Porque a arte, na verdade, é tão difícil como o amor. –– Glauber
Rocha.
“Só
Morto”, o primeiro disco de um dos grandes nomes da MPB, está
finalmente disponível em CD. O original foi lançado em formato de LP de vinil em 1970
e desde então se tornou uma relíquia conhecida apenas pelos colecionadores. Por coincidência, chega agora pela primeira vez ao formato CD
como uma homenagem ao artista, que completou 70 anos no dia 3 de março. O nome
que consta na certidão de nascimento, por sinal, é tão incomum
quanto o nome artístico que ele adotou: Jards Anet da Silva. Desde o
final dos explosivos anos de 1960, ele assina somente Jards Macalé.
“Não
sei de onde tiraram essa história de que Macalé era o nome do pior
jogador do Botafogo. Sempre que vejo uma matéria sobre mim encontro
essa mesma história, de que ele era o pior. É tudo mentira”,
explica o próprio Jards na entrevista que fiz com ele por telefone para um jornal de Belo Horizonte. “Macalé não
era o pior e também não era o melhor. Era um jogador que naquela
época estava em evidência porque jogava no Botafogo e eu ganhei
este apelido porque eu também jogava futebol, só que na praia, e
achavam que ele era parecido comigo. Apelido é assim. Ou pega no ato
ou não pega”.
Senso
de humor apurado, cheio de ironia e afiado nas tiradas inteligentes,
Jards Macalé concedeu esta entrevista no dia seguinte a seu retorno
ao Rio de Janeiro, vindo de Nova York. A viagem foi um convite que ele nem pensou em recusar, porque era para acompanhar Eryk Rocha na estreia internacional do filme “Jards”, selecionado em destaque para um festival de cinema de prestígio, o New Directors / New Films, evento do MoMA, Museu de Arte
Moderna de Nova York.
Jards Macalé aos 70: no alto, um fotograma de Jards, filme de Erik Rocha. Acima, Jards no Rio de Janeiro, em foto de 1973. Também acima, Jards no palco do Nublu, em Nova York, em fotos de Erik Rocha.
Abaixo, Jards em 1967, na praia de Copacabana com Maria Bethânia, na época em que começou a carreira profissional como violonista e diretor musical dos primeiros espetáculos de Bethânia; com Erik Rocha, no festival de cinema promovido pelo MoMA, e a capa do disco Só Morto, que
chegou finalmente ao formato CD, em lançamento do selo Discobertas
Em
Nova York, Jards e Eryk Rocha, filho de Glauber, assistiram às
exibições concorridas e participaram de debates no MoMA, no Lincoln
Center e em programas de TV. O músico e o cineasta têm mesmo o que
comemorar, já que o filme foi aplaudido de pé e muito bem recebido
pela crítica, com elogios e reportagens de destaque nos principais
veículos de imprensa.
Começamos
a entrevista falando sobre o lançamento de “Só Morto” na versão
CD, que vem recheada de faixas-bônus que permaneceram inéditas por
décadas, mas no minuto seguinte o assunto vai para outras direções
e chega à estreia do filme nos Estados Unidos. “Foi uma
experiência tão fantástica que depois da estreia fomos celebrar no
Nublu, reduto do jazz em Nova York, a comemoração virou uma canja e o show seguiu com meu improviso no palco, madrugada adentro”, ele conta, feliz com o filme e com a parceria
com Eryk Rocha.
Parceiro
de Glauber
Novato
em cinema Jards não é – muito pelo contrário. Desde a década de
1960, participou como ator e compositor da trilha sonora em filmes
marcantes, incluindo um dos lendários longas de Glauber, “O Dragão
da Maldade contra o Santo Guerreiro”, além dos não menos
importantes “Amuleto de Ogum” e “Tenda dos Milagres”, de
Nelson Pereira dos Santos, “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de
Andrade, “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos Fontoura, “Se
segura, malandro!", de Hugo Carvana, e “Getúlio Vargas”, de
Ana Carolina, entre vários outros.
Jards
comemora: “Já dizia meu grande amigo Hélio Oiticica que quanto
melhor, melhor”. No Brasil, “Jards”, o filme, estreou em
janeiro no Festival de Cinema de Tiradentes e segue na agenda de
outros festivais, mas só deve chegar ao circuito comercial no
segundo semestre de 2013. "Fazer este
filme com o Eryk foi muito especial. Foram três semanas no estúdio
com a equipe de filmagem, com três câmeras, e saiu um filme muito
melhor do que a encomenda. É um filme diferente, mais experimental,
que foi surgindo de tentativas, de repetições, de improvisos, e no
final ficou mesmo muito parecido com a música que venho tentando
fazer desde o primeiro disco”.
No cinema,
a próxima parceria já está agendada: Jards Macalé volta a
trabalhar com Nelson Pereira dos Santos, que depois do mergulho na
obra de Tom Jobim com os recentes “A Música Segundo Tom Jobim” e
“A Luz do Tom”, agora prepara um filme sobre o imperador Dom
Pedro 2°. “Nelson sabe o que faz e faz um cinema de verdade,
incomum. Tudo o que fiz na vida foi em busca desta verdade. E olhando
para trás acho que acertei algumas vezes”, ele diz, recordando
histórias engraçadas dos amigos e dos “erros e acertos” das
muitas parcerias em quase 50 anos de carreira. Mais acertos do que
erros, é bom destacar.
