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16 de junho de 2025

Crônica do Bloomsday

 



A história, disse Stephen, é um pesadelo do qual estou tentando acordar.

–– James Joyce, “Ulisses”.  

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O argentino Jorge Luis Borges, uma referência da literatura do século 20, ficaria cego, gradualmente, a partir dos 55 anos, devido a uma condição hereditária, provavelmente glaucoma ou uma doença degenerativa da retina. Apesar da perda da visão, Borges continuou a produzir obras literárias até o fim da vida, quando morreu em Genebra, na Suíça, em 1986, aos 88 anos. Ele sempre soube que perderia a visão, pois o destino da cegueira era hereditário: seu pai, seu avô e seu bisavô também ficaram cegos. Lembro de Borges porque a data de hoje, dia 16 de junho, remete a outra referência incontornável da literatura universal: é a data do Bloomsday, em que os amantes da literatura, e da literatura de James Joyce, em especial, celebram Leopold Bloom, protagonista de “Ulisses”, romance de Joyce que se passa em 16 de junho de 1904.

O fascínio de Borges por Joyce, e mais ainda por “Ulisses”, por certo vem de algumas coincidências existenciais e da força capital que o tempo e a eternidade, em seus componentes de circularidade e repetição, têm na literatura de Borges e também em James Joyce. Borges menciona o autor irlandês muitas vezes em seus escritos e dedicou a ele diversos artigos e ensaios. Quando se consulta as versões on-line do Catálogo Bibliográfico Completo e do Catálogo de Artigos na Imprensa, organizados pela La Maga: Associación Borgesiana de Buenos Aires, é possível encontrar muitos textos de Borges em que Joyce é o tema central ou está citado no argumento das abordagens sobre outros autores.









Crônica do Bloomsday: no alto e acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund para uma reportagem da
revista Time
em 1939, no apartamento em que morou
de 1935 até 1939, na Rue Edmond Valentin, em Paris.
Joyce, que era supersticioso e não gostava de ser
fotografado, concordou, aconselhado por sua editora
Sylvia Beach, depois de saber que o sobrenome de
casada de Giséle Freund era Blum, em conexão óbvia
com Leopold Bloom, personagem de “Ulisses”.

Abaixo, vista da O’Connel Bridge, sobre o rio Liffey,
em Dublin, capital da República da Irlanda, terra natal
de James Joyce, em fotografia de 1905






Páginas de 'Ulisses'


Os artigos de Borges trazem referências muito poéticas sobre suas leituras da obra de Joyce – com destaque para os que foram publicados na revista semanal El Hogar, na qual Borges foi colunista entre 1936 e 1939. Na seção “Libros y autores extranjeros: Guía de lecturas”, Borges publicava artigos, resenhas e traduções fragmentadas de autores de outros idiomas além do espanhol. Joyce já havia sido abordado por ele em textos publicados em outros periódicos, os primeiros deles em Proa, revista literária fundada pelo próprio Borges em 1922, ano da publicação do “Ulisses” de Joyce. Os longos artigos em Proa, com os títulos “El ‘Ulises’ de Joyce” e “La última hoja del ‘Ulises’”, foram publicados na mesma edição, em janeiro de 1925, apenas três anos após a primeira edição do romance pela Shakespeare & Company, com sede em Paris.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund em 1939. Abaixo, Joyce
nas duas vezes em que foi a reportagem de capa da
revista Time, em janeiro de 1934 e em maio de 1939







Sobre Joyce, na El Hogar, Borges publicou “Joyce e Yeats” (em outubro de 1936); “James Joyce” (em fevereiro de 1937); “Ulysse”, sobre a tradução do romance de Joyce para o francês (em fevereiro de 1938); e “El último libro de Joyce”, sobre o lançamento de “Finnegans Wake” (em junho de 1939), que deixou Borges fascinado pela variedade de fios narrativos "mágicos" e pela fusão de palavras do inglês com outras línguas. Na mesma época, Borges publicaria artigos sobre Joyce na Sur, revista fundada em 1931 por sua amiga muito próxima, a escritora Victoria Ocampo. Sobre Joyce, na Sur, os artigos de Borges são “Joyce e los neologismos” (em novembro de 1939) e “Fragmento sobre Joyce” (em fevereiro de 1941).


