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31 de dezembro de 2020

Cidades de Miguel Rio Branco


 

 

Na maioria das vezes as fotografias recentes

que encontro não me dizem nada. Só nas fotos

do século passado eu encontro um certo frescor.

–– Miguel Rio Branco.   


O ano da pandemia chegou ao fim com uma importante homenagem a Miguel Rio Branco, um dos principais nomes da fotografia contemporânea no Brasil e, por coincidência, um fotógrafo que há mais de meio século atua registrando o isolamento social involuntário que a sociedade de consumo impõe a pessoas que, por diversos motivos, estão proscritas do sistema, às margens das grandes cidades. A homenagem veio do Instituto Moreira Salles (IMS) com a apresentação, em sua sede imponente da Avenida Paulista, da maior e mais abrangente mostra já realizada sobre a trajetória do fotógrafo. Com um título também imponente, abrangente e paradoxal, “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”, a exposição, organizada pelo próprio Miguel Rio Branco em parceria com Thyago Nogueira, curador da área de Fotografia Contemporânea do IMS, reúne mais de 200 imagens em grandes painéis que, literalmente, ampliam detalhes para destacar novos sentidos de uma obra singular, marcada pelos registros documentais e pela experimentação do suporte fotográfico no cruzamento de diferentes linguagens como a pintura, o cinema, a música.

Miguel Rio Branco, que completou 74 anos neste ano da pandemia, revê, pela primeira vez, seu arquivo da vida inteira nas imagens em cores e em preto e branco selecionadas para a exposição – um evento que, em sintonia com os novos tempos, será apresentado com rígidos protocolos de segurança, horário restrito e visitação em número reduzido, somente autorizado a partir de agendamento prévio. Além da visitação presencial com restrições e da versão on-line no site do IMS, o acervo fotográfico também está reunido em um catálogo completo de 208 páginas, na verdade uma narrativa visual editada pelo próprio fotógrafo e pela curadoria. Na apresentação ao catálogo, Thyago Nogueira destaca que Miguel Rio Branco tornou-se mundialmente conhecido por seus fotolivros – livros fotográficos construídos através de edições com critérios minuciosos e rigor técnico que conquistaram, no Brasil e no exterior, o status de obras de arte.










Cidades de Miguel Rio Branco: fotografias
selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”
,
apresentada pelo Instituto Moreira Salles. No alto,
imagem da série de 1973 Azul e Vermelho com Cavalo.
Acima, fotografia de Maria Clara Villas na abertura da
exposição no IMS da Avenida Paulista. Também acima,
fotografia de Miguel Rio Branco em homenagem à
cantora de jazz Billie Holiday no rosto de uma mulher
anônima em Salvador, Bahia, uma das três imagens
da série Billy's Triptychy, de 1984.

Abaixo, outras fotografias de Miguel Rio Branco
reunidas na exposição do IMS: Cinema Glória,
de 1975; uma imagem da série Coração,
Espelho da Carne
, de 1980; e uma imagem
da série Mona Lisa, de 1973














O artista Miguel Rio Branco exibe sua maneira pessoal de encarar a fotografia”, aponta o curador. “Aqui (na exposição ‘Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas’), a imagem não é apenas o registro de uma realidade vivida ou observada, mas um momento capaz de oferecer uma nova experiência. O que está em foco é a vivência do artista diante das cidades e sua maneira própria de escrever com imagens. A ideia do projeto era pensar a fotografia como escrita e investigar a sintaxe própria deste universo fotográfico. Ela tem a ver com um cruzamento de imagens de diferentes contextos e diferentes épocas para formar novas palavras, novas frases”, completa. Além da apresentação de Thyago Nogueira, o catálogo da exposição também apresenta um texto da crítica de arte Luisa Duarte que destaca, na experiência urbana que o fotógrafo registra, uma série de contradições comoventes e violências forjadas por “carne, pele, saliva, suor, sangue, nervo, gemidos, vertigens, provenientes de pugilistas, prostitutas, meninos, idosos, cachorros, que vivem entre facas, bebidas, cigarros, cicatrizes e tatuagens, e habitam as regiões onde as cidades ainda pulsam.



