Movimento estético e artístico que provocou impacto na busca pela liberação das expressões do inconsciente, dos sonhos, da irracionalidade e das distorções da realidade, o Surrealismo também teve importância como ação política e ideológica antiautoritária e antifascista, além de representar uma linha de força fundamental nos grupos de vanguarda da Arte Moderna. Sediado inicialmente na França, especialmente em Paris, o movimento rapidamente se espalhou pelo mundo em suas mais diversas formas de expressão, levando os domínios da arte, da literatura e do cinema “até os limites extremos do possível” – como aponta o alemão Walter Benjamin no ensaio “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”.
Na língua francesa, o prefixo “sur” sempre existiu com acepções em “acima”, “sobre” ou “além”, mas o termo “sur-realismo” só foi usado pela primeira vez em 1917 pelo escritor e crítico de arte Guillaume Apollinaire. Em um artigo, e em sua peça teatral “As tetas de Tirésias”, considerada uma obra precursora do surrealismo, Apollinaire escreveu: “Quando o homem quis imitar o caminhar, criou a roda, que não se assemelha a uma perna. Assim, criou o surrealismo sem se dar conta”. Em outubro de 1924, sete anos depois do primeiro registro na referência pioneira de Apollinaire, o escritor e poeta André Breton publicou o “Manifesto Surrealista”, marco fundador do movimento – e define o Surrealismo como automatismo psíquico puro pelo qual se destina a expressar o verdadeiro funcionamento do pensamento e dos sonhos, livre de qualquer controle ou preocupação com a razão ou a moral.
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Um
século depois do marco inaugural de André Breton, um olhar em
retrospectiva consegue estabelecer as características difusas e
marcantes desta visão artística que explora as dimensões mais
eletrizantes da imaginação humana. Nas celebrações do centenário
e da herança do movimento, um dos destaques vem da Throckmorton Fine
Art, de Nova York, com uma exposição sobre o impacto do movimento
na fotografia, reunindo fotógrafos que atuaram na Europa, nos EUA e
no México nos anos de 1920 e nas décadas seguintes. No acervo
selecionado estão obras que moldaram as formas e a estética do
Surrealismo na fotografia e que levantam questões sobre a natureza
da realidade e da identidade individual – desde a época em que a
fotografia era questionada em seu estatuto de arte ou considerada uma
arte menor.
Imagens de sonhos
O
uso de técnicas como o automatismo psíquico, as
associações livres
e a colagem para explorar o mundos dos
sonhos
e dos
desejos
surgiram
como temas centrais no
primeiro
manifesto
de André Breton. Anos
depois, viriam mais dois manifestos também escritos por Breton,
“Surrealismo e Pintura”, de 1928, e o “Segundo Manifesto do
Surrealismo”, de 1930. Há
um terceiro documento, o “Manifesto por uma Arte Revolucionária
Independente”, co-escrito por Breton, Diego Rivera e Leon Trotsky no México, em 1938, e
publicado na revista Partisan Review. Desde então, o movimento se
espalhou pelo mundo como tendência e influência para artistas das
áreas mais variadas – incluindo o Brasil, onde o Surrealismo
prosperou na primeira geração dos modernistas da Semana de 1922,
com destaque na literatura de Oswald de Andrade, Murilo
Mendes, Jorge de Lima
– ou
nas
artes plásticas de
Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Flávio
de Carvalho
e
Cícero Dias,
além da presença incontornável de Maria Martins, parceira de
Marcel Duchamp e primeira mulher a despontar como expoente nos
círculos surrealistas de Paris.
Nomeada
como “Surrealismo: Mais de um século unindo os reinos dos sonhos e
da realidade” (Surrealism: Over a Century Merging the Realms of
Dreams and Reality), a mostra na galeria
Throckmorton
Fine Art, com
curadoria da historiadora da arte María Míllan, reúne 50
fotografias ampliadas,
a
maioria delas em preto
e branco,
de
25 artistas célebres,
de
importância histórica, que
abraçaram elementos do acaso e um
forte
simbolismo na
composição como método de trabalho para
criar representações inesperadas de uma nova linguagem por meio da
fotografia. Ao contrário da atuação centrada exclusivamente na
produção fotográfica, o que fotógrafos
próximos ao movimento surrealista apresentam
são possibilidades criativas de intercâmbio com formas de expressão
das artes plásticas, das artes cênicas, da literatura, do cinema –
aproximando flagrantes
do real,
por
meio do aparato fotográfico, ao inesperado, ao impossível e às
formas do
inconsciente.