Obra de muitas gerações


Os dois artigos mais poéticos de Borges sobre Joyce estão na El Hogar. No primeiro, em fevereiro de 1937, Borges escreveu: “Mais do que a obra de um só homem, ‘Ulisses’ parece de muitas gerações” – concluindo com uma confissão muito pessoal e definitiva: “A delicada música da prosa de Joyce em ‘Ulisses’ é incomparável.” O segundo artigo, publicado em junho de 1939, aborda “Finnegans Wake”, mas faz citações a “Ulisses”, em tom de profunda melancolia, quase que anunciando o horror da Segunda Guerra Mundial, que já se desenhava no horizonte, com as tropas da Alemanha Nazista ocupando a Polônia em 1º de setembro de 1939 e invadindo mais 11 países nos meses seguintes, transformando o conflito local em uma guerra mundial.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund. Abaixo, o casal
Joyce e Nora Barnacle na época em que
se conheceram em Dublin, em 1904




Às vésperas da Segunda Guerra, Joyce foi viver para França. “Ulisses” trouxe fama internacional, mas não impediu que ele vivesse angustiado e com destino de navegador errante por diversos países e endereços, numa jornada que remonta a referências da Antiguidade Clássica do personagem de Homero, do qual ele se apropriou em seu romance. Em uma carta a sua amada Nora Barnacle, ele definiu a si mesmo como “um homem solitário, insatisfeito, orgulhoso”. Diziam os amigos que, em público, Joyce era silencioso, lacônico, distante, com hábitos simples e rígidos na vida cotidiana que o levavam a comer sempre o mesmo prato, no mesmo restaurante, no mesmo horário, todos os dias.


Pavor de raios e trovões


Joyce também tinha problemas nos olhos e fez várias cirurgias que não foram suficientes para evitar o avanço do glaucoma. Seu drama com o avanço da cegueira é um dos temas de “Pomes Pennyeach” (Poemas, um tostão cada), publicado em 1927. Também era supersticioso, além de ter pavor incontrolável diante de raios e trovões, e teologia era um dos assuntos que, invariavelmente, despertavam seu interesse. Talvez por tudo isso certas críticas negativas provocassem nele imensa tristeza – críticas negativas tais como a de Virgina Woolf, que classificou “Ulisses” como “uma catástrofe memorável; imenso em atrevimento, terrível como um desastre” e recusou publicá-lo na The Hogarth Press. No artigo de junho de 1939 na El Hogar, Borges escreveu: “James Joyce, agora, vive num apartamento em Paris, com a sua mulher e os seus dois filhos. Vai sempre com os três à ópera, é muito alegre e muito conversador. Está cego.”








Crônica do Bloomsday: um fotógrafo anônimo
encontrou
James Joyce e Nora Barnacle a caminho
do casamento oficial no cartório, em Dublin, em 1931,
acompanhados de Fred Monro, advogado de Joyce,
que recomendou sobre a importância do
registro oficial de casamento.

Abaixo, uma página datilografada de “Ulisses”
com as inúmeras correções feitas a caneta por Joyce





James Joyce nasceu em Dublin em 2 de fevereiro de 1882, o mais velho de 10 crianças em uma família que passou rapidamente da riqueza à pobreza. Apesar das dificuldades, teve educação privilegiada como bolsista em uma escola jesuíta e no University College de Dublin. Sua estreia como autor foi aos 17 anos, quando publicou na Fortnightly Review o ensaio “The New Drama”, estudo sobre a obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Três anos depois, aos 20 anos, foi para Paris, com a intenção de estudar medicina, mas acabou trocando as ciências médicas pela dedicação à literatura e à leitura de seus autores preferidos naquela época, Dante, Shakespeare, Homero e Aristóteles.


As confissões eróticas


Em 1903, regressou a Dublin, por causa da doença da mãe, que faleceu logo depois. No verão de 1904, ainda em Dublin, Joyce conheceu seu grande amor, Nora Barnacle, que se tornou sua companhia inseparável. Joyce tinha 22 anos; Nora, 20. A data da primeira vez que fizeram sexo é o dia 16 de junho de 1904, escolhida para a trama de “Ulisses”, sendo Nora sua inspiração para a personagem Molly Bloom. Pouco tempo depois, Joyce e Nora fogem de Dublin e saem em uma longa viagem pelo continente. Passaram alguns meses em Pula, na atual Croácia, e no ano seguinte foram morar em Trieste, na Itália, onde viveram até 1915, com Joyce no trabalho ocasional como professor de inglês. Tiveram dois filhos, registrados com nomes italianos, Giorgio e Lucia, e estiveram separados apenas por breves períodos em que Joyce viajou a Dublin. As cartas de Joyce para Nora, cheias de confissões eróticas, foram escritas nestas ocasiões.



