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23 de agosto de 2025

Bienal das imagens de guerra

 




As guerras não machucam ninguém além das pessoas que morrem. 

–– Salvador Dalí em depoimento a Alain Bosquet em 1969.  

......





Sobre nosso olhar diante das guerras e das imagens de guerra, nosso silêncio, nossa indiferença ou nosso protesto, Susan Sontag disse quase tudo em “Diante da dor dos outros”, ensaio comovente, de fôlego e de impacto, publicado em 2003 – último livro que ela publicou, menos de um ano antes de sua morte aos 71, em 2004. Retorno ao ensaio de Sontag sobre as imagens da dor e da guerra reproduzidas diariamente por todas as mídias porque recebi, por e-mail, o belo programa da Bienal Internacional de Arte de Pontevedra, que está de volta 15 anos depois de sua última edição na província de Galiza, na Espanha, com o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás”.

A programação é extensa e tenta abraçar os mais diversos caminhos da arte contemporânea nos suportes tradicionais e formatos multimídia, presenciais e on-line. O tema da bienal tem sua inevitável inspiração no ativismo antiguerra de Susan Sontag – em sua opção por uma arte que fosse abertamente comprometida com uma real intervenção diante das guerras e da violência do presente. Pelo que se anuncia, é a temática da guerra que conduz a curadoria, com imagens de confrontos armados e massacres ganhando destaque na condição de obra de arte, incluindo retrospectivas históricas e experiências inéditas e imprevisíveis da arte viva contemporânea, como as instalações de Zehra Dogän, artista e jornalista curda nascida na Turquia, que lançam o visitante em barricadas e simulações de confrontos diante de tanques e tropas invasoras.









                   



Bienal das imagens de guerra: no alto e acima,

Etelastik”, instalação multimídia de Zehra Dogän

que lança o visitante no confronto diante dos tanques.

Também acima, os curadores da Bienal de Pontevedra

na cerimônia de abertura da edição 2025 do evento.


Abaixo, "Resiliência", escultura da artista do

Paquistão, 
Wardha Shabbir, com um imenso coração

de onde brotam folhas e flores, tudo revestido por resina

com tonalidade vermelho sangue. Também abaixo,

fotografia de cena de 
“Fora de Si”, performance de

dança e artes cênicas de Nuria Sotelo e Luz Arcas;

e “Labola”espetáculo de O Ribot, premiado em 2021

com o Leão de Ouro na Bienal de
Dança de Veneza.

Todas as imagens
reproduzidas abaixo fazem

parte do catálogo on-line da Bienal de Pontevedra,

exceto quando indicado nas respectivas legendas






                        
 






O imprevisível presencial


Entre as diversas instalações com suportes audiovisuais e multimídia, o imprevisível também é marcante nas obras de Rosalind Nashashibi, artista da diáspora Palestina, que resgata cenas da Faixa de Gaza que desapareceram com o massacre genocida praticado pelas forças invasoras e terroristas de Israel contra tudo e contra todos: crianças que brincam, pessoas e cavalos que se banham nas águas do mar, jardins e bosques de oliveiras que o bombardeio incessante das tropas israelenses transformam em ruínas e corpos destroçados. São imagens que gritam, em sua aparente simplicidade e sua beleza tão vulnerável. Visitantes também têm a experiência presencial de olhar as fotografias que o lendário Robert Capa registrou na Guerra Civil – e por coincidência algumas das ampliações estão em exposição em locais realmente próximos de onde foram fotografadas pelo mais célebre dos fotógrafos de guerras e por outros fotojornalistas que fizeram história.

Sobre todas as obras e artistas da bienal está indicado um consenso inequívoco sobre o genocídio praticado por Israel contra o povo palestino, talvez por isso o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás” faz referência, com muita propriedade, ao paradoxo de uma emblemática citação do alemão Theodor Adorno, que sempre retorna quando o debate aborda a guerra em interface com a arte e a literatura. Adorno defendeu, em 1949, um pressuposto radical, quando argumentou que “escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro” – no ensaio “Crítica da Cultura e Sociedade” (publicado no Brasil em 2002 no livro “Indústria cultural e sociedade”, pela editora Paz e Terra).