“Arte é
assim. Tem que sair do lugar de conforto, tem que procurar o novo,
tem que criar. Foi assim que a arte e a cultura no Brasil produziram o
que temos de melhor. Foi desse jeito com nossos grandes artistas, foi
assim com as revoluções que o Tropicalismo inventou”, destaca,
lembrando de novo o gênio de Hélio Oiticica. “Foi o Oiticica que
deu o pontapé inicial para o que chamamos de Tropicalismo quando
registrou em cartório a palavra Tropicália, lá em 1958. Hoje
ninguém mais fala disso, mas temos que falar porque é importante”.
Memórias
da MPB: no alto, Jards Macalé no
final
da década de 1960. Acima, bastidores
do terceiro
Festival da Record, em 21 de
outubro
de 1967, noite da final do festival, com
uma
reunião de tropicalistas com Edu Lobo
(vencedor
do festival, com “Ponteio”, parceria
com José
Carlos Capinam). Na primeira foto,
em preto e branco, estão, entre outros,
Nara Leão, Sidney Miller, Rita Lee e os
irmãos
Arnaldo Baptista e Sérgio Dias Baptista
(da
formação original de Os Mutantes),
Zé
Rodrix (de óculos, embaixo da escada),
Maurício
Maestro (de óculos), Os Incríveis
(no
alto da escada), Marilia Medalha, Gilberto Gil,
Edu
Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso,
Nana
Caymmi (sentada), Geraldo Vandré,
Roberto
Carlos, Sergio Ricardo (sentado),
David
Tygel, os integrantes do MPB4, Capinam, Marcelo Frias (dos Beat Boys) e Torquato Neto.
Abaixo, Jards Macalé com Wally
Salomão; e o produtor musical Guilherme
Araújo (sentado), um dos mentores da Tropicália,
em fotografia de
1968 com Arnaldo
Baptista, Rita Lee, Caetano Veloso, Nana
Caymmi, Sérgio Dias Baptista, Jorge Ben,
Gal
Costa e Gilberto Gil
É
proibido proibir!
Jards Macalé começou a carreira profissional em 1965, como violonista e diretor
musical dos primeiros espetáculos de Maria Bethânia no Rio de
Janeiro, e estava no “olho do furacão”, como ele diz, no mesmo
grupo que também tinha, entre outros, futuros medalhões das artes
plásticas, da literatura, do cinema e da música, além do poeta e
jornalista do Piauí Torquato Neto e dos baianos Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Bethânia, Gal Costa, José Carlos Capinam.
“Lá
estávamos todos nós no apartamento em que eu morava em Ipanema, até
que um dia aconteceu o fogo que atravessou o Atlântico, vindo da
revolta dos estudantes nas ruas do maio de 1968 francês. Lembro que
foi o Guilherme Araújo que chegou de Paris muito
impressionado, contando que nunca viu nada igual, que os estudantes
tomaram as ruas da cidade, ficaram acampados, e por todo lado se via
os grafites dizendo 'é proibido proibir'. Para nós, que buscávamos
o novo, naquela ditadura militar que foi terrível, esta mensagem foi
uma luz no fim do túnel: é proibido proibir”.
Jards no palco com Luiz Gonzaga, encontro registrado pela revista “Pop”,
na edição de outubro de 1976, e com o mestre dos malandros cariocas, Moreira da Silva, seu parceiro no samba de breque Tira os óculos e recolhe o homem, no palco e em fotografia para uma reportagem de 1977 da revista Anima. Também acima, a prisão de Jards Macalé em Vitória, Espírito Santo, em 1977, em plena ditadura militar, após um show em parceria com Moreira da Silva. A frase, título do show, foi a resposta dita pelo delegado na hora da prisão e o episódio virou samba: “Tira os Óculos e Recolhe o Homem” Abaixo, Jards com Vinicius de Moraes em foto do começo da década de 1970; e com Naná Vasconcelos no palco do festival Som Livre Exportação em março de 1971
A frase do
grafite das revoltas estudantis do maio de 1968 francês foi
transformada em canções que marcaram época e se fez a História,
contada ao telefone por um dos principais protagonistas. “Para nós,
que mergulhamos na Tropicália, naquele contexto de repressão, é
muito triste, tristíssimo, descobrir que hoje os espaços da mídia
no Brasil foram tomados por tanta estupidez, tanta bobagem repetida,
tanto lixo importado. Não sou contra o produto importado. Nunca fui.
Mas ao menos deveriam ter o cuidado de importar o luxo de outros
países, e não somente o lixo”.
E a
experiência de completar 70 anos? Muda alguma coisa ou não muda
nada? – pergunto. “Muda tudo”, ele responde, disparando uma
gargalhada. “Muda porque agora sou outra pessoa. Aquele Jards
Macalé que veio até aqui tem seu valor, vou guardar com carinho as
boas lembranças. Mas agora virei outro: nasceu o novo Jards”.
Obra multimídia
Planos e
projetos encaminhados não faltam. O “novo Jards” segue na
temporada de lançamento do filme com Eryk Rocha no Brasil e no
exterior, está finalizando um CD com canções inéditas (que têm
como parceiros Adriana Calcanhotto, Elton Medeiros, Luiz Melodia),
organiza os registros de sua obra em várias mídias e está em
negociações para a instalação do acervo em um instituto cultural,
trabalha com Nelson Pereira dos Santos no novo filme e, para
completar, também faz parte do elenco que vai acompanhar o Papa
Francisco na Jornada Mundial da Juventude, programada para julho, no
Rio de Janeiro. Ele comemora, bem-humorado: “Jards com o Papa
Francisco, já pensou? Por essa ninguém esperava. Nem eu”.