            


Crônica do Bloomsday: acima, o casal Joyce e Nora
em fotografia da década de 1920. Abaixo, Joyce em
Zurique, em 1915, e uma cena do filme “
Nora”, lançado
no ano 2000, com direção e roteiro de
Pat Murphy, que
tem 
Ewan McGregor no papel de James Joyce
e
Susan Lynch como Nora Barnacle



         



O primeiro livro de poemas de Joyce, “Música de Câmara”, foi publicado em Londres em 1907. “Dublinenses”, seleção de 15 contos com ambientação em Dublin, teve primeira edição em 1914, no início da Primeira Guerra, época em que começou a escrever os rascunhos para “Ulisses”. A participação da Itália na guerra levou o casal a fugir novamente, em 1915, de Trieste para várias cidades da Suíça, até fixarem residência em Zurique, onde permanecem até 1919. Em Zurique, Joyce publica dois livros: “Retrato do artista quando jovem”, em 1916, e “Exílados”, em 1918.

"Retrato do artista quando jovem" pode ser definido como um romance 
de formação (Bildungsroman), pontuado de referências autobiográficas, sobre o amadurecimento existencial do personagem que iria retornar em "Ulisses", Stephen Dedalus, alter ego do autor, em sua trajetória da infância à idade adulta. O segundo livro trazia uma peça de teatro, a única que escreveu – uma reflexão sobre a formação de um triângulo amoroso entre um artista de vanguarda, Richard Rowan, um jornalista, Robert Hand, e a mulher de Richard, Bertha, que vai relatando ao marido cada passo das investidas do rival. "Exilados" (também traduzida para o português como "Exílios") remete, entre simetrias e alusões, a “Os mortos”, último conto de “Dublinenses”, e também a “Ulisses”.






Crônica do Bloomsday: acima, Joyce em 1914,
na época em que morava em Trieste, na Itália,
fotografado por seu irmão Stanislaus, tendo ao fundo
Nora e os dois filhos do casal, Lucia e Giorgio.

Abaixo, Joyce em Paris, em fotografia de 1939
de Giséle Freund, discutindo o lançamento do que
viria a ser seu último livro, “Finnegans Wake”,
com as editoras da Shakespeare and Company,
Sylvia Beach e Adrienne Monnier; e Joyce
em frente à sede da editora em Paris, em 1922,
com Sylvia Beach, fotografados por Noel Riley.

Também abaixo, Joyce homenageado em 1935
por Jacques-Emile Blanche em um retrato pintado
em óleo sobre tela. No final da página, a e
státua
instalada sobre o túmulo de James Joyce no
Cemitério Fluntern, em Zurique, na Suíça.


                

  



Fluxos de consciência


Ulisses”, a obra magna de Joyce, foi editada e lançada por sua amiga Sylvia Beach na Shakespeare & Company em 2 de fevereiro de 1922, dia do aniversário de 40 anos do autor. Repleto de referências à obra de Homero e de alusões a Shakespeare, à Bíblia e a outros clássicos, o romance recria um dia na cidade de Dublin, aquele dia 16 de junho de 1904, narrando a vida cotidiana de Leopold Bloom, um vendedor de anúncios publicitários. Ao longo de 24 horas, que a narração divide em 18 episódios, Bloom é comparado ao herói grego Ulisses, experimentando encontros, desencontros e reflexões em fluxos de consciência que elevam o trivial do cotidiano a um nível épico. O enredo, que segue a estrutura da "Odisseia" de Homero, apresenta como personagens centrais Leopold Bloom, seu amigo Stephen Dedalus, jovem intelectual, e Molly Bloom, esposa de Leopold, que está envolvida em um caso extraconjugal. 