Melodia visual



Completam o acervo de duas centenas de imagens ampliadas da trajetória do fotógrafo uma instalação, “Out of Nowhere”, que foi criada para a Bienal de Havana em 1994 e agora surge remontada em nova versão concebida para o espaço da exposição no IMS. Na instalação, um fio condutor de colagens reúne fotografias de uma academia de boxe da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, e retratos de temas sobre a a violência, a miséria, a solidão, a sexualidade – fragmentos de imagens de suportes diversos, à maneira das pranchas do Atlas do historiador alemão Aby Warburg (1866-1929), em um fundo de tecido negro com espelhos antigos em formatos variados. O título da instalação vem de uma antiga canção norte-americana de 1931, época da Grande Depressão, uma composição em tons nostálgicos e melancólicos de Johnny Green e Edward Heyman que virou “standard” do jazz presente no repertório de Bing Crosby, Billie Holiday, Lena Horne, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Frank Sinatra e outros. Como ressalta o curador Thyago Nogueira, Miguel Rio Branco usa as fotografias como notas musicais que associa em dípticos, trípticos, polípticos, como quem compõe os acordes de uma melodia visual.












Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
três imagens da série Neve em Nova York,
de 1973. Abaixo, duas fotografias da série
Parede Vermelha, realizada entre 1992 e 2020,
todas presentes na exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas,
sangradas”
apresentada pelo IMS








Filho de diplomatas de origem brasileira, Miguel Rio Branco nasceu em 1946 em um cenário exótico: Las Palmas de Gran Canária, uma das cidades autônimas das Ilhas Canárias, território espanhol situado no Oceano Atlântico, próximo aos arquipélagos de Açores e de Cabo Verde, a oeste da costa africana do Marrocos. Depois da infância e da adolescência que viveu em trânsito entre Espanha, Brasil, Portugal, Suíça, Estados Unidos e outros países, Miguel veio definitivamente para o Brasil em 1967 e reconhece que descobriu, no Rio de Janeiro, uma realidade social que provocou nele um impacto tão forte, tão duradouro, que mudou definitivamente sua vida e sua visão de mundo. Segundo Miguel Río Branco, as fotografias que ele produz tentam reproduzir e traduzir, ainda hoje, aquele mesmo impacto de seus olhares em trânsito: entre a proximidade da beleza das cores que predominavam nas praias da zona sul carioca e a miséria também colorida das favelas que se espalhavam e se alongavam morro acima.

Seu interesse pelo mundo das artes começou muito cedo, com dedicação de autodidata às cores do desenho e da pintura. Sua primeira exposição como pintor, quando ele era ainda adolescente, aconteceu em uma galeria em Berna, na Suíça, no ano de 1964. Dois anos depois, enquanto morava em Nova York, foi estudar não a pintura, mas a fotografia, na condição de aluno matriculado no Instituto de Fotografia de Nova York. Também dois anos depois, já como morador da cidade do Rio de Janeiro, passou a estudar na ESDI, a Escola Superior de Desenho Industrial, simultaneamente fazendo séries fotográficas, diárias e intermináveis, sobre as ruas e favelas do Rio de Janeiro e seus habitantes e trabalhando como diretor de fotografia e como cinegrafista para cineastas como Gilberto Loureiro, Antonio Calmon, Alberto Ruschel Filho, Jom Tob Azulay e Júlio Bressane.









Cidades de Miguel Rio Branco
: fotografias
selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”
,
apresentada pelo IMS. No alto, imagem da série de
2005 
Babel Blues
. Acima, Homem na janela da
parede rosa
, imagem da série realizada em
1979 no Pelourinho, em Salvador.