O
“novo Jards” também diz que está surpreso e satisfeito com as
novas parcerias, mas quero ouvir sobre as histórias do passado e
pergunto sobre os antigos parceiros do velho Jards, incluindo Glauber
Rocha, Vinicius de Moraes, Egberto Gismonti, Hélio Oiticica, Lygia
Clark, Augusto Boal, Moreira da Silva, Paulinho da Viola, Jorge
Mautner, Naná Vasconcelos, Torquato, Capinam, Rogério Duprat, Chico
Buarque, Gal Costa, Bethânia, Clara Nunes, Nara Leão.
“Todos
parceiros da maior importância”, ele diz, lembrando de cada um
deles com histórias saborosas que trazem à conversa outros nomes,
outras artes, outras épocas. A conversa chega aos tempos sombrios da
ditadura militar, tempos difíceis, e Jards recorda as tristezas e a
repressão do período, mas também as alegrias e agitos da Swinging
London, durante a temporada que passou com Gilberto Gil e Caetano Veloso, que estavam
exilados na Inglaterra.
Gil e Caetano foram presos pela ditadura militar em dezembro de 1968, acusados de subversão, e permaneceram presos durante meses, sem nenhuma acusação formal e sem qualquer julgamento. Enquanto o mundo assistia ao pouso da espaçonave Apollo 11 na lua, em 21 de julho de 1969, Gil e Caetano eram obrigados a deixar o Brasil e seriam proibidos de retornar por mais três anos.
Jards Macalé e Os Brasões em 1969,
durante o
quarto Festival Internacional
da Canção,
quando Gothan City, canção
de Jards e Capinam,foi
vaiada pela plateia
do Maracanãzinho.
Acima, Caetano e Gil,
amigos no exílio
em Londres, por imposição
da ditadura militar; e Gal Costa em visita aos
amigos no exílio, em fotos de 1971 publicadas
pela revista Fatos & Fotos. Gil e Gal fizeram
um show histórico em 26 de novembro de 1971,
na London University, que só foi lançado em
CD no Brasil em 2014. Abaixo, Jards entre
amigos em visita a Caetano e Gil em Londres,
em 1971, na época da produção do álbum de
Caetano Transa; a partir da esquerda, em foto
de Antonio Guerreiro, o engenheiro de som
Maurice Hughes, os músicos Aureo de Souza,
Jards Macalé, Caetano e Moacir Albuquerque.
Também abaixo, Gil e Caetano diante da
torre do Big Ben e passeando na Trafalgar
Square, em 1969, durante o exílio em Londres;
Caetano, Jards e Moacir Albuquerque durante
os ensaios para as gravações do álbum Transa,
em fotografias de Pedro Paulo Koellreutter; Jards com Wally Salomão nos anos 1970, em fotografia de Geraldo Rocha;
com João Ubaldo, Alberto Cavalcanti e
Glauber Rocha em 1979 (fotografados por
Paula
Maria Gaitán); Jards em 2003 com
Jorge Mautner; e Jards em 2013, em
autorretrato com Jorge Ben Jor
Da
temporada em Londres saíram duas obras-primas com participação
intensa de Jards Macalé: a primeira foi o filme “O Demiurgo”, de
Jorge Mautner, que além de Jards também teve no elenco Mautner,
Caetano, Gil, Norma Bengell, Péricles Cavalcanti, Roberto Aguilar, Leilah Assunção, Gal Costa e Dedé Gadelha, esposa de Caetano –
um filme experimental como poucos, mistura de drama, comédia, poesia, música e
filosofia. Glauber dizia que “O Demiurgo” é o melhor filme do exílio e sobre o exílio, enquanto Jorge Mautner define o filme como uma fábula musical e uma chanchada filosófica que retrata a saudade do Brasil.
A
segunda obra-prima desta temporada com os amigos no exílio em Londres permanece em destaque entre os
melhores discos brasileiros de todos os tempos, “Transa”, de
Caetano Veloso, álbum lançado em 1971, resultado de mais de oito meses de ensaios com produção e
arranjos por conta de Jards, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo
de Souza. “Ensaiávamos num parque de Londres, todos os dias.
Parecíamos aqueles malucos do 'Blow Up' (filme de Michelangelo
Antonioni). Quem nos visse ali, sempre daquele jeito, pensaria que
estávamos num eterno piquenique”, recorda.
Vapor
barato
As
histórias de Londres trazem à tona as principais referências de
Jards, seus ídolos da Velha Guarda e os cantores e cantoras da Era
do Rádio, Carmen Miranda, Orlando Silva, Marlene e Emilinha Borba, o
primeiro encontro com Nélson Cavaquinho e Ciro Monteiro numa mesa de
botequim, a descoberta dos gigantes do jazz e o impacto que foi ouvir
pela primeira vez Erik Satie, compositor e pianista, precursor das
vanguardas minimalistas. Na trajetória da formação de Jards também
houve as aulas de música e alguns mestres incomparáveis que ele teve a sorte de encontrar
pelo caminho, entre eles Guerra Peixe, Turibio Santos, Dauelsberg, Jodacil
Damasceno, Ester Scliar.
