), para o que antes era chamado de “livro de fotografia”, “livro de fotógrafo” ou “livro de artista”, o inventário de Badger e Parr define o conceito como “um tipo específico de livro de fotografia, no qual imagens prevalecem sobre o texto, e o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico ajudam a construir uma narrativa visual”.
Origens do fotolivro
Gerry
Badger e Martin Parr não
citam o projeto original de
Victor Hugo que não se concretizou, mas destacam o papel pioneiro de
Anna Atkins e William Fox Talbot, enumerando e descrevendo a
trajetória de centenas de
fotolivros que marcaram época e tiveram importância central desde o
surgimento dos processos fotográficos, nas primeiras décadas do
século 19. Do inventário
de Badger e Parr constam obras marcantes
da história da fotografia e
das artes gráficas, seja
com fotografias coladas nas páginas e encadernadas como livro, seja
com fotografias incorporadas ao processo de impressão do livro. Nos
três volumes amplamente ilustrados de “The
Photobook: A History” estão listadas, descritas e contextualizadas centenas de obras, tanto aquelas que alcançaram notoriedade como as que somente são
conhecidas por especialistas.
Do extenso acervo reunido por Badger e Parr também constam, em destaque, fotolivros que exerceram grande influência na fotografia, na literatura e nas artes em geral. Talvez seja importante esclarecer que a criação do fotolivro é uma arte literária e narrativa que está situada entre o filme e o romance – ressalta Gerry Badger. Alguns dos fotolivros em relevo na lista são “Street Life in London” (1878), parceria do jornalista Adolphe Smith com o fotógrafo John Thomson; “Animal Locomotion” (1887), de Eadweard Muybridge; “The Royal Mummies” (1912), de Grafton Elliot Smith; “Men at Work” (1932), de Lewis Hine; “Paris de Nuit” (1933), com fotografias de Brassaï, pseudônimo de Gyula Halász, e texto de Paul Morand; “Facies Dolorosa” (1934), de Hans Killian; “American Photographs” (1938), com fotografias de Walker Evans e ensaio de Lincoln Kirsten, e “Let Us Now Praise Famous Men” (1941), parceria entre Walker Evans e o escritor James Agee.
Também
são destacados na lista de Gerry Badger e Martin Parr os
fotolivros “Soviet
Photography” (1939), de Aleksandr
Rodchenko e outros fotógrafos e artistas; “Caribean
Crossroads” (1941), com
texto
de Lewis Richardson e fotografias
de Charles Rotkin; “The
Sweet Flypaper of Life” (1955),
poemas de Langston Hughes com
fotografias de Roy DeCarava; “The
Family of Man” (1955), com curadoria de Edward
Steichen;
“New
York” (1956), de William Klein; “Hiroshima”
(1958),
de
Ken Domon; e
“The
Americans” (1958), com fotografias de Robert Frank e texto de apresentação escrito por Jack Kerouac. A
partir da década de 1960, avanços
das
artes gráficas e técnicas de impressão vão
popularizar
as
edições,
com Gerry
Badger destacando
que carreiras
importantes foram impulsionadas por fotolivros
de sucesso – caso,
entre
muitos outros,
dos
norte-americanos
Alec Soth e
Ryan McGinley, ou
da
espanhola Cristina de Middel.
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Gerry
Badger, na
apresentação a “The
Photobook: A History”, também
inclui diversas referências à América latina. Do
Brasil, são
citados Mario Cravo Neto, Miguel Rio Branco e
Sebastião Salgado, entre outros, com
especial
atenção a “Amazônia” (1978), de Claudia Andujar e George Love,
que ele define como “mescla singular de política e pessoalidade”.
Outros
destaques são “Paranoia” (1963), com
a
poesia de Roberto Piva e as
paisagens
urbanas nas fotografias de Wesley Duke Lee; e “Bares Cariocas”
(1980), de Luiz Alphonsus, com registros de um olhar afetuoso sobre
os bares de bairros do Rio de Janeiro. Badger
elogia
a
forma pela qual os fotolivros são capazes de transportar pelo olhar para
uma viagem. “Nunca estive na Amazônia, nem no Rio nem na Bahia”,
confessa. “Mas esses fotógrafos do Brasil me levam até esses locais (…)
de um modo particular – complexo, intrigante e criativo”.
Álbum de Contemplações
O
projeto
de Victor Hugo de reunir no
mesmo livro uma seleção de poemas em diálogo com uma coleção de fotografias
finalmente está concretizado – por iniciativa de duas
pesquisadoras, Florence
Naugrette e Hélène Orain Pascali. Em
uma nova edição de “As Contemplações”, elas acrescentam 120
imagens fotográficas, todas produzidas nos primórdios da fotografia
por contemporâneos do escritor. O
ponto de partida foi um exemplar da primeira edição do livro, no
arquivo privado que pertenceu ao autor, que mantinha entre suas páginas uma
seleção de 34 fotografias, com anotações e correspondências entre poemas e
cada
uma das imagens, estabelecidas,
ao que se sabe, pelo próprio Victor Hugo, talvez
como uma lembrança nostálgica sobre o projeto que não pôde ser concretizado
na época, mas enriquecendo, na
presença
das
imagens, o espectro das interpretações literárias.