Abaixo, fotografia da série Thunderdog, de 1998;
e duas imagens da série New York Sketches,
realizada em 1972-1972: uma cena das ruas
e um flagrante de Hélio Oiticica, também
em Nova York, à espera do metrô


















Cores saturadas



Não é por acaso que uma das primeiras experiências de Miguel Rio Branco no cinema tenha sido como assistente do diretor de fotografia Affonso Beato em “Pindorama”, filme que Arnaldo Jabor realizou em 1970, no auge da ditadura militar. Pindorama, nome dado ao Brasil pelos povo Tupi (a palavra, na língua tupi-guarani, significa “terra das árvores altas”), no filme de Jabor traduz uma alegoria sobre a formação de uma grande cidade brasileira no século 16, reunindo imagens da beleza dos cenários tropicais em contrastes de guerras e destruição com negros, índios e aventureiros europeus. Nos anos 1970, a trajetória do fotógrafo incluiu outra longa temporada em Nova York, onde trabalhou e conviveu com nomes de referência da arte brasileira contemporânea, entre eles Hélio Oiticica (1937-1980), Rubens Gerchman (1942-2008) e Antonio Dias (1942-2018). No final da década, em 1979, as fotografias experimentais e documentais que Miguel Rio Branco registrava, pelas ruas e pelas periferias do Rio de Janeiro e de Nova York, o levaram a ser contratado como correspondente internacional da prestigiada e lendária Agência Magnum de Paris, uma atividade em que atuou até 1982.

É desse período uma de suas séries fotográficas mais conhecidas, realizada durante uma longa temporada em Salvador, Bahia: “Pelourinho”, registro de 1979 sobre a parte mais antiga e mais degradada do bairro tradicional da capital baiana, em que se destacam as imagens dos corpos da prostituição e os rostos na penumbra, com detalhes em destaque de cicatrizes na pele e nos enquadramentos de velhas construções arruinadas pelo tempo. As características das imagens que o fotojornalista Miguel Rio Branco produziu sob encomenda para a Agência Magnum reúnem, em síntese, as qualidades mais abrangentes de sua concepção de arte e fotografia: cores saturadas em variações de contrastes cromáticos, experimentos com foco e movimento, diluição dos contornos, jogos de espelhamentos e de texturas, a temática de impacto para as denúncias sobre os contrastes sociais das cidades, a exclusão dos marginais, a violência, a pobreza, as atmosferas ao mesmo tempo sensuais e melancólicas.









Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
duas imagens da série Maldicidade #3,
realizada entre 1970 e 1990. Abaixo:
1) três jovens mulheres do povo Kayapó,
na Amazônia brasileira, em fotografia
de 1983; 2) imagens de Amaú, 1983-2016,
projeto iniciado em 1983 com a instalação
Diálogos com Amaú, que foi apresentada
na Bienal Internacional de São Paulo,
com a experiência da fotografia em interface
com a pintura e o cinema; e 3) fotografias da
série "Blue tango", sobre os movimentos e
a dança da capoeira, realizada na Bahia no
período entre 1984 e 2003. Também abaixo,
duas fotografias da montagem da exposição
apresentada no IMS da Avenida Paulista
























Em 1983, depois de interromper sua colaboração com a Agência Magnum e de realizar uma experiência incomum como cineasta (com um documentário realizado em 1981, “Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno”), uma participação na Bienal Internacional de São Paulo, com a instalação Diálogos com Amaú, iria inaugurar uma nova etapa na trajetória do fotógrafo, pintor, artista multimídia e cineasta, com instalações que reúnem fotografia, pintura, escultura, música e cinema, levando Miguel Rio Branco a realizar diversas exposições no exterior. Com as novas investidas em instalações e obras de formas híbridas também vieram as publicações de livros de catálogo e premiações importantes, entre elas o Prêmio Kodak da Crítica Fotográfica (1982), a Bolsa de Artes da Fundação Vitae (1994) e o Prêmio Nacional da Funarte, Fundação Nacional de Artes (1995). Entre os livros com registros sobre séries fotográficas e instalações, com recursos gráficos e editoriais incomuns de transparências e uma diversidade de suportes de impressão estão “Dulce sudor amargo” (1985), “Nakta, uma reflexão sobre a parte animal do homem” (1986), “Silent book” (1996), “Entre olhos, o deserto” (2001), “Você está feliz?” (2012), “Out of nowhere” (2013) e “Mechanics of women” (2018).