A afirmação, que provocou e ainda provoca polêmicas, retornaria em outros textos em que o filósofo contextualiza sua máxima com a advertência de que ele não pretendia que se deixasse de escrever poesia, mas sim que a arte e a literatura, após o Holocausto, não podiam mais ser ingênuas ou indiferentes à barbárie ocorrida, sendo necessário que tanto a arte como a literatura refletissem sobre a catástrofe. A ironia do destino é que agora, décadas depois do Holocausto e da máxima de Adorno, são os judeus no comando do Estado de Israel que usam do imenso poderio militar para cometer diariamente o horror dos massacres e do genocídio contra milhares de palestinos, um povo que não tem exércitos.



          


Bienal das imagens de guerra: acima,
um selo postal da Alemanha em homenagem
ao centenário de Theodor Adorno, onde se lê
o rascunho com a célebre e melancólica citação:
“escrever um poema depois de Auschwitz
é um ato bárbaro”
.

Abaixo, extratos de Gaza Elétrica, fotografias
e instalação multimídia de Rosalind Nashashib
que mostram cenas do território de Gaza, belas e
vulneráveis,
registradas em 2014 e 2015, antes da
completa destruição e do massacre nos últimos anos
praticado pelos ataques e bombardeios de Israel
















História de transformações


A Bienal de Pontevedra tem uma história de transformações. No início, desde sua criação em 1969, foi uma exposição competitiva destinada essencialmente à promoção de artistas locais, como se pode ler na retrospectiva do site oficial (veja o link no final desta página). A partir de 1974, a bienal ganhou abertura para artistas internacionais e, em 1982, abandonou o seu caráter competitivo. Por questões internas de gestão e dificuldades financeiras, o evento foi interrompido em 2010, retornando agora com a força inquestionável que a extensa programação vem demonstrar. Sob a curadoria de Antón Castro, historiador da arte e professor da Universidade de Vigo, com a curadoria adjunta de Agar Ledo e Iñaki Martínez Antelo, a bienal abriu formalmente no final de junho e se estenderá até 30 de setembro, ocupando diversos espaços da Galiza, com algumas exposições e instalações seguindo depois para outros espaços da Espanha e outros países da Europa.

Na apresentação da bienal, os curadores ressaltam que as duas guerras mundiais, em sua época, não foram temas marcantes das artes tradicionais da pintura e da escultura, mesmo tendo influenciado radicalmente os movimentos de vanguarda e os rumos da Arte Moderna. As experiências de representar a morte e a violência provocadas pelas máquinas de guerra tiveram mais força na fotografia e no cinema, aparecendo implícitas, ou quase não ditas, de forma metafórica ou alegórica, na literatura e nas formas da arte em geral. Houve, contudo, uma forte alteração de perspectiva, porque a guerra não mais aparecia de forma gloriosa e heroica, como tinha sido representada por muitos artistas nos séculos anteriores.








Bienal das imagens de guerra: arquivo
histórico de registros da Guerra Civil Espanhola,
a partir d
o alto, uma tropa da resistência em
Cerro Muriano, uma vila da Andaluzia, Espanha,
em 5 de setembro de 1936, em fotografia de
Robert Capa. Acima, um morto é transportado
na frente da resistência em Segóvia, em
fotografia de junho de 1937 de
Gerda Taro.

Abaixo, os soldados em uma pausa para uma
fotografia na rua, em Granada, 1937, uma cena
fotografada por 
Martín Santos Yubero;
o fotojornalista uruguaio Pau Lluis Torrents,
com a câmera apoiada nos joelhos, conversa com
militantes da resistência na frente de Aragão, em
agosto de 1937, em fotografia de
Agostí Centelles;
um grupo de republicanos de esquerda assassinados
pelos
nacionalistas conservadores, liderados pelo
general Francisco Franco,
em Carabanchel Bajo (Madri),
em fotografia de dezembro de 1936 de Erich Andres;

e as covas vazias, à espera dos mortos, no cemitério
de Huesca, na província de Aragão, em fotografia
de abril de 1938 de
Albert-Louis Deschamps

