Entre tantas histórias e personagens célebres que vão surgindo na entrevista, comento sobre a relação afetiva de
muitos da minha geração com as belas canções de Jards Macalé,
muitas delas com lugar cativo entre os grandes clássicos da MPB,
“Mal Secreto”, “Gothan City”, “Movimento dos Barcos”,
“Rua Real Grandeza”, “Poema da Rosa”, “Anjo Exterminado”,
“Alteza”, "The Archaic Lonely Star Blues", "Love,
Try and Die" e, especialmente, “Vapor Barato”, sua parceria
com o poeta Wally Salomão que teve aquela mítica e longa versão ao
vivo de Gal Costa em “Fa-Tal / Gal a Todo Vapor”, em 1971, tido com um
dos shows mais importantes da música brasileira.
“Sim, você tem razão, porque Vapor
Barato é um hino. É uma história que entrou na vida de muita gente
lá nos anos 1970 com a interpretação 'Fa-Tal' da Gal e é uma
canção que volta sempre. Vapor Barato está sempre voltando. Voltou
nos anos 1990, no filme do Walter Salles ('Terra Estrangeira'),
depois voltou na gravação do Rappa, depois com o Zeca Baleiro.
Engraçado que toda hora tem alguém fazendo contato comigo por causa
de Vapor Barato, querendo Vapor Barato na trilha sonora disso e daquilo. O
que é muito bom. Só posso comemorar, porque também sempre gostei muito de Vapor Barato”.
Para
encerrar a entrevista, voltamos ao primeiro disco, “Só Morto”,
lançamento recente do Selo Discobertas. “Este CD foi outra grande
surpresa. Mas olha o que falei no começo da nossa conversa: aí já
é o novo Jards (risos). Foi um presente da melhor qualidade para o
novo Jards, uma homenagem bacana que recebi de presente de
aniversário de 70 anos do Marcelo Fróes, que é um cara muito
especial, um pesquisador e produtor como poucos, pouquíssimos”.
O
disco de 1970 tinha quatro músicas: “Soluços”, dele próprio,
e “O Crime”, parceria com Capinam, no Lado A. No Lado B, “Só
Morto / Burning Night” e “Sem Essa”, duas parcerias de Jards e
Duda (Carlos Eduardo Machado). “O Marcelo Fróes me procurou e
disse que tinha encontrado as outras gravações, todas elas inéditas
em CD. Fiquei animado com o projeto e, depois, quando recebi o CD
pronto, tão bem cuidado, tão profissional, foi só felicidade”.
“Só
Morto” saiu com as quatro faixas como compacto duplo em 1970.
Agora, tem como acréscimo 10 canções que foram gravadas ao vivo em
shows realizados entre 1970 e 1973, com Jards Macalé acompanhado do
Grupo Soma, um dos mais conceituados do “rock brasilis” na década
de 1970. As quatro canções do primeiro Jards não ganharam sucesso
popular, mas a importância daquele compacto duplo é sempre
destacada pelos fãs e pelos pesquisadores da música brasileira,
ainda que o disco permanecesse uma raridade, conhecido apenas por uns
poucos colecionadores.
Jards,
no comando dos arranjos, no violão e nos vocais, é sempre uma
surpresa: tom personalíssimo, grave, experimental e crítico, por
vezes gritado, por vezes irônico, festivo, ritmado. Na primeira
metade da década de 1970, Jards contava com o auxílio luxuoso do
Soma, formado por Ricardo Peixoto (guitarra), Jaime Shields
(guitarra), Bruno Henry (baixo) e Alírio Lima (bateria), além da
presença muito especial de Zé Rodrix no piano e no órgão.
Música
com atitude
Completam
a trilha de “Só Morto”, além das quatro canções originais,
uma lista de pérolas da MPB que inclui versões para “Gothan City”
(de Jards e Capinam), “Só Morto / Burning Night” (Jards e Duda),
“Let's Play That” (Jards e Torquato Neto), “Poema da Rosa”
(Jards e Augusto Boal), “Orora Analfabeta” (Belizário Gomes e
Waldeck Macedo) e mais três parcerias da dupla de “Vapor Barato”,
Jards e Wally Salomão, em “Revendo Amigos”, “Anjo Exterminado”
e “Rua Real Grandeza”.
O
novo Jards, tanto quanto o antigo, é falante, provocador,
imprevisível. Faz reverência aos amigos e às parcerias, em
especial a Wally Salomão, morto aos 60 anos, em 2003. “Wally é
uma pessoa importantíssima para mim e para o Brasil. Grande poeta,
grande pensador, grande na música e na atitude. Faz muita falta sua
inspiração, sua conversa franca”. Antes de concluir a entrevista,
arrisco um desafio: muitos se referem a você como “maldito da
MPB”, ou “marginal”, ou “pós-tropicalista”, mas qual é a
melhor definição para a música de Jards Macalé?