Imagens-poemas, ruínas do mundo



Dois fotolivros lançados em 2020 vêm somar complexidades às publicações de acervos de imagens de Miguel Rio Branco. O primeiro é uma nova versão, revista e atualizada, para “Maldicidade”, catálogo fotográfico que teve primeira edição pela Cosac Naify em 2014, em parceria com o curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff, diretor do MAR, Museu de Arte do Rio de Janeiro. O segundo é um catálogo em edição bilíngue, francês e inglês, em lançamento pela editora parisiense especializada em livros de artista, Toluca Éditions, com uma retrospectiva que vai dos seus primeiros trabalhos em fotografia, no final dos anos 1960, até o começo dos anos 1990.

Enquanto o catálogo da Toluca Éditions, com o título “Miguel Rio Branco: Oeuvres Photographiques / Photographic Works, 1968-1992”, apresenta o acervo que foi reunido para uma exposição em cartaz em Paris, no espaço LE BAL (de 16 de setembro de 2020 a 14 de março de 2021), que os curadores Alexis Fabry e Diane Dufour definem como “realismo exorbitante” e “imagens-poemas nas ruínas do mundo”, o acervo reunido em “Maldicidade”, na definição do próprio fotógrafo, é um inventário com cenas urbanas e justaposições de imagens capturadas de 1970 a 2010 para retratar diferentes partes do mundo, como Japão, Estados Unidos, Cuba, Peru e Brasil.








Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
fotografias da montagem da exposição
apresentada no IMS da Avenida Paulista.
Abaixo, o fotógrafo em entrevista via Zoom






Em outro catálogo, que teve como título o nome do fotógrafo, “Miguel Rio Branco”, publicado em primeira edição pela Companhia das Letras em 1998, um outro nome de referência da fotografia contemporânea, Sebastião Salgado, escreve no posfácio uma definição bastante precisa e preciosa, em artigo co-assinado por sua esposa Lélia Wanick Salgado:

Como brasileiros que somos, também vemos Miguel Rio Branco como um fotógrafo profundamente brasileiro. Ele capta a umidade das cores tropicais do Brasil, a fera luz que transfigura rosas, verdes e azuis. Ele entra no espírito da cor, penetrando seu âmago como nenhum outro fotógrafo de hoje que trabalha com a cor. Talvez se beneficie do fato de ser também artista plástico e cineasta: Miguel Rio Branco usa a cor como um pintor e a luz como quem faz cinema. Um outro Brasil também está presente aqui. Não tanto em imagens específicas, porque Rio Branco também trabalha em outros lugares, mas no espírito. É como se o fato de ter nascido fora de seu país, numa família de diplomatas, tenha despertado nele uma ânsia, um sentimento quase de urgência, de descobrir suas próprias raízes. Ao captar a beleza e a brutalidade de sua terra, ele descobriu a alegria e a tristeza de ser brasileiro. Em seu trabalho, vemos o coração do Brasil. Olhamos esse livro e nos vemos em suas páginas.”

Nos dois fotolivros recentes, publicados em 2020, assim como no catálogo da exposição que está em cartaz no IMS, ou no catálogo que mereceu o artigo de elogios de Sebastião Salgado e Lélia Wanick, ou mesmo nos demais fotolivros da trajetória incomum de Miguel Rio Branco, não se trata tão somente de livros de luxo e de arte sobre belezas exóticas de paisagens urbanas, nem de registros que exaltam monumentos históricos e arquitetônicos. Também não se trata de cenários de cartão postal emoldurados para enfeitar ambientes comerciais de grifes de interiores ou publicações sobre turismo e roteiros de viagens. Para além da beleza das cores e dos contrastes nos flagrantes sobre as ruínas do mundo, uma outra definição sobre a arte da fotografia segundo Miguel Rio Branco talvez possa acrescentar que suas imagens registram a catástrofe de nossa época – registros sobre os abismos sociais de nossas cidades, ainda que cada flagrante que ele captura também seja, de alguma forma, o resgate de algo estranhamente poético, de algo que guarda alguma empatia pelas pessoas mais simples e excluídas, algo que resta do sentimento humano nos cenários da miséria, da violência, da melancolia.


por José Antônio Orlando


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Cidades de Miguel Rio Branco. In: _____. Blog Semióticas, 31 de dezembro de 2020. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2020/12/cidades-de-miguel-rio-branco.html (acessado em .../.../...).