Os desastres da guerra


Uma importante exceção na representação da guerra surge de forma marcante na obra de Pablo Picasso – em 1937 ele pintou “Guernica”, sob o impacto de um dos massacres na Guerra Civil, que foi a destruição por bombardeios na pequena cidade de Guernica, criando uma obra monumental que tornou-se uma referência como o manifesto de maior impacto contra a violência do século 20. “Guernica”, a obra original, não foi cedida à Bienal de Pontevedra. Em 1981, ela foi transferida do Museu de Arte Moderna de Nova York para Espanha e permanece no Museu Rainha Sofia, em Madri, mas está presente na bienal na forma de homenagem, com uma recriação feita por uma artista do México, Fritzia Irizar, que produziu uma réplica da pintura original, feita em escala 1:1, sobre a qual foi apresentada uma performance de arte viva.

Na abertura da bienal, 
Fritzia Irizar disparou em direção à réplica de "Guernica" milhares de recortes com retratos das vítimas de massacres recentes em cidades da Palestina, da Síria, da Ucrânia, e os retratos terminaram afixados à tela que havia sido recoberta com cola de secagem rápida, gerando um efeito que oscila entre o festivo e o trágico. A homenagem a "Guernica" destaca a urgência para não esquecermos as lições do passado, provocando reflexões tanto sobre o sofrimento e o desespero de populações inteiras como sobre a banalização cotidiana da violência na cultura visual contemporânea.   

Outra exceção importante na representação dos cenários e das consequências da guerra, mas no século 19, vem de outro artista espanhol, Francisco de Goya, cujas obras estão presentes na bienal. Entre 1810 e 1815, Goya criou “Los Desastres de la Guerra”, uma série de 82 desenhos e gravuras que são referenciais pelo que retratam brutalmente tanto em evidências realistas como em metáforas e símbolos sobre a violência da guerra, tendo como tema e cenário a resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão. A série de Goya, não por acaso, fornece argumentos para Susan Sontag em “Diante da dor dos outros” e também surge como um fio condutor dos múltiplos recortes que guiaram a curadoria da bienal na seleção dos 60 artistas e das 400 obras em exposição.


















         



Bienal das imagens de guerra: no alto, "Guernica",
a obra monumental de Pablo Picasso, fotografada
por 
Francisco Seco em 2017 no Museu Rainha Sofia,
em Madri; e 
a recriação da obra pela artista do México,
Fritzia Irizar, na tela inteira e no detalhe, com as
fotografias recortadas e afixadas de milhares de
vítimas de massacres contemporâneos. Acima,
uma das gravuras originais da série
Os desastres da guerra, do mestre espanhol
Francisco de Goya (1746-1828).


Abaixo, “Naves Espaciais” (Astronauta), pintura
em técnica mista de 2024 de artista da Rússia,
Taisia Korotkova, peça da série Reconstrução;
uma imagem da série de projeções em técnica
mista "Ecologia invisível", do artista indígena
brasileiro Denilson Baniwa, uma alegoria sobre
o equilíbrio natural que tem sido violado pela
guerra cotidiana de humanos contra animais e
plantas; e “Medo”, instalação multimídia criada
a partir de uma histórias em quadrinhos de 1948,
obra do artista espanhol Antoni Muntadas
que denuncia a normalização das guerras
na imprensa e na cultura popular.