Um dos motores da narrativa é a interação entre Leopold e Stephen, que o influencia em relação à arte e ao pensamento, sintetizando o encontro de duas gerações e duas formas distintas de entender o mundo. A relação entre Leopold e Stephen, complexa e multifacetada, surge como uma jornada de descoberta mútua e uma busca de sentido espiritual. Leopold Bloom é um homem de meia-idade, enquanto Stephen é um jovem escritor e artista, ambos vivendo em Dublin. A narrativa os une através de uma série de encontros fortuitos, com Bloom vendo em Stephen um filho substituto e Stephen encontrando em Bloom um pai ausente, em aproximações com a relação entre Odisseu e Telêmaco na mitologia grega. Em contraponto, Molly Bloom traz um paralelo irônico com a Penélope da “Odisseia”, a esposa fiel do Ulisses de Homero.






A edição de “Ulisses” em inglês, considerada pelas autoridades oficiais uma obra pornográfica, foi proibida na Inglaterra, nos Estados Unidos e nos países anglo-saxônicos, o que contribuiu para Joyce se tornar o assunto principal dos círculos intelectuais e terminar reconhecido como o autor mais célebre de sua época. O livro se tornaria uma referência para toda a literatura modernista, mas só teve autorização para publicação nos Estados Unidos em 1933. Na Inglaterra, só foi publicado em 1936. Na Irlanda, terra natal do autor, nunca foi oficialmente proibido, mas a censura alfandegária impediu sua ampla circulação até a década de 1960. O leitor brasileiro também teve que esperar durante décadas pela primeira edição do livro de James Joyce, o que só aconteceu em 1966, com a tradução feita por Antônio Houaiss para publicação pela Civilização Brasileira.

“Ulisses” teve mais duas edições no Brasil. Em 2005, Bernardina da Silveira Pereira fez a segunda tradução, publicada pela Editora Objetiva. A terceira tradução foi feita por Caetano Galindo e publicada em 2012 pela Companhia das Letras em parceria com a Penguin Classics, que teve revisão e nova edição em 2022. Há, também, uma nova edição com 18 tradutores, um para cada capítulo, anunciada pela Ateliê Editorial. Além das traduções integrais, fragmentos de “Ulisses” foram traduzidos por outros autores, entre eles Pagu, Erasmo Pilotto, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. O livro de Joyce também mereceu análises dos principais nomes da intelectualidade no Brasil desde o primeiro momento. O primeiro foi Mário de Andrade, que escreveu sobre sua leitura de “Ulisses” no artigo “Da fadiga intelectual”, publicado na Revista do Brasil, em junho de 1924. Meses depois, em dezembro, Gilberto Freyre publicou no Diário de Pernambuco um artigo com o título “Ulisses”, no qual descreve o romance de James Joyce como “reportagem taquigráfica de flagrantes mentais”.

Joyce estava aclamado como escritor quando morreu em Zurique, em 1941, prestes a completar 59 anos. Nora, desde então, passou a viver reclusa, na solidão, e também morreu em Zurique, em 1951. Para concluir, vale lembrar que depois de tantos textos e de tantas análises, de Borges e de tantos leitores, anônimos ou célebres, o melhor mapa de leitura de "Ulisses" talvez ainda seja o esquema elaborado pelo próprio Joyce para ajudar um amigo, o escritor e tradutor italiano Carlo Linati, no entendimento e na interpretação de sua obra monumental. O certo é que a literatura nunca mais seria a mesma depois daquele dia 16 de junho de 1904.


por José Antônio Orlando

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Crônica do Bloomsday. In: Blog Semióticas, 16 de junho de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/06/cronica-do-bloomsday.html (acesso em .../.../…).

 

Para comprar "Ulisses", em tradução de Antônio Houaiss,  clique aqui.





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30 de junho de 2023

Fotografia e canções de amor

 



Eu não me importava com a "boa" fotografia.
Eu me importava com a honestidade completa.

––  Nan Goldin. 