Ele
faz uma pausa e diz que para responder terá que recorrer a duas
figuras geniais, segundo ele duas das personalidades mais brilhantes
com as quais teve a sorte do convívio: Hélio Oiticica e João
Gilberto. “Veja bem... (risos). Vou responder sua pergunta, José,
com frases famosas dos mestres Oiticica e João Gilberto. Oiticica
dizia: minha arte é música, a arte que faço é música. E o João
Gilberto, quando faziam perguntas difíceis sobre a Bossa Nova,
respondia: a Bossa Nova não existe, o que existe é o samba. Então,
agora eu digo a você: minha vida é música, mas o que eu faço é
samba”. Só quando concluímos a entrevista é que percebo que
falamos durante quase duas horas. Agora, enquanto termino a redação
da matéria, penso na sábia definição do artista por ele mesmo e concordo: sim, é samba. Da melhor qualidade.
Ut quod ali
cibus est aliis fuat acre venenum. ...............
(O
que é alimento para alguns, é amargo veneno para outros – In:
"De
Rerum Natura", Titus Lucretius Carus, século 1° antes de Cristo).
Enquanto os
brasileiros acompanham sucessivas ameaças de retrocessos nas questões
dos Direitos Humanos e das liberdades individuais, com propostas anacrônicas de legislações para
internação compulsória e endurecimento da repressão ao uso de
psicoativos, em muitos países a discussão avança não só na
descriminalização, mas também na abrangência em questões de
saúde, educação e – por que não? – arte e cultura. Uma seleção de peso da produção
de artistas sob a influência das drogas é o que propõe uma
corajosa e oportuna exposição organizada pela Maison
Rouge, um dos nobres endereços de referência em Paris sobre artes
plásticas e design.
“Sous
Influences – Arts plastiques et produits psychotropes” (Sob
influência – artes plásticas e psicotrópicos) reuniu um
acervo extenso e diversificado de 250 obras-primas de 90 artistas de vários estilos, várias épocas
e vários países, incluindo trabalhos do brasileiro Hélio Oiticica. Todas as obras selecionadas para a mostra, de algum modo, estão ligadas aos efeitos de substâncias
psicoativas e a maioria delas vem com a indicação “criada pelo
artista em estados alternativos de consciência”. Como se pode
prever, cada artista em cada criação apresentada tenta capturar
sensações ou até mesmo alucinações provocadas pelas mais
variadas experiências nas aventuras da percepção, incluindo as viagens alucinógenas, o sonho, o transe religioso, a mediunidade, a possessão, a psicodelia e outras variações nos intervalos da consciência.
Aventuras
da percepção: no alto da página,
Cogumelo
venenoso fluorescente, instalação
e
fotografia de 2004 de Carsten Höller, obra
que
abre o catálogo da exposição apresentada
na Maison
Rouge, em Paris. Acima,
Trip
triptych (1983), uma homenagem
do
alemão Ralf Winkler ao outsider e
artista
do grafite Jean-Michel Basquiat.
Abaixo, Basquiat em Nova York, em 1982,
com Annina Nosei, que foi sua primeira
agente; Dos cabezas, Andy Warhol e
Basquiat em pintura de 1982 de Basquiat;
e Basquiat em ação na Factory de
Andy
Warhol, em Nova York, fotografado
em
1985 por Lizzie Himmel e em
1983
por Lee Jaffe. Também abaixo, visitante
observa uma pintura de Basquiat sem
título, identificada como Pecho/Oreja
“Desde
o início dos tempos, desde o alvorecer da civilização humana, os
artistas sempre encontraram pelo caminho substâncias psicoativas em
plantas, fungos, maceração e bebidas as mais variadas, que levaram
a passagens místicas, à iluminação, mas também provocaram
confusão, intoxicação, morte” – explica Antoine Perpère,
curador da exposição na Maison Rouge e coordenador de um centro de
atendimento a dependentes químicos em Paris.
No
texto em que apresenta a exposição, Perpère repete um célebre
enunciado – “a diferença entre remédio e veneno é a dose” –
atribuído desde a Idade Média ao místico Paracelso (1493–1541),
um dos fundadores da Farmacologia, mas também poderia lembrar
grandes poetas e pensadores dos últimos séculos como Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud,
Sigmund Freud, Walter Benjamin, Dylan Thomas, Aldoux Huxley, Allen Ginsberg, William Burroughs, Timothy Leary, Michel Foucault e Jim Morrison, ou cineastas da estética surrealista, como Luis Buñuel, Jean Cocteau ou David Lynch, entre
outros, que dedicaram a experiências com embriaguez, alucinógenos, e
outros estados alterados de consciência, escritos e obras preciosas, alguns
deles destacados entre os documentos em exposição.
Aventuras
da percepção: acima,
entrada
principal da Maison Rouge, em
Paris,
com instalações multicoloridas,
ópio
no aroma do incenso e sensações
lisérgicas
provocadas por peças exclusivas
de
design e pelas obras da exposição
Sob
influência. Acima, três cartazes em
homenagem
a Timothy Leary, um dos
mentores
do LSD, com arte do músico e
performer
multimídia francês Jaïs Elalouf.
Abaixo, Sans
titre, escultura em tubos de
PVC
de 2007 de Vincent Mauger
.
Psicofármacos e êxtase, pesquisa estética
"Os
artistas, que sempre permanecem em busca de novas formas de criação,
de transgressões, de estímulos, de caminhos para a imaginação,
nunca estiveram alheios à descoberta dos efeitos das mais variadas
experiências, inclusive a transgressão das drogas", reconhece
Perpère. Para ressaltar os fundamentos da exposição, ele alerta
sobre um necessário juízo de valor, uma vez que a proposta da curadoria foi traduzir, transcrever e documentar determinadas experiências de artistas a partir de substâncias psicotrópicas, antigas e novas, na tentativa de permitir que cada indivíduo perceba a complexidade constante de seus efeitos.