No final da página, "Casa" e "Tanque russo",
intervenções em slides de “ativismo poético”
do artista de Cuba, Dagoberto Rodriguez, um
dos fundadores de Los Carpinteros, coletivo de
artistas cubanos que usa humor e ironia para
abordar questões políticas sobre as guerras,
as migrações humanas e as mudanças climáticas












É quase inevitável associar os cenários violentos da série de Goya ao olhar de fotógrafos presentes na bienal com registros de guerras desde o começo do século 20, seja na Segunda República, na Primeira Guerra Mundial, na Guerra Civil ou na Ditadura Franquista, na Segunda Guerra ou nos conflitos intermináveis da segunda metade do século 20 até o presente em diversas nacionalidades. Há alguns nomes célebres, especialmente na cobertura dos combates durante a Guerra Civil na Espanha, na década de 1930, com destaque para o húngaro Endre Ernő Friedmann (1913-1954), que se tornou uma figura lendária sob o pseudônimo de Robert Capa; os alemães Erich Andres (1905-1992), Walter Reuter (1906-2005) e Gerda Taro (1910-1937); a húngara Kati Horna (1912-2000); o uruguaio Pau Lluis Torrents (1891-1966); os espanhóis Martín Santos Yubero (1903-1994) e Agustí Centelles (1909-1985); o francês Albert-Louis Deschamps (1889-1972) e o polonês Emil Vedin (1912-2001), entre outros.

Há também os fotógrafos nos cenários contemporâneos de guerras ocasionais ou permanentes que atravessam o Leste Europeu, os países da África, o Oriente Médio, a Ásia ou as Américas, neste nosso tempo presente em que os espectadores estão diante da dor dos outros observando-a como um espetáculo, muitas vezes em tempo real e simultâneo, acompanhando o horror pela TV ou pelas redes sociais nas telas do computador ou em celulares – com massacres de populações inteiras, incluindo muitas crianças, em atrocidades que dispensam mediação de jornalistas ou historiadores e acontecem ao vivo, diante dos olhos de milhões de espectadores. Seja por meio de fotografias, do cinema documental, dos fragmentos de transmissões on-line, seja em instalações presenciais, em pinturas, em ilustrações, em esculturas, em performances ou em técnicas mistas e imprevisíveis, as imagens de guerra reunidas pela Bienal de Pontevedra são amostras de registros incômodos e extremamente atuais da arte produzida em situações extremas – cada trabalho e todos, em conjunto, soando como alertas inquietantes e brutais.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bienal das imagens de guerra. In: Blog Semióticas, 23 de agosto de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/08/bienal-das-imagens-de-guerra.html (acesso em .../.../…).



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30 de setembro de 2023

Pessoas do deserto

 





Gauri Gill, uma fotógrafa que há duas décadas registra imagens de pessoas em situação de pobreza, em vilarejos da área rural e no deserto do Rajastão, ao norte da Índia, foi anunciada vencedora da edição 2023 do Prix Pictet, prêmio internacional de fotografia e sustentabilidade, considerado um dos mais importantes da atualidade. A organização do prêmio, que nesta 10ª edição teve o tema “Humano”, havia divulgado uma lista com ensaios dos 12 fotógrafos finalistas de 11 países, selecionados por um júri independente nomeado pelo grupo financeiro Pictet, com sede na Suíça, que criou a premiação em 2008. O prêmio é entregue a cada dois anos e, em seguida à premiação, há uma extensa programação itinerante que inclui exposições e eventos paralelos com conferências, cursos, debates e mostras audiovisuais em 10 países.

O ensaio vencedor do Prix Pictet, “Notes from the Desert” (Notas do Deserto), reúne uma série de fotografias em preto e branco com pouco contraste, o que dá a elas um tom envelhecido, com uma temática na qual Gauri Gill trabalha desde 1999 e se concentra em pessoas das escolas rurais do Rajastão, na Índia. A fotógrafa define seu trabalho como “escuta ativa” sobre comunidades marginalizadas para representar o espectro de suas vidas. No dossiê de imprensa da premiação, Gauri Gill faz um relato comovente sobre a pobreza e sobre as dificuldades da região e declara que sua meta foi dar continuidade ao trabalho de fotógrafos que admira. Ela cita três mestres como suas maiores influências: o norte-americano Alfred Stieglitz (1864-1946); o alemão August Sander (1876-1964); e Robert Frank (1924-2019), nascido na Suíça. Os três são referências na história da fotografia por seus célebres portifólios com retratos de pessoas comuns e pela aproximação com as causas sociais.