Para comprar o catálogo da mostra de Miguel Rio Branco,  clique aqui.





23 de março de 2016

Sagrado e Profano em Chagall





A Bíblia é um drama mundano o mundo é uma parábola religiosa. 
 
––  Marc Chagall (1887-1985).   
...........

Arte e Religião sempre estiveram muito próximas – desde o mais remoto da experiência humana. É desta constatação que parte Walter Benjamin em seu ensaio fundamental “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado pela primeira vez em 1936, para destacar que as mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. Benjamin, passo a passo com importantes historiadores e filósofos dos últimos séculos, aponta que as relações entre Arte e Religião conduziram a vida em sociedade em uma simbiose por vezes implacável, fortalecida em momentos capitais como o Renascimento e, posteriormente, com o Barroco.

Arte e Religião também se fundem nas obras-primas de alguns dos grandes artistas no último século – com um florescimento dos mais especiais na obra de Marc Chagall, um dos artistas incomparáveis do século 20. Considerado por muitos o maior de todos os mestres da cor na Arte Moderna, pintor, ceramista, gravurista, artista gráfico, desenhista e com uma trajetória que sempre buscou novos suportes e formatos para a arte, Chagall está recebendo uma grande celebração na Espanha com a abertura de uma mostra retrospectiva inédita sobre sua extensa obra com temática de inspiração religiosa.

Intitulada “Chagall. Divino y Humano”, a exposição está aberta ao público na Fundação Canal (veja link para uma visita virtual no final deste artigo), em Madri, reunindo mais de uma centena de obras originais em técnicas de litografia, xilogravura e gravura, incluindo obras sobre papel, criadas entre as décadas de 1940 e 1980. Com curadoria a cargo de Ann-Katrin Hann, conservadora chefe do museu Pablo Picasso de Münster, que tem sede na Alemanha e de onde vêm muitas das obras reunidas na exposição, “Chagall. Divino y Humano” lança luzes sobre esta que talvez seja a parte mais evidente e também menos estudada sobre o grande mestre da cor.







Sagrado e Profano em Chagall:
no alto, o artista no ateliê em Paris, em
1955, em frente a Le roi David, pintura
em óleo sobre tela de 1952. Acima, em
família, com a esposa, Bella Rosenfeld,
e a filha, Ida, fotografados em 1933,
em Paris, por André Kertész.

Abaixo, uma amostras das primeiras
obras de Chagall produzidas sob
influência das vanguardas, em 1911,
que foram batizadas por seu amigo
Blaise Cendrars: Moi et le Village
(Eu e a Vila) e Le soldat boit
(O soldado bebe). Também abaixo,
duas das primeiras obras-primas de
Chagall com temática de inspiração
religiosa, Tentation (Adam et Eve)
e Calvaire, pinturas em óleo
sobre tela de 1912


 












Judeu da Bielorrússia



Sempre lembrado e homenageado por sua pintura de formas alegóricas e multicoloridas em óleo sobre tela, Marc Chagall também merece lugar de destaque entre os principais artistas gráficos do século 20 – como comprova o recorte temático sobre suas obras-primas de inspiração religiosa reunidas em Madri. Com frequência rotulado como “surrealista”, por conta de sua obra difícil de classificar, só comparável a outros grandes mestres e pontuada de referências oníricas, Chagall nasceu em Vitebsk, nordeste da Bielorrússia, no antigo Império da Rússia, em uma família de fortes tradições judaicas – detalhe biográfico que ilumina a interface religiosa tão presente em sua obra.

Na juventude, uma década antes da Revolução Russa de 1917, Marc Chagall era um aluno dedicado e promissor da tradicional Academia de Arte de São Petersburgo quando uma bolsa de estudos para duas semanas em Paris mudou radicalmente o destino. Na capital da França, depois de entrar em contato com os artistas e escritores das vanguardas, Chagall decidiu não retornar à Rússia no prazo previsto. Encantado com as experiências radicais dos movimentos modernistas e com a vida boêmia de Montmartre, permaneceu por anos em Paris, onde tornou-se amigo de nomes como Picasso, Kandinsky, Cendrars, Modigliani e, especialmente, Guillaume Apollinaire.