“O
artista não é um drogado como qualquer outro porque o artista tem a
preocupação de traduzir e transmitir o que vivenciou ao estar sob
aquela influência", afirma o curador. Perpère enumera algumas
questões conceituais sobre o “corpus”, antes de concluir a breve
apresentação com um alerta: segundo o curador, a exposição,
inédita e ousada, não tem por objetivo fazer julgamentos morais e
muito menos apologia das drogas, mas sim buscar a reflexão e um
melhor entendimento sobre as conexões entre processos criativos e o
uso instrumental de substâncias psicoativas.
Entre
os artistas reunidos em “Sous Influences” estão desde expoentes
das vanguardas do começo do século 20, como Francis Picabia e
Antonin Artaud, até nomes contemporâneos como o
grafiteiro e pintor Jean-Michel Basquiat, o cineasta Larry Clark, os
fotógrafos Nan Goldin e Irving Penn, o pioneiro da arte multimídia
Nam June Paik e também seu discípulo Takashi Murakami, entre
outros, além de Damien Hirst, o multimilionário e supervalorizado
inventor de instalações bizarras e polêmicas que ganharam a mídia
nas últimas décadas – com suas esculturas hiper-realistas de casais
em mirabolâncias sexuais e urnas de vidro transparente com corpos de tubarões,
vacas e ovelhas flutuando em formol.
Aventuras da percepção: no alto, L'Aspirine c'est le
champagne du matin, instalação criada em 2009 em lâmpadas de LED e alumínio pela
francesa Jeanne Suspuglas. Acima e abaixo, Dots Obsession (Infinity Mirrored Room), 1998 (Obsessão pelas bolinhas no
infinito quarto espelhado), instalação psicodélica com espelhos, luzes e formas infláveis de plástico flutuantes que simulam o infinito, uma criação da arquiteta e artista plástica japonesa Yayoi
Kusama
Nesta
exposição em Paris, Hirst surpreende mais uma vez com uma obra
inédita, cifrada e complexa, simples apenas na aparência: batizada
de “A Última Ceia”, pode ser descrita como uma série de
serigrafias emuldoradas e dependuradas em uma parede. O que Damien
Hirst faz é substituir as figuras de Jesus Cristo e seus 12
apóstolos por embalagens de remédios, cujos nomes foram trocadas
por marcas de alimentos típicos da Inglaterra, como batatas,
tomates, salsicha e feijão. Com isso, põe em destaque a denúncia
sobre o peso que medicamentos controlados têm na vida cotidiana de
milhões e milhões de pessoas.
Oiticica:
anarquista, concretista, tropicalista
Mas
Damien Hirst não é o maior destaque nem o mais ousado entre os
artistas reunidos na exposição pioneira em Paris. Um dos que
roubaram a cena e provocaram sensação na imprensa internacional, na
abertura da exposição, foi o brasileiro Hélio Oiticica (1937–1980)
, único latino-americano selecionado para a mostra. Apontado como
“anarquista e atualíssimo” pela curadoria, pioneiro da Arte
Concreta, do Neo-Concretismo e do Tropicalismo, iconoclasta e
teórico, Oiticica está presente em “Sous Influences” com uma de
suas intervenções incendiárias e incomuns nas proposições de
suporte: a obra “Quasi-Cinema 02.CC5”, desenvolvida em 1973 para
a série “Cosmococa”.
Aventuras da percepção: no alto, Last Supper (2013), a “ última
ceia”
em instalação com serigrafias de Damien Hirst, que
substituiu as imagens de Cristo
e seus 12
apóstolos por embalagens de remédios com nomes de marcas de alimentos típicos da Inglaterra. Acima, o brasileiro Hélio
Oiticica no ateliê, no Rio de Janeiro, e a imagem
de Jimi Hendrix
na incendiária Quasi-Cinema 02.CC5, instalação que
Oiticica desenvolveu em 1973 para a série Cosmococa, agora em
destaque na mostra da Maison Rouge.
Abaixo, duas fotografias selecionadas de 1998 de Michel François, "Petite fille
et boteille" e "L. a la datura"; três grafites
de Ernest Pignon fotografados nas ruas de
Paris em homenagem a Arthur Rimbaud;
e um breve registro em vídeo sobre
as obras e instalações da exposição
Hélio Oiticica,
sempre lembrado por seus “Parangolés”, alegorias pontuadas de
enigmas para vestir, questionador e indiferente a estilos e modismos,
traduz o universo e a mística das drogas ilícitas através da
distorção sobre uma imagem conhecida de um dos heróis da era do
rock. Em direções opostas das previsíveis variações cromáticas chapadas de
seu contemporâneo Andy Warhol, com quem conviveu durante vários períodos em Nova York, na
década de 1970 – a intervenção de Oiticica questiona não a percepção das cores, mas o sentido das coisas:
sua instalação fica em cima de uma mesa tradicional de madeira que
tem, sobre os traços do rosto de Jimi Hendrix, linhas de pó branco,
utilizando a capa do disco “War Heroes” como bandeja e, sob a
capa, uma folha de papel alumínio.