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A história é muito conhecida por quem se interessa por fotografia contemporânea: no início da década de 1970, surgiu em Nova York uma fotógrafa, Nan Goldin, que nos anos seguintes se tornaria uma das mais celebradas e polêmicas artistas da fotografia. O adjetivo “polêmica” veio por conta do tema mais frequente abordado por ela: a fotógrafa quase sempre está presente nas fotos, interagindo com amigos e amantes que, muitas vezes, são figuras anônimas da comunidade LGBT, com seus corpos em momentos de intimidade. As primeiras exposições das fotos de Nan Goldin foram em espaços do “underground”, sempre com imagens em cores fortes e sempre com um ritual de fazer as exposições tendo, como trilha sonora, as canções do Velvet Underground, árias de ópera na voz de Maria Callas ou baladas românticas de James Brown. Um declaração dela em uma entrevista, nos anos 1970, ficou célebre: "minhas fotografias", ela explicou, "são como um diário, mas um diário que permito que as pessoas leiam".

Há quem diga que as fotografias de Nan Goldin foram tão importantes para o florescimento do orgulho LGBT como as paradas e desfiles que surgiram para lembrar o levante histórico do bar Stonewall Inn, também em Nova York. Localizado no Greenwich Village, bairro boêmio que foi um epicentro da contracultura, Stonewall, que era conhecido por abrigar abertamente a comunidade gay, foi invadido de forma violenta pela polícia na madrugada de 28 de junho de 1969, durante uma festa em homenagem a Judy Garland, que havia morrido em 22 de junho. Os frequentadores se recusaram a irem presos e começaram a rebelião que se tornaria um marco histórico na luta pelos Direitos Humanos e pelos direitos dos homossexuais, gerando uma série de protestos que levaram ao fortalecimento de movimentos da luta pelos direitos LGBT não somente nos Estados Unidos, mas também em outros países. A referência a "Over the Rainbow" (Além do Arco-íris), tema do filme de 1939 "O Mágico de Oz", maior sucesso de Judy Garland, levaria a imagem do arco-íris a ser adotada como principal símbolo e bandeira do movimento LGBT. A bandeira foi criada pelo artista e militante político Gilbert Baker e exibida pela primeira vez em 1978, na Parada Gay de San Francisco, Califórnia.










Fotografias e canções de amor
: no alto da página,
"Lovers in a field", foto de 2019 de Clifford Prince King,
uma das imagens selecionadas para a exposição e o
fotolivro "Love Songs, Photography and Intimacy",
organizados pelo Centro Internacional de Fotografia (ICP)
de Nova York. Acima, "Nan & Brian in bed", foto de 1983
de Nan Goldin, da série "The Ballad of Sexual Dependency";
e uma das raras imagens que registram a invasão policial ao
bar Stonewall Inn, na madrugada de 28 de junho de 1969,
em fotografia de
Joseph Ambrosini. Também acima,
a fachada do Stonewall Inn em fotografia de 2012.

Abaixo, "Rise & Monty kissing" e "Nan One Month
After Being Battered”
, fotografias de 1980 e de 1984
de Nan Goldin; e duas fotos da série "Poster boys",
publicada em 2019 por Clifford Prince King.
Todas as imagens desta postagem fazem parte do
catálogo da exposição "Love Songs, Photography
and Intimacy"
, exceto as imagens do Stonewall Inn,
publicadas pela Hollywood Forever TV






      



      



         


Depois das primeiras exposições que se tornaram objeto de culto em Nova York, as fotos que fizeram de Nan Goldin uma celebridade ganharam mostras em outras cidades e outros países e, em 1986, foram publicadas no livro “The Ballad of Sexual Dependency”, reunindo aos autorretratos da intimidade da fotógrafa, e de homens e mulheres de Nova York, outras imagens capturadas em cidades dos Estados Unidos e de países da Europa. O livro de Nan Goldin tornou-se um marco incontornável e teve novos capítulos nos anos e décadas seguintes, com novas exposições e novos livros da fotógrafa, entre eles “The Other Side” (1993), “Ten Years After” (1997) e “The Beautiful Smile” (2008), conquistando prêmios e retrospectivas no Whitney Museum de Nova York (1997), no Centro Pompidou de Paris (2001) e no Museu do Louvre (2010).