Sagrado e Profano em Chagall:
beijos e casais em cenas amorosas
segundo a arte do mestre da cor
nas pinturas em óleo sobre tela de
sua primeira fase, produzidas antes
da Primeira Guerra Mundial – acima,
Les amoureux, de 1913, e Les
amants en bleus, de 1914.
Abaixo, Aniversaire, de 1915,
Amateurs en Rouge (1916)









Nesta época surgem suas primeiras obras produzidas sob a inspiração dos novos amigos de vanguarda – três pinturas em óleo sobre tela de 1911 que foram batizadas por Blaise Cendrars: “Moi et le Village” (Eu e a Vila), “Le soldat boit” (O soldado bebe) e “La Pluie” (A Chuva). Depois de Cendrars, foi Appollinaire quem assumiu o papel de mentor do jovem Chagall, sendo o primeiro a destacar o talento do estreante entre os grandes da Arte Moderna – e também foi Appollinaire quem selecionou obras do jovem quase desconhecido para uma importante mostra das vanguardas em Berlim, em 1914, pouco antes da explosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra na Europa forçou o retorno de Chagall a seu país, onde ele se casaria com Bella Rosenfeld, que conheceu quando ainda era adolescente em sua aldeia.



Comissário para as Belas Artes



Bella, segundo os biógrafos, foi o grande amor de Chagall e sua inspiração da vida inteira. Com a Primeira Guerra mudando rapidamente o cenário da Europa, vem a Revolução de 1917 na Rússia e novos desafios para Chagall, que foi nomeado comissário do povo para as Belas Artes em sua cidade natal Vitebsk. Empossado no cargo oficial, Chagall teve a iniciativa de inaugurar a primeira escola de Arte Moderna na Rússia – com a meta de que ela estivesse aberta à variedade das tendências modernistas que conheceu em sua temporada na França. Porém, desentendimentos com outro gigante das vanguardas, Kasimir Malevich, levaram Chagall a desistir do cargo e a voltar em definitivo para Paris.









        




Sagrado e Profano em Chagall:
acima, os amigos Pablo Picasso e
Marc Chagall em 1955, em St. Paul
de Vence, França, fotografados
por Philippe Halsman; e Chagall
no ateliê em Paris, em 1934, em
fotografia feita no processo de
autochrome por Roger Violett.

Abaixo, uma pintura em óleo sobre
tela de 1938 com tema bíblico,
La crucifixion blanche (A crucificação
branca), e La résurrection, aquarela
sobre papel de 1948. Também abaixo,
uma seleção de três imagens da
série de gravuras produzidas sob
encomenda para ilustrar edições da
Bíblia Sagrada apresentadas na
exposição em Madri: Moisés e a
Serpente (1956); Moisés e as
Tábuas Sagradas (1952);
A Crucificação (1952)



















O trabalho fantástico e colorido de Chagall, que talvez somente encontre paralelos em alguns poucos de seus contemporâneos – especialmente no espanhol Pablo Picasso, no francês Henri Matisse e em outro russo, Vassily Kandinsky – avançou para outras técnicas, outros suportes, depois de suas primeiras experiências com pintura em óleo sobre tela nos movimentos de vanguarda do início do século passado. A partir da década de 1920, passaria também a incluir em seu trabalho as ilustrações, desenhos e gravuras produzidos sob encomenda para reprodução em livros e revistas.

Nesta dedicação às ilustrações e artes gráficas sob encomenda, a Bíblia Sagrada iria ocupar um lugar de destaque. De 1931 a 1939, Chagall criou 66 gravuras sobre temas bíblicos, encomendadas pelo comerciante de arte e editor francês Ambroise Vollard – mas o trabalho foi interrompido quando explodiu a Segunda Guerra Mundial. Com a tomada da França pelas tropas nazistas de Adolf Hitler, Chagall parte em 1942 para o exílio nos Estados Unidos. Desde a década de 1930, com a perseguição aos judeus pelo Nazismo, sua obra já havia incorporado a questão política em tons sombrios: judeu convicto, Chagall começou a denunciar com sua arte as tensões e depressões sociais e religiosas que sentia na pele. Assim que a guerra foi deflagrada, em 1939, o regime Nazista classificou oficialmente as obras de Chagall como arte degenerada.