Warhol, aliás, é uma das ausências sensíveis em
“Sous Influences” – lembrado apenas indiretamente por citações
ou por obras de seus pupilos e discípulos selecionados, certamente deixado de fora por conta das dificuldades burocráticas para a exibição de suas obras originais ou de réplicas em suportes variados. Mesmo considerando uma ou outra ausência sensível pelas afinidades do tema abordado, pelo que se
vê nas imagens de divulgação e no “dossiê de imprensa” (veja
links para visita virtual à mostra na Maison Rouge no final deste
artigo), a curadoria teve o cuidado de reservar detalhes que podem
levar o visitante à imersão em uma autêntica experiência
psicodélica, com ambientes que aguçam por contraste todos os
sentidos, em roteiros com iluminação surpreendente, pontuados de
belas e estranhas imagens, acordes de música suave, ruídos
intrigantes e até aromas simultâneos.
Aventuras da percepção: no alto, pílulas
e comprimidos diversos, agulhas, fragmentos de radiografias, acrílico e resina sobre madeira na instalação Gravity's
Rainbow Small (Arco-íris de pequena gravidade), trabalho de 1998
do norte-americano Fred Tomaselli. Acima, artista islandês Erró, colaborador de Björk, compara seringa usada por viciados a arma poderosa em Dáileog 2013 (Uma dose), painel de 1,70cm de altura em diversas
técnicas, inspirado em personagens e design de histórias em quadrinhos.
Abaixo, Autorretratos: o primeiro de
Antonin Artaud, ator, dramaturgo, poeta,
escritor, artista plástico, anarquista e
dissidente do movimento surrealista,
com obra em giz e carvão sobre papel,
de 1947; o segundo, pintura
em óleo sobre tela de 1939 do polonês
Stanislaw Ignacy Witkiewicz, também
dramaturgo, romancista, pintor,
fotógrafo, filósofo da arte e antropólogo,
que foi oficial do Exército Russo durante
a Primeira Guerra Mundial. Tanto Artaud
como Witkiewicz, com suas experiência
na arte e na literatura, traduzem e
simbolizam os efeitos das
drogas psicotrópicas e alucinógenas
sobre as sensações táteis e visuais
O visitante encontra, a partir da entrada da galeria
principal da Maison Rouge, decoração e objetos em cores contrastantes, espelhos estrategicamente posicionados para provocar sensações de duplicidade ou vertigem, incensos que simulam cheiro de ópio e uma
instalação lisérgica em Optical Art, do artista belga Carsten
Höller, nomeada como "Swinging Corridor" (Corredor flutuante), criada em 2005 e reconstruída para o espaço de acesso à exposição, que leva o observador a acreditar que as paredes estão tremendo
e em ligeiros movimentos contínuos. Os relatos do público indicam o
efeito alcançado: segundo a curadoria, a maioria dos entrevistados
na saída da instalação diz, muito surpresa, que chegou a sentir de forma nítida os efeitos da
embriaguez e de outras viagens alucinógenas.
Aventuras da percepção: presença do fotógrafo Irving
Penn na mostra Sous Influence, com duas imagens da série fotográfica Mégots, de1974, com resíduos e pontas de cigarro e de marijuana elevados ao status de obra
de arte. No alto, Dessin
sous l’influence du haschich (1853), do
médico Jean-Martin
Charcot, que foi professor de Freud.
Abaixo, reconstituição de uma instalação
da década de 1960 do artista e cineasta
francês Daniel Pommereulle, nomeada
como Objetos de tentação, com uma mesa de mármore cheia de drogas e objetos usados para consumi-las
Além
de obras-primas de vários momentos da História da Arte, a mostra
em Paris também reúne objetos raros, como uma seleção de equipamentos
utilizados através nos tempos nas práticas de Farmacologia. Nesta
seção, são especialmente enigmáticos os desenhos da série a
nanquim feitos “sob a influência de haxixe”, a partir de 1853,
por um dos nomes de destaque no Panteão das Ciências: Jean-Martin
Charcot (1825–1893), célebre médico e cientista francês, autor
de importantes contribuições para o conhecimentos de diversas
doenças e síndromes, pioneiro da psiquiatria e professor de alunos
que se tornariam referência até nossos dias, entre eles Sigmund
Freud, Joseph Babinski e James Parkinson, entre vários outros.
Cenas e imagens de impacto
Na mesma seção da exposição, há também uma grande sala com fotografias e réplicas de objetos usados para o
consumo de drogas no mundo inteiro – com destaque para a instalação
de equipamentos de experiências sociais realizadas no decorrer do século 20 e na atualidade em países europeus como
Suíça, Dinamarca, Holanda e outros, que têm espaços autorizados e
livres com infraestrutura para viciados e dependentes químicos.
Aventuras da percepção: fotografia e cinema na exposição sobre arte e drogas da
Maison Rouge, com Fix, de 2012 (no alto), do fotógrafo espanhol Alberto Garcia-Alix. A palavra “Fix” escrita na
parede é uma gíria usada para “dose de droga”, normalmente
injetada.
Acima, Le
Poète Exhale (O poeta exala), fotografia de
1959 de Lucien
Clergue
que retrata Jean
Cocteau, ativista
cultural, cineasta, poeta, escritor, dramaturgo,
artista
plástico, diretor de teatro e ator.