Agora, décadas depois das primeiras exposições revolucionárias de Nan Goldin, uma grande exposição no Centro Internacional de Fotografia (ICP) de Nova York e um fotolivro, com uma seleção de 16 fotógrafos contemporâneos de vários países, dialogam com as experiências estéticas e documentais lançadas em “The Ballad of Sexual Dependency”. Em “Canções de Amor – Fotografia e Intimidade” (Love Songs, Photography and Intimacy), título da exposição e do fotolivro, estão reunidas amostras de 70 anos da história da fotografia: são retratos, autorretratos e ensaios temáticos com imagens que registram relacionamentos amorosos em suas formas mais cotidianas ou incomuns, complexas e contraditórias. A exposição permanecerá aberta de 1º de junho a 11 de setembro de 2023 e depois segue um roteiro itinerante por museus e centros de cultura nos Estados Unidos e em outros países.







Fotografias e canções de amor: acima, a capa do
fotolivro e catálogo da exposição. Abaixo, duas imagens
de "Personal Letters", série fotográfica do ano 2000
do casal
Rong Rong & Inri., ele chinês e ela japonesa.

Também abaixo, duas fotografias da série nomeada
como "Sentimental Journey" (1971) e uma sequência
de "Winter Journey" (1990), ambas de Nobuyoshi Araki
  



















Cenas de amor


Exposição e fotolivro têm curadoria de Sara Raza, que durante anos foi curadora dos museus Guggenheim de Nova York e Tate Modern de Londres. Em colaboração com a Maison Européenne de la Photographie (MEP) de Paris, Sara Raza apresenta sua abordagem sobre o tema das histórias de amor com fotos selecionadas dos portfólios de Nan Goldin e dos fotógrafos Nobuyoshi Araki e Motoyuki Daifu (Japão), Ergin Çavuşoğlu (Bulgária), Fouad Elkoury (Líbano), Aikaterini Gegisian (Armênia/Grécia), René Groebli (Suíça), Hervé Guibert (França), Sheree Hovsepian (Irã), Clifford Prince King (EUA), Leigh Ledare (EUA), Lin Zhipeng (também conhecido como Nº 223 – nascido na China), Rong Rong & Inri (ele da China e ela do Japão), Sally Mann (EUA), Collier Schorr (EUA) e Karla Hiraldo Voleau (República Dominicana).

“Canções de Amor – Fotografia e Intimidade”, a exposição e o fotolivro, são apresentados no formato de uma coletânea musical, como se fossem uma seleção de canções que pessoas apaixonadas ou amigos escolheram e gravaram para dar de presente. No lado A da seleção, fotos do período 1952-1980; no lado B, fotos do final dos anos 1980 até 2022. O olhar mais observador poderá perceber, com ou sem o auxílio das legendas, as histórias de amor capturadas em sequências de fotos, do mesmo fotógrafo ou com os mesmos personagens fotografados – casais em cenas de festas, de bares, em público ou clandestinas, de mais intimidade e sensualidade, imagens da felicidade doméstica ou da solidão que a ausência da pessoa amada provoca.














Fotografias e canções de amor: acima, imagens
das séries de Lin Zhipeng (também conhecido
como Nº 223) extraídas de "Fish Hop"de 2009;
"Ben's Contourn Lines", de 2012; e
"Kissing under Qilian Mountains", de 2009.

Abaixo, imagens extraídas de "Handbook of the
Spontaneous Other" (Manual do outro espontâneo),
série de 2019 de Aikaterini Gegisian









Um traço marcante em todo o conjunto de fotografias e de fotógrafos selecionados, como destaca a curadora no dossiê de imprensa, é o registro autobiográfico: o envolvimento pessoal de cada fotógrafo com cenas e personagens fotografados, em alguns casos com revelações de sua intimidade e de suas histórias de amor. Assim como Nan Goldin, referência da curadoria, sempre declarou que suas fotos registram sua vida, sua tribo, seus amigos e seus afetos mais íntimos, o aspecto confessional também envolve os demais fotógrafos reunidos por Sara Raza. No caso de Nobuyoshi Araki, as fotos vêm de dois fotolivros: “Sentimental Journey” (Jornada sentimental), de 1971, que revela um diário do fotógrafo e de sua amada, Yoko, desde a lua de mel e durante duas décadas; e “Winter Journey” (Jornada de inverno), de 1990, sobre os últimos meses de vida de Yoko, que morreu aos 42 anos.