Sagrado e Profano em Chagall:
gravuras apresentadas na mostra
sobre Chagall em Madri – acima,
a cena dos namorados românticos
em Les Amoureux de la Tour Eiffel
(Amantes da Torre Eiffel, de 1960),
em que o monumento de Paris vem
substituir a cruz em cena que remete
ao sofrimento após a Crucificação.

Abaixo, Paysage bleu (Paisagem azul,
1958), referência direta a Maria que tem
nos braços Jesus Cristo, na tradicional
cena da “Pietá”; La descente de croix
(O descimento da cruz), a Paixão de
Cristo na versão surrealista, em pintura
de 1976; e a alegoria representada com
os Três Reis Magos que assumem
feições de animais em
Les trois acrobates (1957)












Folclore, sonhos, fragmentos do real



De volta a Paris, depois da Segunda Guerra, Marc Chagall concluiu a série sobre a Bíblia que soma 105 trabalhos incomuns, sempre com animais e figuras circenses, festivas, mais humanistas do que exatamente “religiosas”. Da série sobre a Bíblia, 20 figuras estão na exposição em Madri – entre elas “Moisés e a Serpente” (1956), “Da Criação do Homem” (1958) e A Crucificação” (1952). Das centenas de ilustrações e artes gráficas produzidas sob encomenda por Chagall, também estão reunidas na mostra gravuras de várias edições sobre as Fábulas de La Fontaine e 15 das 96 ilustrações em preto e branco da série “Les Âmes Mortes”, criada para ilustrar o romance “Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, publicado pela primeira vez em 1848 e considerado uma das obras mais marcantes da literatura russa do século 19.

Chagall começou a trabalhar nas ilustrações para as cenas e personagens de “Almas Mortas” na década de 1920, mas o projeto foi adiado com a morte do editor Ambroise Vollard e a publicação só se concretizou em 1948, com o lançamento de uma luxuosa edição comemorativa do centenário do livro de Gogol. A edição, com pouco mais de 300 exemplares, que se tornaria uma obra de arte disputada por colecionadores e museus do mundo inteiro, foi patrocinada pela casa editorial Tériade, fundada pelo grego Stratis Eleftheriades. A colaboração entre Chagall e Tériade deu origem a cinco livros ilustrados com litografias e gravuras que são apontados com frequência como marcos das artes gráficas na segunda metade do século 20: são eles, além de “Almas Mortas”, as “Fábulas de La Fontaine” (1952); a “Bíblia Sagrada” (1956); o romance “Dáfnis e Cloé” (1961), do escritor grego Longo, que viveu no século 2 antes de Cristo; e “Circus”, coleção de gravuras, pinturas e desenhos de Chagall sobre a temática do circo, publicado em 1972.    

Outras vertentes de temática com inspiração religiosa na obra extensa de Chagall estão representadas em Madri através de fotografias – caso dos objetos em cerâmica, das tapeçarias, das séries em vitrais, dos mosaicos e dos painéis murais que produziu para catedrais e sinagogas na França (incluindo o design, pinturas e detalhes em relevo do novo teto para a Ópera de Paris, em 1964), nos Estados Unidos e em Israel, sob encomenda para a Universidade Hebraica e o Parlamento de Jerusalém, entre vários outros trabalhos – além dos projetos de cenários, figurinos e adereços que desenvolveu para espetáculos de teatro e balé. O resultado é uma fascinante policromia que une, fora de qualquer contexto racional, fontes folclóricas, citações religiosas, lembranças, cenas oníricas, premonições, fragmentos do real – em abordagens que ainda hoje impressionam.
















.






Sagrado e Profano em Chagall:
a partir do alto, detalhe do teto da
Ópera de Paris, em design, pinturas
e relevos criados em 1964 por Chagall;
o mosaico em técnica mista que representa
Profeta Elias, criado em 1970 e instalado
no Museu Marc Chagall em Nice, França;
e quatro das 96 gravuras de Chagall criadas
sob encomenda para ilustrar um clássico
da literatura russa, o romance de
Nikolai Gogol, Almas Mortas.