 

 



Pessoas do deserto: acima, a fotógrafa Gauri Gill na
cerimônia de premiação do Prix Pictet, em Londres,
em 28 de setembro de 2023. No alto e abaixo,
Urma e Nimli, duas meninas da escola do distrito
de Lunkaransar. Também abaixo, Sumri, filha
do pastor de cabras no distrito de Barmer; e outras
fotografias do ensaio premiado de Gauri Gill







 


  


 



Na última edição da premiação, em 2021, que teve como tema “Fire” (Fogo), a vencedora foi a norte-americana Sally Mann, com uma série de fotografias, também em preto e branco, sobre incêndios florestais no estado da Virgínia, na região sudeste dos Estados Unidos. Intitulada “Blackwater, 2008-2012”, a série de fotografias de Sally Mann registrou imagens do que restou depois da destruição pelo fogo nos pântanos da Virgínia, mesma região que foi devastada e incendiada nos séculos passados por fazendeiros em busca de seus escravos fugitivos que tinham aquele território selvagem como refúgio e esconderijo. Sally Mann usou equipamentos e técnicas que eram usados nos primeiros tempos da fotografia, no século 19 (veja também Semióticas – Imagens de fogo e revolta).


Desigualdade social e crise ambiental


Gauri Gill, a fotógrafa premiada na edição 2023, recebeu um prêmio em dinheiro equivalente a US$ 109 mil e terá seu trabalho editado em um fotolivro de luxo, além do destaque na exposição itinerante que estará aberta ao público no Victoria & Albert Museum, em Londres, até 22 de outubro, e que depois deverá seguir para outras capitais de vários países. Nesta edição, o Prix Pictet também anunciou a novidade de uma premiação pela escolha do público (People’s Choice Award), com votações pelo site oficial do prêmio que também apresenta todas as fotografias dos 12 ensaios pré-selecionados (veja o link no final desta postagem). A votação está aberta e o resultado será anunciado no encerramento da exposição em Londres.

 





Pessoas do deserto: acima, Jannat, menina da
escola de Barmer. Abaixo,
Hanuman Nath com seus
filhos na cerimônia do Holi Day, em Lunkaransar.
Também abaixo, paciente em um exame médico no
posto de saúde mantido pelo governo em Barmer




         




No dossiê de imprensa, Isabelle von Ribbentrop, diretora executiva da premiação, explica que, neste nosso mundo que enfrenta desafios sem precedentes, desde a desigualdade social às crises ambientais, era crucial que o Prix Pictet virasse a lente para a própria humanidade. “O tema Humano fornece uma plataforma de possibilidades sobre as complexidades, vulnerabilidades e pontos fortes da condição humana. Permite aos artistas capturar e comunicar as histórias de indivíduos e de comunidades”, ressalta. Vulnerabilidade, de fato, parece ser o tema central da condição humana nas imagens de Gauri Gill. Ela revela que começou a fotografar as escolas das vilas do Rajastão em abril de 1999, depois de presenciar uma cena que a deixou emocionada: uma menina pequena sendo violentamente espancada na sala de aula pela professora.

Territórios do deserto

“Depois de assistir aquela cena chocante, que parecia normal para todos que estavam presentes, retornei a Delhi e propus a um jornal onde trabalhei a realização de uma fotorreportagem sobre como era ser uma menina em uma escola de aldeia, mas me disseram que minha pauta carecia de interesse para que os leitores urbanos pudessem se identificar. Então decidi começar o trabalho por conta própria e comecei a viajar pelas escolas da zona rural e pelos territórios do deserto, pelos distritos de Jaipur, Jodhpur, Osiyan, Bikaner, Barmer, Phalodi, Baran e Churu, fotografando crianças e adultos, principalmente nas pequenas aldeias e nos vilarejos. Este trabalho já dura mais de duas décadas e uma seleção das imagens formam este ensaio agora premiado”, recorda Gauri Gill.