Abaixo, Jean Cocteau fotografado em
1922 por Man Ray; um retrato de Jean Cocteau
e Jean Marais, fotografados em 1939 por
Cecil Beaton; e Jean Marais em
cena de Orfeé, filme de 1950 de
Cocteau. Viciado em ópio
e álcool,
Cocteau retratou as alterações dos sentidos
da percepção provocadas
pelos alucinógenos
em diversos trabalhos, entre eles o célebre
poema Ópium, de 1930, escrito e
ilustrado “sob influência”
Entre tanta obra surpreendente em exposição, uma das séries mais inusitadas são os autorretratos do norte-americano Bryan Lewis
Saunder, todos declaradamente criados sobre efeito de drogas – com
seu uso minucioso desde 1995 de pelos menos uma substância diferente
a cada dia, ou a cada autorretrato, inspirado pelas variações e
misturas mais escatológicas, de molhos absurdamente picantes a
álcool, chás alucinógenos, cristais de metanfetamina, maconha,
ópio, haxixe, cocaína e os mais diversos medicamentos “legais”.
Viagens com anfetaminas, LSD e tudo o mais também são traduzidas por
diversos outros, inclusive em autorretratos – caso das duas séries
de homenagens ao lendário Timothy Leary, professor de Harvard, ícone
maior dos anos 1960, um dos mentores do LSD. Leary e o LSD são
inspiração para os cartazes do artista multimídia francês Jaïs
Elalouf e para as pinturas surrealistas do austríaco Arnulf Rainer,
“Faces Farces”, autorretratos após o artista ter passado por alucinações com
misturas de ácidos. Rainer, há alguns anos, foi ele mesmo objeto de estudos por especialistas, tendo participado de um programa de pesquisa científica da
Universade de Lausanne sobre os efeitos do uso de drogas como o LSD.
Aventuras
da percepção: três imagens
de Faces
Farces, uma sequência de
autorretratos
do fotógrafo e pintor
austríaco Arnulf
Rainer, todos feitos
sob
influência, depois de alucinações
provocadas
por experiências com LSD.
Abaixo,
uma serigrafia da série de 1987
American
Express, do artista francês
Raymond
Hains, que reconstituiu imagens
para
demonstrar o efeito de distorções da
visão
após o consumo de LSD e ácidos
O efeito infinito
Experiências com ácidos, anfetaminas e alucinógenos
também fornecem o ambiente e a pesquisa de materiais e formas para a
arquiteta e designer japonesa Yayoi Kusama. A partir de suas próprias
viagens, registradas em um “diário eletrônico”, Yayoi Kusama deu
início às pinturas e desenhos minimalistas que se repetem na
estamparia que cobre suas instalações de labirintos – cenários
onde o visitante pode penetrar e que parecem saídos de um parque de diversões do futuro, com luzes,
espelhos e estruturas psicodélicas que simulam o infinito.
Entre as fotografias, há muitas imagens fortes –
mas as de maior impacto por certo vem de Larry Clark, conhecido no
mundo inteiro desde o cruel e realista “Kids” (1995), que mostra
em tom de documentário o cotidiano de adolescentes às voltas com
skates, Aids e todo tipo de uso diversional de drogas. Na exposição,
Larry Clark apresenta uma série documental em sépia e preto e
branco sobre viciados e suas práticas nos Estados Unidos – entre eles uma grávida
injetando heroína.
O visitante também tem à disposição muitos filmes e
peças de videoarte exibidos em grandes telões de alta definição.
“Filmes e vídeos em suportes variados desempenham um papel
especialmente importante nesta exposição”, explica Antoine
Perpère, lembrando que só através do registro audiovisual é
possível reconstituir experiências efêmeras e em alguns casos
transcendentais, místicas, como as performances de Isadora Duncan,
Artaud, o cinema poético e surrealista de Jean Cocteau, as
performances contemporâneas de criação coletiva.
Aventuras da percepção: acima, três
autorretratos em técnicas diversas pelo
norte-americano Bryan Lewis Saunders,
que desde 1995 realiza pelo menos um
autorretrato por dia depois de fazer
“experiências” com os mais diversos tipos
de drogas e medicamentos. A partir do
alto, as telas batizadas de Marijuana;
½ Gramme cocaine; e Nature.
Abaixo, Morphine
Nas palavras do curador, o potencial do audiovisual
surge como uma atualização das experiências ancestrais do Shaman –
o curandeiro que viaja em espírito a outra dimensão e retorna para
contar o que aprendeu para seus pares na tribo. No caso dos registros
em exposição, filmes e peças em videoarte parecem permitir um melhor
entendimento sobre a própria produção em artes plásticas,
especialmente nos casos selecionados, em que se pode acompanhar desde
tentativas iniciais de criação e transcrição pelo artista até a
possibilidade de reconstituir, a partir da obra final. os processos de determinadas intuições
ou percepções.
Antoine
Perpère também alerta sobre a urgência da sociedade discutir a
questão do uso diversional e medicinal de substâncias atualmente
consideradas drogas lícitas ou ilícitas. “O que posso dizer é
que tudo indica que guerra às drogas não funciona. Sou a favor da
descriminalização do uso de drogas”, reconhece o curador. Seu
argumento principal: na História da Civilização, as experiências com psicoativos não têm nada de novo. Vêm de séculos e, em alguns
casos, milênios. Sem contar que substâncias como café, tabaco,
álcool e tantas outras, hoje consumidas normalmente em larga escala, no mundo inteiro, um dia também já foram proibidas e consideradas ilícitas.