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Dois ensaios das organizadoras contextualizam a nova edição do livro de Victor Hugo. Em “Contemplações”, Hélène Pascali, historiadora da arte, vai pontuar como o nascimento da fotografia provoca o surgimento de um novo olhar sobre o mundo e sobre as imagens do real. Em “Como um Álbum”, Florence Naugrette, professora de Literatura na Sourbonne, confirma que o projeto original de Victor Hugo teria um impacto de grandes proporções em sua época porque seria o primeiro álbum de fotografias, uma experiência sem precedentes em uma época em que a fotografia era uma grande novidade. Especialista na literatura de Victor Hugo, ela também revela que sempre considerou os poemas deste livro como imagens estáticas apresentadas e descritas em preto e branco.
No diálogo que se estabelece entre os poemas e as fotografias, as questões de tempo e memória remetem ao trajeto biográfico do autor e também à história social: paisagens, cenas e personagens citados nos versos evocam, de maneira quase inevitável, imagens fotográficas em suas referências a tons da neve, das nuvens, do céu noturno, dos pássaros voando ao longe, do mármore e de detalhes da construção das casas, da areia da praia, das árvores imóveis ou agitadas pelos ventos e dos dias nublados de inverno. A própria estrutura do livro lembra um álbum de fotografias, traçado no itinerário de cada poema, que vêm legendados com data e lugar, como se fossem um diário de viagem. Folheando o álbum, cada poema e cada imagem torna-se um convite para seguir os passos do autor entre caminhadas, pensamentos, sentimentos, lembranças, busca metafísica e alguma esperança – como se lê em um poema sem título de 1855:
Je
ne vois que l’abîme, et la mer, et les cieux,
Et
les nuages noirs qui vont silencieux;
Mon
toit, la nuit, frissonne, et l’ouragan le mêle
Aux
souffles effrénés de l’onde et de la grêle.
(“Écrit en 1855”, Jersey, janvier 1855.)
Vejo
somente
o abismo, e
o
mar, e os céus,
E
nuvens negras que passam
em silêncio;
Meu
telhado, à noite, estremece, e o furacão o mistura
Com
os sopros frenéticos das ondas e do granizo.
(“Escrito em 1855”, Jersey, janeiro de 1855).
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Evolução da técnica
Victor Hugo foi eleito para a Academia Francesa aos 37 anos, em 1839, ano do anúncio oficial da invenção da fotografia com os equipamentos e técnicas de Louis Daguerre, batizados de Daguerreótipos. O escritor, porém, era entusiasta da fotografia desde que tomou conhecimento das experiências de Nicéphore Niépce, que fez os primeiros registros de imagens a partir de 1826. Victor Hugo também se dedicou ao desenho e à pintura, mas sempre se confessou um apaixonado pela fotografia, que ele chamava de "imagens pintadas pelo sol e pela luz". Mesmo depois da edição incompleta de "Les Meditations", ele continuou acompanhando com muito interesse a evolução da técnica e dos processo fotográficos pelos anos e décadas seguintes.
Florence
Naugrette e Hélène Pascali seguiram
as pistas com registros deste interesse especial de Victor Hugo pela
fotografia e, nos
mais de três anos de pesquisas para a seleção das imagens
que
agora
acompanham
os poemas, investigaram
as
correspondências temáticas no acervo do escritor e em coleções
privadas e públicas, em museus da
França e de outros países. No
dossiê de imprensa distribuído para o lançamento do livro, Florence
Naugrette
ressalta que a relação de Victor Hugo com a fotografia se dava intensamente na vida cotidiana, tanto que ele sempre esteve muito próximo de fotógrafos em sua época e cultivou uma forte amizade com Nadar, para muitos o maior fotógrafo do século 19.
“É possível localizar diversas referências ao retrato e à
fotografia na obra de Victor Hugo”, ela destaca, “mas na coleção
de poemas reunidos nestas ‘Contemplações’ a questão imagética
e fotográfica está mais evidente, tanto na busca de palavras e de figuras para
redescobrir a experiência como nas confissões sobre a importância
de ouvir a natureza, maravilhar-se, buscar o significado, cultivar e
traduzir. Palavra e imagem aqui expressam um mesmo sentido. E é também de fundamental importância perceber que todos os poemas, e todo o projeto original para o livro, foram criados à luz da invenção da fotografia e ainda nos primórdios dos processos fotográficos”.
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Na
versão final de
“As
Contemplações de Victor Hugo ilustradas
pelos primórdios da fotografia”
(Les
Contemplations de Victor Hugo
illustrées
par les débuts de la photographie),
lançamento
da Editions Diane de Selliers,
em
capa dura e 400
páginas, os
92 poemas são
contemplados
com
120
fotografias,
com
datas que vão de 1826 a
1910, selecionadas
do
acervo de 85 fotógrafos, todos
apresentados
com
perfil biográfico. O
resultado
é
um
inventário inédito
sobre
nomes de importância no início da história da fotografia e
uma
retrospectiva que
alcança das
experiências dos pioneiros ao aperfeiçoamento dos equipamentos e ao domínio da técnica, seja na aplicação de princípios estéticos, com evoluções de
enquadramento, de foco, de iluminação e de contraste, seja nas intervenções nos
processos de impressão, levando
a
imagem fotográfica a
um campo de
autonomia e de independência, em relação às
outras artes, para
o
registro instantâneo
de
fragmentos da realidade.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO, José Antônio. O fotolivro de Victor Hugo. In: Blog Semióticas, 8 de novembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/11/o-fotolivro-de-victor-hugo.html (acesso em .../.../…).
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