 

           
 


Pessoas do deserto: acima, Izmat, moradora de
Barmer. Abaixo,
Jogiyon ka Dera, morador de
Lunkaransar; e um momento de lazer que
resultou em um flagrante surreal de
pai e filha também em Lunkaransar




 




 

Nascida em Delhi, em 1970, e com formação no curso superior pelo Delhi College of Arts, Gauri Gill reconhece que sua inspiração vem, principalmente, dos fotógrafos que admira, os mestres August Sander, Alfred Stieglitz e Robert Frank, pela ternura que cada um deles demonstrou ao registrar pessoas anônimas e quase sempre marginalizadas. Tendo como modelo de trabalho os portifólios dos três fotógrafos, ela explica que começou organizando as fotografias das escolas como se fossem álbuns de família, e que depois de anos de trabalho viajando pelas áreas rurais acabou formando laços afetivos com vários personagens que fotografou e reencontrou tempos depois. Nos últimos anos ela também fez viagens internacionais a trabalho e suas fotos foram publicadas em veículos importantes de imprensa, como o jornal inglês The Guardian.


Arte e fotojornalismo


Uma de suas séries fotográficas de Gauri Gill que tiveram repercussão foi “The Americans”, registro de sua primeira viagem aos Estados Unidos, com fotografias que tentam estabelecer um diálogo com a célebre obra homônima de Robert Frank que teve grande destaque, com exposições e um fotolivro publicado no final dos anos 1950, com texto de apresentação do escritor Jack Kerouac. Na versão de Gauri Gill para “The Americans”, ela fotografou apenas os remanescentes de povos indígenas, nas aldeias das áreas rurais e na periferia das grandes cidades, em cenas de trabalho da vida urbana e também nos rituais que celebram e recordam seus antepassados dizimados pelos colonos na ocupação do território.



              

Pessoas do deserto: acima, um poço de água
(no detalhe à esquerda da foto) na imensidão do
deserto do Rajastão. Abaixo,
Mir Hasan com seu
avô Haji Saraj ud Din, moradores de Barmer;
e a fotógrafa em um autorretrato.

Também abaixo, o cartaz na abertura da
exposição do Prix Pictet 2023 no Victoria &
Albert Museum em Londres; uma das fotografias
em destaque na exposição; duas fotografias da
série publicada no fotolivro "Atos de aparência";
a fotógrafa Gauri Gill em Delhi, na Índia; uma
fotografia da série Jannat 1999-2007; e duas
imagens do fotolivro "Campos de Visão", que
reúne fotografias de Gauri Gill e intervenções
gráficas de Warli Rajesh Vangad









Durante a temporada em que morou nos Estados Unidos, Gauri Gill também fez cursos de pós-graduação na Parsons School of Design, em Nova York, e na Stanford University, na Califórnia. Recentemente, ela publicou dois fotolivros pela Patrick Frey Editions com seleções de seu trabalho nas últimas décadas, "Acts of Appearance" (Atos de aparência),  de  2022, sobre artistas populares da Índia que produzem máscaras e objetos de papel machê para festas tradicionais, e “Fields of Sight" (Campos de visão),  de  2023, em parceria com o artista indiano Warli Rajesh Vangad, com retratos de paisagens ligadas a rituais sagrados e a histórias míticas da Índia. Ela também teve diversas exposições de suas fotografias em museus dos Estados Unidos e na Europa, incluindo participações na Documenta de Kassel, na Alemanha, e na Bienal de Veneza, na Itália.

Atualmente Gauri Gill vive exclusivamente de seu trabalho como fotógrafa. Em Delhi, onde mora, ela fundou em 2006 uma revista mensal editada no formato tradicional, em papel, e também na versão on-line, dedicada a divulgar a obra de fotógrafos profissionais e de iniciantes. O nome da revista é “Camerawork Delhi”, em homenagem ao lendário “Camera Work”, jornal de vanguarda fundado por Alfred Stieglitz em Nova York que teve 50 edições, entre 1903 e 1917, e que se tornou a primeira grande referência da fotografia como arte.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Pessoas do deserto. In: Blog Semióticas, 30 de setembro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/09/pessoas-do-deserto.html (acessado em .../.../…).



Para uma visita virtual à exposição do Prix Pictet 2023,  clique aqui.

 

 

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