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Pelas fotografias selecionadas, é possível perceber que a linguagem e o espírito do movimento surrealista se estendem para muito além dos nomes que a história da arte enumera como artistas canônicos, alcançando também fotógrafos que adotaram abordagens lúdicas e experimentais inspiradas nos ideais estéticos do Surrealismo. Na fotografia, tais ideais formam um arsenal de composição potencializado com base no próprio aparato dos equipamentos, já que a linguagem fotográfica ainda navegava na transição entre as possibilidades do meio como documentação e auto-expressão. Na aproximação com o Surrealismo, novas possibilidades surgiam na busca pelos limites extremos da técnica em variações de dupla exposição, negativos sobrepostos, fotomontagens, solarização e polarização, uso de lentes especiais, de iluminação incomum, de perspectivas distorcidas e enquadramentos surpreendentes ou adereços absurdos com o objetivo de proporcionar resultados de efeitos dramáticos.
Outra
característica marcante no acervo selecionado pela
Throckmorton
Fine Art está
no
número expressivo de mulheres no
espectro da fotografia surrealista. Dos 25 artistas presentes
na
exposição, mais da metade são mulheres, com
destaque para Dora Maar, Kati Horna, Stella
Snead, Tina
Modotti, Berenice Abbott, Germaine Krull, Lola Álvarez Bravo,
Mariana Yampolsky, Imogen
Cunningham, Graciela
Iturbide, María
García e Francesca
Woodman. Também
marcam presença na
exposição composições
inesperadas na
forma e no
enquadramento de objetos inanimados por Edward Weston; nas distorções
do corpo por André Kertész; nos flagrantes irônicos de Henri
Cartier-Bresson; e nas encenações mirabolantes de Philippe Halsman.
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Poder da imaginação
Para
o senso comum, que faz com frequência uma associação
direta do
Surrealismo
com
as
provocações de Salvador Dalí e René Magritte nas artes plásticas,
de
Luis
Buñuel no cinema ou de
Antonin
Artaud no teatro, podem
parecer pouco
expressivas as pequenas variações sobre imagens cotidianas em algumas
fotografias selecionadas. Tais variações, no entanto, não podem
ser separadas
da estética surrealista se
questionam a ditadura da razão e valores burgueses como pátria,
família, religião, trabalho, ou se fazem um
elogio
subversivo ao poder da imaginação – porque no primeiro manifesto
Breton já
declarava
sua crença na possibilidade de reduzir dois estados tão
contraditórios, sonho e realidade, a uma espécie de realidade
absoluta, de sobre-realidade (ou surrealidade).
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Uma importante alteração no Surrealismo surge no final da década de 1930, com a Segunda Guerra Mundial explodindo principalmente em países da Europa. Neste cenário, o México atrai uma onda de artistas europeus que fugiam das zonas de guerra. Há também, além de suas origens europeias, um evento na Cidade do México em 1940, a Exposição Internacional de Surrealismo de Breton, que marca um momento crucial para o envolvimento e a contribuição da América Latina para o estilo e os ideais surrealistas. Embora o movimento seja amplamente considerado europeu, obras de artistas e fotógrafos do México e de outros países latino-americanos destacam a relação do Surrealismo com um continente que também abrigava tradições e imaginação criativa inclinadas para o maravilhoso e o fantástico – como confirma a ascensão do realismo mágico na literatura e nas artes plásticas.
Fronteiras da realidade
As
imagens violentas e chocantes dos campos de batalha na Segunda Guerra
podem receber a nomeação de surrealistas, pelo
impacto que provocaram,
já que o termo passou a ser incorporado como adjetivo na linguagem
cotidiana para se referir ao que é estranho ou surpreendente, mas o
movimento teve o seu desfecho no pós-guerra. O
fim do surrealismo como uma força vital está
ligado
a
uma exposição,
“Le
Surrealisme en 1947”,
concebida
e
realizada por
André
Breton
e Marcel Duchamp para marcar o retorno do movimento
surrealista
a Paris após a guerra. A
exposição, na verdade, demonstrou
que a geração mais jovem, incluindo artistas como Francis Bacon,
Alan Davie, Eduardo Paolozzi e Richard Hamilton, estava se movendo em
direções
diferentes
e
com outros ideais.
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Um século após seu surgimento, o Surrealismo continua a existir, como estilo e como referência, não somente na fotografia, mas em todos os domínios da criação artística, tanto nos países da Europa como em outros continentes, em grande parte como citação às obras dos artistas que foram pioneiros do movimento nas décadas de 1920 e 1930. Seu legado e influência se mantêm inegáveis sempre que estão em cena imagens com sugestões oníricas e inesperadas, bizarras ou grotescas, que nos levam a reavaliar nosso olhar sobre a realidade e a vida cotidiana. O acervo selecionado na exposição atual, com uma gama significativa de imagens de fotógrafos pioneiros, tem grande valor como retrospectiva não só porque promove uma revisão das conquistas da fotografia surrealista, mas porque reafirma a importância, urgente e contínua, de examinarmos as fronteiras entre a realidade e as representações da realidade.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Surrealismo na fotografia. In: Blog Semióticas, 2 de dezembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/12/surrealismo-na-fotografia.html (acesso em .../.../…).
Para visitar a exposição na Throckmorton Fine Art, clique aqui.
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