Abaixo, La Saint Famille: Maria, o menino
Jesus e José de Nazaré, a Sagrada Família,
em litografia de 1970 de Chagall; Four Seasons
(Quatro estações), mural em cerâmica construído
em mosaico por Chagall em 1972 e instalado na
Chase Tower Plaza, em Chicago (EUA);
seguido de Les amoureux de Vence, de
1957, e a religiosidade traduzida em
duas obras-primas de 1966: Noé et l'Arc en
Ciel (Noé e o Arco-Íris) e Abraham et les
Trois Anges (Abraão e os Três Anjos).
No final da página, imagens da exposição
na Fundação Canal, em Madri, e Chagall
fotografado em janeiro de 1964 por
Lee Lockwood em frente aos vitrais
criados pelo artista para a sede
da ONU em Nova York











Se um artista como Marc Chagall combina tão bem, como poucos, o divino, o mito, as tradições, muitos poderiam esperar que ele fosse alguém muito apegado à religião – mas não era. Chagall sempre declarou que nunca foi um homem religioso nem devoto ou praticante de nenhuma fé específica, e sim muito preocupado com o transcendente em cada experiência vivida e com a liberdade para todas as religiões. Tal distanciamento sobre os dogmas e doutrinas por certo contribui para que a arte personalíssima de Chagall encontre alegorias, analogias e equivalentes visuais que traduzem de forma surpreendente os textos bíblicos em suas metáforas, hipérboles, parábolas.

“O artista verdadeiramente grande busca o universal que está presente em todas as práticas da fé” – assinala uma das frases de Chagall, afixada na abertura da mostra em Madri, que de certo modo contribui para que o observador, seja ele laico ou religioso, possa penetrar na essência do que o imaginário do artista representa em relação a questões do sagrado e também do profano. Em outra frase, também destacada na exposição, Chagall afirma que “a Bíblia é um drama mundano e o mundo uma parábola religiosa”.











O acervo de Chagall apresentado na Fundação Canal, com um ambiente cenográfico que reproduz o interior de uma sinagoga, está dividido em três seções. Na primeira, “Divino e Humano”, obras de diversas séries e fases do artista fundem a profundidade humana de seus autorretratos e a alegria do mundo do circo a cenas religiosas, expressando tanto suas memórias da terra natal quanto referências diretas e indiretas ao Antigo e ao Novo Testamento – tema de tal recorrência e abrangência na arte produzida por Chagall que levou a França a homenageá-lo com a criação do Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, instalado desde 1973 na cidade de Nice. Na segunda, “Almas Mortas”, cenas, tramas e personagens do romance de Nikolai Gogol estão representados em um apelo onírico e monocromático que mistura e revela, em matizes de papel envelhecido que vão do negro ao cinza, camponeses, rabinos, estalagens, artistas de circo e vacas que tocam violinos.

Na terceira seção, dedicada às ilustrações criadas sob encomenda de Ambroise Vollard para as edições da Bíblia Sagrada, as referências judaicas e cristãs de Chagall dividem o mesmo espaço pictórico, construindo uma iconografia completamente diferente daquela construída pela tradição do Ocidente deste a Idade Média. Em imagens sempre instigantes e surpreendentes, Chagall traduz versículos sobre passagens, profetas, patriarcas, mas deixa à margem representações mais conhecidas como Adão e Eva, Abel e Caim, Babel, as parábolas de Cristo, entre outras, para destacar aspectos menos reverenciados pelos artistas que o precederam. Não por acaso, um verso extraído de um poema que ele dedicou a sua amada Bella na década de 1920, citado na última seção da exposição em Madri, define à perfeição sua obra de inspiração religiosa, criativa e visionária, tão estranha quanto particular e incomparável: “Como Cristo, estou crucificado, pregado ao cavalete...”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Sagrado e Profano em Chagall. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/03/sagrado-e-profano-em-chagall.html (acessado em .../.../...).


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