Memórias românticas


O casal Rong Rong & Inri está presente com a série “Personal Letters” (Cartas pessoais), publicada no ano 2000. O nome artístico identifica dois fotógrafos, dois amantes que mantiveram o romance em segredo na China e registraram uma correspondência apaixonada, compartilhada entre os meses de setembro a novembro, com fotos de cenas urbanas e domésticas, planos de detalhe e recortes diversos que expressam emoções, questões da sexualidade e juras de amor. Hervé Guibert, com “Thierry” (1976-1991), também revela sua história de amor com Thierry Jouno, desde o dia em que se conheceram até a morte de Thierry, em 1991. As fotos de Guibert lembram fotogramas de cinema, com os dois amantes juntos ou separados, em quartos de hotel e em cenas de viagens, vestindo fantasias e em poses carregadas de erotismo.












Fotografias e canções de amor: acima, três imagens
de “L'Oeil de L'Amour”, ensaio autobiográfico de 1952
de René Groebli registrado durante sua lua de mel em
Paris. Abaixo, duas fotos de “Thierry” (1976-1991),
série em que Hervé Guibert revela momentos
de sua história de amor com Thierry Jouno 











A série de fotos mais antiga da exposição foi registrada por René Groebli com “L'Oeil de L'Amour” (O olho do amor), de 1952. Em imagens radicalmente intimistas, o olhar de Groebli transporta o observador para dentro do espaço romântico de uma lua de mel vivida pelo fotógrafo em Paris. As cenas, no quarto de hotel, são surpreendentes pelo que revelam de nudez e intimidade, com profunda e amorosa proximidade entre o fotógrafo e sua amada, como se Groebli quisesse registrar cada detalhe daquele momento fugaz que passaram juntos – com sua esposa se vestindo e se despindo, a cama desarrumada, uma peça de roupa, os reflexos no espelho, uma garrafa de vinho, a mesa, sua mão segurando um cigarro aceso.

“Lovesody” (2008), de Motoyuki Daifu, também mostra o período inicial de uma história de amor que teve a duração de seis meses: o fotógrafo captura com franqueza sua experiência de se apaixonar por uma mãe solteira de um menino de dois anos, grávida do segundo filho quando se conheceram. São retratos sem verniz, de um realismo sem tréguas, que mostram a vida cotidiana e as incertezas daquele momento no pequeno apartamento com poucos móveis, cheio de brinquedos e de roupas amontoadas. O brilho de beleza: um sorriso furtivo da amada no flagrante ligeiramente fora de foco.







Fotografias e canções de amor: acima, imagens
do ensaio autobiográfico “Lovesody” (2008),
de Motoyuki Daifu. Abaixo, Angel Zinovieff
em fotografia de 2021 de Collier Schorr.

Também abaixo, dois fotogramas de “Silent Glide”,
videoinstalação de 2008 de Ergin Çavuşoğlur






Imagens híbridas


O amor em meio à fragilidade e a incertezas também está no centro de “Proud Flesh” (Carne orgulhosa), de 2003-2009, de Sally Mann, que registra o diagnóstico e o avanço da distrofia muscular em seu marido Larry. A nudez, a vulnerabilidade, as imagens de ternura – as fotos de Sally Mann oscilam entre o brutal e o poético, mas são sempre comoventes. Há também as fotos que saem do realismo e vão para o território das sugestões oníricas e das colagens que formam imagens híbridas, como é o caso de "Handbook of the Spontaneous Other" (Manual do outro espontâneo), série de 2019 de Aikaterini Gegisian que mistura autorretratos com recortes e fetiches de revistas eróticas, anúncios publicitários e cenários da National Geographic.

Em outra série de 2019, Clifford Prince King encena suas versões para fotos conhecidas, acrescentando sua visão muito pessoal sobre o amor “queer” entre pessoas negras para abordar questões de gênero e de identidade. Sheree Hovsepian também apresenta montagens fragmentadas de imagens da cultura pop em uma série de 2021-2022, evocando o erotismo das formas femininas, com sua irmã como modelo na maioria das fotos, enquanto Collier Schorr, em “Angel Z.” (2020-22), registra cenas da intimidade de seu caso de amor com Angel Zinovieff durante o longo confinamento provocado pela pandemia de covid-19.








Em “Silent Glide” (Deslizamento silencioso), de 2008, Ergin Çavuşoğlu reúne imagens que no livro aparecem extraídas como fotogramas e na exposição são projetadas lado a lado em três telas simultâneas de uma videoinstalação (assista aqui). As cenas, que no início surgem como sequências aleatórias, têm diálogos inspirados em passagens da literatura do russo Liev Tolstói e mostram três momentos na vida de um casal de amantes: a aproximação, o amor intenso e a separação com a relação desfeita, sempre tendo ao fundo, como moldura, barcos cargueiros que atravessam sem parar o mar azul (nos momentos de harmonia) ou o contraste melancólico dos cenários poluídos de instalações industriais.

Cenas de momentos consecutivos de uma breve história de amor também estão em “On War and Love” (Sobre guerra e amor), de 2006, em que Fouad Elkoury registra um diário de 30 dias de guerra no Líbano, de 13 de julho a 14 de agosto. Nas imagens, que surgem como flagrantes ao acaso, os encontros amorosos de uma dupla com grande diferença de idade. Desenhos, palavras e frases manuscritas aparecem sobrepostas nas fotos ou apresentadas como legendas, acrescentando camadas de sentido imprevistas que em alguns casos revelam, em outros apenas sugerem, uma sintonia entre o sofrimento da vida pessoal e o drama coletivo de um cotidiano violento.








Fotografias e canções de amor: acima, as imagens
fragmentadas de Sheree Hovsepian, com detalhes
da anatomia do corpo feminino. Abaixo, duas fotos
de "Another Love Story", o ensaio de autoficção
da fotógrafa Karla Hiraldo Voleau.

No final da postagem, duas imagens de “Proud Flesh”,
ensaio fotobiográfico de 2003-2009, de Sally Mann,
que registra o diagnóstico e o avanço da distrofia
muscular em seu marido Larry; mais uma das fotos
de “L'Oeil de L'Amour”, ensaio autobiográfico
de 1952 
de René Groebli; e duas imagens
panorâmicas das galerias da exposição no
Centro Internacional de Fotografia (ICP)








As camadas de sentido imprevistas também vêm de situações como a comparação inevitável das sequências de fotos de Leigh Ledare em “Double Bind” (Ligação dupla), de 2010: na primeira sequência, sua ex-esposa é fotografada por ele durante uma temporada em uma cabana em uma área rural; na segunda, depois da separação, quando ela estava recém-casada, o novo marido e também fotógrafo Adam Fedderly foi convidado a refazer as fotos com a ex-mulher de Leigh Ledare nos mesmos cenários, nas mesmas poses e situações. O observador é levado a um jogo que contrapõe registros sobre uma relação que terminou e outra que começava, sobre o tempo passado e o tempo presente, a impossibilidade que levou ao rompimento e as promessas de futuro, as memórias e os afetos traduzidos em cada uma das imagens.

Karla Hiraldo Voleau também encena as memórias de uma relação em uma série de fotos que tem o título “Another Love Story”: em um texto breve, ela explica que reuniu fotos de um amor do passado que terminou, de forma dramática, quando ela descobriu que estava sendo traída e enganada porque seu namorado levava uma vida dupla e tinha uma outra família. Para sua performance autobiográfica, a fotógrafa decidiu encenar momentos marcantes de seu álbum de retratos com o artifício de um duplo: ela contratou um modelo parecido com seu antigo amor e reconstituiu nos mínimos detalhes cada uma das fotos, apenas substituindo o amante.

Mais do que contar experiências e histórias de amor de cada fotógrafo, as imagens selecionadas para a exposição e o fotolivro “Canções de Amor – Fotografia e Intimidade” sugerem questionamentos sobre a natureza da fotografia, sua condição de registro subjetivo e de reconstrução de uma realidade, mais do que uma reprodução objetiva do real. “As fotos selecionadas oferecem uma janela para os temas da arte e dos registros documentais que, muitas vezes, surgem entrelaçados ou em colisão, em contradição, como também são entrelaçados e contraditórios na vida cotidiana as questões do desejo e da realidade”, argumenta Sara Raza. Sobre a mesma questão, Nan Coldin declarou: “Toda fotografia está muito próxima do cinema. E também é uma forma de tocar alguém, é uma carícia. Acho que uma foto pode dar, a cada pessoa, acesso a sua própria alma”.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fotografia e canções de amor. In: Blog Semióticas, 30 de junho de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/06/fotografia-e-cancoes-de-amor.html (acessado em .../.../…).



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